Introdução
Nosso país passou por transformações econômicas e sociais no início do século XXI, associadas a um processo de universalização da educação, em uma realidade de consolidação da democracia – que se iniciou nas décadas finais do século XX – mas que atravessa atualmente sérias dificuldades e tem sofrido graves ameaças de retrocesso.
A realidade brasileira foi marcada, ainda na última década, pela ascensão socioeconômica de milhões de brasileiros, resultante da redução da miséria absoluta, especialmente no governo de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011), segundo dados de 2014 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, divulgada em 2015.
Ao associar a abertura democrática a uma legislação de aspecto liberal, a ascensão socioeconômica e o acesso à educação de grupos sociais tradicionalmente marginalizados, como pessoas de baixa renda, mulheres, deficientes físicos, homossexuais, negros e indígenas, viabilizaram a implantação de medidas educacionais voltadas à valorização e respeito à diversidade, bem como à necessidade do reconhecimento da contribuição histórica de atores sociais normalmente relegados a condições subalternas ou coadjuvantes, como negros e indígenas.
Tais mudanças demandaram alterações nos conteúdos escolares, pois conforme Tardif e Lessard (2007) , a escolarização das massas determinou que fossem repensados conteúdos em função da heterogeneidade das novas clientelas escolares, estabelecendo-se uma demanda por uma educação em geral e um ensino de História, em especial, caracterizados por uma necessidade permanente de reconstrução de saberes históricos e pedagógicos.
Foram realizadas alterações na Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional – pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, no que se refere à inclusão no currículo dos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, da obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” e a inclusão no calendário escolar do dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”, respectivamente, os artigos 26-A e 79-B. E a Lei nº 11.645, de 10 março de 2008, que alterou a Lei no 9.394/1996, modificada pela Lei no 10.639/2003, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
Os resultados foram avanços significativos no processo de afirmação de setores marginalizados, como os negros, com a promulgação da Lei 10.639/2003, e negros e indígenas, com a promulgação da Lei 11.645/2008, a qual determina a obrigatoriedade do estudo da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e de Ensino Médio, notadamente nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. Essas leis são importantes no processo de condução de negros e indígenas, setores sociais tradicionalmente marginalizados, ao adequado reconhecimento de sua contribuição para a construção do Brasil, bem como tornaram-se instrumentos de combate ao racismo e à discriminação nas escolas. A segunda lei, por ser mais recente e abrangente, contempla ambos os grupos étnicos, tão importantes para a formação histórica, social, econômica e cultural do Brasil.
É importante ressaltar que o momento histórico atual coloca em risco esses avanços, que ainda não estão totalmente consolidados, como é o caso do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.
A Lei 11.645/2008 incentiva o que Bergamaschi (2010) define como “diálogo intercultural”, na medida em que são revisitados os encontros de culturas, identidades, crenças, símbolos, mitos e ideologias em um ambiente de igualdade, que supere preconceitos e estereótipos enraizados especialmente contra negros e indígenas.
O desafio das escolas é garantir espaços nos currículos e nas salas de aula para a inclusão positiva da História e Cultura de negros e indígenas. É importante que, para uma adequada aplicabilidade dessas determinações legais, as instituições educacionais repensem seu papel na formação de indivíduos preparados para viver e conviver em ambientes de diversidade, reconhecendo-se como atores importantes dos processos históricos, independentemente de sua condição étnica, econômica ou social. Nesse sentido:
[...] ações afirmativas precisam ser implementadas pelas universidades, institutos e escolas abrindo-se assim novos territórios para práticas formativas que girem em torno da História e Cultura Africana e Indígena, relações étnico-raciais, diversidade, preservação de nosso patrimônio material e imaterial. ( ROCHA, 2012 , p. 98-99).
Isso demanda trabalhos de cunho histórico, em meio a processos permeados por diálogos entre as teorias e as situações práticas de ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Zarth (2010) , nesse sentido, defende não apenas uma revisão metodológica, mas, acima de tudo, reconsiderar em uma perspectiva crítica, as condições dos diferentes grupos étnicos, revendo especialmente as desigualdades de tratamento.
Estudos têm sido desenvolvidos sobre o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, com destaque para os trabalhos de Bergamaschi (2010) , que discorre acerca de questões contemporâneas nas salas de aula, entre as quais o preconceito; Bittencourt (2007 , 2004 ) cujas pesquisas sobre ensino e saberes históricos em sala de aula nos auxiliam na compreensão da realidade que estudamos; Funari e Piñon (٢٠١١), que apresentam contributos acerca do trabalho docente a respeito de saberes indígenas nas salas de aula, entre outros, os quais têm trazido importantes contribuições para a reflexão acerca dessa temática.
Também reportamo-nos a algumas teses pesquisadas nos repositórios de Universidades brasileiras (Universidade de São Paulo - USP, Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, Universidade Federal Fluminense - UFF, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Universidade de Brasília - UnB) produzidas de 2005 a 2016, das quais destacamos os trabalhos de Antunes (2016) , Macena (2015) , Oliva (2007) e Paim (2005) . Referente à primeira produção, Antunes (2016) , ao tratar sobre História e Cultura Indígena, revela, através de uma rica análise de fontes documentais, visões acerca do papel do índio na formação da sociedade nordestina, especialmente no Ceará. Macena (2015) propõe, a partir de uma releitura do abolicionismo em Minas Gerais, uma revisão do papel do negro na sociedade como um todo; Oliva (2007) discute o ensino de História da África e a desconstrução ou preservação de estereótipos ligados a negros, tanto em escolas brasileiras como portuguesas, e Paim (2005) analisa as práticas de ensino de professores de História de formação recente, revelando importantes elementos destas práticas docentes.
Na literatura que consultamos, são recorrentes as questões levantadas a respeito das alterações no ensino de História, mas ainda percebemos uma carência de estudos acerca de reflexos que venham provocando, no chão coberto de giz das salas de aula, a legislação supracitada. Avaliações de práticas docentes à luz das transformações impostas pela Lei 11.645/2008 ainda são escassas, especialmente em nível de escolas públicas da região Nordeste.
Analisar estas práticas cotidianas de ensino depende da observação do que Certeau (1998) chama de procedimentos, ou seja, o conjunto de esquemas, manipulações e técnicas utilizadas e requer, por isso, compreender a relação dos docentes com a temática de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no processo de ensino-aprendizagem de História.
Diante do exposto, procuramos perceber como essa legislação impacta nas práticas de docentes no ensino de História – onde residem suas bases de execução, operacionalização e consolidação. A investigação foi desenvolvida considerando a visão de professores de escolas públicas de Ensino Médio, no Estado do Rio Grande do Norte.
Assim, com este trabalho, objetivamos averiguar a aplicabilidade da Lei no 11.645/2008 (que alterou a Lei no 9.394/1996 que fora modificada pela Lei no 10.639/2003), quanto à obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, em práticas de professores de História. Nesse aspecto, Chartier (1988) já chama-nos a atenção ao defender que se faz necessário analisar a articulação entre a leitura e a compreensão dos docentes de si e das demandas legais.
A educação para as relações étnico-raciais e o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena
A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA asseguram a educação básica de qualidade como direito fundamental para as crianças e jovens brasileiros. As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica – DCNEB afirmam que para o projeto de nação que está sendo construído no Brasil, “a formação escolar é o alicerce indispensável e condição primeira para o exercício pleno da cidadania e o acesso aos direitos sociais, econômicos, civis e políticos”. (BRASIL, 2013, p. 4). Dessa forma, a educação tem como princípio o pleno desenvolvimento das potencialidades dos indivíduos, em ambientes de liberdade e assegurados o respeito e valorização da dignidade e das diferenças entre as pessoas.
Com a LDB, Lei nº.9394/1996 , tivemos o marco legal para a estruturação da educação no Brasil, estabelecendo princípios, determinações e finalidades, entre outros aspectos e, em 2004, foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação – CNE as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana ( BRASIL, 2005 ). Vale ressaltar que apesar de o título enfatizar discussões relacionadas à História e Cultura de origem negras, em várias passagens do texto são abordadas as questões referentes a indígenas, bem como por analogia, vários aspectos dessas diretrizes se aplicam a todas as etnias.
Embora a Lei 11.645/2008 seja posterior, essas orientações curriculares aplicam-se às suas demandas. Esse documento traz orientações pertinentes para a promoção de um ensino de História que possibilite a garantia da inclusão afirmativa da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, possibilitando mais uma conquista, não só para os assuntos relacionados a esses temas, mas também à cidadania e à democracia no Brasil.
Todavia, a inclusão da educação como direito fundamental dos cidadãos brasileiros esteve distante da realidade de gerações anteriores e se constituiu em um processo lento e gradativo, conquistado através de várias lutas sociais e políticas em diversos processos na nossa história, e que, durante as etapas de sua construção, muitas vezes se priorizou a satisfação de interesses de grupos dirigentes e não se garantiu total acesso da população em geral ao exercício da cidadania plena e a uma efetiva participação política. E, como afirma Tardif (2002) , muitas vezes as legislações são impostas com repercussão direta nas práticas docentes, sem que haja uma adequada preparação destes para os fins que são buscados.
As garantias constitucionais não significam, necessariamente, que a realidade será marcada pelo acesso universal a uma educação de qualidade. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ( IPEA, 2013 ), as dificuldades de acesso à educação básica atingem majoritariamente a negros, sendo também altos os índices dessas dificuldades em indígenas, especialmente em relação a brancos.
Esse processo de desumanização e supressão de raízes culturais foi mantido e, muitas vezes, aprofundado ao longo de toda a História do Brasil, culminando com a sociedade atual que discrimina, muitas vezes sem perceber, ou nega essa discriminação por considerar que já é um fato consumado. Daí vem a necessidade de repensarmos o sistema educacional, agindo de forma a contribuir na transformação de nossa sociedade, por meio da escola.
No que tange ao ensino de História, esse deve cada vez mais debruçar-se sobre as contribuições que pode oferecer e incentivar a memória dos segmentos sociais excluídos em uma perspectiva inclusiva, valorizadora da diversidade. Como afirma Fonseca (2003 , p. 29), “Explorar esse território, contestá-lo e transformá-lo implica enfrentar uma temática óbvia para nós historiadores: a relação orgânica entre educação, memória e ensino de História”.
As demandas são evidentes e justas, as determinações legais são claras e as orientações são ricas e incentivadoras de trabalhos nesse ensino no sentido de valorizar a contribuição histórica e social de setores marginalizados, como negros e indígenas, como forma de garantir a igualdade das diversas etnias e fortalecer a cidadania e a democracia.
Cabe, portanto, à escola, assumir este papel de formação de adolescentes e jovens em um contexto multicultural, multiétnico, plural, diverso ou seja: “[...] encontrar-se diante da hipótese de uma pluralidade de culturas, isto é, de sistemas de referência e de significados heterogêneos entre si”. ( CERTEAU, 1995 , p. 142). A escola situa-se em um ambiente democrático, reforçando uma visão igualitária de todos como cidadãos participantes e importantes para os processos históricos, sociais, culturais e econômicos.
O caráter multicultural, pluriétnico e democrático da sociedade brasileira atual impõe uma educação nacional que reconheça, de forma positiva, a História e a Cultura Afro-Brasileira e Indígena, juntamente com as determinações e orientações legais. Assim, para reparar danos que se repetiam há mais de 500 anos e resgatar as contribuições históricas e culturais de negros e indígenas de forma equânime, a Lei 11.645/2008 contempla a obrigatoriedade da educação Afro-Brasileira e Indígena e determina que essas inclusões se deem, preferencialmente, nas áreas de História do Brasil, Educação Artística e Literatura.
A determinação da inclusão da temática História e Cultura Afro-brasileira e Indígena nos currículos dos ensinos fundamental e médio, por determinação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei 9.394/1996, ratificam um momento histórico de consolidação e amadurecimento da democracia no Brasil e busca, não somente transformar o foco etnocêntrico dos currículos escolares, mas ampliar esse horizonte para a diversidade étnica, histórica, cultural, social e econômica em nosso país. Nessa direção, “a transformação do ensino de história é estratégica, não só na luta pelo rompimento com as práticas homogeneizadas e acríticas, mas também na criação de novas práticas escolares”. ( FONSECA, 2003 , p. 34).
Negros e indígenas estiveram presentes, e com importante atuação, nos processos históricos brasileiros desde o período colonial. Valorizar suas contribuições é dar significação às lutas desses povos e corrigir lacunas na formação histórica nacional, em oposição ao mito de uma suposta democracia racial, através da qual, segundo Freyre (2003) , a miscigenação étnica e cultural da formação da sociedade brasileira havia produzido um efeito democratizante na sociedade. O resultado seria uma integração étnica, que não tinha nada de democrática ou igualitária, pois manteve a visão de negros e índios em uma posição de submissão e aceitação de uma pretensa superioridade dos brancos – tão difundida pela historiografia tradicional, como fundamento dessa dominação imposta ao longo de várias gerações.
Problematizar e questionar tais situações permite-nos colaborar na superação de vários instrumentos que permitiram a consolidação de estigmas e estereótipos preconceituosos em relação a negros e indígenas. A existência de documentos oficiais com expressões como diversidade , inclusão , cidadania e democracia não são suficientes para evitar na escola a reprodução de práticas excludentes, discriminatórias e preconceituosas. Segundo Silva (2010) , o desafio colocado à escola é a promoção de ações e atitudes que traduzam na prática o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural e social, com o estabelecimento do respeito entre os seres humanos.
Desta forma, a escola deve adotar uma agenda positiva de inclusão de todos os sujeitos e promover alterações curriculares que permitam a consolidação desses avanços através de sua incorporação ao cotidiano dos estudantes, com destaque para o combate ao racismo e a toda forma de discriminação. Nesse processo, o professor de História tem papel fundamental, compreendendo a sua importância e contribuindo na implantação de orientações educacionais e determinações legais, voltadas à necessidade de inclusão da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena na realidade das escolas.
Como diz-nos Certeau (1995) , o tempo presente demanda a necessidade de pensar uma cultura no plural , considerando diferentes perspectivas, modos de vida e compreensões diversas da realidade, por parâmetros muitas vezes opostos aos dominantes e culturalmente enraizados. Essa realidade requer um ensino de História pautado na desconstrução do mito de uma democracia racial.
Desta forma, educação em geral e o ensino de História em particular precisam avançar para o reconhecimento e incentivo a uma realidade plural, abrangente, e em permanente processo de reconstrução. Esse ímpeto deve ser o principal condutor das iniciativas por uma educação que respeita e atende às demandas inclusivas, cidadãs e democráticas do século XXI. Na busca de obtenção de êxito:
[...] a escola e seus professores não podem improvisar. Têm que desfazer mentalidade racista e discriminadora secular, superando o etnocentrismo europeu, reestruturando relações étnico-raciais e sociais, desalienando processos pedagógicos. ( BRASIL, 2013 , p. 501).
Desfazer essa mentalidade passa necessariamente pelo reconhecimento de sua existência no interior da sociedade e da escola. Reconhecer e problematizar o racismo permitem que tais práticas sejam identificadas e evitadas. Cabe, portanto, especialmente aos professores de História, reconhecer a dinâmica das mudanças sociais no tempo e no espaço, reconhecendo-se como parte integrante de um processo dinâmico que exige que suas concepções e práticas sejam constantemente revistas e repensadas.
O impacto da aplicabilidade da lei 11.645/2008 na prática docente de professores de história
Realizamos nossa pesquisa em duas escolas estaduais que oferecem Ensino Médio, em uma cidade do interior do Estado do Rio Grande do Norte. Instituições que denominaremos de EEJF e EEME. Essas escolas são únicas da rede estadual que oferecem ensino médio regular nessa cidade polo do Alto Oeste Potiguar, a qual se encontra a 389 quilômetros de distância da capital, Natal.
No Alto Oeste Potiguar, que abrange trinta municípios desse estado, são raras as pesquisas a respeito de demandas legais e culturais, de modo que não encontramos nenhum trabalho acerca da aplicabilidade da Lei 11.645/2008, cuja compreensão pode incentivar o desenvolvimento de demais pesquisas que permitam uma adequada discussão nas salas de aula, notadamente de escolas públicas, de temas tão caros à sociedade.
A escola EEJF possui 11 salas de aulas, dentre outras dependências e 41 funcionários distribuídos em diversas funções escolares. Oferta somente o Ensino Médio, cujas aulas ocorrem nos três turnos, com duas aulas de História por semana em cada turma.
A Escola EEME oferece Ensino Fundamental (anos finais), Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos – EJA. No Ensino Médio, as turmas estão distribuídas nos turnos matutino e vespertino nas quais ocorrem duas aulas de História por semana. Essa instituição emprega 57 funcionários, também distribuídos em diversas funções escolares.
Quanto à construção dos dados na investigação, optamos pela abordagem qualitativa em virtude dessa trabalhar com um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, que correspondem a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis ( MINAYO, 2001 ), o que vai ao encontro da nossa preocupação em compreendermos aspectos de um grupo social, os professores de História das escolas pesquisadas, em sua relação com uma demanda legal – a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.
Optamos pela entrevista semiestruturada, enquanto técnica, com o intuito de, como afirmam Gerhardt e Silveira (2009) , a partir de um roteiro estabelecido, permitir e estimular que os entrevistados falassem livremente acerca de assuntos pertinentes ao desdobramento do assunto principal. Essas entrevistas foram concretizadas, de forma individual, com três historiadores que lecionam História no Ensino Médio das escolas citadas, entre os meses de agosto e setembro de 2015. Para preservar suas identidades, garantindo o anonimato, recorremos a codinomes. Na escola EEJF entrevistamos Zumbi e Luiza Mahin e, na escola EEME, contamos com a professora Joênia – a única que trabalha nessa instituição com o referido componente curricular.
As entrevistas com Joênia e Luiza Mahin ocorreram nas próprias escolas, em salas cedidas pelas coordenações. Já Zumbi, por não constar de horários disponíveis para nos atender na escola, recebeu-nos em sua casa, em um fim de tarde.
Através dessas entrevistas, procuramos estabelecer um diálogo que nos permitisse conhecer a atuação desses docentes em suas práticas de ensino, procurando descobrir como vêm lidando com a obrigatoriedade de trabalhar com a temática História e Cultura Afro- Brasileira e Indígena. Compuseram essas entrevistas questionamentos acerca da formação inicial e continuada desses docentes; como vêm se apropriando das temáticas referentes aos conteúdos de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena; o que pensam acerca da Lei 11.645/2008 e a visão de cada um sobre suas práticas quanto à aplicabilidade dessa lei.
Para a análise das entrevistas, consideramos as seguintes categorias e indicadores:
Categorias | Indicadores |
---|---|
Formação Docente | - Formação inicial. - Formação continuada. |
A Lei 11.645/2008 na prática docente | - Conhecimento sobre a legislação. - Avaliação da importância da lei. - Impactos da legislação na escola. |
Fonte: elaborado pelos autores.
Assim, interpretamos os dados procurando averiguar como os professores compreendem, na materialização de suas práticas, o impacto da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.
A necessidade de compreendermos o que expressam os docentes, acerca de suas práticas, ocorre em sintonia com o que nos diz Tardif (2002 , p. 230) quando afirma:
[...] a pesquisa sobre o ensino deve se basear num diálogo fecundo com os professores, considerados não como objetos de pesquisa, mas como sujeitos competentes que detêm saberes específicos ao seu trabalho.
Nesse processo de estabelecimento de diálogo, fez-se necessário entendermos traços da trajetória percorrida pelos sujeitos. Assim, iniciando por Zumbi, esse concluiu recentemente o curso Técnico Integrado em Informática no Instituto Federal do Rio Grande do Norte – IFRN e se encontrava cursando o segundo ano do curso superior em Ciência e Tecnologia na Universidade Federal Rural do Semiárido – UFERSA, ambos na cidade de Pau dos Ferros/RN.
Trabalhando com educação há mais de vinte e seis anos, Zumbi iniciou sua atividade docente na iniciativa privada em sua cidade natal (Sousa/PB), onde lecionou, nesse setor, em pouco mais de um ano, os componentes curriculares Matemática, Geografia e as extintas Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil – OSPB. O professor só veio a trabalhar com História na rede pública estadual potiguar, quando ingressou através de concurso público, em 1990, na EEJF, na qual está, até hoje, “aguardando a aposentadoria” (como nos disse). De fala mansa e em tom baixo, esse senhor tem a pele clara e se declara branco, demonstrando em suas palavras certo desânimo quando se refere às suas práticas e às de seus alunos.
Luiza Mahin mostrou-se, entre os entrevistados, a que parecia estar mais à vontade com a nossa presença. Nascida na capital do Estado de São Paulo, tem olhos claros e uma pele mulata, o que representa a típica mistura étnica que marca a sociedade brasileira. Mesmo se declarando “negra com muito orgulho”, por ser de família negra, faz ironia com a cor de sua pele e cita preconceitos sofridos desde a infância por ter uma pele mais clara que a da sua irmã, afirmando que “a minha família, ela é negra, apesar de eu ser dessa cor horrorosa, nem é carne nem é peixe. Minha irmã ela é negra a gente sofreu muito preconceito porque perguntavam se a gente era irmã, filha do mesmo pai, da mesma mãe...”.
A professora revela ter sofrido discriminação e demonstra algo comum na sociedade brasileira, um preconceito enraizado e que muitas vezes ignora a miscigenação. A docente veio para o Rio Grande do Norte em 1996, acompanhando a mãe que voltava para sua terra natal, com as filhas menores, após um processo de separação no âmbito matrimonial. Concluiu o curso de Licenciatura em História no ano de 2008, pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, no núcleo da cidade de Alexandria – RN. Afirma, de forma empolgada, sonhar com mestrado e doutorado, tanto para melhorar sua prática docente como o salário.
Ingressou na instituição EEJF em 2013, por meio de concurso público, tornando-se desde então professora efetiva da rede pública estadual. Além de História, viu-se obrigada a lecionar, desde que ingressou nessa escola, em algumas turmas (todas de Ensino Médio), nos três turnos, os componentes curriculares: Artes, Sociologia e Educação Física como forma de completar sua carga horária. Esta situação dá-se devido ao interesse da professora de evitar ter que dar aulas de História em outras escolas, de outras cidades, já que não há mais vagas para História nas duas escolas estaduais (únicas) existentes no município, interior do Rio Grande do Norte, onde realizamos a pesquisa.
Diferente de seu colega Zumbi, Luíza Mahin não participou da seleção do livro didático utilizado na escola devido, no período da escolha, estar afastada do trabalho por motivo de doença. Lamentou não ter participado dessa escolha, revelando ser um sonho seu, pois “sempre trabalhou com a escolha de terceiros”.
A terceira professora é a mais jovem entre os docentes que colaboraram com nossa pesquisa. É também a de formação superior e ingresso na rede pública estadual mais recentes. Joênia chamou nossa atenção pela objetividade em suas respostas e atitude desde os primeiros contatos. Ela tem a pele clara e cabelos ruivos; declara-se de etnia branca e é natural de Pau dos Ferros/RN.
Sua experiência, no campo da docência, teve início em 2011 e se estendeu até 2013, durante o período em que cursava Licenciatura em História; ocasião em que ingressou no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID. Assim, lecionou como bolsista em escolas estaduais e municipais da cidade de Caicó – RN. A partir de maio de 2015, passou a atuar na iniciativa privada, trabalhando em um curso particular que oferece aulas preparatórias para concursos públicos em geral, na cidade Pau dos Ferros. Também nesse ano teve a oportunidade de ingressar, por meio de concurso público, no magistério sendo lotada na escola EEME. Como é nova nessa instituição, não participou da escolha da coleção de livros didáticos adotados para o triênio 2015-2018.
O exposto faz-nos perceber o ensino de História exercido por professores de diferentes etnias, sexo. Um homem e duas mulheres; uma negra e dois brancos; um experiente professor, aguardando aposentadoria, e duas jovens, em início de carreira.
Formação e capacitação dos professores
Iniciamos as entrevistas com perguntas voltadas à formação e capacitação dos professores Zumbi, Luiza Mahin e Joênia, por entendermos que a compreensão da forma como trabalham o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena tem relação com os processos que envolvem a sua formação docente – além de concepção, ideologia e realidade vivenciada.
O primeiro a se pronunciar foi Zumbi, que trabalha na EEJF. Sua formação acadêmica data de 1988, ocasião em que concluiu o curso de Licenciatura em História pela Universidade Federal de Campina Grande – Campus de Cajazeiras/PB. Desde então, não frequentou cursos de pós-graduação. O professor pontuou “que sempre procura assistir aos cursos de capacitação ou palestras” que eventualmente são oferecidos na própria escola em semanas pedagógicas que ocorrem antes do início do ano letivo. Esses cursos/palestras, que ocorrem no início de cada ano letivo, não são dedicados exclusivamente a processos de formação docente, sendo marcados pela limitação de tempo que normalmente é insuficiente para a problematização de questões pertinentes à escola e ao processo de ensino e aprendizagem, como pudemos averiguar. Esta limitação de tempo impede o acesso e a discussão de textos como os de teses, de dissertações, de livros e obras em geral que poderiam e deveriam ser lidos e discutidos como forma de subsidiar e embasar as diversas questões colocadas à realidade das escolas.
Zumbi confessou ter se acomodado em relação aos estudos (no âmbito da educação) e revelou que muitos colegas já o questionaram por nunca ter feito uma pós-graduação, um mestrado, mas relata nunca ter tido tempo ou oportunidade para tal, e agora, como já está perto de se aposentar, acredita que “não adianta mais”.
Acreditamos que esta situação de ausência de processos de formação complementar, seja em nível de pós-graduação ou cursos de capacitação, pode gerar prejuízos às práticas docentes, na medida em que limitam o processo de desenvolvimento de saberes, da produção de conhecimento e aprimoramento da prática, uma vez que:
[...] a formação profissional ocupa, em princípio, uma boa parte da carreira e os conhecimentos profissionais partilham com os conhecimentos científicos e técnicos a propriedade de serem revisáveis, criticáveis e passíveis de aperfeiçoamento. ( TARDIF, 2002 , p. 249).
Luiza Mahin, por sua vez, relatou que iniciou sua atividade docente em 2005, em uma escola pública, quando ainda cursava a licenciatura em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Acrescentou que “uma diretora conhecida, ao saber que cursava Licenciatura em História”, a chamou para dar aulas de Geografia, afirmando ser “exatamente o que estava precisando, já que era tudo a mesma coisa”. A partir da experiência inicial com o ensino de um componente curricular, diferente do que estava estudando na graduação, ela diz: “ainda foram mais de dois anos lecionando além de Geografia, Ciências e Artes, até iniciar atividades de ensino em História”. Sua remuneração vinha através de bolsa, que não especificou, mas pontuou que normalmente trabalhava o ano todo e só recebia no final do período letivo ou “então ainda tinha os arrumadinhos, tipo ficavam as horas suplementares no nome de um professor, de outro professor, de outro professor, ... e esses professores iam recebendo e iam me passando”. Após concluir a graduação, cursou Especialização em História do Brasil, na modalidade Educação a Distância pela Faculdade Internacional do Delta em Parnaíba – PI.
Continuando, disse-nos: “não cheguei a ter disciplinas específicas sobre assuntos ou temáticas de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no curso de graduação” – concluído no mesmo ano da promulgação da Lei 11.645/2008. Segundo Luiza Mahin, nem mesmo “a parte de História negra ou africana, que já havia se tornado obrigatória alguns anos antes” (por determinação da Lei 10.639/2003) foi abordada de “maneira adequada” na graduação em História. A professora ainda acrescentou, criticando a inadequada formação na licenciatura para o cumprimento da referida lei: “Não aprendemos de maneira que fosse suficiente para [...] uma preparação adequada, para lidar com estes temas ou um processo mais eficiente de conscientização, sobretudo da necessidade de combate ao racismo, tão presente em nossa realidade”.
Discorreu, também, que sempre buscava participar de rodas de conversa, seminários e palestras sobre diversidade e História e Cultura Africana, em especial, “por questão de afinidade, notadamente quando sabia da ocorrência deste tipo de atividade em ambientes externos [...]”. Essa afinidade, que se dá por uma identificação étnica apresentada pela professora, favorece uma maior atenção a conteúdos de história e cultura afro-brasileira, possibilitando um impacto na prática docente. Como nos diz Rocha (2014 , p. 46):
[...] as predileções pessoais por um ou outro grupo de manifestações ou produtos culturais, construídas na cotidianidade, bem como as constituídas durante sua formação acadêmica, levam os professores a ampliar um repertório.
Essa “ampliação de repertório” é um importante instrumento no processo de ensino e aprendizagem, pois um professor, com uma compreensão mais ampla do mundo, tem mais condição de efetivar em sala aula discussões acerca de racismo e discriminação que não foram reavaliados ou revistos como forma de superar concepções equivocadas, preconceitos e estereótipos.
A última docente, Joênia, concluiu o curso de Licenciatura em História em 2013.2, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) – Campus de Caicó e se encontrava cursando Especialização em Ensino de História e Geografia, na Faculdade Integrada do Cruzeiro – FIC, instituição particular. Segundo a docente, havia na grade curricular de seu curso de Licenciatura em História da UFRN, um componente curricular específico para História Africana. Já com relação à História e Cultura Indígena, a professora afirmou não ter sido ofertado.
Acrescentou pretender cursar mestrado na área de História ou Educação, mas que as suas prioridades, no momento, diziam respeito à conclusão desse curso de especialização e do curso superior em Ciência e Tecnologia que estava cursando, na Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA) – Campus de Pau dos Ferros/RN, pois “estudar sempre é bom e abre novas perspectivas”.
Essas duas professoras demonstram interesse e consciência da necessidade de continuar estudando e se aperfeiçoando, o que é esperado para docentes que trabalham com jovens que vivem em um mundo marcado pela dinâmica da rapidez das transformações, motivadas especialmente pelo desenvolvimento científico e tecnológico crescente. Essas mudanças exigem que o professor nunca pare de estudar, de se capacitar. Esse é um importante instrumento no processo de ensino e aprendizagem, pois um professor com uma visão mais ampla tem maior capacidade de fomentar o interesse e pensamento de seus alunos para a apreensão da temática em evidência na construção de múltiplas leituras e interpretações. Nesse sentido, uma formação de professores de História, em conformidade com as questões multiculturais, implica tensões e desafios inerentes à atualidade.
Os três docentes, ao discorrerem sobre seus processos de formação, capacitação e experiências, envolvendo o ensino, sinalizam para uma compreensão de que as realidades em que estiveram e estão inseridos podem impactar em suas práticas, particularmente no modo de trabalhar a História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena e sua valorização como forma de incentivar e reforçar a cidadania e o respeito à diversidade, pois “os contextos históricos vividos pelos professores, em diferentes épocas, revelam dimensões das lutas pela sobrevivência e dos embates políticos cotidianos, por vezes ignorados pela historiografia”. ( FONSECA, 2003 , p. 79).
Assim, mudanças na legislação que impactam, não somente no conteúdo, como também na forma como se deve trabalhar o ensino em geral e a História em particular, demandam maior fiscalização sobre o seu cumprimento e eficientes processos de formação docente, sob risco de não serem atingidos os objetivos propostos. E esses processos devem ser incentivados pelos órgãos governamentais e pelos gestores escolares. Incentivos que vão de benefícios salariais a melhorias nas condições de trabalho e uma melhor organização do espaço-tempo.
A formação continuada deve ser inserida no cotidiano das escolas, como forma de garantir que a educação básica acompanhe as mudanças legais e as transformações gerais que interferem no cotidiano dos alunos, evitando um distanciamento entre a escola e a vida.
Cabe, ainda, às universidades e instituições de Ensino Superior, principalmente as que oferecem Licenciatura em História, promover alterações no seu currículo (se ainda não o fizeram), no intuito de contemplar as exigências legais, permitindo que desde a formação inicial, os docentes tenham uma mais adequada preparação para trabalhar com essa temática. O que não impede que haja uma maior aproximação entre instituições de ensino superior, professores egressos e as escolas, especialmente através do atendimento por parte das primeiras, no que se refere às demandas de formação complementar e continuada.
A lei 11.645/2008 na avaliação dos professores
Conhecermos as opiniões dos professores historiadores sobre a Lei 11.645/2008 e a avaliação que fazem de sua importância e seus impactos na escola constitui o objetivo deste item. Iniciando por Zumbi, este afirmou conhecer a lei, não por seu número, mas pelo seu teor, dizendo que: “A lei eu conhecia, mas pelo número, não. Eu nem sabia que era esse número aí, mas desde 2008 que ela foi decretada, né?”. Segundo Zumbi, “desde então já comecei a trabalhar com temáticas de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, mesmo sem que o livro trouxesse esses conteúdos [...]”.
A primeira impressão do professor sobre a lei, foi que esta obrigatoriedade trouxe algo que ele chamou de “diferente” para a escola, por não se ter referência nos livros didáticos “nem sobre o indígena nem sobre o africano, né? Foi uma coisa nova, mas que, aos poucos, foram se adaptando”. O professor falou de mudanças nos livros, do ponto de vista de uma maior presença dessa temática e deu continuidade afirmando: “ainda não percebi um impacto significativo na escola ou na sala de aula, em virtude da maior presença de assuntos de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” e acrescentou: “os alunos não estranharam muito por se reconhecerem descendentes destes povos” e entenderem, segundo o professor, “que somos o país com mais mistura de raças, então não estranharam”.
O professor expressou que, quando a lei citada foi promulgada, mesmo não havendo, naquela ocasião, nos livros didáticos uma referência à temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, já passou a realizar discussões em sala de aula.
Ao discorrer sobre a constituição étnica no Brasil, dando ênfase à “mistura de raças”, oferece-se um significado mais de um intercâmbio genético em que diferentes etnias se reproduziram entre si, gerando uma população marcada por uma diversidade apenas de cor da pele em que todos os grupos se misturaram e geraram uma descendência diversa. Por esse aspecto, sua prática de ensino parece não favorecer a uma maior valorização das contribuições dos diversos grupos sociais para a formação do nosso país.
O ensino de História deve, cada vez mais, debruçar-se sobre as contribuições que pode oferecer e incentivar a memória dos segmentos sociais excluídos em uma perspectiva inclusiva e valorizadora da diversidade. Pois, como afirma Fonseca (2003 , p. 29), “explorar esse território, contestá-lo e transformá-lo implica enfrentar uma temática óbvia para nós historiadores: a relação orgânica entre educação, memória e ensino de História”.
Luiza Mahin, por sua vez, expressou que conhecia o teor da Lei 11.645/2008 e afirmou: “apesar de considerá-la interessante, vejo como absurda a necessidade de uma lei para obrigar os professores a trabalharem com assuntos que deveriam estar no cotidiano das salas naturalmente”. Mostrando-se nitidamente cética acerca da eficiência da lei, a professora afirmou que entende “que esta lei funciona como o dia do Índio ou o dia da Consciência Negra”. Na medida em que observa as pessoas “passarem o ano todinho fazendo piadas racistas, tendo opiniões, e aí no dia 20 [de novembro] você tem que ter a consciência de que eles são um grupo importante pra [sic.] nossa cultura; foi um grupo que foi sofrido, foi perseguido”.
Na expressão dessa professora, há hipocrisia em uma sociedade que discrimina alguns sujeitos de sua História, mas elege dias específicos do ano para exaltar ou homenagear esses grupos, apesar de manter atitudes racistas ao longo do ano – o que representa a inexistência de impactos significativos da lei no cotidiano escolar. Na opinião de Luiza Mahin, por mais que haja uma obrigatoriedade não só de História, mas também de outros componentes curriculares de trabalharem temáticas relacionadas a índios e negros, uma lei que obrigue os professores a trabalharem esses assuntos não é suficiente para garantir que ocorram alterações significativas no cotidiano escolar. Apesar das críticas tecidas e ressalvas à referida lei, afirmou “considerar um avanço que pode contribuir para um futuro de maior respeito e reconhecimento das contribuições destas etnias e de seus descendentes para a formação social e econômica do Brasil”.
Luiza Mahin também se referiu ao livro didático, pontuando que o mesmo não traz informações suficientes sobre esses assuntos, afirmando que “você não vê muito falando sobre... ou então é só umas pinceladas e se for comparar a questão indígena com o negro, o indígena ainda tá muito aquém”.
Constatamos que a professora, que se declara negra e que já sofreu preconceito, fala com destreza que o racismo e a discriminação estão presentes na realidade de forma corriqueira e enraizada, e que a simples imposição de uma lei não parece ter o poder de garantir as transformações que beneficiem e promovam o reconhecimento e a inclusão de grupos sociais marginalizados em nossa sociedade. Para Fonseca (2003 , p. 79), “os relatos de situações partilhadas, dificuldades, tristezas e alegrias demonstram como determinadas experiências históricas são potencializadoras do desenvolvimento pessoal e profissional de cada um dos sujeitos”.
A professora Joênia, por sua vez, disse ter ouvido falar muito nessa lei, “apesar de nunca ter pego o artigo pra [sic.] ler direitinho”. Retomando o que havia dito anteriormente acerca de ter na “[...] grade curricular de seu curso de Licenciatura em História da UFRN, uma disciplina específica para História Africana, tanto mundial como brasileira [...]”, enfatiza: “a gente teve uma base muito boa quanto a isso”. Já com relação à História e Cultura Indígena, mesmo não tendo sido oferecidos componentes curriculares específicos, considerou satisfatórios os estudos realizados sobre estes povos na parte do Brasil colonial e também no componente curricular História da América. Desta forma, expressou que os conhecimentos construídos na Universidade representou um contributo para “trabalhar de acordo com os parâmetros da lei”.
Demonstrou, também, certo incômodo com a necessidade de uma lei para obrigar os professores a trabalharem com assuntos que “muitas vezes eram deixados de lado”. Todavia, entende que esses assuntos são “primordiais, pois dizem respeito à composição étnica de nosso povo”. Para ela, deveria ser algo natural na escola a valorização da identidade nacional, através do ensino e estudo equânime das contribuições históricas dos diversos grupos étnicos que contribuíram para a formação do povo brasileiro. Mas, como isso não acontece na realidade em todas as escolas do país e de nossa região, considera apropriada a lei, afirmando que “veio a calhar sim [...], porque meio que faz com que todos nós estudemos a nossa identidade”.
Para a docente, a obrigatoriedade da inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no ensino de História do Brasil não alterou tanto sua prática docente, pois preservou, considerando o que aprendeu na academia, o estudo voltado para o reconhecimento da importância das ações dos diversos atores sociais, e não somente os heróis ou elementos de classes dominantes. Expressou que a lei contribuiu para “modificar muito a prática em geral, porque é um assunto que muitas vezes ficava de lado, né? Principalmente a História Indígena”.
Ao fazer essas ponderações sobre a lei a professora, que teve formação acadêmica mais recente, reforça-nos o entendimento da relevância de um processo de formação na academia que trate da temática em evidência, propiciando uma prática no magistério que tribute para o reconhecimento das diversas contribuições dos vários setores que compõem a sociedade brasileira.
Avaliou de forma procedente o impacto da referida Lei na escola, afirmando que “os alunos parecem dar mais valor e têm aumentado a assimilação sobre as contribuições históricas de índios e negros”, apesar de perceber entre os discentes uma maior proximidade, interesse ou empolgação por aspectos ligados à história e cultura dos negros. Observa que há uma maior dificuldade de assimilação, por parte desses discentes, no que se refere à história e cultura indígena. Segundo a docente, isso acontece em virtude do longo período em que essa temática “foi tratada de uma maneira sem valor”. Diante desta situação, Joênia expressou que tem se preocupado, em sua prática, com a desmistificação deste sentimento de maior distanciamento em relação aos índios (que percebe entre seus alunos) e que tem procurado fazer com que percebam “que na verdade eles estão tão próximos [dos indígenas] que nem sabem”.
A professora evidencia uma preocupação e sensibilidade quanto às lacunas de aprendizagem em seus alunos, ao mesmo tempo que demonstra procurar exercer a importante função docente de contribuir para corrigi-las. O que se dá no incentivo aos seus alunos, não somente na construção de percepções de algo que lhes foge à compreensão – como no caso do distanciamento em relação à história e cultura indígena –, como também na conscientização de suas origens ligadas aos indígenas, ao lado de um sentimento de pertencimento que diminua esse distanciamento.
Os três professores foram unânimes em reconhecer a importância da Lei, mas não a consideram suficiente para provocar mudanças efetivas nas escolas, no sentido de superação de preconceitos enraizados em práticas sociais fortemente presentes em nossa sociedade. O que requer adoção de políticas educacionais e estratégias pedagógicas que promovam a valorização da diversidade nos diferentes níveis de ensino. Um ambiente livre, plural, diverso, democrático e cidadão – como apregoa os objetivos da lei.
A pesquisa revela a importância e a necessidade da formação continuada dos professores, no tocante a essa temática, já que dois deles não as tiveram contempladas nas universidades onde estudaram – e uma docente, embora tenha estudado na academia História Africana, não teve os mesmos estudos com relação à história e cultura indígena.
Lacunas nos processos de formação acadêmica de professores de História, como os revelados nas entrevistas, podem estar dificultando a consolidação da Lei 11.645/2008 nas escolas públicas de Ensino Médio do Estado do Rio Grande do Norte. Essa discussão aponta para que futuras pesquisas possam se debruçar e se voltar para o papel da formação docente e sua relação com a consolidação da Lei 11.645/2008.
Evidenciamos a existência de certa autonomia para os professores trabalharem com os diversos assuntos, como os determinados na lei, podendo favorecer aos alunos momentos de reflexão quanto ao reconhecimento e importância dos diversos segmentos sociais, na construção histórica e social do Brasil, percebendo-se como cidadãos no processo histórico (independentemente de sua posição étnica, social, econômica, ideológica ou cultural).
O professor de História, ao dialogar com o mundo em que vive, com os desafios, lutas e sonhos, aprimora o modo como reconstrói e interpreta a relação passado/presente/futuro e contribui para que seus alunos alcancem o mesmo.
Considerações finais
Averiguar a aplicabilidade da Lei 11.645/2008 quanto à obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, em práticas de professores de História, permite-nos considerar a importância dessa lei no auxílio à correção de injustiças praticadas contra negros e indígenas, especialmente por uma História eurocêntrica que tradicionalmente valorizou os brancos e colocou aqueles grupos em posições de submissão e até exclusão.
Entretanto, a simples imposição legal da obrigatoriedade de se trabalhar com tal temática não garante uma plena execução das determinações legais, na medida em que professores, que são os principais responsáveis pela execução, apresentam lacunas no âmbito da formação inicial e continuada para trabalhá-las.
A consolidação da Lei 11.645/2008 depende ainda de fatores políticos, especialmente através de mobilizações de setores da sociedade preocupados em garantir a democracia no Brasil, sejam progressistas, legalistas, intelectuais, associações de classe e, especialmente os diversos grupos ligados aos meios acadêmicos, com o intuito de pressionar vereadores, deputados e senadores no sentido de evitar o avanço de projetos que tramitam nas esferas legislativas municipais, estaduais e federal, que colocam em risco diversas conquistas democráticas e um dos pilares da educação no século XXI: o aprender a conviver.
É preciso que a sociedade civil e os diversos setores ligados e comprometidos com uma educação de qualidade se unam e se mobilizem para combater quaisquer propostas ou projetos de lei que estejam na contramão da construção e consolidação de uma sociedade e escolas plurais, laicas e democráticas, fundamentais para um projeto civilizador e emancipador de nação.
Com este trabalho buscamos colaborar e fornecer elementos, informações e sugestões que possam auxiliar na efetiva aplicação da Lei 11.645/2008 em escolas públicas, tanto em nível local quanto regional e nacional, ajudando a superar um ensino de História de caráter eurocêntrico, que marca a educação nacional há muitas décadas e que não dá a devida importância às contribuições históricas e culturais de matrizes indígenas, africanas e afrodescendentes.
Reconhecemos que a revisão historiográfica do que vem sendo contado acerca de nossos antepassados não é uma tarefa que trará efeitos imediatos. O avanço consiste em estancar práticas de exclusão e reconstruir um ensino História do Brasil que coloque negros e indígenas no patamar de importância que realmente têm.
Um processo de ensino-aprendizagem de História voltado para a interação de diferentes matrizes culturais, como forma de fortalecer as relações interétnicas, requer: a) políticas educacionais e estratégias pedagógicas favorecedora de uma integração de diferentes setores da educação, com destaque para a adoção de Projetos Políticos Pedagógicos que reflitam o compromisso da escola com essas demandas; b) questionamentos de relações étnicas baseadas em preconceitos que desqualificam negros, indígenas e mestiços; c) valorização e divulgação de processos de resistência individuais e coletivos; d) compreensão dos valores e lutas através da sensibilização ao sofrimento desses grupos e suas descendências – resultados da escravidão, exclusão e preconceitos a que estiveram historicamente submetidos; e) criação de condições para que negros, indígenas e mestiços possam cada vez mais frequentar os sistemas escolares e não serem submetidos à rejeição ou exclusão; e f) garantia dos direitos de ver registradas e abordadas de maneira equânime as contribuições históricas e culturais de seus antepassados.
É vital que os professores de História recorram, em suas práticas de ensino, à valorização da memória dos diversos grupos étnicos que compõem a nossa sociedade, como forma de incentivar nos alunos a audição da voz de excluídos e as lições que podem trazer para enriquecer suas experiências.
Com a imersão dos jovens em um mundo de novidades tecnológicas, com amplo acesso a informações, torna-se necessário, cada vez mais, formar as novas gerações para o exercício da cidadania, estimular os alunos a compreenderem o contexto social, a necessidade de interpretar fatos a partir da história, como um pressuposto para um trabalho edificante.
Diante do exposto, consideramos a necessidade de um ensino de História, cada vez mais, voltado para a diversidade e que incentive a inclusão das diversidades inerentes à realidade brasileira, não somente no âmbito da etnicidade, como também de gênero, ideologia e religião.
Assim, faz-se necessário reformas nos diversos níveis da educação nacional para uma adequada execução e um alcance eficiente dos resultados propostos pela Lei 11.645/2008. Tais reformas devem ocorrer nos processos de formação docente nas universidades, com a inclusão dessa temática em componentes curriculares (para aquelas que, ainda, não o fizeram), seja na graduação como na pós-graduação, e que as escolas abram espaços para essas discussões, assim como os gestores e entes governamentais ofereçam formação e incentivem os professores a participarem desses processos formativos.