Introdução
Jogo e educação: atividades distintas, excludentes, complementares e/ou identificadas? Mais importante do que isso, porém, é indagar por especificidades do potencial formativo de jogos, uma vez que, conhecendo-as, torna-se possível criar condições e direcionar práticas eficazes e benfazejas de desenvolvimento de virtualidades humanas latentes. Ao examinar a maneira como o jogo é visto por instituições de educação ou por outros tipos de organizações, bem como o modo como ele é representado em discursos acadêmicos, torna-se possível desenhar o quadro de divergências que, atualmente, para o atraso da pesquisa científica e filosófica e em prejuízo do desenvolvimento de soluções, não têm sido devidamente apreciadas em suas devidas proporções, ainda que reflitam aspectos importantes do mundo contemporâneo. A compreensão desse estado, porém, enseja a oportunidade de aprofundamento das pesquisas e, consequentemente, o aprimoramento de aplicações. O objetivo inicial deste artigo em particular foi elaborar e apreciar um quadro sistemático do contraste de tendências de relação entre jogo e educação, as quais emergem de discursos e práticas.
O desenvolvimento da ciência da educação atinge atualmente uma posição que torna inadiável investidas sistemáticas acerca do problema do potencial formativo da ludicidade humana. Tal problema já foi expresso de maneira especialmente sensível no fim do século XVIII, nas Cartas sobre a educação estética do homem , de Schiller, ainda que alguns de seus desdobramentos mais relevantes só pudessem ser formulados em contextos mais próximos de nossa época. Ele, em partes, assume a seguinte formulação: “não errará jamais quem buscar o Ideal de beleza de um homem pela mesma via em que ele satisfaz seu impulso lúdico” ( SCHILLER, 2017 , p. 75).
Em seu ensaio Os jogos e os homens , Caillois (1990) ponderou acerca da possibilidade de os valores fundamentais das sociedades se exprimirem por meio de seus jogos. Nesse sentido, tornar-se-ia relevante indagar se os traços particulares que dão a cada sociedade a sua particular fisionomia “não estabelecem nenhum tipo de relação com a natureza de determinados jogos que se veem prosperar” ( CAILLOIS, 1990 , p. 88). Além disso, a relação fundamental que o elemento lúdico estabelece com a cultura foi demonstrada de maneira mais profunda em Homo Ludens ( HUIZINGA, 2008 ). Uma vez que o ideal de beleza joga um papel significativo no destino de cada um e de comunidades inteiras3 , e havendo-se constatado a íntima relação que o jogo estabelece com a conformação de sociedades, a ciência da educação não pode se furtar na atualidade e visando ao futuro a uma análise mais detida das possibilidades formativas do jogo e da ludicidade humana.
O problema do potencial formativo da ludicidade humana adquire maior visibilidade na atualidade à medida que, nas últimas décadas, constata-se o crescimento do interesse da filosofia e da ciência pelo jogo e é reconhecida – de diferentes maneiras - a sua importância em contextos educacionais. No que se refere mais propriamente ao último ponto, é notável que docentes busquem no jogo um meio de desenvolvimento de capacidades humanas ou um suporte para melhorar o desempenho de seus alunos em variados níveis de instituições educacionais. Chama a atenção também a forte presença do elemento lúdico viabilizada por tecnologias emergentes com as quais, desde cedo, muitas crianças entram em contato, presença essa que ocorre tanto por meio de jogos propriamente ditos, quanto por meio de programações engastadas de dinâmicas e mecânicas de jogos.
Em seu Emílio , Rousseau não estava errado quando afirmou que a educação concerne não apenas a processos formativos executados por seres humanos com base em determinado planejamento e controle, mas também à natureza (forças e potencial naturais) e aos objetos ( ROUSSEAU, 1995 ). Em relação à educação dos objetos , destacam-se, atualmente, os artefatos tecnológicos emergentes colocados à disposição dos jovens, bem como conteúdos veiculados via internet , para ficar no âmbito da tecnologia digital. Em sua concepção de aprendizagem baseada em jogos digitais, Prensky (2012) ressalta que a eficácia de tal modelo dependeria em partes do impacto formativo das tecnologias digitais acerca das novas gerações.
Instada a conhecer mais profunda e sistematicamente o potencial formativo da ludicidade humana, a ciência da educação vê-se então desafiada a conhecer e determinar boas e exitosas possibilidades de relacionar jogo e formação humana. A análise de práticas e discursos contemporâneos sobre a relação entre jogo e educação, por sua vez, revela sintomas que neste artigo buscamos delinear. A clara consciência da discrepância observada tem o potencial de contribuir com a formulação de soluções de caráter teórico, as quais fornecerão as bases para que, posteriormente, sejam elaboradas devidas soluções técnicas direcionadas a enfrentar particulares contingências de caráter contextual.
Neste artigo, foram descritas na sequência desta introdução características essenciais das seguintes seis concepções de jogo e de sua relação com a educação: [1] exclusão do jogo em relação aos contextos educacionais; [2] jogo como recreação; [3] jogo espontâneo; [4] jogo educativo; [5] jogo didático; e [6] gamificação. Tais concepções, por sua vez, estão embasadas em diferentes modelos de percepção do potencial formativo dos jogos, bem como - com a exceção da primeira - direcionam aplicações de jogos ou de elementos de jogos em contextos diversos, conquanto não sejam diretamente responsáveis pelo grau de eficácia dos benefícios prometidos. Elas não necessariamente se excluem umas às outras, embora o forte apego a apenas uma delas tende naturalmente a reverberar em orientações de aplicações mais consoantes a tal opção. Geralmente, diversos níveis de instituições de educação tendem a se compromissar mais especialmente com uma ou outra dessas concepções. Entre educadores de uma mesma instituição podem ser identificados confrontos entre concepções assumidas. À medida que a contingência de possibilidades relativa a cada concepção se torna estanque, o contraste entre essas concepções de jogo evidencia um significativo quadro que este artigo pretende demonstrar. Com isso, são estabelecidas as condições para que a ciência da educação possa se engajar com renovado vigor no empreendimento de aperfeiçoar a compreensão e o direcionamento do potencial formativo da ludicidade.
Exclusão do jogo em relação a contextos educacionais
Conquanto a obra Jogo e educação houvesse sido publicada há cerca de duas décadas, Brougère (1998) nela bem ressaltou aspectos semânticos associados à palavra jogo ainda presentes atualmente4 . Nessa perspectiva, foram encontrados fundamentos de uma “lógica de designação puramente dicotômica e negativa” inerente a variados usos da palavra jogo. Tal padrão semasiológico indica que a palavra jogo está inscrita “em um sistema binário de oposições mais ou menos consciente em um conjunto constituído das noções de trabalho, de utilidade e de seriedade” ( BROUGÈRE, 1998 , p. 26), de modo que em cada contexto de enunciação do termo jogo a oposição a cada um desses três elementos geralmente se torna mais ou menos acentuada.
As noções de negatividade engastadas em usos comuns da palavra referem-se ao caráter de certos jogos que são alheios às coisas importantes da vida social. Quando, porém, estudos a respeito da atividade lúdica são realizados em variados âmbitos de pesquisa, são notados certos traços positivos que subvertem a lógica de designação atrelada à palavra jogo e, desse modo, alguns pesquisadores não se limitam a empregar o termo em consonância com usos mais vulgares, ao passo que outros procuram nomear os fenômenos estudados com outras palavras que evocam noções as quais não se opõem (ou se posicionam de maneira significativamente distinta) às noções de utilidade e seriedade, tais como os vocábulos lazer ou esporte ( BROUGÈRE, 1998 , p. 26-27). A referida lógica de designação atrelada à palavra jogo está baseada naquilo que podemos chamar tendências de secundarização e deterioração valorativa das atividades lúdicas.
No que se refere à tendência de deterioração, ela não apenas está muito bem atestada historicamente em variados julgamentos de filósofos e outros pensadores quanto ao influxo degenerativo de jogos de azar, como também se faz presente em instituições de educação que procuraram ou criam mecanismos para excluir o jogo. Nessa perspectiva, há um reconhecimento implícito ou explícito de que a essência do jogo é o seu potencial de desenvolvimento do vício. A noção de que os jogos necessariamente são atividades distrativas e que podem conduzir ao vício colabora para que se reforce a orientação de que não se pode reservar um lugar para o jogo em instituições de educação. Uma vez que, na realidade, é constatada a existência de jogos estéreis ou prejudiciais do ponto de vista formativo, de modo que tendência de deterioração busca justificar a exclusão dos jogos.
A tendência de secundarização das atividades lúdicas é mais moderada, embora possa contribuir com que os jogos se mantenham afastados das instituições de educação ou, pelo menos, das atividades propriamente estimadas como formativas. Considerando a existência de jogos estéreis, mas inofensivos, essa tendência pode reservar certa função ao jogo. Nesse caso, reconhece-se que a principal característica dos jogos consiste no fato de eles serem atividades secundárias, ou de menor importância. Quanto a esse último caso, basta que se leve em consideração a permissão do jogo em momentos de intervalo ou recreio entre aulas. Deve-se perceber aqui que o jogo pode até ser aceito devido ao fato de a atividade propriamente formativa conduzir à fadiga, mas ainda assim ele permanece excluído das atividades educativas entendidas enquanto tais.
Como se pode notar, a concepção de exclusão dos jogos pode ser absoluta, quando se aferra à tendência de deteriorazação, ou relativa, à medida que se vincula à tendência de secundarização. Ambas essas tendências podem ser favorecidas pela lógica de designação sobre a qual nos referimos, porque de certa maneira quando se fazem presentes em discursos sobre o jogo ou a respeito da atividade lúdica fazem comumente referência a jogos efetivamente estéreis ou nocivos do ponto de vista formativo, isto é, a atividades que veiculam noções opostas a valores positivos geralmente associados ao trabalho, à utilidade e à seriedade. Contudo, deve-se ressaltar que nem todo trabalho, utilidade ou seriedade são bons e belos, ao passo que, por outro lado, há jogos que podem predicar essas qualidades, inclusive do ponto de vista formativo.
Jogo como recreação
A compreensão do jogo enquanto recreação está atrelada à tendência de secundarização acima aludida à medida que, como foi visto, instituições de educação reservam um lugar ao jogo, embora tal lugar não seja propriamente pedagógico. Nesses casos, não é raro justificar a presença do jogo nas instituições de educação à proporção que eles fazem parte de recreios ou de outros períodos extracurriculares, de modo que eles funcionariam como atividades distrativas ou de gasto de energia acumulada e excedente. No espaço institucional, os jogos teriam nesse sentido a sua utilidade: desde que fossem usados para equilibrar funções orgânicas, poderiam promover uma distensão ou uma recuperação que serviriam à retomada das atividades propriamente educativas. A presença do jogo é permitida, conquanto a maneira como se valoriza o seu potencial tende a compreendê-lo no âmbito das atividades de menor importância. Por outro lado, propostas de transformação da instituição de educação em um lugar onde a alegria e o entusiasmo são permitidos e mesmo fomentados podem ver o jogo de maneira mais positiva, conquanto não necessariamente vejam o potencial do jogo para além de sua função recreativa.
Entretanto, é possível identificar dois extremos que, na qualidade de polos, sinalizam uma área onde podem permear variados matizes que representam diferentes concepções a respeito do grau de intervenção pedagógica da instituição acerca dos jogos ou de espontaneidade dos jogadores.
Um dos extremos pode ser identificado àquilo se pode denominar concepção laissez faire de jogo, segundo a qual a instituição pode até destinar certos espaços que viabilizam a prática espontânea de jogos, mas não planeja ou realiza intervenções em tais jogos, reconhecendo que se trata de atividades naturais e momentos nos quais se deve permitir a liberdade, desde que as normas institucionais não sejam feridas. Parques, brinquedotecas, quadras poliesportivas e palcos são imagens que representam espaços de instituições de educação que podem servir a tais práticas.
O outro extremo sobre o qual nos referimos coincide com o planejamento, a intervenção e o controle diretivo dos jogos por parte da administração pedagógica, seja para evitar que eles fomentem o vício, seja com a finalidade de que certos resultados educacionais sejam atingidos, tais como, por exemplo, um bom condicionamento físico, um desenvolvimento da coordenação motora, uma destreza de habilidades psicológicas, sociais e morais etc. Nesse último caso, podem ser utilizados os mesmos espaços aludidos, embora os jogos recreativos continuem sendo momentos que intercalam os períodos de trabalho escolar e passem a ser supervisionados e dirigidos por docentes ou outros profissionais.
Por fim, cabe ressaltar que, entendidos na qualidade de recreação, os jogos extrapolam o domínio de instituições de educação e passam a compor um rol de atividades que modelam, reforçam e/ou carregam os traços fisionômicos de determinadas sociedades. Para Huizinga (2008) , o jogo não apenas provoca uma “distensão regularmente verificada”, mas também:
[...] ornamenta a vida, ampliando-a, e nessa medida torna-se uma necessidade tanto para o indivíduo, como função vital, quanto para a sociedade, devido ao sentido que encerra, à sua significação, a seu valor expressivo, a suas associações espirituais e sociais. ( HUIZINGA, 2008 , p. 11-12).
Nesses casos, podem ser entendidos como atividades que o adulto geralmente realiza em momentos de ócio, embora atualmente a esfera do trabalho tenha se mesclado a muitos jogos que mobilizam contingentes significativos de pessoas. Assim sendo, a sua vinculação com processos educacionais deve ser examinada de maneira mais ampla.
Jogo espontâneo
Chateau (1987 , p. 126-127) concorda com iniciativas de escolas que se preocupavam “com os interesses do aluno”, mas desconfiava “das interpretações abusivas que muitas vezes foram dadas a essas fórmulas”. Assinala como correto o princípio, que os jogos atestam, segundo o qual “a criança só faz bem aquilo que faz com prazer, como, aliás, o adulto também” ( CHATEAU, 1987 , p. 127), embora a abrangência de tal princípio seja tal que, se não for mais bem precisado, pode gerar determinados equívocos. Constata que há variados gêneros de atrativos além do jogo, tal como, por exemplo, o “das guloseimas”. Para Chateau, o atrativo do jogo “é especial, é superior”. Além disso, certo uso abusivo de materiais audiovisuais – tal como o cinema, por exemplo – conduz a erros pedagógicos. Isso porque o esforço - uma característica do jogo – é premissa da aprendizagem, enquanto “imagens passageiras, a despeito de seu caráter concreto, esfumam-se depressa” ( CHATEAU, 1987 , p. 127), de modo que:
[...] o que não foi gravado profundamente na memória fica sem força; e, o caráter concreto e vivo das imagens não pode, nesse particular, substituir completamente outros auxiliares da memória. ( CHATEAU, 1987 , p. 127).
Seguindo essa linha de raciocínio, Chateau (1987) considera incorreto ensinar o latim por meio de “uma cadeia de tarefas desagradáveis”, mas indaga se, por um lado, seria eficaz suprimir todo o esforço que envolve a aprendizagem dessa matéria e se, por outro lado, não seria possível criar procedimentos que façam nascer o esforço sem efetivar a supressão de um atrativo lúdico ( CHATEAU, 1987 , p. 128).
Como pode-se notar, mesmo para Chateau (1987) , que defende uma determinada introdução do jogo em instituições de educação, é ciente de que a aprendizagem pressupõe certo esforço. Ainda que dirigisse críticas a alguns excessos relacionados aos chamados métodos ativos do movimento da escola nova, Chateau (1987) admitia o postulado segundo o qual “a escola deveria apoiar-se no jogo, tomar o comportamento lúdico como modelo para conformar segundo ele o comportamento escolar” ( CHATEAU, 1987 , p. 133). Mas tal admissão não é integral, uma vez que, para ele, faz-se necessário examinar as diferenças entre jogo e trabalho com a finalidade de verificar até que ponto a educação deve se separar do comportamento lúdico.
Nessa direção de análise, Chateau é levado a afirmar a insuficiência de uma educação fundada exclusivamente no jogo, o qual, por sua vez, “não pode triunfar sobre o egocentrismo; quando muito, pode substituir o egocentrismo individual pelo grupal, pelo sociocentrismo” ( CHATEAU, 1987 , p. 134). Assim sendo, transformar permanentemente o grupo de jogo em uma “célula educacional” significa negligenciar “o resto do organismo social”, ao passo que o trabalho permite, por sua vez, “pelos obstáculos que enfrenta, pelas vicissitudes de suas realizações, reconhecer os demais seres e dar-lhes o valor que merecem” ( CHATEAU, 1987 , p. 134). A partir dessas considerações, Chateau assinala que uma educação baseada unicamente no jogo tende a isolar o ser humano da vida, “fazendo-o viver num mundo ilusório” ( CHATEAU, 1987 , p. 135), de modo que, para preparar para a vida, a educação deve considerar a inserção do trabalho. Com efeito, o jogo seria uma propedêutica, um substituto, uma preparação para o trabalho, uma vez que a criança brinca, porque seria incapaz de trabalhar. Isso não significa, porém, que se admitisse o outro extremo como verdadeiro, isto é, a orientação que visa a transformar a instituição de educação em um espaço onde se ganha a vida, até porque, assinala o autor, a própria “ciência procede menos do trabalho interessado do que de atividades desinteressadas nascidas do jogo (atividades religiosas em especial em sua origem)”. ( CHATEAU, 1987 , p. 135-136).
Ora, se as instituições de educação devem preparar para a vida e não devem identificar suas atividades completamente nem ao jogo, nem ao trabalho, qual deve ser a característica essencial da atividade escolar? Para Chateau, ela:
[...] deve ser mais do que o jogo e menos do que o trabalho. É uma ponte lançada do jogo ao trabalho. Nas escolas maternais, será ainda quase um jogo, um jogo educativo. Nas classes mais avançadas, será próximo do trabalho. ( CHATEAU, 1987 , p. 137).
As considerações anteriores foram elaboradas por Chateau com base na necessidade de correção de dois excessos observados em situações concretas de instituições de educação que não souberam de maneira mais exata, por meio de suas atividades, encontrar uma medida adequada e capaz de lançar a ponte do jogo ao trabalho, ou de preparar para a vida de maneira excelente. Deve-se recomendar, além disso, que as instituições de educação não deixem de levar em conta o planejamento e a construção de outra ponte, a saber: aquela que conduz à formação do gosto por nobres distrações desfrutadas na vida adulta, dado o seu potencial cultural.
Tais orientações, de um modo geral, têm eminentemente caráter paradigmático e normativo, servindo de base para a definição do caráter da ação educativa segundo a peculiaridade de cada contexto em instituições de educação. Elas, não obstante, permitem entrever um problema central para a discussão deste tópico. Tal problema pode ser expresso por meio da seguinte questão: em que medida se joga efetivamente em instituições de educação? Ou melhor: é realmente genuíno um jogo conduzido pedagogicamente? Brougère (1998) , em termos similares, abordou essa questão e é com ele que dialogaremos com o objetivo de compreender até que ponto uma determinada caracterização do jogo esbarra em certos obstáculos quando se busca vincular ao jogo objetivos pedagógicos planejados institucionalmente.
Pois bem, Brougère (1998 , p. 208) assinala que a aleatoriedade é “o próprio fundamento da estrutura subjacente” ao termo jogo. Nesse sentido, instituições de educação podem até atenuar a incerteza dos resultados dos jogos praticados pelos alunos por meio de uma ambientação ou mesmo estímulo. Mas a busca pela eliminação de tal casualidade tenderia a resultar na supressão da própria atividade lúdica enquanto tal.
A partir de uma tal caraterização do jogo, a questão que se impõe é a seguinte: é possível conciliar atividades em cuja essência se aloja uma inesgotável casualidade - os jogos - com atividades direcionadas à consecução de finalidades fixadas previamente - pela educação institucional? Para Chateau, é natural que o trabalho tenha a sua origem no jogo, que o prepara ( CHATEAU, 1987 , p. 124).
Nessa perspectiva, a imposição de uma obrigação constitui um traço comum entre jogo e trabalho. Quando essas atividades são comparadas, muda-se apenas a qualidade de tal imposição: enquanto em contextos de trabalho, tal obrigação compele o ser humano a produzir meios de subsistência, em circunstâncias de jogo ela é livremente aceita. “A dificuldade livremente superada” pouco interessando a natureza de tal dificuldade, eis a essência do jogo, segundo Chateau, de modo que “obrigação lúdica é puramente formal” e “se acomoda a qualquer matéria”, inclusive a conteúdos escolares ( CHATEAU, 1987 , p. 132).
Brougère, por um lado, não deixa de reconhecer a regra espontaneamente aceita como um traço do jogo; por outro lado, considera o caráter de tal traço meramente formal, acrescentando-se que o jogo é também marcado por uma decisão, uma metacomunicação, uma frivolidade (atenuação de consequências) e uma incerteza quanto ao resultado (BROUGÈRE, 1998, p. 194). Por essa razão, Brougère tende a pôr entre aspas a palavra jogo quando ela faz referência a atividades com objetivos pedagógicos previamente planejados institucionalmente, indicando que em tais casos é mantida a estrutura de jogo – ou jogo é usado como “estratagema” -, mas não a sua essência. Nesse sentido, se o jogo, em si mesmo, teria algo a ver com a aprendizagem, ela seria atingida por meios substancialmente distintos do trabalho escolar, porquanto a confiança em sua aplicação implicaria uma aceitação da inexaurível aleatoriedade de seus resultados.
Para Chateau (1987) , de um ponto de vista ideal, o trabalho educativo muitas vezes incorporaria traços essenciais de jogo, de modo que a aprendizagem ocorresse com base no interesse do aluno, de maneira prazerosa e substancial. Contudo, mesmo no contexto de instituições de educação infantil, ele seria, como foi visto, um “quase jogo”, isto é, um “jogo educativo”. Brougère (1998) , por sua vez, estava interessado em saber se o jogo, enquanto tal, poderia se vincular à aprendizagem e, em caso positivo, em caracterizar a especificidade da aprendizagem viabilizada por ele.
Nessa perspectiva, considerando a frivolidade como um traço essencial dos jogos, Brougère (1998) assinala que eles ensejam oportunidades de experiências cujas consequências reais são atenuadas e, dessa maneira, determinadas aprendizagens poderiam ocorrer por meio de tais atividades, embora os seus resultados não pudessem ser controlados e direcionados pelo professor. “Eis o paradoxo”, afirma Brougère:
[...] não se pode confiar totalmente no jogo, mas não se pode evitá-lo. Não temos nenhuma certeza quanto ao valor final do jogo, mas certas aprendizagens essenciais parecem sair ganhando com o jogo. ( BROUGÈRE, 1998 , p. 208).
Caillois (1990) , por sua vez, assinala que o jogo tende a escolher as próprias dificuldades e as isolar de seu contexto, como que as tornando irreais. Circunscrito por condições ideais e apresentando solução positiva ou negativa a tais dificuldades selecionadas, o jogador experimentaria como únicas consequências possíveis “a satisfação ou a decepção, igualmente ideais” ( CAILLOIS, 1990 , p. 18). A referida frivolidade, com efeito, poderia até ensejar experiências que conduziriam a determinadas aprendizagens em condições protegidas de sérias consequências, mas tais aprendizagens, se apenas a elas o ser humano se habituar, não deixariam de apresentar uma susceptibilidade: dado que a realidade concreta normalmente não está circunscrita por condições ideais, os jogos não tornariam o ser humano preparado para as “verdadeiras provas” ( CAILLOIS, 1990 , p. 18).
Por outro lado, Caillois (1990 , p. 15) recorda que, em relação aos jogos, “os psicólogos reconhecem-lhes um papel vital na história da autoafirmação da criança e na formação da sua personalidade”. Nessa perspectiva, determinados jogos funcionariam ao mesmo tempo enquanto exercício e diversão que podem tornar “o corpo mais vigoroso, mais dócil e mais resistente, a vista mais aguda, o tacto mais subtil, o espírito mais metódico e mais engenhoso” ( CAILLOIS, 1990 , p. 15).
Para manter a sua essência lúdica, porém, os jogos deveriam, segundo Brougère (1998) , ser realizados com base na iniciativa do jogador, com a consequência de ele encerrá-lo quando lhe aprouver ou de o jogo tomar uma direção imprevista. Por essa razão, de acordo com isso, não se poderia “fundar sobre o jogo um programa pedagógico preciso”, uma vez que:
[...] se o professor intervém com a vontade de dominar o conteúdo e o resultado do jogo, através, por exemplo, do que convencionou chamar de jogo educativo, são as características específicas do jogo que desaparecem. ( BROUGÈRE, 1998 , p. 208).
É possível vislumbrar nessa perspectiva uma tendência de valorização romântica do jogo espontâneo colocado entre parênteses, isto é, do jogo cuja intervenção institucional é significativamente limitada, ou pelo menos deveria significativamente ser distinta da abordagem comum do trabalho educativo. Como se pode notar, dependendo da natureza do investimento pedagógico sobre o jogo espontâneo, poder-se-ia transformá-lo em jogo educativo e, por consequência, subtrair a especificidade da potencial aprendizagem que ele parece ensejar.
Jogo educativo
A expressão jogo educativo é usada para designar uma concepção de relação entre jogo e educação que, de variadas maneiras, evoca uma tendência de pedagogização peculiar do jogo, isto é, certa conciliação entre atividade lúdica e atividade pedagógica. De modo geral, entende-se que o jogo tem interesse à medida que, a partir de um investimento pedagógico sobre ele, as metas da instituição de educação podem ser alcançadas. Em sua Didática magna , Comenius assinala que a utilidade de sua obra para os estudantes seria a de que eles “poderão, sem dificuldade, sem tédio e sem pancadas, como que divertindo-se e jogando, ser conduzidos para os altos cumes do saber” (COMENIUS, 2013, n.p). Mas a utilidade da grande Didática não se restringiria aos alunos, visto que se expandiria, de um modo mais geral:
[...] às escolas, porque, corrigido o método, poderão, não só conservar-se sempre prósperas, mas ser aumentadas até ao infinito. Com efeito, serão verdadeiramente um divertimento, casas de delícias e de atrações. ( COMENIUS, 2013 , n.p).
Como se pode notar, no século XVII, o pai da ciência didática não desmerecia a função atrativa do jogo, reconhecendo, aliás, a possibilidade e a necessidade de incorporá-la às escolas universais que planejava.
Por outro lado, a referida concepção de Comenius (2013) acerca da Didática no sentido acima descrito implica uma associação do jogo a processos que conduzem a uma utilidade. Conforme foi visto, porém, Brougère (1998) havia identificado que a palavra jogo geralmente traduz sentidos baseados em um padrão semântico que a opõe não apenas à noção de utilidade, como também às noções de trabalho e seriedade. É por essa razão que Brougère (1998) resistia em reconhecer jogos educativos na qualidade de jogos em si mesmos, de modo que sua pesquisa assumiu uma direção no sentido de compreender a suposição de que os jogos em si mesmos pudessem estabelecer situações de aprendizagem ou de educação. No entanto, caberia indagar se tal constituição semântica da palavra jogo, quando comparada à realidade, não trairia seu sentido original, isto é, se o jogo de fato não poderia assumir determinada utilidade. Isso por que, se há jogos que são educativos e trazem benefícios à formação, eles bem poderiam, de acordo com esse contexto hipotético, ser usados para atingir os fins de instituições de educação.
As instituições de educação devem realizar seus fins por meio do trabalho e do jogo educativos e, dessa maneira, os jogos passam a ser usados para dar conta do programa institucional em voga? Ou elas devem estabelecer uma rígida barreira entre trabalho educativo e jogo educativo, ampliando-se, em consequência, o leque de finalidades e ligando parte delas ao acolhimento do jogo às dinâmicas institucionais? Essa questão sugere uma dicotomia que, não obstante e na realidade concreta, não é necessariamente composta por alternativas excludentes. Além disso, há que se ter cautela com a consideração da expressão jogo educativo, uma vez que, por um lado, a literatura especializada apresenta formas díspares de apreciá-la e, por outro lado, a depender do modo ela é empregada, ela pode fazer referência a jogos espontâneos com determinadas formas de intervenção pedagógica ou fazer alusão ao uso de jogos enquanto recursos educacionais. Não obstante, o caráter distintivo do jogo educativo – não se faz mais precisamente referência aqui aos objetos que levam esse nome - consiste no fato de que ele tende a ser planejado e acompanhado por professores.
Para Brougère (1998) , tal jogo manteria a sua essência lúdica somente se a imprevisibilidade de seus resultados fosse uma dimensão garantida, mas, em sua maneira de conceber o jogo, nesse caso ele deixaria de ser jogo educativo. Quando a instituição de educação busca controlar o conteúdo e a direção que o jogo deve tomar, limitando-se drasticamente a iniciativa dos jogadores, tem-se então o jogo educativo no sentido depreciativo que Brougère (1998) imprimiu à expressão. Já Kishimoto (2003) assinala que todo jogo - tanto o espontâneo quanto o didático - é educativo e a sua inserção em instituições de educação implica um redimensionamento do investimento pedagógico, o que significa que, no caso de sua aproximação com o jogo espontâneo, professores podem propô-lo, iniciá-lo ou estimulá-lo, desde que os jogadores aceitem livremente jogar, deem o direcionamento que desejarem ao jogo e parem de jogar quando lhes aprouver.
Antunes (1998) , por sua vez, faz uso da expressão jogos pedagógicos com o explícito interesse de distinguir tais jogos daquilo que chamou de jogo ocasional, o qual ocorreria na ausência de um planejamento ou programa pedagógicos. Nessa direção, Antunes (1998) não exclui a importância da dimensão da espontaneidade do jogo aplicado em contexto educacional, mas assinala que os jogos – propriamente educativos ou pedagógicos - “devem ser utilizados somente quando a programação possibilitar e somente quando se constituírem em um auxílio eficiente ao alcance de um objetivo dentro dessa programação ” ( ANTUNES, 1998 , p. 40, grifos do autor). Como se pode notar, o investimento pedagógico sobre o jogo (educativo) pode assumir um caráter distinto a depender da maneira como os seus fins são compreendidos no contexto educacional.
Convém lembrar que, naqueles momentos de intervalo e descanso planejados pela instituição escolar, é comum o aparecimento do jogo espontâneo e sem qualquer finalidade pedagógica previamente programada. Conquanto se pudesse dizer que os alunos aprendem algumas coisas nessas atividades, o qualificativo educativo deve ser usado nesses casos com a clara consciência de que eles assumem um sentido muito diferente quando há programação e condução pedagógica diretiva.
Antunes (1998) propõe que a intervenção pedagógica sobre os jogos lhes dê um direcionamento tal que, por meio de uma diligente condução educativa, eles possam fomentar o desenvolvimento das inteligências cinestésico-corporal, lógico-matemática, linguística, espacial, musical, intrapessoal, interpessoal etc. Tal direcionamento, porém, não suprime o entusiasmo característico dos jogos. Esse segundo sentido da expressão viabiliza uma reflexão interessante sobre uma função que o jogo pode desempenhar em instituições de educação. Nesses casos, conforme havia dito Chateau (1987) , não se trata de jogos efetivamente, mas de quase jogos, isto é, de jogos educativos.
Assim como o trabalho educativo não é propriamente um trabalho, nele deve haver algo de jogo e funcionar como uma ponte que conduz à atividade laboral futura, o jogo educativo, por sua vez, deve ter algo de trabalho e desenvolver funções que serão como uma ponte para a vida real. Mas também, ousamos dizer, os jogos educativos também devem ser como uma ponte para uma futura fruição de nobres jogos em momentos de ócio. Além disso, na qualidade de ponte para a vida futura, podem servir de vacina contra potenciais efeitos nocivos de outros jogos e demais atividades humanas.
Jogo didático
Neste tópico, os jogos didáticos são identificados a um conjunto de atividades desenvolvidas no âmbito de instituições de educação e que, em essência, buscam trajar os conteúdos disciplinares com uma roupagem lúdica. Trata-se de uma tendência presente não apenas na prática como também na literatura acerca do tema. Assim, matérias do currículo escolar poderiam ser desenvolvidas, pelo menos, na forma de jogo didático ou de trabalho educativo.
Prensky (2012) reconhece três benefícios de uma classe de jogos didáticos que pode ser denominada aprendizagem baseada em jogos digitais: nesses casos, [1] a aprendizagem seria envolvente, podendo atingir de maneira positiva, principalmente, aqueles que têm aversão à disciplina que ela exige em contextos não lúdicos; [2] haveria um fomento da interatividade de muitos e diferentes modos; [3] as formas de unir jogos à aprendizagem seriam variadas, ao passo que as melhores soluções teriam caráter contextual. Com base na teoria de Robert Ahlers e Rosemary Garry, Prensky (2012) assinala que a aprendizagem baseada em jogos digitais funciona devido aos seguintes quatro fatores: [1] “as oportunidades para o sucesso (a partir dos objetivos e regras do jogo e do controle que ele possibilita sobre o destino de alguém) levam a uma sensação de propósito”; [2] “o apelo da curiosidade (oriunda de surpresas, complexidades, mistérios e humor) leva à fascinação”; [3] “um perigo simulado (resultado de conflitos, sons, gráficos e ritmo) leva ao estímulo”; e [4] “o reforço social (tanto real, em conversas ou salas de bate-papo sobre jogos on line , quanto simulado, em placares e interações no jogo) leva a uma sensação de competência” ( PRENSKY, 2012 , p. 208-210).
Vimos que, para Chateau (1987) , o jogo implica uma obrigatoriedade puramente formal e espontaneamente aceita, de modo que não haveria impeditivo real de dispor as matérias escolares em forma de jogo, conquanto não se deixasse de reconhecer a dificuldade de realizá-lo. Nesse sentido, além dos jogos educativos, que poderiam conduzir a determinadas habilidades de interesse de instituições de educação, os próprios conteúdos das disciplinas escolares poderiam ser moldados pelo jogo, ao passo que os estudantes, por meio de tais jogos didáticos, superariam as dificuldades encontradas livremente e com prazer, tornando a aprendizagem mais efetiva.
Na perspectiva de Chateau (1987) , a vantagem de tal abordagem seria não apenas produzir engajamento na aprendizagem de matérias escolares por meio do atrativo lúdico, mas também lançar efetivamente uma ponte para o trabalho, uma vez que, conforme se viu, tais jogos seriam quase jogos, não se reduzindo a mero divertimento. Nessa perspectiva, poder-se-ia dizer que a diferença entre jogos didáticos e trabalho educativo consiste, sobretudo, no fato de que os primeiros produzem uma atmosfera de isolamento do cotidiano, ao passo que o segundo, por sua vez, realizaria uma interlocução mais aberta ao mundo, lembrando que ambos não se tratariam, em nenhum momento, de jogo ou trabalho totalmente, mas de algo distinto, de atividades que carregam a marca específica de instituições de educação, isto é, de organizações que visam a preparar o ser humano para viver de maneira autônoma.
Por outro lado, como, no caso dos jogos didáticos, os resultados da experiência devem corresponder à consecução de objetivos curriculares relativos a matérias de ensino básico ou superior, ressalta-se uma distância significativa entre eles e os jogos espontâneos e aleatórios. Quando essas perspectivas são comparadas, salta aos olhos uma contradição a respeito do valor educacional conferido ao jogo. Chamamos a atenção para um perigo da completa substituição do trabalho educativo por jogos didáticos. Nessa perspectiva, ao tornar imperceptível a aprendizagem dos conteúdos curriculares por meio da roupagem de jogo, a finalidade do ensino poderia ser ocultada, de modo que o professor perderia a chance de explicitar os objetivos didáticos e motivar os alunos a atingi-los intencionalmente.
Faz sentido, de fato, que não haja uma supressão do trabalho educativo com os conteúdos curriculares, pois, caso contrário, se poderia chegar àquela outra consequência indesejável apontada por Chateau (1987) , a saber: a impossibilidade de superar o egocentrismo ou o sociocentrismo devido à propriedade evasiva e circunscrita do jogo. Mesmo Prensky (2012) reconhece a vantagem de se oferecer a possibilidade de realização dos objetivos curriculares por meios distintos da atividade lúdica, uma vez que nem sempre o estudante pretende jogar.
Gamificação
A gamificação também é uma tendência que se verifica tanto na literatura contemporânea quanto na prática de instituições de educação ou em outros tipos de organização. Ela pode ser definida como um conjunto de esforços que visam a mesclar mecânicas, dinâmicas e componentes de jogos a determinadas atividades não lúdicas com a finalidade de aumentar o engajamento em contextos comerciais, produtivos e/ou de aprendizagem. Geralmente, essa integração entre elementos de jogos e atividades que não são jogos ocorre com o suporte de tecnologias digitais da informação e da comunicação. Um aspecto interessante dessa aplicação do jogo é o foco na integração entre atividades que, no nível conceitual, são reconhecidas como essencialmente distintas, mas que, no âmbito do mundo, podem ser fundidas e, com isso, visa-se a obter certos benefícios.
Por dinâmicas de jogos entendem-se elementos tais como: [1] narrativa; [2] progressão (degraus); [3] restrições (limitações que incitam criatividade); [4] interatividade (competitiva, colaborativa, sociabilidade etc.); e [5] emoções (experiência de tensão, alegria, raiva, empatia etc.). Por mecânicas de jogos entendem-se maneiras de implementar as dinâmicas. Algumas mecânicas de jogos são [1] a competição; [2] a cooperação; [3] o desafio; [4] turnos; [5] transações; [6] aleatoriedade e [7] feedback etc. Os componentes dos jogos seriam como que as engrenagens que viabilizam as mecânicas. Alguns exemplos de componentes de jogos seriam os seguintes: [1] medalhas; [2] avatares; [3] itens permutáveis; [4] coleções; [5] rankings ; [6] times , [7] níveis etc. Conforme apontam Schlemmer e Lopes (2016) , o processo de gamificar trata-se da utilização da “forma de pensar dos games , os estilos e as estratégias de games e os elementos presentes no design de games , tais como mecânicas e dinâmicas (M&D), em contextos não game ” ( SCHLEMMER; LOPES, 2016, p , p. 187).
Em outras palavras, a chave da gamificação estaria em mesclar a processos não lúdicos arranjos convenientes e eficazes de dinâmicas, mecânicas e componentes de jogos, melhorando desempenho e atingindo objetivos institucionais. Schlemmer e Lopes (2016) consideram em partes que a gamificação é eficaz, porque as gerações atuais estão amplamente familiarizadas com os games e, portanto, respondem positivamente aos seguintes elementos: “narrativa, sistema de feedback , sistema de recompensa, conflitos, cooperação, competição, objetivos e regras claras, níveis, tentativa e erro, diversão, interação e interatividade entre outros”. (SCHLEMER; LOPES, 2016, p. 187)
No que se refere mais propriamente à gamificação de processos educacionais, assinalam que se trata de usar tais elementos de games como “meio para a resolução de problemas e engajamento dos sujeitos da aprendizagem” (SCHLEMER; LOPES, 2016, p. 187), redesenhando e ressignificando seja o currículo, sejam intervenções pedagógicas, ou ambos. Schlemer e Lopes (2016) afirmam que tanto a aprendizagem baseada em jogos digitais quanto a gamificação são potencializadas quando são associadas “a dispositivos móveis e sem fio, mídias sociais, web ubíqua , sistemas de geolocalização, realidade misturada (RM) e realidade aumentada (RA)” (SCHLEMER; LOPES, 2016, p. 190-191), o que, do ponto de vista educacional, tende a vinculá-las à multimodalidade, ao blended learning (ensino híbrido) e à ubiquidade.
Como se pode notar, o conceito de gamificação aproxima-se significativamente da categoria dos jogos didáticos. Tanto em um caso como em outro o jogo é entendido como um meio, um recurso que auxilia as instituições de educação a cumprirem a sua missão, isto é, preparar os alunos para vida por meio da aprendizagem de determinados conteúdos dispostos em seu currículo. Parece que a diferença consiste em que, enquanto a tendência que favorece os jogos didáticos tem a pretensão de adaptar os conteúdos de ensino a práticas de jogos nas quais os alunos aprenderão de maneira engajada, a perspectiva de gamificação de processos formativos compreende a possibilidade de mescla de elementos de jogo a processos que não são jogos, sem, contudo, transformá-los em jogos. Em nenhum dos casos, certamente, há desinteresse quanto à finalidade a ser atendida e passa a ser da maior importância que, na perspectiva da concepção concernente à gamificação, os jogadores sejam conduzidos por um caminho que, por sua vez, deve chegar a um objetivo que não é aleatório.
Ambos os conceitos – jogos didáticos e gamificação -, porém, parecem fazer parte de uma mesma linhagem de interpretação da função educacional dos jogos. Uma diferença mais significativa entre eles, entretanto, é a de que a gamificação está diretamente associada a espécies particulares de jogos, isto é, os games , ao passo que os jogos didáticos extrapolam esse domínio lúdico mais particular. Não obstante tal diferença, é importante enfatizar os perigos aludidos no tópico anterior a respeito da descaracterização do trabalho pedagógico quando da sua ocultação por uma espécie de roupagem de jogo. É de grande importância que o aluno adquira consciência do esforço necessário e não necessariamente lúdico que envolve o processo de aprendizagem, ao passo que é imprescindível que sua relação com professores e demais membros de instituições educacionais seja baseada em princípios de transparência.
Considerações finais
A partir do exposto, evidenciou-se a existência de um significativo contraste de concepções de jogo e de suas relações com a educação. Em síntese, tal contraste pode ser mais bem visualizado no seguinte quadro:
Concepções | Tendência | Tipo de relação com a educação | Aspectos essenciais | Lugares predominantes |
---|---|---|---|---|
Exclusão do jogo | Secundarização e deterioração valorativa | Aversiva, exclusiva | Jogo como caminho do vício | Contextos educacionais em geral |
Jogo recreativo | Secundarização | Restaurativa, afirmativa de valores sociais | Jogo como repouso | Diversos contextos |
Jogo espontâneo | Romantização | Intrínseca, diferenciada de processos formais de educação | Jogo como fim em si, ação voluntária e com fim aleatório | Espaços livres e condições propícias |
Jogo educativo | Pedagogização específica | Intrínseca, porém mediada por intervenção específica | Jogo como meio de formação humana | Instituições de educação |
Jogo didático | Didatização | Modeladora de conteúdo curricular institucional | Jogo como meio de aprendizagem de conteúdos curriculares | Instituições de educação e outros |
Gamificação | Hibridização | Adesiva de elementos de games em atividades | Jogo como meio de engajamento da aprendizagem | Instituições em geral |
Fonte: elaboração dos autores.
A visão panorâmica viabilizada por esse quadro, por outro lado, omite detalhes que, não raras vezes, evidenciam nuances significativas no interior de cada concepção, as quais, por sua vez, nos planos da experiência concreta e dos discursos sobre o jogo, testemunham aproximações ou mesmo transições sutis de uma categoria a outra.
Além disso, a análise dessas categorias de relações entre jogo e educação desvelou um estado de tensão que deve ser considerado em, pelo menos, dois sentidos. Em primeiro lugar, tal exame evidencia anomalias de valoração do papel e da função formativa do jogo; em segundo lugar, porque, se em certos casos a experiência demonstra um caráter não necessariamente excludente entre essas concepções, em outros casos – e em especial no âmbito de formulações conceituais de tais concepções - ela revela situações de conflito.
Mais importante do que isso ainda é o fato de que a consciência desse exame nos permite vislumbrar a formulação de uma hipótese capaz de explicar os motivos da referida discrepância e de apresentar soluções teóricas e técnicas mais apuradas relacionadas ao problema da fecundidade formativa da ludicidade.
A formulação de tal hipótese deve passar necessariamente por uma ampliação e aprofundamento dos estudos da ludicidade humana, os quais, por sua vez, não podem deixar de levar em consideração as contribuições de Schiller (2017) , Huizinga (2008) e Caillois (1990) . Há muita pesquisa a ser feita nessa direção, o que demanda esforços coletivos significativos. O objetivo deste artigo foi formular e apreciar um quadro de concepções de relação entre jogo e educação que emergem de discursos e práticas, oferecendo desta feita ao público uma visão sistemática de uma situação de fato que merece atenção especial e abordagens múltiplas, caso se projete o aprimoramento de processos formativos em diversos níveis. O enfrentamento dessa situação impulsiona estudos futuros.