Introdução
Sistema CEP/CONEP, Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP), Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), Resolução 196/96, Resolução 466/2012, Plataforma Brasil e Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou melhor (TCLE) são termos constitutivos da pesquisa brasileira nos dias de hoje. Mas quais são as controvérsias envolvidas em seu desenvolvimento e implementação?
Utilizamos neste trabalho a abordagem da cartografia de controvérsias, que pode ser conceituada como um conjunto de técnicas de exploração e visualização das questões que envolvem os debates sociotécnicos contemporâneos, antes delas estabilizarem. Consideraram-se como controvérsias aquelas situações nas quais os atores não têm consenso ou caso tenham algum tipo de acordo é em relação àquilo com que não concordam ( VENTURINI, 2010 ).
Analisamos, inicialmente, documentos de primeira mão , tais como discursos, gravações (áudio/imagem), folders , regulamentos; e os classificados como de segunda mão , tais como relatórios e notas de associações científicas ( GIL, 2002 ). Todavia, para ampliar o acesso ao máximo de informações quanto às ações dos atores envolvidos na regulamentação da ética em pesquisa com seres humanos, optamos por buscar inscrições das ações dos atores para que pudéssemos descrever a formação da rede escolhida. Assim, o local eleito para visualização dessas inscrições foi a Internet . Segundo Costa (2014 , p. 31), para a construção de um mapa de controvérsias, a Internet é considerada um ambiente adequado na medida em que a ação dos atores envolvidos “deixa rastros registrados e arquivados, ainda que nem sempre acessíveis”. Esses rastros são “o vestígio de uma ação efetuada por um indivíduo qualquer no ciberespaço” ( BRUNO, 2012 , p. 687).
Na primeira parte do texto, apresentaremos uma breve história da regulamentação ética em pesquisa com humanos no Brasil. Serão destacados os elementos da controvérsia recente em torno da construção de uma regulamentação específica para as Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas (CHSSA). Na segunda parte, elencaremos alguns temas éticos em aberto neste debate, especialmente para as ciências sociais.
Como atores da regulamentação da ética em pesquisa com seres humanos, adotamos aqueles que participaram da composição desse coletivo que envolveu pesquisadores das ciências humanas, sociais e sociais aplicadas, especialmente os envolvidos no grupo de trabalho junto à CONEP e membros da CONEP, agindo de tal forma que produziram efeitos no curso da situação, desviando-a e criando elos antes inexistentes, transformando de alguma forma os elementos envolvidos ( LATOUR, 2012 ). Buscamos identificar os dispositivos de intéressement , considerados como um conjunto de ações pelas quais um ator tenta impor e estabilizar a identidade de outros atores para que atendam aos seus objetivos iniciais fortalecendo os laços criados ( CALLON, 1986 ). Significa que há uma postura ativa de produção e deslocamento de interesses entre pessoas, com o objetivo de angariar e envolver aliados em uma rede de associações, no caso aqui analisado para estabilizar a perspectiva biomédica da dimensão ética.
A necessidade de regulamentação ética da pesquisa científica tem uma longa história formada por episódios de práticas violadoras dos direitos humanos e da vida, tanto em períodos de exceção, como a Segunda Grande Guerra, quanto em períodos democráticos, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Diante dos constantes maus exemplos, desenvolveu-se a bioética, considerada como a “ética aplicada às questões da saúde e da pesquisa envolvendo seres humanos” ( GOLDIM, 1997 , s. p.). Atribui-se o termo bioética ao americano Rensselaer Potter, quando este, em 1971, utilizou-o em sua obra intitulada Bioethics: a bridge to the future . A história da regulamentação da ética em pesquisa no Brasil é influenciada por esse debate internacional.
Configurações da regulamentação da ética em pesquisa com humanos
Identificamos três grandes configurações na construção da regulamentação da ética em pesquisa com seres humanos no Brasil, as quais não são fases que sucedem no tempo, mas que se entrelaçam: da implementação, da visibilidade das controvérsias em relação às Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas e da superação da ausência de lei em sentido estrito. Neste artigo, trataremos das duas primeiras configurações.
I) Configuração da implementação
A regulamentação da atividade científica que envolve os seres humanos, no intuito de proporcionar condições de imposição e operacionalização de princípios éticos, iniciou-se no Brasil em 1988, quando o Conselho Nacional de Saúde (CNS) do Ministério da Saúde editou a Resolução n. 01, regulamentadora da discussão, reafirmando a Declaração de Helsinque e as Diretrizes internacionais ( HOSSNE, 2005 ).
Com a edição da Resolução n.01, percebe-se que a pretensão inicial do Ministério da Saúde foi compelir os pesquisadores da área da saúde a adotarem novas condutas na condução de suas pesquisas, obrigando-os à criação de Comitês Internos de Ética para a revisão dos protocolos de pesquisa, em todas as instituições brasileiras quando realizassem pesquisas na área de saúde.
Segundo Goldim (2006 , p. 21), a Resolução 01/1988 tinha uma “visão extremamente integradora e atualizada para a época”. Ela, todavia, não teve o impacto esperado, talvez pelo fato de que na mesma época a atenção estivesse voltada para a construção do Sistema Único de Saúde (SUS) ou porque a documentação do processo de consentimento informado não foi incorporada à prática de pesquisa ou, ainda, porque a maioria das instituições não implementou os Comitês como determinado ( GOLDIM, 2006 ). Diante desse cenário, o Conselho Nacional de Saúde ∕ Ministério da Saúde promoveu uma revisão geral da rede recém-concebida e, para tanto, constituiu um Grupo Executivo de Trabalho com a função de rever e atualizar a Resolução 01/1988 ( BRASIL, 1995 ). Destacou-se no processo de revisão da norma a figura de Willian Saad Hossne, ao promover ações na tentativa de superar as controvérsias existentes.
A primeira controvérsia envolvia o alcance da regulamentação ao estender sua incidência para além da área de saúde, pois o Grupo de Trabalho entendia que pesquisa envolvendo seres humanos não era só feita por médicos. Por isso, a nova resolução deveria ser aplicada ao aspecto da saúde de humanos e, para tanto, era indispensável ampliar o número de áreas do conhecimento na formulação de uma nova diretriz para que o conceito de saúde fosse além da área médica ( HOSSNE, 2005 ).
No processo de revisão, o Grupo de Trabalho previu a figura do “controle social” sobre a pesquisa científica ( HOSSNE, 2005 ). Com esse objetivo, ressurgiram os Comitês de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) que passaram a ter obrigatoriamente em sua composição, no mínimo, um “representante dos usuários” ( BRASIL, 1996 ). O termo usuário tem interpretação ampla, contemplando coletividades múltiplas, que se beneficiam do trabalho desenvolvido por uma instituição de pesquisa. Assim, os representantes dos usuários, conforme Resolução CNS 240/1997, são “pessoas capazes de expressar pontos de vista e interesses dos indivíduos e/ou grupos sujeitos de pesquisa de determinada instituição e que sejam representativos de interesses coletivos e públicos diversos2 ” ( BRASIL, 1997 , p. 01).
A controvérsia envolvendo o reconhecimento das especificidades das outras áreas do conhecimento esteve presente desde o princípio. Como tentativa de superar a ausência do reconhecimento foram editadas resoluções complementares para as áreas de novos medicamentos (Res. CNS 251), cooperação estrangeira (Res. CNS 292), reprodução humana (Res. CNS 303), povos indígenas (Res. CNS 304), genética (Res. CNS 340), estudos multicêntricos (Res. CNS 346) e banco de dados biológicos (Res. CNS 347). Por fim, para superar o argumento centrado no excesso de burocracia e lentidão nas avaliações, Hossne (2005) apresenta como solução a descentralização do sistema, transferindo para os Comitês de Ética a tarefa de análise dos aspectos éticos dos protocolos de pesquisa, antes atribuída exclusivamente ao Conselho Nacional de Saúde.
Para fins de superar todas as resistências expostas e efetivamente implementar um sistema de avaliação dos aspectos éticos da pesquisa, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) formalizou a Resolução CNS 196/96 que trouxe dois novos atores à baila: a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CONEP) e o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humano (CEP), deixando esse último ator seu papel de coadjuvante quando da publicação da Resolução CNS 01/88.
Naquele momento, foi criado o Sistema Nacional de Informações sobre Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos (SISNEP) que consistia em um sistema de informações via Internet e que teve por objetivos promover e facilitar o registro das pesquisas, a orientação sobre a tramitação, o acompanhamento e a formação de um banco de dados (BRASIL, 2016a). Buscou-se, também, oferecer agilidade e transparência aos trabalhos científicos submetidos ao Sistema CEP/CONEP ( HARAYAMA, 2011 ). Uma vez registrado junto ao SISNEP, o projeto recebia um número único que correspondia ao Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE), cuja função era identificar o projeto junto ao próprio SISNEP, aos CEPs, à CONEP e às revistas de publicação científicas ou congressos (BRASIL, 2016a). Dessa forma, forçando os pesquisadores a integrarem a rede, alinhando os interessados nessa rede, a CONEP aproximou-se das editoras e das agências de fomento para vincularem a disponibilização dos recursos e a publicação dos resultados das pesquisas à apresentação do CAAE.
No ano de 2011, a CONEP substitui o SISNEP pela Plataforma Brasil, uma ferramenta on-line desenvolvida para o registro das pesquisas, voltada para o público em geral e com o objetivo de agregar maior segurança ao registro e ao monitoramento das pesquisas (CONEP, 2011).
Os artifícios e dispositivos de intéressement desenvolvidos ao longo da implementação do sistema de revisão ética de projetos levaram à visibilidade das controvérsias em relação às ciências humanas, sociais e sociais aplicadas (CHSSA).
II) Configuração da visibilidade das controvérsias em relação às ciências humanas, sociais e sociais aplicadas (CHSSA)
Com a publicação da Resolução CNS 196/96, inaugurou-se um novo momento da regulamentação brasileira. A CONEP e os CEPs diversificaram-se em sua composição para prevalecer a equidade e a universalidade na formação dos seus membros, respeitando o limite de não ter mais do que a metade dos membros pertencentes a uma única profissão (BRASIL, 2013). A descentralização progressiva, baseada na transferência de atribuições da CONEP para os CEPs, reduziu o prazo dos trâmites de análise dos projetos de pesquisa e resoluções complementares foram elaboradas para normatizar áreas temáticas especiais em busca de se observar a diversidade metodológica (MARQUES FILHO, 2007) sem, contudo, resolver todas as críticas de falta de abrangência.
A Resolução CNS 196/96 trouxe dilemas éticos e metodológicos quando ampliou a abrangência da regulamentação ao trazer em seu corpo normativo a expressão “qualquer área do conhecimento” ( BRASIL, 1996 , III.3). Ou seja, a obrigatoriedade da avaliação ética foi estendida igualmente para as pesquisas desenvolvidas no campo das ciências humanas e sociais ( DUARTE, 2015 ).
A imposição da utilização da Plataforma Brasil, desenvolvida atendendo à Resolução CNS 196/96, a todas as pesquisas que envolvam seres humanos, independentemente da área do conhecimento, deu ampla visibilidade ao não reconhecimento das especificidades das pesquisas desenvolvidas na área das ciências humanas e sociais. O formulário das informações básicas do projeto é a base de preenchimento da Plataforma Brasil. Notam-se aí evidências de como as orientações metodológicas desse formulário não se adequam às necessidades dos pesquisadores das CHSSA. Por exemplo, após a identificação do pesquisador responsável pela pesquisa e de sua equipe, há a solicitação de preenchimento obrigatório do campo relacionado ao “desenho de estudo”3 , termo comum para as ciências naturais, mas que não se encaixa na abordagem das pesquisas CHSSA ou a obrigatoriedade de apresentar uma hipótese de estudo.
Diante de um quadro de críticas dos pesquisadores da CHSSA quanto às impropriedades e ingerências do sistema regulatório existente, a CONEP assumiu papel importante para a manutenção da rede sociotécnica e, dentre os seus atos, designou um Grupo de Trabalho para a revisão da Resolução CNS 196/96. Nesse processo de revisão, no ano de 2011, foi promovida uma consulta pública que resultou na apresentação de 1.890 sugestões que foram encaminhadas ao I Encontro Extraordinário dos Comitês de Ética e Pesquisa (ENCEP)4 que teve por tema o slogan “Atualizar para fortalecer” e por objetivo a “revisão dos principais pontos da Res. CNS 196/96 questionados na consulta pública” (BRASIL, 2012b).
No ENCEP foi evidenciada a necessidade de serem produzidas resoluções específicas para as áreas das CHSSA, sem prejuízo à Res. CNS 196/96. Dessa forma, como resultado do ENCEP foi divulgada a proposta de Resolução 196/96 – versão 2012 ( SBPPC, 2012 ) e, em 2012, foi aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde, a atual Resolução CNS 466/2012 (BRASIL, 2012a).
Para Duarte (2015) , o motivo que levou a CONEP a aprovar uma nova resolução foi a pressão exercida pelas associações científicas, dentre elas as de antropologia, psicologia e serviço social, que se pronunciaram formalmente contra a aplicação irrestrita da Res. CNS 196/96. Todavia, ainda segundo o autor, a nova resolução foi feita ainda focada nas ciências biomédicas e guarnecida de um artigo final que prevê a elaboração de uma resolução complementar relativa às ciências humanas e sociais, portanto, a CONEP não havia conseguido alinhar todos os interessados, de modo que a controvérsia ainda estava aberta.
A publicação da Res. CNS 466/2012 tornou ainda mais evidentes as controvérsias acerca da revisão da ética em pesquisa em relação aos pesquisadores atuantes na área das CHSSA, mostrando o fracasso na política de intéressement da CONEP, uma vez que o processo5 desvelou os limites do sistema diante das especificidades não biomédicas e a necessidade de mudar a maneira como se estabelece a relação ética entre as áreas do conhecimento, nas dimensões institucional e formal na dinâmica dos CEP, dado que esses comitês são forma contingente de responder questões éticas colocadas pela pesquisa científica como fazer ético (BARBOSA; CORRALES; SILBERMANN, 2014, p. 485).
Ao agregar os pesquisadores das CHSSA no intuito de evitar o fortalecimento de um grupo contrário ao Sistema CEP/CONEP, em julho de 2013, a CONEP organizou outro grupo de trabalho para elaborar o texto da resolução específica, sendo o mesmo nomeado pela comunidade científica como GT-Pesquisas em Ciências Humanas da CONEP ou apenas GT-CHS cuja característica era a de ser o primeiro grupo que não se limitou a membros da CONEP (GUERRIERO, 2016b). Segundo a CONEP (2014) , a pluralidade de formação do GT-CHS tinha por intuito proporcionar o atendimento à missão de elaborar uma norma que respeitasse as diversidades paradigmáticas e teórico-metodológicas das ciências humanas e sociais, mantendo o foco na promoção e na proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais dos participantes da pesquisa.
De forma sintética, as questões debatidas pelos pesquisadores das CHSSA podem assim ser agrupadas: a falta de diálogo entre os pressupostos dos projetos de pesquisa e do sistema de avaliação ética e a defesa das especificidades da pesquisa na área de CHSSA; a dificuldade em estabelecer uma representação unificada de vulnerabilidade e risco e a falta de representatividade efetiva nos comitês de ética. Preliminarmente, tem-se o debate quanto à presunção de um modelo único de avaliação ética - biomédico – a regular a ética da pesquisa em todas as áreas do conhecimento, olvidando-se as especificidades metodológicas de cada área. Para as CHSSA, não haveria uma recusa em submissão dos projetos a um sistema de revisão ética se esse fosse capaz de dialogar com seus pressupostos disciplinares e metodológicos ( DINIZ, 2008 ), tendo em vista que o Sistema CEP/CONEP não foi pensado para as particularidades das CHSSA ( DINIZ, 2013 ).
Revelam-se, no debate relacionado à presunção de um modelo único, as formas como as áreas do conhecimento compreendem o fazer científico, evidenciando as dificuldades de se obter uma regra padronizada de condutas para os pesquisadores.
[...] mostrar os limites e as consequências, para a investigação em ciências sociais, quando um conselho define que o modelo de proteção dos sujeitos envolvidos na investigação biomédica será o modelo a ser submetido e chancelado por todas as outras formas de investigação envolvendo sujeitos humanos: quando o trâmite formal (ou burocrático) no interior de uma “plataforma online” passa ser o ponto de partida da pesquisa, relegando a um segundo plano as contingências do processo de investigação, próprias à negociação substantiva e à construção de relações de confiança com os sujeitos da pesquisa, para a entrada no campo; quando há uma relutância em aceitar as especificidades historicamente constituídas quanto ao método e às técnicas de investigação das ciências humanas e sociais; [...]. ( GRISOTTI, 2015 , p. 160).
O sistema CEP/CONEP tende a reproduzir a lógica da pesquisa em ciências biomédicas. Assim, torna os comitês locus de avaliação metodológica dos projetos, como nos afirma Silva (2017) , desconsiderando que a etapa de avaliação ética dos projetos é posterior à avaliação de outros órgãos da comunidade de pesquisa, ou seja, metodologicamente o projeto já está validado.
A segunda questão está na tratativa dada aos riscos e vulnerabilidade pois, segundo Diniz (2013) , esses foram pensados para situações envolvendo, essencialmente, questões do campo biomédico em que o principal exemplo seria um teste de medicamento e que levam à uma definição de riscos e vulnerabilidade incoerente com as demais pesquisas com humanos.
Como possível causa para a adoção de um modelo único de proteção baseado no padrão biomédico, é denunciada a questão que trata da composição não efetivamente multidisciplinar dos Comitês. Como exposto por Diniz (2013) , em entrevista oral, importa questionar qual a real composição dos CEPs em termos de “experiência metodológica e do olhar que esses participantes têm sobre a pesquisa em ciências humanas e sociais” para além do trabalho na área de saúde.
Apesar das discordâncias do Fórum de Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas (FCHSSA)6 em relação ao Sistema CEP/CONEP, este aceitou participar do GT-CHS e, juntamente com os representantes da CONEP, Ministério da Saúde e outras associações que não tinham assento no GT-CHS, mas conviviam, por exemplo, no GT para as Ciências Humanas e Sociais do Conselho Nacional Científico e Tecnológico (CNPq), iniciou-se um processo “cuidadoso e reflexivo para combinar as necessidades de um campo muito amplo e diversificado”, na esperança de um diálogo que poderia ser frutífero com a CONEP7 . No entanto, percebia-se que o papel do GT-CHS era limitado à emissão de sugestões, com pequena força decisória ( SOCICOM, 2014 ). Como resultado das discussões, no ano de 2014, o GT-CHS apresentou em plenária da CONEP uma minuta de resolução. Em resposta à minuta, o Colegiado da CONEP informou que o seu entendimento era no sentido de que a minuta apresentada estava mais focada na defesa da liberdade dos pesquisadores do que propriamente na defesa dos participantes da pesquisa e deveria passar por ajustes e acertos antes de ser encaminhada à consulta pública. Destacaram-se como argumentos a necessidade de ser ressaltado o caráter complementar da nova norma, e não a criação de um sistema paralelo de avaliação ( VENÂNCIO, 2015 ).
Em reação, o GT-CHS encaminhou uma Carta Aberta de Resposta à Carta da CONEP deixando claro o seu posicionamento quanto à impossibilidade de diálogo com o Colegiado da CONEP e destacando a ilegitimidade do Sistema CEP /CONEP∕CNS∕MS para controlar a ética em pesquisa nas ciências humanas e sociais, bem como o caráter antiético da CONEP ao obrigar que a ética própria das pesquisas em CHS se submeta aos princípios e métodos da pesquisa biomédica ( GT – CHS/CONEP, 2015 ).
Chegou-se a um ponto crucial do impasse existente entre a postura da CONEP e o GT-CHS: 1) A CONEP insiste na complementariedade da resolução específica a ser criada, ressaltando que os procedimentos de submissão dos projetos CHS devem respeitar o mesmo trâmite dos projetos com valores bioéticos, logo, a minuta criada pelo GT-CHS não poderia ser aceita porque criaria um sistema paralelo; 2) o GT-CHS entende que a complementariedade da forma como apresentada pela CONEP significa subordinação e desconsideração das especificidades dos campos do conhecimento.
Com o fim de pressionarem pela aprovação da minuta tal como apresentada pelo GT-CHS, os pesquisadores das CHSSA, suas associações e o FCHSSA mobilizaram-se e consubstanciaram uma petição de apoio à minuta da Resolução específica endereçada ao Conselho Nacional de Saúde considerando o amplo reconhecimento dos princípios e procedimentos debatidos pela comunidade CHSSA em todo o país ( CHANGE.ORG, 2016 ).
Em 24 de maio de 2016, foi publicada, no Diário Oficial da União , a Resolução CNS 510 que versa sobre ética nas pesquisas em Ciências Humanas e Sociais com as modificações julgadas pertinentes pelo Conselho da CONEP, gerando insatisfações em alguns pesquisadores pela parcialidade com que atendia a proposta do FCHSSA.
Um dos pontos nevrálgicos em discussão é a classificação de riscos, intimamente associada à definição de vulnerabilidade dos participantes da pesquisa. No modelo de avaliação da ética aplicado pelo Sistema CEP/CONEP, a tratativa dos riscos seguia um único critério que é baseado nos princípios das pesquisas biomédicas, como exemplificado nas pesquisas com testes de medicamentos em que interesses de participantes e interesses da indústria farmacêutica estão em disputa ( DINIZ, 2013 ). Para enfrentar o impasse quanto aos riscos, o GT-CHS elaborou as normas que norteariam a definição dos riscos para a área do conhecimento para o qual foi constituído. Na proposta elaborada, os riscos estariam classificados em mínimo, médio e elevado e, conforme sua classificação, o trâmite perante a Plataforma Brasil seria diferenciado. Vale lembrar que essa proposta de definir o trâmite da revisão ética da pesquisa conforme o risco nela envolvido já havia sido propagada pela CONEP por meio de seu coordenador Jorge Venâncio em suas palestras e entrevistas.
O texto final que resultou na Resolução CNS 510/2016 não se manifestou quanto à forma de avaliação dos riscos para as ciências humanas e sociais e a demanda de tipificação do risco nas diferentes metodologias de pesquisa passaria a ser coordenada pelo Grupo de Trabalho Acreditação ( VENÂNCIO, 2015 ).
As vedações à minuta apresentada pelo GT-CHS, aos artigos 18 a 24 (tipificação dos riscos), 26 a 31 (tramitação conforme o risco), 34 (composição paritária dos membros titulares entre as áreas de Ciências Humanas e Sociais e Biomédicas) e 36 (aplicação da Resolução específica após a elaboração e aprovação de um formulário próprio para as CHSSA), foram entendidas como o esgotamento do processo de debates com a CONEP8 .
Defendendo a necessidade de outro sistema de revisão para as áreas das CHSSA, o FCHSSA demandou, como objetivo inicial e principal, a formação de um Conselho de Ética em Pesquisa no âmbito do extinto Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação ( SOCICOM, 2014 ). Outra possibilidade seria a criação de um outro tipo de sistema autônomo e independente, com elaboração de um código em ética em pesquisa em CHS via Fórum de Associações CHS ou códigos de éticas elaborados por cada associação. Nesta última opção, haveria um documento de associação para cada área e o processo de revisão seria feito por comitês próprios, agilizando o procedimento e atendendo às especificidades (MAINARDES, 2016).
Outro aspecto é que o GT-CHS expôs as consequências advindas da obrigatoriedade das Instituições de Ensino e dos Institutos de submeterem os projetos de iniciação científica e os trabalhos de conclusão de curso à revisão ética na medida em que tal exigência tende a comprometer tais experiências diante do tempo requerido para o trâmite até a aprovação dos projetos. Tal fato ensejaria, por parte dos pesquisadores nesse nível de estudos, a opção por estudos monográficos ou de cunho teórico em detrimento aos estudos cujas metodologias trabalhassem com seres humanos. Na minuta encaminhada pelo GT-CHS havia a sugestão de não obrigatoriedade da revisão ética de projetos de iniciação científica, não aceita pela CONEP.
O Plenário do Conselho Nacional de Saúde aprovou a Resolução CNS n. 510 com os seguintes dizeres:
Art. 1º. Esta Resolução dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana, na forma definida nesta Resolução. (BRASIL, 2016b, p. 1).
Com a publicação da resolução, o debate foi direcionado pelos pesquisadores das CHSSA no sentido de delimitar os avanços conquistados e identificar as superações necessárias (GUERRIERO, 2016b; DUARTE, 2016 ). Dentre os avanços da Resolução CNS 510/2016 podem-se apontar: 1) composição equitativa da CONEP e participação de membros das CHS no processo de revisão, exigindo-se que a relatoria dos projetos CHS seja atribuída a membros com competência nessa área (art. 26 e 33); 2) o reconhecimento de que o mérito científico deve ser avaliado pelas instâncias competentes, cabendo ao Sistema CEP/CONEP manter o foco na proteção dos participantes da pesquisa (art. 25). Este é um aspecto que precisa se consolidar na rotina de avaliação dos comitês de ética, a fim de evitar que, na prática, a avaliação metodológica continue impactando a avaliação ética; 3) diferenciação entre o processo de consentimento e do assentimento do seu registro, ampliando a forma de registro para se adequar às diversas metodologias (art. 15 a 17) e a possibilidade de pesquisa sem processo prévio de autorização nos casos justificados no sistema (art. 16); 4) explicitação das pesquisas e de que etapas preliminares não necessitam ser avaliadas (art. 1º); 5) previsão da criação de uma instância dentro da CONEP para a implementação da nova sistemática de avaliação das CHS, incluindo nessa, um novo formulário de registro na Plataforma Brasil; 6) manutenção da possibilidade de realização de pesquisa encoberta nos casos justificados (art. 14); e 7) afastamento da noção reificada de vulnerabilidade e consequente adoção de um critério de vulnerabilidade (art. 2º, 3º e 20).
Luiz Fernando Dias Duarte, representando as associações científicas CHS no GT-CHS, ressalta o ponto em que a resolução poderia ter avançado, mas não o fez:
De modo mais localizado, não foi possível encontrar uma fórmula adequada para o problema dos trabalhos de TCC, monografia e similares que envolvam pesquisa direta com sujeitos sociais; cujo curto prazo de realização dificilmente se pode adequar ao sistema de registro centralizado, por mais ágil que este possa vir a ser (art. 1º, VIII). Uma saída oblíqua para o problema poderá ser o art. 27, com o registro dos projetos de alunos, como emenda, de projeto registrado em nome do professor ou orientador. ( DUARTE, 2016 , p. 2).
Também não contemplada é a reversão da atual situação da pesquisa com indígenas, considerada de alto risco pela CONEP, critério esse que mantém uma “visão tutelar fartamente ultrapassada no cenário mundial” ( DUARTE, 2016 , p.3). A tramitação dos projetos fica dependente da produção de uma resolução específica acerca da tipificação e gradação de riscos, ainda não existente.
Guerriero (2016b) destaca a não superação do modelo único de ciência, especialmente porque o art. 32 prevê que tudo que não for disciplinado pela resolução CNS 510/2016 o será pela resolução CNS 466/2012.
Percebe-se que a CONEP não conseguiu alinhar todos os atores envolvidos com a pesquisa com humanos na rede da validação bioética. Esse teria sido momento ímpar para alinhar a rede na construção de uma perspectiva ética ampla, calcada em uma visão localizada nos valores sociais compartilhados intersubjetivamente pelos atores e em um paradigma menos dual na relação entre biologia e humanidades, mas que redundou em dissenso e controvérsia.
Ética em pesquisa em ciências sociais: controvérsias e debates
A discussão em torno de uma questão ética mais plural da pesquisa com seres humanos, como vimos, não tem sido contemplada nas resoluções e formulários do sistema CEP/CONEP, o que retrata um sistema legislativo parcialmente descolado das práticas científicas e das discussões da sociedade civil. Se, por um lado, transparência, consentimento e risco são essenciais para os participantes na pesquisa biomédica, por outro, são restritos os mecanismos de acompanhamento dos desdobramentos das pesquisas para os participantes a longo prazo. No que se refere especificamente às ciências sociais, a provocação que a participação do GT-CHS na discussão prévia à produção da resolução CNS 510/2016 não foi suficiente para fazer ceder a dominância da lógica biomédica nos protocolos de pesquisa e introduzir parâmetros metodológicos mais pluralistas.
A discussão conceitual a respeito da dimensão ética do fazer científico nas humanidades não é levada em consideração e a ética fica reduzida aos princípios da transposição dos critérios de avaliação ética e nos critérios de tipificação de risco das ciências médicas para as humanidades. Pressupõe-se que a padronização nos procedimentos e formulários é capaz de proteger os participantes da pesquisa, especialmente dos riscos colaterais da intervenção dos pesquisadores. E isso tem uma origem bastante traumática na história das pesquisas médicas, como aponta-nos Silva (2017) . A pesquisa em ciências humanas e sociais não dispensam uma avaliação ética e pode, inclusive, tornar-se referência nesse sentido, na medida em que agrega uma percepção pluralista de ciência, tendo como bases dos seus debates internos ao campo as dimensões da liberdade e da autonomia individual e coletiva, dos direitos humanos, da diversidade, da democracia, das vulnerabilidades sociais. O debate realizado pelo GT-CHS junto ao sistema CEP/CONEP teve como objetivo desenvolver orientações situadas para a abordagem da ética na pesquisa, levando-se em consideração o fazer científico em ciências humanas e sociais.
Entende-se que a resolução CNS 510/2016, a plataforma, os comitês e os formulários não abarcam suficientemente o debate da ética em pesquisa, sobretudo para a prática em pesquisa nas humanidades. Como aponta Hüning (2017) , o tratamento da ética na pesquisa prioritariamente via protocolos e instâncias burocráticas paradoxalmente esvazia a reflexão ética mais ampla da pesquisa.
Para a racionalidade científica moderna conhecer significa, sobretudo, quantificar. O rigor científico é alcançado com o rigor das medições e, uma vez que não fosse possível quantificar, qualquer outra produção seria considerada cientificamente irrelevante ( SANTOS, 2002 ). Os pesquisadores das ciências sociais rebatem a imposição e o olhar de que a ciência é experimento, reprodução ou teste de hipóteses, defendendo que o que é produzido utilizando-se métodos qualitativos rigorosos também é conhecimento válido e confiável ( DINIZ, 2013 ). Nesse sentido, para contemplar as diferenças de lógica, o objetivo do GT-CHS era produzir um sistema diverso do Sistema CEP/CONEP e externo ao Ministério da Saúde.
A guerra das ciências, como é comumente conhecida nos Estados Unidos o ataque à legitimidade científica das humanidades pela ciência, mobilizou e ainda mobiliza cientistas em torno da suposta oposição entre, de um lado, a verdade e a razão e, de outro, o relativismo e o multiculturalismo. A acusação de irracionalidade e obscurantismo foi usada para desqualificar o fazer científico de parte substantiva das ciências humanas. Essa discussão acirrou uma relação hierárquica entre os saberes científicos já existente desde o advento da ciência moderna.
Essa guerra , em uma versão ciências biológicas versus humanidades, está expressa no mapa da regulamentação da ética em pesquisa no Brasil e divide os cientistas entre aqueles que acreditam na existência de uma natureza unificada e universal capaz de resolver e definir o mundo comum e um grupo oposto que defende a impossibilidade de simplificação do processo histórico pelo qual o mundo comum se compõe pouco a pouco ( LATOUR, 2012 ).
A dimensão da ética na pesquisa em ciências humanas não pode ser separada da discussão a respeito do fazer científico. No caso das ciências sociais modernas é um debate fundacional, para o qual podemos rememorar a contribuição de Max Weber. Weber defendia a atividade do cientista como estando em consonância com uma postura interpretativa e valorativa. Não se trata de empreender uma ciência capaz de afirmar o que deve ou não ser considerado válido em termos de valores, mas de propor uma ciência realista da moral, em que importam os valores que estão em jogo na conduta dos indivíduos para compreender e delimitar a sua esfera de validade significativa.
Como indica-nos Max Weber, o trabalho científico nas ciências sociais tem por base as “conexões conceituais entre os problemas” e não as “conexões ‘objetivas’ entre as ‘coisas’” (WEBER, 2006, p. 37). Esta posição, base das teorias interpretativas, desloca o fazer científico das ciências sociais para outro campo, cuja objetividade tem sentido diverso daquele proposto pelas ciências naturais.
É parte constitutiva do trabalho do cientista social a reflexividade a respeito do próprio fazer e as suas implicações para os sujeitos da pesquisa, considerando que o cientista social se reveste de uma postura empática em relação ao outro para poder compreender o seu lugar social e as suas ações sociais.
Levando em conta as peculiaridades da pesquisa nas ciências humanas e sociais, não é possível separar a dimensão moral da dimensão cultural da ética. O exercício da ética é compreendido como ser e estar no mundo balizado por princípios morais e culturais emancipadores e benéficos à coletividade e à individualidade. Nesse sentido, existem alguns princípios normativos e valorativos da pesquisa nas humanidades que precisam ser considerados em uma discussão ética do campo:
Lógica argumentativa, relacional e intersubjetiva
Uma parte substantiva das pesquisas em humanidades é qualitativa, o que implica a opção por métodos de investigação e de análise compreensivos e intersubjetivos, em que a relação entre investigador e grupo investigado é parte constitutiva da produção, da veracidade e da legitimidade do conhecimento produzido.
O pesquisador em ciências humanas pesquisa em e com seu campo, produzindo a partir dessa intervenção novas narrativas, novos argumentos, relativos a uma associação espaço temporal específica de atores e agências. Se a dimensão bioética reconhece a necessidade de substituir a perspectiva ultrapassada de voluntário pela noção de participante, a necessidade de pensar a participação e a autonomia ganha contornos ainda mais significativos quando se pressupõe que boa parte dos resultados de pesquisa em humanidades foi produzida na relação de escuta e ação conjunta, por exemplo, em estudos etnográficos, estudos biográficos, estudos de cotidiano, de observação participante, de cartografia social. Na prática das ciências sociais existe um estado de tensão entre o conhecido e o desconhecido (GOLDENBERG, 2011).
A antropologia é uma das áreas mais afetadas pela regulamentação ética, no entanto, a relação entre ética e antropologia faz parte da tradição do pensamento antropológico, na medida em que se reconhece e se discute a interlocução e a proximidade entre pesquisadores e pesquisados em oposição à postura da objetividade e do distanciamento supostas na concepção de neutralidade do conhecimento ( SARTI; DUARTE, 2013 ). Faz parte das implicações éticas do fazer antropológico o fato de que, em geral, os antropólogos estão em uma posição desigual em relação aos participantes da pesquisa, tanto em termos de poder quanto de legitimidade social ( SARTI; DUARTE, 2013 ).
Schuch (2013) identifica três espaços de problematização ética na antropologia: a atuação política do antropólogo, referente à responsabilidade moral do antropólogo com os grupos em interlocução especialmente em situações de conflitualidade; a multidisciplinaridade, que se refere ao debate entre as particularidades da antropologia enquanto ciência e as demandas políticas e sociais mais amplas que envolvem profissionais cientistas produtores do conhecimento em colaboração com a antropologia; e o campo da regulamentação, que se refere ao movimento de regulamentação e controle burocráticos da dimensão ética.
Ao se utilizar como parâmetro o modelo tradicional das ciências naturais sob o qual a ciência se produziu, as humanidades deixam de lado justamente aquilo que caracteriza as ações humanas: as intenções, significados e as finalidades que lhe são inerentes (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 2001). Nesse sentido, a crítica de que um formulário focado na metodologia de pesquisa, embora não se reconheça dessa forma, deixa vazar uma dimensão relacional da ética, a qual deveria ser mais bem explorada na formação de pós-graduação dos pesquisadores, tanto em humanidades quanto em ciências naturais.
A relação de pesquisa como prática de escuta e reelaboração da trajetória pode produzir efeitos intersubjetivos e subjetivos não previstos inicialmente, como a desnaturalização de determinadas condições objetivas dos sujeitos. Essa faceta é mais intangível e sensível do que aquelas para as quais se pode definir de antemão, como é o caso da distribuição de benefícios econômicos porventura resultantes da pesquisa.
Se consideramos, como Latour (2019) , equivocada a separação entre a natureza, caracterizada por ser comum e igual para todos, e a sociedade, onde se encontra a diferença e a particularidade, poder-se-ia imaginar a produção de protocolos éticos que atendam a totalidade do fazer científico com seus coletivos híbridos de cultura e natureza. Ao contrário de negar a dimensão ética para as humanidades, essa perspectiva entende que o fazer ético-científico das humanidades pode servir de exemplo para as ciências naturais, já que a dimensão da natureza biológica é tão híbrida e diversa quanto a sociedade.
Transparência, vulnerabilidade e proteção aos participantes
Se o conhecimento é produzido por meio de uma construção coletiva e intersubjetiva ou de uma associação heterogênea de conhecimento, ambas de qualquer modo artificial, o que se entende por transparência? A transparência é dimensão constitutiva da racionalidade ética em contextos democráticos.
Há dados presentes desde o início da pesquisa, portanto, é possível pensar estratégias e mecanismos de comunicação antes, durante e depois de findo o trabalho de campo, como alerta-nos Diniz (2008) . A transparência é um processo de construção de vínculos, seja em momentos pontuais, como em uma entrevista, seja a longo prazo, quando do convívio cotidiano e prolongado entre pesquisadores e pesquisados. Trata-se de algo diferente de uma perspectiva positivista na qual sujeito investigador são agentes ativos e interessados e objeto investigado são agentes passivos e subordinados aos interesses dos pesquisadores. Nesse sentido, o compromisso da transparência não se encerra em um formulário, mas acompanha o processo de produção de conhecimento até a etapa final da devolutiva, quando se espera que algum produto seja devolvido aos participantes. Essa devolutiva tem estimulado o debate acerca da divulgação ou da popularização científica nas humanidades.
A proteção da privacidade nas pesquisas em ciências sociais introduz uma complexidade a mais do que se pode balizar a partir da resolução CNS 510/2016, na medida em que, seja em uma relação de convívio no cotidiano como a observação participante, ou até mesmo em uma situação de escuta subjetiva, como é o caso da entrevista em profundidade, são provocadas as memórias e as emoções dos participantes. Decidir a maneira de tratar no ato da relação a proteção às memórias e às emoções mais íntimas, a privacidade dos participantes, requer, portanto, uma vigilância permanente, um exercício ético baseado na empatia e na reflexividade constantes.
A proteção aos participantes das pesquisas em humanidades é, portanto, construída sobre as vulnerabilidades peculiares às relações humanas. Riscos como exposição da privacidade e de situações constrangedoras e humilhantes, como nas situações de biografias, ruptura do anonimato quando este implica riscos à pessoa, e riscos ligados ao próprio contexto da relação, como manipulação ou abuso da confiança, são alguns dos riscos a serem avaliados.
A tradição da pesquisa em ciências sociais foi substantivamente construída no estudo daqueles que estão à margem, os explorados, os marginalizados, os excluídos e oprimidos. Assim, é urgente o aprofundamento do debate em torno da ética na prática científica desses estudos. Uma das questões que está em aberto na atual resolução é a codificação de risco, que impactará os estudos com determinados grupos, ou marginalizados ou tutorados pelos Estado. Tal dimensão só pode ser vista caso a caso, dentro de uma lógica de reconhecimento dos direitos humanos, concebida mais como princípio do que como código.
Transparência e proteção aos participantes não são posições, a priori , irreconciliáveis entre as áreas biomédicas e as humanidades, mas o entendimento desses termos varia conforme a visão de ciência adotada. Para a biomedicina, proteger os participantes é sobretudo garantir seu direito à saúde e à vida, evitando intervenções e tratamentos que possam causar danos presentes ou futuros. As pesquisas em humanidades mobilizam o engajamento do sujeito para além do corpo e da mente, mobilizando dimensões como as memórias pessoais, as crenças e os valores coletivos. Nesse sentido, a dimensão ética é entendida aqui não em termos de códigos, deveres e mandamentos de ordem moral, mas a ética como dimensão dos discernimentos construídos na intersubjetividade do mundo social, relacionados à orientação por valores ( HABERMAS, 2018 ).
Considerações finais
Duas vertentes destacaram-se e apresentam-se na regulamentação da ética em pesquisa com seres humanos e reivindicam o monopólio científico-social: uma, dominante durante muito tempo, entende que para se estudar a sociedade é necessário aplicar, na medida do possível, todos os princípios epistemológicos e metodológicos que dominam o estudo da natureza; outra que reivindica para as ciências sociais um estatuto epistemológico e metodológico próprio, com base na especificidade do ser humano e na sua distinção radical em relação à natureza ( SANTOS, 2002 ). A segunda variante reivindica para as ciências sociais um estatuto metodológico próprio e coloca a própria ideia de ciência universal em discussão.
Os dispositivos de intéressement mobilizados pelo Conselho Nacional de Saúde e pelo Sistema CEP/CONEP não foram capazes de alinhar o coletivo de pesquisadores das ciências humanas e sociais, os quais produziram um campo de tensões em torno da unicidade da norma de regulamentação ética em pesquisa com seres humanos, do modelo de tipificação dos riscos e dos procedimentos para a revisão dos projetos de pesquisa. Uma flexibilização nesse posicionamento admite a necessidade do reconhecimento das diversidades metodológicas, do pluralismo científico e da produção de fóruns públicos de debate acerca da ética das humanidades, que envolva participantes, pesquisadores e sociedade civil.
A regulação é apenas uma das dimensões da ética em pesquisa ( SCHUCH, 2013 ). Como defende Schuch (2013 , p. 34), em contraposição tanto à existência de uma suposta ética universal, quanto uma “adaptação da ética geral a situações particulares”, percebe-se uma dimensão performativa da postura ética.
Se, por um lado, demonstramos as particularidades das pesquisas em ciências humanas, dando destaque especial para a tradição teórico-metodológica das ciências sociais, por outro lado, encontramos os limites dessa separação que, em última instância, reflete a separação entre natureza e cultura. Se consideramos que o fazer científico deve ser entendido a partir de práticas materiais e discursivas situadas, então qualquer ciência deve partir daí para balizar o discernimento e os preceitos éticos. Sem desconsiderar a importância de protocolos e regulamentos, entendemos que a ética se expressa no fazer científico muito antes e muito além desses.