Introdução
A escravidão no Brasil foi extinta pela Lei Áurea assinada no dia 13 de maio de 1888. Contudo, o processo para a oficialização da emancipação de homens, mulheres e crianças em condição servil foi marcado por diversas lutas sociais. Por parte dos próprios escravizados houve lutas de resistência desde o século XVIII, cuja formação dos quilombos é um exemplo importante. Houve a organização formal do grupo dos abolicionistas – intelectuais, políticos, educadores etc. – publicando livros e espalhando seus ideais em jornais. Contudo, parece que o passo definitivo para a emancipação da condição servil no Brasil se deu pela orientação modernizadora do capitalismo liberal disposto a modificar as relações no mercado de trabalho, pautando-se pelo assalariamento dos empregados e a substituição da mão-de-obra escrava pela mão-de-obra estrangeira, marcadamente a dos colonos europeus.
Contra a escravidão, o governo imperial, na segunda metade do século XIX, publicou uma série de leis, decretos e regulamentos que tiveram como objetivo restringir o tráfico de pessoas escravizadas no território nacional. Dessa forma, o Decreto Imperial nº 5.135, de 13 de novembro de 1872, aprovou o regulamento geral para a execução da Lei nº 2.040 de 28, de setembro de 1871, a chamada Lei do Ventre Livre. São 102 artigos regulamentando a liberdade da condição servil dos filhos livres da mulher escrava desde a data de 28 de setembro de 1871. O padroado é referendado de maneira explícita, uma vez que a emancipação dos recém-nascidos está condicionada ao assentamento do pároco. A declaração da data do batismo (batistério) na Igreja seria o documento oficial aceito pelo governo para autorizar a liberação das crianças após 8 anos de idade por parte dos proprietários de suas mães.
Depois desse período, as crianças seriam entregues a alguma associação autorizada pelo governo, às casas dos expostos ou aos tutores ou curadores encarregados de sua educação, depois da avaliação do juiz de órfãos. Caso a mulher escrava fosse emancipada teria o direito de conduzir com ela os seus filhos menores de oito anos. Pelo Artigo 3º foi criado o fundo de emancipação para libertar tantos escravos quanto corresponderem o valor anual disponível em cofres públicos. Para manter o fundo anual, a primeira renda viria, por mais contraditório que isso pareça, da taxa de escravos, seguido dos impostos de transmissão de propriedade deles. Para que os municípios tivessem acesso ao fundo seria necessário prever no orçamento do ano anterior o valor a ser utilizado, desde que houvesse dinheiro em caixa, respeitadas as cotas de cada um deles, baseadas na estatística da população.
Na cidade do Serro foi criada a Associação Filantrópica Os Obreiros da Emancipação, em 10 de fevereiro de 1870, quando aprovou os seus estatutos. O documento original traz a assinatura de 46 homens, na maioria serranos residentes no distrito sede e outros moradores dos arredores da cidade. Trata-se de representantes da classe média urbana serrana detentora de cargos públicos provinciais – delegacia de polícia, fórum – e municipais – na Inspetoria da Instrução Pública da Comarca do Serro, Câmara Municipal, Coletoria, além de um padre. Alguns possivelmente tivessem relações com a Loja Maçônica Estrela do Norte, com sede no Serro. Essa loja participou ativamente da arrecadação de recursos para a construção do novo cemitério municipal em 1881 (começada em 15 de março de 1882 e terminada em 04 de outubro de 1884), o que se efetivou com a doação de uma casa situada no número 20 da Rua Barão de Diamantina, atual Rua Alferes Luiz Pinto, para a Câmara Municipal em 27 de outubro de 1901, depois de longa disputa com os padres da paróquia (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 133, s.p.).
A associação Os Obreiros da Emancipação escreveu em seus estatutos uma importante memória do que se pensava da infância dos escravizados no Serro. O fim da associação era arrecadar mensalmente por meio de contribuições um valor suficiente para “emancipar na pia batismal – de preferência – e alimentar o maior número de crianças principalmente do sexo feminino nascidas neste município de ventre escravo” (SOUZA, 1999, p. 86). Ela foi prevista para durar:
[...] pelo tempo em que ainda durar no Império do Brasil o ‘elemento servil’ – ou enquanto não forem por alguma lei do poder competente julgados livres ‘os ventres escravos’, devendo nesta última hipótese modificar a sua esfera de ação. (SOUZA, 1999, p. 862).
A finalidade da associação era promover a alforria dos ingênuos, sem prever a libertação das mães. Nesse caso, não se sabe se a intenção era retirá-los da condição escrava e levá-los para algum orfanato ou encaminhá-los para tutores designados pela Câmara Municipal. Acerca do funcionamento da associação nada foi encontrado em arquivos públicos. Não podemos afirmar categoricamente se saiu do papel, quantos ingênuos libertou, quantas alforrias promoveu, uma vez que não há registros documentais. A ideia, contudo, permaneceu e se estruturou após a publicação da Lei do Ventre Livre. Os ideais também chegaram até os vereadores da Câmara Municipal.
Assim, o recém-criado fundo de emancipação imperial operou algumas alforrias registradas nos documentos da Câmara Municipal, efetivamente. No dia 09 de julho de 1881, a Câmara Municipal, por seu presidente Ernesto Pio dos Mares Guia, pediu verba para a emancipação dos escravos ao Tesouro Nacional (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 81, n.p.). Em sessão do dia 12 de julho de 1884, os vereadores conferiram a carta de liberdade “à escrava Marcelina, parda, pertencente ao cidadão João Pereira do Amaral e de acordo com o seu senhor, mediante a indenização de 380$000, entrando a Câmara apenas com 130$000”, ficando por conta de Marcelina inteirar o preço de 380$000 combinado com seu senhor (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 155, n.p.).
Na sessão de 13 de maio de 1885, o presidente da Câmara apresentou uma petição de José Francisco de Carvalho pedindo para que a instituição libertasse por conta do fundo de emancipação municipal a parte que tem na escrava Luiza, mulata, sendo encaminhado o requerimento para o juiz municipal (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 155, n.p.). Na sessão de 07 de julho do mesmo ano, foi examinada a petição de Antônio da Costa Coelho, em que pediu para ser libertada pelo fundo de emancipação a sua mulher, escrava de Francisco Caetano Xavier, estando a mulher do peticionário já classificada judicialmente; o valor que o fundo passou ao proprietário foi de 260$000, somando-se com o valor de um pecúlio depositado na Coletoria no valor de 40$000, totalizando 300$000.
Segundo Paiva (2018), a população escravizada participava ativamente da economia das cidades, vivenciando as mais variadas interações sociais, ou seja, podendo acumular o seu pecúlio para os processos de alforria, uma vez que eles trabalhavam “nas ruas, prestando serviços e vendendo comidas e bebidas”, sendo chamados “escravos de ganho, negras de tabuleiro e jornaleiros”, experimentando “autonomia relativa [...] e muitos assim, conseguiram comprar suas alforrias e de seus familiares.” (PAIVA, 2018, p. 96-97) Ao final, o presidente afirmou que “é de parecer que seja atendido tão justo pedido, tendo mais uma vez esta municipalidade de restituir à liberdade a uma das muitas vítimas dos grilhões do cativeiro” (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 155, n.p.). Em sessão em 07 de janeiro de 1886, o presidente da Câmara declarou que, a despeito das falsas informações vindas dos jornais que dão a Câmara da Corte [Rio de Janeiro] como a primeira que iniciou esses dois grandes melhoramentos [emancipação e escolas], foi a Câmara do Serro a primeira do Império “que concebeu e pós em prática esta ideia em virtude da qual tem sido alforriados alguns escravos” (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 155, n.p.).
Na sessão de 1º de maio de 1886, a Câmara Municipal, após ser constituído um processo de avaliação da escrava Maria, que foi avaliada em 400$000, efetuou o pagamento, “lavrando a carta de liberdade, que sendo apresentada, foi assinada competentemente e entregou à beneficiada” (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 155, n.p.). Em 23 de abril de 1887, a sessão da Câmara registrou:
Ilmo. Sr. A Câmara Municipal desta cidade leva ao conhecimento de V. S. que faça constar no livro competente que em sessão de hoje conferiu plena liberdade mediante indenização às duas senhoras, as seguintes escravas: Estela, preta, 31 anos de idade, solteira, serviços domésticos, matriculada sobre o número 473 da matrícula geral deste município por sua ex-senhora Dona Carlota Querobina Lins; e Joana, parda, de 37 anos, solteira, matriculada sob o número 1.589 da matrícula geral do município por sua ex-senhora Dona Ana Adelaide Nunes Rabello. Deus guarde V. S. (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 122, n.p.).
No processo de emancipação realizado pela Câmara Municipal não aparecem explicitamente os filhos das mulheres escravizadas. Contudo, a emancipação na pia batismal foi habitual no Serro, aparecendo em registros eclesiásticos. Por isso, a educação dos ingênuos3 na segunda metade do século XIX permite-nos entender mais acerca do que se pensava a respeito da infância. Que as crianças deveriam ser educadas, não restava mais dúvida4. Isso fazia parte da moralização pedagógica, assumida pela educação formal. O seu objetivo era estabelecer um padrão de comportamentos sociais; uma formação a partir da instrução pública de sujeitos civilizados obedientes à ordem comunitária; uma expectativa normalizadora a partir das escolhas dos adultos para as futuras gerações. Assim,
Para os negros, educar os filhos respondia ao desejo de lhes dar um ofício, como forma possível de prepará-los para as dificuldades que enfrentariam na sociedade de então. O Governo aproveitou-se disso e ofereceu-lhes, em diversos setores, escolas profissionalizantes que formalizaram a instrução. Era mais uma tentativa de aplacar revoltas, dar ocupação às crianças pobres, a recém-libertos e a todos aqueles que poderiam, ao crescer, tornar-se o germe de conflitos. O ensino dos ofícios não atingia somente os que viviam na miséria material [...]: o ensino destinado à indústria tinha sido inicialmente destinado aos silvícolas, depois fora aplicado aos escravos, e em seguida, aos mendigos. Passaria, em breve, a atender, também, outros desgraçados. (REIS; TRINCHÃO, 2012, p. 11).
Por isso, a questão mobilizadora de nosso problema é posta da seguinte maneira: como, por meio da educação e através de qual arranjo pedagógico, seria possível tornar os ingênuos úteis à sociedade, fazendo-os civilizados, ordeiros, trabalhadores, moralizados apesar do seu passado de mãe escrava mantida, na maioria das vezes, como propriedade de seus senhores até 1888?
No Serro e em algumas cidades do Brasil5, a resposta foi dada com a proposta de criação de escolas especializadas em moralizar os jovens, apresentando um ideário modernizador, ensinando ofícios mecânicos, conforme demonstra a explicação de Matta Machado Jr.:
A grande maioria dos jovens alunos limitam-se a receber noções vagas da língua ou ciência que se ensina na aula avulsa, e logo consideram-se destinados ou com direito às altas posições, comumente se agregam à turba imensa dos pretendentes a empregos públicos, desdenhando da indústria, do comércio e da lavoura [...]. Quantos jovens ativos, inteligentes, que poderiam no comércio, na lavoura, na indústria ou nas artes alcançar belas posições, se inutilizam moral e fisicamente, vítimas da perniciosa influência do falso sistema de educação que adotamos? [...] As tendências atuais se dirigem, com efeito, para esse grande objetivo: a substituição do antigo sistema pelo ensino verdadeiramente útil, pelo ensino profissional. (MINAS GERAIS, 1880, p. 148).
A análise do processo de criação e funcionamento do Liceu de Artes e Ofícios do Serro tem por objetivo esclarecer o que denominamos segundo momento de valorização dos ofícios mecânicos (1879-1883) por meio da institucionalização de seu ensino, por causa do processo irreversível de modernização serrana devido à emancipação das pessoas escravizadas. Ao mesmo tempo pretendemos demonstrar que o jeito barroco serrano de ser modernizou-se – ou pelo menos tentava se atualizar para ser mais eficiente – exigindo da educação formal um aparelhamento mais arrojado para o processo ensino-aprendizagem – escolas bem equipadas, professores aptos para o ensino técnico – que continuasse a manter os privilégios das elites serranas, sem desfazer as suas conquistas.
Nesse sentido, houve o aperfeiçoamento dos dispositivos sociais do poder simbólico como entendia Pierre Bourdieu (2011), pois esse é entendido como “não somente o sistema de relações objetivas que o modo de conhecimento objetivista constrói”, mas se dá no interior das “relações dialéticas entre essas estruturas objetivas e as disposições estruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las” (BOURDIEU apud ORTIZ, 1983, p. 8). As relações aprendidas socialmente estruturam-se formando indivíduos assujeitados, predispostos aos costumes por conta da existência de um poder simbólico que estrutura ontologicamente as relações sociais. Nesse sentido, a formação social ensina de maneira eficiente e eficaz, de maneira a conformar os indivíduos aos seus padrões, alcançando uma reprodução dos costumes, das formas de ver e viver a vida, de entender a própria história. Isso se faz como prática social, uma vez que ninguém se constitui solitariamente, de forma apartada, ilhado em relação aos costumes de um grupo ou classe. Dessa forma, a evidência do paradigma reprodutivista do poder simbólico, dos padrões e costumes nos leva à análise da educação informal no povoado serrano e de seus ofícios para descobrirmos como o ensino espontâneo reproduz, também, as relações de dominação.
Quem quer o Liceu no Serro?
Uma correspondência entre os vereadores da Câmara Municipal do Serro e o Governo Provincial datada de 21 de julho de 1881 é reveladora do processo de modernização da cidade nesse período. O relatório foi enviado ao Dr. Benjamin Franklin Ramiz Gabar. Em relação à venda de escravos, a resposta menciona o número total de 2.000, sem especificar os lucros auferidos com o comércio de compra e venda. As escolas do Serro eram quatro: o Liceu de Artes e Ofícios (estava suspenso pelo governo que não autorizou despesas até 12 de janeiro do corrente ano) e mais três, sendo que estas tinham aulas mistas para meninos e meninas. Segundo o redator da carta, o comércio era baseado na exportação de café, açúcar, fumo, aguardente, farinha de mandioca e milho, arroz, feijão, batatas, toucinho; gado vacum, amendoins e sabão, obras de ourivesaria de ouro e prata, diamantes e ouro; importação de ferragens, vidros, louça, fazendas, panos de algodão das fábricas nacionais – Biribiri e Mascarenhas – e, das estrangeiras, vinho, cervejas e outras bebidas espirituais, sal, gado vacum e muar. As obras públicas em curso mostravam a importância com a saúde da população e seu bem-estar, sendo que não estavam finalizadas as obras do Paço da Câmara Municipal, do chafariz no largo da Cavalhada, e de quatro outros menores em diferentes pontos da cidade, além de um matadouro público.
A população serrana (incluindo a de Santo Antônio do Itambé, então distrito): 11.965 almas, sendo composta por homens livres, 4.969, mulheres livres, 4.853, homens escravos, 1.164, mulheres escravas, 979, totalizando 1.872 fogos, casas ou domicílios. De maneira geral, o relatório, com alguns equívocos, mostra que a população serrana mantinha cerca de 18% de pessoas escravizadas, num total de 2.143. Essa população escravizada tinha direito, a partir da Lei do Ventre Livre, a libertar seus ingênuos na pia batismal. Além disso, havia a população egressa da escravidão vivendo os seus complexos processos das dinâmicas de mestiçagens (PAIVA, 2013, p. 14, 2015, p. 42), com suas coartações e pecúlios para alforrias. Dessa forma, a decisão de educar essa população foi tomada pelo governo provincial com o auxílio das elites serranas.
Dois tipos de ensino: um baseado no bacharelismo, outro no tecnicismo. Duas formas de conceber a educação formal: uma para os filhos dos estratos medianos e das elites locais, outra para dar o que fazer aos nascidos ingênuos, egressos da escravidão, pobres, desvalidos. No primeiro projeto elitista, crianças e jovens eram preparados para assumirem as funções públicas, os cargos eletivos nas Câmara Municipais, na Província e no Império. No segundo, crianças e jovens serviriam à modernização do Brasil, de Minas Gerais e do Serro. Afinal, quem queria o Liceu no Serro?
A resposta passa por dois momentos distintos, mas que se complementam. O primeiro diz respeito ao renovado discurso serrano de modernização das atividades agrícolas, pastoris e comerciais herdada como evolução da civilização da cidade por conta do idealizado jeito barroco serrano de ser; modernizar era o verbo de comando das elites serranas. O segundo refere-se ao papel social da educação formal na cidade, revisto e reatualizado por conta das conquistas políticas das elites serranas no cenário brasileiro, em especial, por conta do papel de Teófilo Ottoni como ilustrado político contestador no período regencial e no Império de Dom Pedro II.
A educação poderia, então, dinamizar a modernização para os filhos das elites locais e, ao mesmo tempo, resolver os problemas da escravidão herdados do passado minerador do século XVIII e de sua necessidade para a economia local até a metade do século XIX6. Isso foi pensado e executado pelo governo provincial com a ajuda das elites locais do Serro e de Diamantina. Segundo Brandão (2015), o deputado diamantinense João da Matta Machado Júnior afirmava que “o projeto do Liceu de Artes e Ofícios do Serro era muito menor que o da Escola de Itabira, pois a intenção era que essa escola se constituísse como uma referência para o surgimento de outras no Norte Mineiro”, uma vez que “o fator impeditivo da criação de uma escola profissional eram os diminutos recursos financeiros provinciais, o que era um consenso entre os parlamentares” que não impediriam “a criação de uma escola que cumpriria com as ditas ‘exigências do progresso’.” Trata-se da modernização do jeito barroco serrano de ser por meio da modernização da educação progressista.
O dia da inauguração do Liceu foi contado por Brandão (2015, p. 70-71):
Na cerimônia de instalação do Liceu de Artes e Ofícios do Serro, exaltações semelhantes foram feitas acerca do nome e do legado de Ottoni. O jornal ouropretano “A Actualidade” (A ACTUALIDADE, 1880, p. 2), órgão do Partido Liberal, noticiou que no dia 15 de julho de 1880, às 12 horas, reuniram-se no Largo da Matriz do Serro as pessoas mais “gradas” da cidade para assistir à solene instalação do Liceu. O jornal narrou detalhes da ocasião: o inspetor de instrução pública da cidade, José Maria Brandão, declarou o começo dos trabalhos escolares “encarecendo o mérito do estabelecimento e o seu futuro auspicioso”. Ele saudou a Assembleia Legislativa de Minas Gerais e o legislador que apresentou e fez aprovar o projeto de lei da escola, o diamantinense João da Matta Machado Júnior. Finalizado o seu discurso, em seguida, tomou a palavra o Dr. Mares Guia, então presidente da Câmara Municipal do Serro, rememorando que a cidade foi berço de ilustres homens como um Teófilo Ottoni; disse que o legislador tinha escolhido o “torrão mais fértil para nele lançar as sementes mais fecundas para o norte de Minas.” Terminou dizendo que o estabelecimento era “a flor da esperança, que daria mil frutos.” O Barão do Serro, de igual modo, “pensando no grandioso porvir do Liceu de Artes e Ofícios e mostrando o desenvolvimento que podia ter”, como narrou o jornal, felicitou a “pátria serrana” e o legislador por tamanha homenagem à cidade. Falaram ainda os professores do Liceu, Cândido de Senna e Tocantins; este último, se elevou em “sentimentos nobilíssimos” em prol da escola. Quando falou Augusto Vaz de Mourão, “todos brilhantemente ergueram bem alto o mérito da criação [da escola] e o nome do Serro.”
O Liceu de Artes e Ofícios do Serro foi, mais uma vez, um laboratório do alcance político da elite serrana na província de Minas Gerais. Dessa vez, o sucesso no projeto seria a concretização de uma virada histórica na vergonhosa utilização da escravização dos africanos e dos egressos da escravidão em solo serrano. Os escravizados teriam, então, um lugar social, demarcado por uma profissão técnica. Não estamos afirmando, contudo, que não houvesse na associação Os Obreiros da Emancipação7 o ideal de extinção da escravidão e uma mobilização humanitária abolicionista. As alforrias do fundo da emancipação através da Câmara Municipal somadas às mais diversas formas de acordos das dinâmicas de mestiçagens promoveram a emancipação de muitas pessoas escravizadas. A questão de fundo, alheia ao humanismo, é a utilização da mão-de-obra historicamente desvalorizada enquanto sujeitos históricos para promover a modernização das atividades agrícolas, pastoris, mineradoras e industriais de uma antiga vila do ouro, centrada no século XVIII e XIX no mercado escravista e suas trocas pecuniárias.
Depois da mobilização política regional capitaneada por Matta Machado, o Liceu de Artes e Ofícios teve seu funcionamento autorizado pela Lei nº 2.543, de 06 de dezembro de 1879. A Secretaria da Inspetoria Geral da Instrução Pública, com sede em Ouro Preto, enviou no dia 27 de janeiro de 1880 para o inspetor da Câmara Municipal um ofício de nomeação dos membros do Liceu de Artes e Ofícios do Serro:
De ordem do Ilmo. Sr. Inspetor Geral comunico a Vossa Senhoria para seu conhecimento e assim fazer constar aos interessados que, por ato de 13 do corrente, Ilmo. Sr. Vice-Presidente nomeou para o Lyceu de Artes e Ofícios desta cidade:
Diretor: Antônio Thomaz de Godoy.
Membros do Conselho Fiscal: o Barão do Serro, Dr. Joaquim Vieira de Andrade, Dr. Ernesto Pires dos Mares Guia.
Secretário: Cândido José de Senna.
Professor de aritmética, geometria plana e desenho linear o diretor Antônio Thomaz de Godoy.
Professor de português o secretário Cândido José de Senna, os quais deverão quanto antes solicitar seus títulos, a fim de poderem entrar em exercício, logo que for instalado.
Deus guarde a Vossa Senhoria. (ARQUIVO IPHAN SERRO, Documento 128, Caixa 118).
Ao adotar o modelo de escola-internato, o Liceu atenderia aos meninos desvalidos com idade entre 10 e 14 anos, para fazerem o seu ensino secundário. Brandão (2015) explica que a partir de um orçamento de 16:000$000 (dezesseis contos de réis) foi prevista uma estrutura curricular com as disciplinas de francês, aritmética plana, desenho linear, música vocal e instrumental, uma arte ou ofício escolhido pelo aluno além da instalação de oficinas de alfaiataria, sapataria, marcenaria, ferraria e serralheria. Contudo, em três anos de funcionamento precário e mudanças constantes no Regulamento nº 84, de 21 de março de 1879, o que aconteceu foi a decadência financeira da instituição, passando de internato para externato com a diminuição de 30 para 20 alunos. Os problemas financeiros foram muitos e podem ser observados na leitura do ofício ao presidente e membros da Câmara Municipal enviado pela Inspetoria Geral da Instrução Pública de Minas Gerais, com sede em Ouro Preto, datado de 15 de dezembro de 1880:
Respondendo ao oficio que V. S. dirigiu ao Exma. Presidência em 08 de novembro findo, pedindo ordem para pagamento da primeira quota [...] para o Lyceu de Artes e Ofícios dessa cidade a fim de poder receber alunos internos e estabelecerem-se oficinas, cumpre me cientificar a V. S. que que em vista da informação da Diretoria da Fazenda de 11 de dezembro corrente despacho logo que a câmara apresentar os documentos que justifiquem as contas. (ARQUIVO IPHAN SERRO, Documento 116, Caixa 08).
A comissão de ofícios da Câmara encaminhou cópia do documento ao Barão do Serro, que era membro do conselho fiscal do Liceu, acusando recebimento e afirmando que iria tomar as providências cabíveis para resolver os problemas (ARQUIVO IPHAN SERRO, Documento 117, Caixa 06).
O prédio alugado pelo Governo Provincial era a antiga residência do Barão de Diamantina, Francisco José de Vasconcelos Lessa (1798-1862), no Largo do Pelourinho. Depois desse funcionamento escolar do imóvel, acabou-se por determinar a finalidade social do grande edifício, um dos maiores da cidade serrana, durante o século XX, quando foi adquirida pelo governo estadual e se tornou a E. E. Ministro Edmundo Lins. O Liceu foi a primeira escola serrana com uma sede própria, alugada e adaptada exclusivamente para essa finalidade. O que continuava a acontecer com as demais aulas públicas do período, crianças e jovens ficavam à mercê do imóvel onde residiam os seus mestres. Nesse ponto, há uma tendência progressista e modernizadora da educação serrana que inclui como um de seus pressupostos o higienismo, centrado na preocupação com a saúde do indivíduo e da comunidade. A educação como forma de higienizar as relações sociais atuou no sentido de separar os espaços destinados aos mais diversos grupos. Nesse caso, os desvalidos sociais demandavam um atendimento especial para a aquisição de novos hábitos e eram separados segundo sua origem social, seu estado físico, qualificação racial e destinação para o mercado de trabalho. Assim, o jeito barroco serrano de ser recriou, pela educação formal no Liceu de Artes e Ofícios, pelo menos como laboratório de testes, um processo civilizador:
Construído a partir da teoria das configurações sociais, ou seja, como uma configuração inicial de poder político, econômico, social [que] se transforma em outra, e concomitantemente, são transformadas as estruturas de personalidade dos indivíduos; [e] se não estudamos a relação entre estrutura política, poder e a personalidade dos indivíduos em sua conduta, não estudamos o processo civilizador. (GÓIS JUNIOR, 2007, s.p.).
Trabalho manual e trabalho intelectual
A divisão entre o trabalho intelectual e o trabalho manual foi o fundamento higienista, progressista e modernizador para a criação do Liceu de Artes e Ofícios do Serro. Essa polarização entre o manual e o intelectual, entre o trabalho nobre e o trabalho vulgar, entre o trabalho complexo e o trabalho simples, entre as atividades laborais valorizadas por seu bacharelismo ilustrado e as atividades laborais desvalorizadas por sua instrumentalidade mecânica, em suma, entre o trabalho criativo e o trabalho necessário marcaram a história da constituição do jeito barroco serrano de ser. De fato, o preconceito social em torno do denominado defeito mecânico (FRANCO, 1997, p 21-63) ligado aos ofícios mecânicos dos mais variados, como sapateiro, alfaiate, ferreiro, seleiro, carpinteiro, pedreiro, pintor etc., predominou desde o século XVIII no Serro.
Contudo, no primeiro momento de constituição da civilização serrana os ofícios mecânicos eram fundamentais para a construção da cidade com suas ruas e praças, as igrejas, as casas, as praças e os chafarizes. Entendemos que esse primeiro momento durou de 1702 com a criação do povoado até 1850, quando a modernização banalizou o conhecimento dos oficiais e mestres da comunidade, supervalorizando o trabalho intelectual, reconhecidamente aquele oferecido às elites serranas pela instrução pública formal. O auge desse processo aconteceu quando, pela primeira vez no Serro, uma escola ofertou como disciplinas de sua estrutura curricular os ofícios mecânicos. Foi com o Liceu de Artes e Ofícios que o processo de ensino espontâneo dos ofícios mecânicos tornou-se algo aparentemente superado, uma negação das profundas ligações das novas gerações com a ancestralidade dos primeiros oficiais serranos, em sua maioria egressos da escravidão, uma vez que “os professores desses ofícios poderiam ser mestres nacionais ou estrangeiros” (BRANDÃO, 2015, p. 12).
O segundo momento da valorização dos ofícios mecânicos (1879-1883) coincidiu com sua institucionalização pelo Liceu de Arte e Ofícios. A educação formal não mais se importava com a ancestralidade dos ofícios mecânicos. Dessa forma, nesse segundo momento ocorreu uma valorização dos ofícios mecânicos desde que certificados pela instrução pública. O trabalho manual tornou-se radicalmente uma forma de perpetuação do lugar social dos desvalidos, dos pobres, dos enjeitados, dos egressos da escravidão, dos meninos considerados perigosos para o convívio social se não estivessem com as mãos ocupadas. A modernização e o progresso como projeto das elites serranas via educação formal ampliou os dispositivos de reprodução das desigualdades sociais, reconhecendo-os oficialmente. Enfim, passou a valer o ditado popular: manda quem pode, obedece quem tem juízo ou, dito de outra forma, manda quem sempre mandou, obedece quem sempre foi obrigado a obedecer.
Conclusão
Art. 79. Em geral, os escravos libertados em virtude da lei ficam durante
cinco annos sob a inspecção do governo. Elles são obrigados a contractar
seus serviços, sob pena de serem constrangidos, se viverem vadios,
a trabalhar nos estabelecimentos públicos.
(Decreto Imperial nº 5.135, de 13 de novembro de 1872).
No dia 15 de maio de 1888, a Câmara Municipal do Serro foi comunicada por um moderníssimo sistema de telégrafos, instalado em 1886, que o Brasil acabara com a escravidão em seu território:
Comunico V. S. que S. Ex.ª. o Sr. Presidente da Província de Minas Gerais por telegrama nº 179 e com data de 14 do corrente, recebido hoje, recomenda a sua imediata observação da lei, assinada ontem extinguindo a escravidão no Brasil. (ARQUIVO IPHAN SERRO, Documento 02, Caixa 05).
De 1550 até a década de 1860, segundo os estudos atuais” (SCHWARCZ; GOMES, 2018, p. 21), desembarcaram no Brasil um número aproximado de 4,8 milhões de africanos escravizados. Quando se aproximou o momento definitivo da emancipação dos homens, mulheres e crianças escravizados no Serro, a educação formal acabou por separá-los radicalmente. O trabalho manual seria destinado para os egressos da escravidão. O trabalho intelectual seria destinado para os filhos da classe média urbana e da elite econômica serrana. A educação formal e seu dispositivo de reprodução do poder simbólico (BOURDIEU, 2011) que é a escola, e nesse caso, o Liceu de Artes e Ofícios, acabou por fazer perdurar as heranças “de um sistema que se enraizou cruelmente na história brasileira, e que guarda marcas profundas no nosso cotidiano (SCHWARCZ; GOMES, 2018, p. 21).
A história da educação dos ofícios mecânicos ou da gênese da educação tecnológica brasileira no Serro está atrelada à história da emancipação das pessoas escravizadas e de sua face mais triste: os filhos dos ventres livres – os ingênuos, nascidos de ventres de mulheres escravizadas e ainda sujeitas às mais complexas dinâmicas de mestiçagem para darem conta de sobreviver acreditando na sua emancipação. No complexo processo de modernização brasileira da qual a cidade do Serro é um microcosmo com importantes matizes analíticos de diversas possibilidades narrativas, a educação formal parece ter tido um papel fundamental para a perpetuação da desigualdade social originada da escravidão. Segundo Paiva (2018, p. 98), contudo:
[...] a escravidão já não tinha a mesma importância no país; em revanche, a velha, eficaz e diversificada prática das alforrias criara possibilidades concretas de libertação no cotidiano do regime; a história das alforrias terminou em 1888 como havia começado, junto com a escravidão, então abolida.
As alforrias terminaram sua história, mas a inclusão social dos egressos da escravidão na sociedade serrana e brasileira pela educação formal escrevia um de seus primeiros capítulos, dos tantos que ainda são escritos diariamente pelos herdeiros dessa memória ancestral do cativeiro.