“O mestre é tudo nas escolas, deve ser instruído e prático.” 5
Há uma ampla e crescente produção na historiografia educacional brasileira 6 sobre as diversas ações em relação à formação de professores primários durante o período imperial brasileiro. De forma mais específica, alguns estudos se centram na formação de professores relacionada às escolas normais instituídas a partir de 1835 (cf. TANURI, 2000) no país 7 . Entretanto, um grupo de trabalhos 8 se propõe iluminar outro aspecto da formação de professores no decorrer do século XIX: a forma como sujeitos que não frequentaram esse espaço institucional constituíram-se como docentes primários. O artigo que aqui se apresenta, compartilha da abordagem deste último grupo, e tem por intuito demonstrar de que modo alguns professores e professoras primários aprenderam seu ofício na província paranaense, antes da instituição de espaços específicos para a formação desse profissional, na tentativa de contribuir com futuras discussões para a história da constituição da profissão docente. Mais detidamente, volta-se o olhar para o que se denomina na historiografia educacional brasileira como formação pela prática de professores primários, em meio ao cenário educacional que se descortina na província paranaense após sua emancipação política no ano de 1853 9 . Vale salientar que o objetivo deste estudo, para além de evidenciar esse tipo de formação como precária e insuficiente ou mesmo apresentá-la como de qualidade em comparação com a formação especializadada escolas normais, é colocar em tela o outro meio de preparar os futuros professores sem a constituição dessa instituição, por compreender que a formação pela prática marcou um período em que a instrução pública estava se consolidando em meio a dificuldades e tensões, ações e deliberações a favor e em decorrência da sua melhoria.
Valendo-se da consulta a documentos advindos dos sujeitos envolvidos com a instrução pública naquele momento (segunda metade do século XIX) – relatórios dos presidentes da província, relatórios dos inspetores de ensino (inspetor geral e inspetor de distrito), relatórios de professores, cartas e ofícios de professores e inspetores, disponíveis no acervo do Arquivo Público do Paraná 10 , além da legislação educacional do período, é possível identificar indícios que nos ajudam a vislumbrar alguns aspectos de um tipo de formação de muitos professores paranaenses no decorrer da segunda metade do século XIX.
Estes são documentos que oferecem muitas e distintas possibilidades de pesquisa e auxiliam no entendimento da complexa organização do ensino na província paranaense, além de relevantes no tocante a uma aproximação com o universo escolar paranaense durante o período provincial. Diante disso, podemos considerar os documentos aqui utilizados como testemunhos involuntários (BLOCH, 2001), uma vez que foram produzidos por seus autores em uma época e com um objetivo específico, sem a intenção de posteridade. Entretanto, principalmente com relação aos relatórios, leva-se em conta que os mesmos eram uma exigência legal, e que os itens sobre os quais se discorre eram direcionados e visavam informar sobre a instrução ao destinatário (do professor ao inspetor de ensino e do inspetor de ensino ao presidente da província), ou seja, atentamos também para a possibilidade de serem relatos passíveis de coerção por sua natureza de produção. Podemos complementar a análise desses documentos, tratando-os como monumentos (LE GOFF, 1984), pois, ainda que involuntariamente, constituem-se como parte do empenho de uma sociedade em legar a períodos posteriores certas imagens de si própria. Em um dos aspectos de sua análise, é possível considerar a legislação educacional prescrita durante a última metade do oitocentos como um discurso referente à uma época que, além de prescrever normatizações, oferece-nos “informações sobre o ordenamento legal do processo pedagógico” (FARIA FILHO, 1998, p. 124).
A partir do manejo com as fontes, é possível indicar ainda que, na perspectiva dos presidentes provinciais, inspetores de ensino e professores, o fundamento da formação pela prática dos professores primário paranaenses se ancorava na , e constituía e ratificava a experiência docente. Experiência que, atrelada à representação (CHARTIER, 2002) que se tinha sobre a figura e papel do professor, perpassava e entrelaçava os requisitos necessários para o provimento de pessoal das escolas primárias, a estruturação do professorado junto ao governo e, ainda, os modos como esses professores exerciam o magistério.
“Para a instrução pública, como para tudo, a experiência é o guia mais seguro que se deve procurar” 11
No ano de 1857, o inspetor geral de ensino Joaquim Ignácio Silveira da Mota, dissertava em seu relatório 12 sobre as instruções expedidas em regulamento 13 , publicado no mesmo ano, quanto ao modo de preparar os futuros professores da província paranaense. Em seus escritos nos deparamos com a formação de meninos e meninas que tivessem vocação para o ensino com o intento de habilitá-los como professores primários, pelo “sistema de classes normais”, ou como distinguia o inspetor – como “o outro meio de formar professores” (MOTA, 1857, p. 47, grifo nosso). A formação de professores pelo sistema de classes normais se caracterizava pela constituição de turmas de alunos mestres e/ou professores adjuntos, e era chamada pelos seus propositores de sistema holandês, austríaco-holandês ou francês, uma vez que tomavam por referência sua adoção nesses países. No império brasileiro tem-se notícia, por alguns estudos já feitos, de que foi utilizado, com distinções e em diferentes momentos (no decorrer do século XIX), nas províncias do Rio de Janeiro (VILLELA, 2011a; SCHUELER, 2005), Ceará (DINIZ, 2008), Goiás (PRUDENTE, 2009), Minas Gerais (ROSA, 2003), entre outras. Esse sistema consistia, basicamente, em conduzir os alunos que se mostrassem aptos a ensinar – geralmente aqueles que já serviam como monitores 14 – e que apresentassem bons resultados nos exames finais para a categoria de alunos mestres e/ou professores adjuntos. Esses alunos auxiliariam os professores efetivos ao mesmo tempo em que aprenderiam o ofício de ensinar; após completarem 18 anos de idade, tais alunos poderiam prestar exames para professores e, sendo aprovados, seriam considerados professores vitalícios.
Tratada na literatura especializada como formação artesanal de professores, esse tipo de formação, segundo Heloisa Villela (2011a), foi utilizado como um mecanismo de substituição quando “os orçamentos públicos tendiam para outras prioridades” (VILLELA, 2011a, p. 113) em detrimento dos investimentos para a escola normal. Durante todo o período do século XIX, entre as províncias do Império Brasileiro, a escola normal era vista e propagada como o lócus de formação de professores, mesmo com suas dificuldades de se consolidar. António Nóvoa (1992), em seus estudos sobre a profissão docente em Portugal, assinala que a escola normal representava o lugar em que os saberes necessários ao professor estariam assegurados e sistematizados de forma institucionalizada com um currículo e normas próprias, na qual o futuro professor teria uma formação especializada e longa .
Com base nas fontes consultadas, é possível indicar que as autoridades provinciais e inspetores de ensino não deixavam de ponderar sobre as vantagens e desvantagens de se criar uma escola 15 de formação de professores na província paranaense, quando debatiam sobre a organização do corpo de docentes primários. Entretanto, embora todos defendessem o seu estabelecimento e argumentassem sobre sua importância, alguns se apresentavam contra e justificavam sua contrariedade pela falta de interesse por parte dos sujeitos em se formar professores ou a falta de recursos disponíveis para a sua criação. Ainda que em províncias como o Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, entre outras, a escola normal tivesse sido criada e instituída entre os anos de 1835 e 1850 (VILELLA, 2011a, 2011b; UEKANE, 2008; TANURI, 2000; ARAUJO; FREITAS; LOPES, 2008), o seu estabelecimento não se deu de forma efetiva. Ao longo da segunda metade do século XIX, estas sofreram pela falta de recursos, falta de público e foram constantemente fechadas e reabertas de acordo com a situação e interesse do governo da província em questão. Diante disso, é possível concordar com Paula Vicentini e Rosario Lugli (2009) de que o “sentido da escola normal para o período (entre 1867 e 1883): tratou-se mais de um movimento no plano das ideias, de um ensaio no sentido de ampliar e delimitar os conhecimentos educacionais do que realmente uma política de estado” (VICENTINI; LUGLI, 2009, p. 34). Ou seja, a afirmação das autoras assinala que nesse “plano das ideias e ensaios” a formação pela escola normal foi apenas mais um meio de formar professores, uma tentativa que dependia de recursos financeiros, público interessado, espaço específico e professores habilitados.
Com a inviabilidade apresentada pelos presidentes da província em criar e manter uma escola normal no Paraná, outras resoluções passaram a compor esse cenário de estruturação da instrução primária. Assim, é possível afirmar que o sistema de classes normais e as outras ações de formação procuravam solucionar um assunto em pauta naquele momento, isto é, definir qual a melhor maneira de formar os futuros professores da província. Diante disso, alunos que obtiveram aprovação nos exames finais e mostraram habilidades para ensinar poderiam ser conservados nas escolas, por designação do inspetor geral, como alunos mestres. A tarefa de um aluno mestre consistia em frequentar uma escola de primeira ordem uma vez por dia, e ocupar-se de fazer a repetição da aula anteriormente explicada pelo professor. Para tanto receberia uma gratificação mensal, firmada em contrato assinado pelo seu responsável. Durante o tempo em que não estava exercendo/aprendendo seu ofício junto ao professor, deveria frequentar uma escola de segunda ordem com o intuito de aprender as matérias ali ensinadas, tomar lições de lógica e adquirir noções sobre os diversos métodos de ensino.
Segundo o regulamento de 1857, após a prática de um ano, o aluno mestre, com a exibição de provas de aptidão certificadas pelo seu instrutor, poderia solicitar exame específico de habilitação para a nomeação de professor adjunto, caso tivesse 16 anos. Já em 1871, com a publicação do regulamento de 13 de maio, os alunos mestres permaneceriam nessa condição por três anos e, ao final de cada ano concluído, passariam por um exame de habilidades perante o inspetor geral. Obtendo a aprovação final, poderiam solicitar sua nomeação como professor adjunto. Na condição de professor adjunto, auxiliaria o ensino em uma escola frequentada por mais de cinquenta alunos e, quando necessário, substituiria o professor em seus impedimentos, ou na falta de professor habilitado, seria empregado em qualquer cadeira que vagasse. Nesse último caso, teria por vencimentos o mesmo valor que um professor; nos outros casos, receberia apenas uma gratificação mensal. Durante sua permanência nessa condição (dois anos), seria examinado em provas práticas nas escolas da capital perante o inspetor geral. Ao final desse período, obtendo a aprovação, ser-lhe-ia confiada a nomeação vitalícia.
Quando foi aprovado plenamente em exames finais, Joaquim Duarte de Camargo requereu, junto ao inspetor geral, sua nomeação como aluno mestre da escola que frequentava por meio de um ofício encaminhado pelo inspetor de distrito Conrado de Faria Erichsen. Nesse ofício, o inspetor se diz favorável a tal nomeação, uma vez que a escola frequentada pelo menino “avultava de um grande número de discípulos frequentes” (ERICHSEN, 1873, p. 87), ou seja, o professor Gaudêncio Christovão Machado precisava de um auxiliar em sua aula para ensinar os meninos da cidade de Castro. Seis anos depois desse pedido de nomeação como aluno mestre, Joaquim, possivelmente em seus 18 anos, recebeu sua nomeação como professor vitalício, em 22 de março de 1879, passando a reger desde então, a segunda cadeira masculina de Castro. Foi nesse período entre as duas nomeações, que Joaquim se formou professor de primeiras letras no Paraná provincial, aprendendo seu ofício ao ver fazer e ouvir dizer com outro professor mais experiente.
De acordo com Maurice Tardif (2012), até o século XIX, a concepção que circulava sobre a prática em educação associava “ a atividade do educador a uma arte, isto é, a uma téchne, termo grego que pode ser traduzido indistintamente pelas palavras ‘técnica’ ou ‘arte’” (TARDIF, 2012, p. 154, grifos nossos). O modelo de prática educativa estava fundamentado na ideia de que o professor não era um cientista, já que seu objetivo não era conhecer o ser humano, mas “agir e formar, no contexto específico de uma situação contingente, seres humanos concretos, indivíduos” (TARDIF, 2012, p. 159).
Marta Carvalho (2006), sobre as concepções pedagógicas presentes no Brasil em fins do século XIX e início do XX, afirma que tais concepções prescreviam a “boa arte de ensinar como a boa cópia de modelos” (CARVALHO, 2006, p. 02). Sobre a cópia de modelos a autora alerta que
[...] falar aqui em cópia não tem o sentido pejorativo que, mais tarde, iriam lhe atribuir os seus críticos, no intuito de instaurar um novo paradigma de modernidade pedagógica. Falar aqui em cópia de modelos é falar em um tipo de atividade que, partindo da observação de práticas de ensinar, é capaz de extrair analiticamente os princípios que as regem e de aplicá-los inventivamente (CARVALHO, 2006, p. 02-03, grifos da autora).
Ancorando-se nas afirmações de Tardif (2012) e Carvalho (2006), em uma perspectiva de que a ação do educador pode ser associada à atividade do artesão, que passa pela observação de práticas de ensinar, temos a arte como algo que se aprende e se ensina – um ofício que se aprende em meio à produção de saberes. Desse modo, podemos afirmar que a constituição de classes normais se configurou como uma formação artesanal de professores na província paranaense por suas especificidades assinaladas.
No cotejamento das fontes, é possível perceber que na relação entre o número de cadeiras criadas, professores necessários e número de alunos mestres e professores adjuntos existentes ou mesmo determinado 16 , o sistema de classes não tinha a pretensão de prover toda a província de professores formados dessa maneira. Além disso, presidentes e inspetores constantemente avaliavam se esse sistema era eficaz, muito menos pela quantidade dos que foram e eram formados por ele, mas pela relação entre mestres formadores e alunos aprendizes. Alunos mestres e professores adjuntos eram meninos e meninas com interesse em se tornarem professores de primeiras letras e, para isso, se submeteram à direção de outro professor mais experiente na condição de seu pupilo; ao encontro desses estavam os professores que, ao solicitarem auxiliares para sua escola, tornavam-se então instrutores. Todavia, em alguns momentos, o movimento acontecia inversamente – o professor solicitava um ajudante, porque o número de alunos em sua escola era elevado e, então, um aluno mestre ou adjunto era indicado para o serviço. Essa solução não era garantia de formação de um futuro professor, pois o seu mestre poderia não assumir o compromisso de encaminhá-lo no ofício, utilizando-o apenas para o trabalho que havia pedido.
Neste contexto, os presidentes da província e inspetores de ensino faziam uso de outros meios na tentativa de obter professores habilitados: estabeleciam orientações para exames de habilitação, instituíam exigências em torno da prática dos professores e delimitavam a categorização em suas formas de vínculo.
Os concursos e exames para candidatos ao professorado público primário se constituíram em mais um modo de formação de professores pela prática a partir da publicação de orientações quanto aos exames de professores 17 . Ter as habilitações nas matérias do ensino estava entre os requisitos necessários aos futuros professores, saber ensinar e o que ensinar levou os candidatos a um preparo mínimo para se inscreverem nos concursos ou solicitar os exames. A deliberação dessas instruções por parte do inspetor geral de ensino nos permite apontar que se acreditava que os candidatos se preparassem para prestar os exames, consistindo assim em um tipo de formação; mesmo os professores que se encontravam em exercício precisavam provar seus conhecimentos quanto às matérias do ensino e como ensiná-las aos alunos para permanecer no cargo, logo, o que valia era a prática apresentada e os saberes demonstrados pelo requerente – sua experiência.
Ao tratar de experiência docente, faz-se uma aproximação com o que Maurice Tardif (2012) discute sobre os saberes dos professores, portanto, entende-se por experiência o saber produzido e adquirido no fazer cotidiano deste professor ao praticar sua arte de ensinar. Em um sentido amplo, para o autor, o “saber” é o “que engloba os conhecimentos, as competências, as habilidades (ou aptidões) e as atitudes dos docentes, ou seja, aquilo que foi muitas vezes chamado de saber, de saber-fazer e de saber-ser” (TARDIF, 2012, p. 60). O autor assinala que a experiência de trabalho docente se configura em um espaço em que o “professor aplica saberes, sendo ela mesma saber do trabalho sobre saberes, em suma: reflexividade, retomada, reprodução, reiteração daquilo que se sabe naquilo que se sabe fazer, a fim de produzir sua própria pratica profissional” (TARDIF, 2012, p. 2, grifos do autor).
Para tornar-se professor primário na província paranaense era necessário atender a quatro critérios: ter idade superior a 18 anos, possuir boa moralidade, ser brasileiro ou naturalizado e apresentar as habilidades necessárias ao ensino. Por documentos comprobatórios dos requisitos, o candidato deveria apresentar o registro de batismo, atestados de boa conduta de três lugares onde haja residido e passar por exame prático e teórico sobre as matérias do ensino perante uma banca composta pelo inspetor geral e professores por ele designados. Embora os critérios estivessem explicitados pela legislação, aproximando mais o olhar e visualizando as peculiaridades de cada caso, acompanhando alguns professores que passaram pelos concursos ou exames, por meio dos documentos analisados, é possível perceber que a experiência no exercício do magistério se constituía como mais um requisito a ser avaliado e comprovado pelo requerente, e que tanto inspetores de ensino ao nomear quanto professores para receberem um título se valeram desses saberes produzidos na prática do ofício (TARDIF, 2012).
Em 1867, professores foram chamados à capital (Curitiba) para passar por exames para comprovação de sua habilitação no magistério (SANTOS, 1867, p. 138) 18 , entres esses o professor contratado de Tibagi, Joaquim Araujo.
Fica em meu poder o oficio de Vsa. sob o n. 44 com data de 14 de março próximo findo ao qual passo a responder. Minhas atuais circunstâncias são tão criticas que não me é possível achar-me nesta capital conforme Vsa. me ordena, pois só não me falta os meios pecuniários como animal de montaria, por cujo motivo peço e imploro de Vsa. poupar-me dessa viagem. E se Vsa. quiser aqui mesmo posso exibir as provas de habilitação perante alguns senhores que aqui tem habilitados, tais como os senhores Frei Gaudencio de Genova, Major Frederico Martins de Araujo e Fidencio Borges de Oliveira, este último já aqui foi professor contratado perto de quatro anos no tempo do Exmo. Presidente Cardoso, e aqui mesmo exibiu as provas de habilitação. Meus alunos Vsa. querendo me fazer justiça mande ver e conhecer que estão muito adiantados, pois tendo eu aberto a minha aula em julho do ano passado tenho já dentre eles alguns que já sabem ler regularmente livros de moral e cartas escritas por qualquer pessoa, alguma doutrina cristã e as quatro operações aritméticas, no entanto que quando entraram para minha aula não sabiam o ABC e outros nem isso sabiam! Lembro mais a Vsa. que para eu por um aluno pronto em quase todas as matérias, suponho não ser preciso sujeitar-me a exame pois tenho bastante energia e discernimento para lhes ensinar e explicar tudo aquilo que devem aprender, para o que tenho de minha propriedade alguns livros próprios para isso, entre eles o manual enciclopédico que trata de quantas matérias um menino deve aprender, o catecismo de Montpelier, livro de (...) que é também um livro de muita moral, e gramática de (...) e Ottoni e as cartilhas da doutrina crista. A vista pois de tudo que muito fielmente exponho a Vsa. espero se dignará dispensar-me de minha ida a esta capital . Tibagi, 2 de abril de 1867. Professor Joaquim P. de S. Araujo. (ARAUJO, 1867, AP. 259, p. 72-75).
O professor Joaquim não só informava que não podia ir à capital para passar pelas provas, como propunha que estas fossem exibidas perante autoridades da sua localidade. De forma direta se eximia da avaliação pela banca, pois se qualificava como apto a exercer as funções do magistério perante a sua energia e discernimento para saber ensinar tudo o que um menino deve saber. Como justificativa, o professor afirmou ter alunos leitores em sua classe em pouco tempo de funcionamento da escola, além disso, era proprietário de farto material para ensinar aos seus alunos o abecê.
Podemos nos valer do caso desse professor como um exemplo de que a prática docente nesse período era tomada como arte de ensinar (TARDIF, 2012). Segundo Tardif (2012), nessa perspectiva o professor “age guiando-se por certas finalidades, e sua prática corresponde a uma espécie de mistura de talento pessoal, de intuição, de experiência, de hábito, de bom senso, e de habilidades confirmadas pelo uso” (TARDIF, 2012, p. 161, grifos nossos). Ora, vale atentar para a justificativa do professor para não precisar prestar os exames: ele se considerava apto nas matérias do ensino por possuir livros que o subsidiavam nessa tarefa, por saber o que ensinar aos alunos (intuição, experiência, hábito, bom senso) e por tê-los ensinado a ler em tão pouco tempo (habilidades confirmadas pelo uso). Aqui o professor se valia da sua experiência baseada em seus saberes, no uso do seu material de apoio e nos resultados obtidos para se julgar habilitado. Ou seja, tinha por representação que era ensinando que se tornava um bom professor e de que era possível aprender a educar se o professor possuísse as qualidades do ofício (TARDIF, 2012).
Os concursos e exames foram um modo de as autoridades do ensino avaliarem e validarem a experiência do candidato a partir do seu desempenho frente à banca examinadora, uma vez que o pretendente, além de demonstrar conhecimentos sobre as matérias do ensino, deveria se mostrar apto ao ensino quando da sua aula prática (um dos requisitos do concurso). De mesmo modo, ao participarem desses concursos, os professores tinham sua experiência legitimada por todas as exigências atendidas. É possível pressupor, em um cotejamento entre os termos de exames e outras fontes consultadas, que ao candidato era necessário saber ao menos o mínimo das matérias do ensino, caso contrário reprovaria, e mostrar moralidade, capacidade, inteligência e vocação que o qualificava para o cargo. Além disso, evidencia-se, a partir das fontes, que as alterações propostas em todos os regulamentos quanto ao melhor modo de selecionar professores, estavam submetidas às incertezas que pairavam sobre o modo de avaliação da experiência deste professor: se antes de adentrar, se depois, em exercício ou, ainda, se num processo que unia o antes e depois.
Na mesma direção, a representação que pairava sobre a figura do professor influía diretamente na determinação dos critérios a serem atendidos pelos candidatos ao magistério público. De forma mais específica, a partir dos vestígios encontrados nos discursos proferidos pelas autoridades provinciais, de que a instrução serviria para educar e civilizar a população na construção e desenvolvimento de uma sociedade civilizada e educada, o professor seria o agente articulador dessa causa, sendo, portanto, um representante do Estado e, como tal, tinha uma postura a apresentar e a seguir. Em vista disso, o professor seria um sujeito que devia servir de modelo aos seus discípulos, tendo ainda por missão alcançar os fins estipulados para a instrução pública previstos pelas autoridades provinciais.
Segundo Roger Chartier (2002) há dois sentidos dados ao termo representação: o primeiro é definido pela relação de uma imagem presente com a de um objeto ausente, na qual se toma o símbolo e se dá sentido a ele como uma representação do que é real; o outro se distingue pela ação da representação como ação da imaginação, em que os signos visíveis figuram como prova de uma realidade inventada, uma realidade que não existe a não ser no signo que exibe. No âmbito do mundo social, essa realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos que compõem a sociedade, e é a partir da apropriação dessa realidade que se cunham imagens que dão sentido ao presente, ao outro e ao espaço. São, portanto, dessas apropriações que decorrem estratégias e práticas que, numa relação hierarquizada entre os grupos, permeada pela imposição de uma autoridade, tendem “a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas” (CHARTIER, 2002, p. 17). Entretanto, o autor apresenta este como um campo de concorrências e competições, no qual há uma luta de representações, sendo que a representação que um grupo tem de si entra em confronto com a representação que se tenta impor sobre eles (CHARTIER, 2002).
No caso dos professores, a representação que se tem deles pode ser considerada uma ação de imaginação, embora não esteja pautada em signos visíveis, decorre de uma realidade construída a partir de discursos. Ou seja, o vir a ser um professor trata-se de uma imagem construída a partir de um discurso que tem por pano de fundo uma sociedade idealizada, na qual cada grupo tem um papel a cumprir. Todavia, essa representação também pode ser associada como a relação de uma imagem presente de um objeto ausente, isso quando o professor se torna um agente do Estado em prol da educação, ou seja, se torna um braço do Estado, portanto seu representante em determinado propósito.
Diante dessa posição, em cada uma das modificações feitas pelos presidentes provinciais e inspetores de ensino, procuravam-se professores que se mostrassem adequados a esse objetivo, já que receber a nomeação de professor público tornava os aspirantes ao ofício de ensinar funcionários do Estado. Ademais, segundo António Nóvoa (1992), eram funcionários de um tipo particular, pois o exercício de sua função estava imbuído de uma profunda “intencionalidade política, devido aos projectos e finalidades sociais de que são portadores” (NÓVOA, 1992, p. 19).
Retornando ao tema da valorização dos saberes experienciais (TARDIF, 2012) dos professores primários paranaenses e à perspectiva de que os mesmos se formariam na e pela prática, voltamos o olhar para a estruturação do corpo docente junto ao governo e sua movimentação pelas categorias de vínculo possíveis após exames e/ou concursos com a província. Entremeando essa organização, tem-se os professores vitalícios, professores efetivos, professores contratados e professores interinos19 .
Entre os anos de 1856 e 1865, todos os professores que passaram por concurso e tiveram suas habilitações comprovadas receberam a nomeação como professor vitalício para o cargo de professor público. Obter a nomeação vitalícia significava que o professor estava qualificado para o cargo e o encarregava de cumprir com todos os deveres e objetivos que o mesmo imputava; só poderiam ser demitidos a pedido deles mesmos ou por terem cometido alguma falta considerada grave.
Para as autoridades de ensino, a condição para demissão dos professores vitalícios consistia em uma vantagem do cargo, pois segundo seus posicionamentos encontrados em seus relatórios, muitos professores deixavam de se dedicar ao efetivo ensino dos alunos depois de receber esta titulação. Um exemplo pode ser retirado dos escritos do presidente André Augusto de Pádua Fleury em relatório no ano de 1865,
Uma vez nomeado por ato da presidência (decreto, diz o regulamento) o professor, não pode mais ser dispensado senão demitido por causas claramente expressas no art. 79 do mesmo regulamento. É um grande mal evitado por todas as organizações, que conheço, deste serviço em outras províncias; e, para não repetir, trarei o exemplo do Rio de Janeiro, onde as habilitações para o magistério encontra-se mais do que algures. Lá os professores interinos e efetivos estão sujeitos a demissão por mero arbítrio da presidência; e não gozam das garantias do art. 79 senão quando, depois de cinco anos de efetivo exercício, tem obtido o título de vitaliciedade. Estes títulos são o reconhecimento da assiduidade, moralidade, imparcialidade e dedicação ao ensino dos que, por longa experiência, se mostram realmente aptos para o magistério. (...) É com cautela que se confia definitivamente aos mestres a primeira instrução, essa que serve de base à reforma das sociedades. (FLEURY, 1865, p. 15, grifos nossos).
No julgamento do presidente, era necessário que os professores comprovassem durante um período determinado que estavam aptos a receberem o título vitalício e todas as suas vantagens. Em uma tentativa de regulamentar essa condição para o professorado público, foi promulgada a lei n. 120 de 06 de junho de 1865, que, em seu 2º artigo, determinava que a vitaliciedade dos professores seria efetiva somente depois de cinco anos de bons serviços. Diante dessa lei e das palavras do presidente Pádua Fleury, pode-se assinalar que os saberes adquiridos pelos professores durante os cinco anos de exercício se configuravam como uma habilitação em exercício, a qual servia como base de sua prática e prova de competência (TARDIF, 2012) para o ensino com direito ao título vitalício. Determinações mais específicas quanto aos títulos de professores foram instituídas com a lei n. 290 de 15 de abril de 1871 e com o regulamento de 13 de maior de 1871, resultando na divisão dos professores em três classes, criando ainda uma outra categoria de vínculo – os professores efetivos. Estes seriam nomeados a partir da publicação do regulamento, ou seja, professores que passassem por exames e fossem aprovados para assumir uma cadeira primária. Eles ficariam por cinco anos nessa condição de experiência para ganhar o direito à vitaliciedade, além de concorrerem com a possibilidade de demissão durante esse período, caso mostrassem incapacidade de continuar a ensinar. Os professores efetivos seriam os de 1ª classe. Depois de cinco anos passariam para a 2 a classe e receberiam o título vitalício. Após quatro anos de bons serviços, os vitalícios poderiam solicitar, mediante comprovação, sua passagem para a 3ª classe. Esse tipo de classificação e regulação do corpo de professores, também pode ser considerado uma forma de construção da carreira docente, a partir do vínculo estabelecido com o Estado.
As determinações sobre a nomeação vitalícia dos professores foram constantemente permeadas pelas deliberações quanto às categorias de professores interinos e contratados, uma vez que professores nessas categorias eram considerados, pelos inspetores de ensino e presidentes da província, como uma alternativa de provimento na falta de professores habilitados. Entretanto, as mesmas também padeceram de críticas quanto à qualificação dos docentes e aos modos de seleção dos mesmos. A condição de professor contratado mostrava-se como uma forma prática do exercício docente para que alguns professores, nessa qualidade, dessem continuidade no seu ofício de instruir, alcançando e assegurando o vínculo de professor público definitivo da província. Além disso, é possível perceber, de uma forma velada ainda, que os professores contratados, ao se submeterem a exames/concursos, tinham a seu favor o período em que lecionaram nessa condição. O mesmo acontecia com os professores interinos, que, mesmo tendo passado por exames/concursos quando da sua nomeação, durante o período de seis meses a um ano deveriam praticar o ofício, para então demonstrar vocação para o ensino e mostrar-se habilitados.
Em alguns relatórios de presidentes e inspetores encontram-se sugestões de que professores contratados e/ou professores interinos fossem nomeados para escolas em localidades nas quais o número de alunos fosse pequeno, com o intuito de que estes pudessem praticar o ofício por um tempo determinado, para, então, serem designados para escolas com uma quantidade maior de alunos. Esta, na compreensão de que os professores eram formados na prática do seu ofício, seria uma forma de prepará-los e habilitá-los para o ofício, como defendia em seu relatório o presidente Antonio Augusto da Fonseca, em 1869.
Considerações finais
A partir do cotejamento e análise das fontes, é possível afirmar, que a formação pela prática dos professores primários na província do Paraná se deu no decorrer do desenvolvimento do processo de constituição do magistério primário. Esta se caracterizou na formação artesanal de turmas de alunos mestres e professores adjuntos, no preparo (formação) dos candidatos a se submeterem a concursos ou exames, no cumprimento e execução das exigências e orientações quanto aos procedimentos frente ao ensino, e pelas ações de regularização do corpo de docentes junto ao governo. Assinala-se ainda que a formação pela prática, aqui distinguida, era composta por todas essas formações , ora juntas, ora separadas, mas também agregava muitos outros modos de formação de professores primários no século XIX.
Entremeando a perspectiva do saber fazer e aprender fazendo, que fundamenta a formação na e pela prática, vislumbra-se a experiência no magistério que, em conjunto com a demonstração de uma conduta exemplar e a representação do exercício do magistério como missão vocacional, compuseram um período de constituição da profissão docente no Paraná provincial. Por experiência, compreendeu-se o que Maurice Tardif (2012) define como saberes experienciais. No cenário paranaense, professores, presidentes provinciais e inspetores de ensino se valeram e se ancoraram na certificação desse conhecimento advindo dos saberes que se integram e constituem a prática docente (TARDIF, 2012) para deliberarem sobre e para a organização e regularização dos professores primários.
A evidência, tanto nas ações dos administradores provinciais e inspetores de ensino para regular cada uma das categorias que compunham o corpo do professorado público, como nas dos professores que se submetiam, se posicionavam e se adaptavam, indica que estar em cada uma dessas condições configurou-se como períodos de aperfeiçoamento e/ou de legitimação de conhecimentos adquiridos durante o exercício do ofício. Assim como entende-se que os concursos e exames configuravam-se também como modos de formação de professores, na medida em que os participantes se preparavam para atender os requisitos mínimos. Ademais, ao atender os critérios estipulados, mostrava-se como uma validação e legitimação da experiência dos professores avaliados, pois era por meio dessa certificação que os mesmos receberiam ou manteriam sua titulação como professor público.
Por fim, a partir dos documentos aqui analisados, é plausível assegurar que em meio às alterações, delimitações e tentativas de regularizar e organizar o corpo de professores primários na província paranaense, os professores, em conjunto, a partir e ao encontro das autoridades de ensino, produziram e legitimaram um repertório de saberes que constituíram e certificaram a sua prática docente.