História da educação e educação histórica
Na segunda metade do século XX, Timor-Leste experimentou duas sucessivas eras de dominação estrangeira, uma portuguesa e outra indonésia. Iniciada com as missões católicas, a educação durante o colonialismo português sempre foi muito restrita, tornando-se objeto de alguma preocupação por parte do Estado apenas após a Segunda Guerra Mundial. A história da ilha só era introduzida no currículo na medida em que algum acontecimento ali fosse relevante aos olhos do império. Com isso, a própria origem histórica de Timor estava atada à narrativa camoniana dos “descobrimentos”. Segregadora desde sua origem, a escolarização transformou-se no principal critério de hierarquização da população local, estabelecendo a clivagem colonial fundamental entre os nativos que sabiam falar português e os que não sabiam, os que tinham estudo e os que não tinham, os assimilados e os indígenas. Voltado especificamente para a elite da colônia, o sistema escolar era extremamente seletivo e mantinha a maior parte da população analfabeta, sendo que, no início dos anos 1970, o letramento na província não chegava aos 10 por cento da população (THOMAZ, 2002).
Nos anos da ocupação indonésia (1975-1999), isso mudou radicalmente. Novas escolas foram construídas no território, e a potência invasora trouxe professores e materiais didáticos, com novos conteúdos e outras estratégias de aprendizagem. A língua portuguesa foi proibida e o bahasa indonesia foi imposto como a única língua do ensino formal. A invasão militar foi seguida de uma política de educação universal orquestrada desde Java. A escolarização compulsória e a alfabetização em massa integraram a estratégia da conquista, funcionando como um poderoso aparelho ideológico na tentativa de domesticação e indoneização dos timorenses (SILVA, 2015).
Em 1999, com a violenta destruição que acompanhou a desocupação do exército invasor, todo o território de Timor-Leste foi impactado: cerca de 75 por cento da infraestrutura do país foi arrasada, assim como 90 por cento das escolas, também 80 por cento dos professores indonésios e administradores escolares deixaram o país (SILVA, 2015). Nos anos subsequentes, com a reintrodução da língua portuguesa no país, boa parte daqueles timorenses mais velhos que sabiam falar português tornaram-se professores, independentemente de sua formação acadêmica. O ensino tornou-se uma pauta urgente, sobretudo o de línguas. E nesse período de transição, chegou-se a criar currículos emergenciais que conviviam com os antigos materiais indonésios e outros currículos que eram propostos pelas cooperações internacionais que chegavam no país (LEACH, 2008). Segundo o censo de 2010, quase metade da população não possui domínio da escrita. O letramento dos timorenses concentra-se sobretudo nas áreas urbanas, sendo que a maior parte das pessoas vive no meio rural, onde a tradição oral é um meio fundamental de produção e transmissão do conhecimento (SILVA, 2015).
Em várias partes do mundo, a profissionalização do historiador e dos professores de história ocorreu em momentos decisivos da formação dos Estados nacionais e seu reposicionamento na geopolítica do conhecimento. No Brasil, nos anos 1930 e 1940, observou-se a institucionalização da história como disciplina científica e a elaboração de materiais didáticos produzidos no país, abandonando a velha prática de adaptar os livros de história produzidos na França, numa agenda integrada ao projeto de modernização do Estado comandado por Getúlio Vargas (ZAMBONI, 2007). Também nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), logo após a independência, em 1975, promoveu-se uma profunda renovação do ensino no campo dos estudos históricos que alavancou uma grande ruptura com as tradicionais formas coloniais de se narrar e estudar o passado. Em Moçambique, por exemplo, logo nos primeiros anos da independência o governo da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) investiu na formação de novos quadros docentes de história, um novo currículo de história foi elaborado e novos livros didáticos foram publicados e distribuídos visando atender os objetivos educacionais do novo Estado (SITOE, 2000).
A história, pensada enquanto um sistema de conhecimento, está firmemente ancorada em práticas de poder e dispositivos pedagógicos que envolvem projetos coloniais e nacionais. Ela é peça-chave no processo de constituição da nação como uma “comunidade política imaginada” (ANDERSON, 2009). Justamente por estabelecer narrativas de fundação e de continuidade nacional, elementos projetados como definidores da identidade e da unidade de um país, a educação histórica desempenha um papel crucial na formação da memória pública e na legitimação do poder político.
Timor-Leste foi o primeiro país do século XXI a conquistar sua independência, mas até o ano de 2020 não oferecia nenhum curso no ensino superior voltado para a formação de professores no campo da história. A ausência de formação universitária na área e a presença regular da disciplina nas escolas e livros didáticos desmonta, de antemão, a clivagem entre o conhecimento histórico acadêmico e o escolar, uma divisão que estruturou muitos dos debates sobre a educação histórica na segunda metade do século XX (BITTENCOURT, 2011). São poucos os nacionais formados em história, e, pelas informações que obtive em pesquisa de campo, na capital do país, mediante conversas com professores do ensino secundário e superior, pelo menos até o ano de 2015, existia menos de uma dezena de timorenses graduados nessa disciplina, quase sempre formados nas universidades indonésias. Devido à escassez de docentes com treinamento específico, muitos timorenses passaram a lecionar, na rede pública, disciplinas que não são sua área de especialidade, e a formação de novos professores tem sido um dos aspectos-chave da política educacional timorense. Essas formações têm ocorrido fora do país, com o envio de timorenses para estudar em universidades estrangeiras, ou no próprio território, com a ampliação do ensino superior e a oferta de cursos de formação de professores, por meio de parcerias com agências da cooperação internacional, tais como a portuguesa e a brasileira.
Este artigo problematiza o ensino de história em Timor-Leste no contexto pós-independência, focalizando questões em torno do novo manual didático de história e os dilemas envolvidos na reestruturação curricular de um sistema educacional que convive com legados da violência colonial e epistêmica. Entre 2012 e 2014, vivi em Díli, capital do país, atuando também como formador de professor de história, através da cooperação brasileira. Em 2015, retornei à capital para aprofundar meu trabalho de campo e arquivo, no contexto de uma pesquisa mais ampla (DE LUCCA, 2016). Em termos metodológicos, este artigo inspira-se na literatura crítica sobre a descolonização do conhecimento e baseia-se na análise do manual didático e na pesquisa de campo em contextos educacionais da capital. Após discutir a elaboração e implementação do livro didático de história no âmbito da cooperação internacional lusófona, propõe-se um breve exame de suas representações: 1) localizando a posição de Timor-Leste na narrativa histórica apresentada pelo livro; e 2) identificando quem são os principais sujeitos dessa história. O artigo avança com uma etnografia da recepção desses materiais em sala de aula, de modo a demonstrar como o ensino de história no país também é resultado de uma geopolítica do conhecimento situada em múltiplas escalas, na qual a colonialidade dos agentes externos, que intervém nas agendas educacionais nacionais, tem de negociar com as práticas locais, que se apropriam e adulteram as histórias que ali chegam.
Cooperação internacional, “lusofonia” e o livro didático
O nascimento da cooperação internacional remete ao processo de descolonização que ocorreu na segunda metade do século XX. Com o fim dos impérios europeus, muitas instituições do ultramar transformaram-se em agências de cooperação técnica criadas para promover o desenvolvimento, reproduzindo valores e saberes gestados durante o colonialismo (ESCOBAR, 1995). Nesse sentido, muitas das práticas da cooperação internacional em educação repõem uma antiga divisão imperial do trabalho intelectual, com projetos específicos voltados aos países “subdesenvolvidos”. A colonialidade do saber, situada numa estrutura de longa duração, na qual os centros metropolitanos exportam línguas, histórias e modelos de ensino-aprendizagem para as periferias consumirem e reproduzirem, foi definida por Walter Mignolo como geopolítica do conhecimento (WALSH, 2001).
Na passagem para o século XXI, as instituições portuguesas assumiram papel central na reestruturação do sistema educacional de sua mais distante ex-colônia, apoiando-se no discurso da “lusofonia”. Em Timor-Leste, a oficialização da língua portuguesa após a desocupação indonésia implicou a necessidade de recursos humanos e materiais para viabilizar a (re)inserção do português no território, seja pelo ensino da língua, seja pela difusão de outros conhecimentos nessa língua. A transformação do idioma do antigo colonizador em principal língua de ensino é um assunto controverso e objeto de tensões, e no campo político-institucional, ela é frequentemente associada à dependência externa (para financiamento de projetos, fornecimento de mão de obra educacional e formação de professores), mas também ao desenvolvimento, por meio da inserção do país no “mundo lusófono”.
A lusofonia é um dos carros-chefe da diplomacia portuguesa contemporânea, capitaneada principalmente pelo Instituto Camões. Vinculado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e voltado para a promoção da língua, da cultura e da história portuguesa no âmbito internacional, o Instituto Camões desenvolve importantes atividades nos PALOP e reivindica presença e protagonismo em toda a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Em Portugal, mais que oficial, a lusofonia integra parte do senso comum nacional, cuja narrativa mítica encontra n’Os Lusíadas uma obra de fundamento tanto da nacionalidade quanto do império. Desde pequenas as crianças aprendem nas escolas sobre a importância das grandes navegações, seus feitos e heróis. Também o público português acompanha com ávido interesse tudo o que tem a ver com as antigas colônias. Certas continuidades entre o discurso da “lusofonia” e do “lusotropicalismo” de Gilberto Freyre são evidentes, sobretudo na afirmação de que haveria alguma essência lusitana permanente que se reproduziria ao longo do tempo nos diversos espaços do globo (CASTELO, 1999).
Já a cooperação técnica brasileira, nos quinze primeiros anos do século XXI, fez dos PALOP e do Timor-Leste importantes eixos de atuação no Sul global, chegando a concorrer com Portugal na projeção de influência econômica e cultural. Em Timor-Leste, a educação foi o principal foco da cooperação brasileira, com destaque para o Programa de Qualificação de Docentes e Ensino de Língua Portuguesa (PQLP). Diferentemente de Portugal, no Brasil, o maior país do mundo em número de falantes do português, o debate sobre a lusofonia praticamente não tem ressonância. A ideia de uma irmandade transnacional imaginária, que incorporaria, para além da ex-metrópole, outros países, como Timor-Leste e os PALOP, passa desapercebido por boa parte da opinião pública brasileira, podendo até se constituir como um tema exótico para certos estratos sociais. E o primeiro contato com tal discurso não deixa de ser desconcertante para vários cooperantes brasileiros que, chegando em Timor-Leste e defrontando-se com tais questões, muitas vezes oscilam entre a exaltação de uma recém-descoberta identidade lusófona e mesmo sua simples acusação como neocolonialista. Por isso, mesmo no interior do campo da cooperação lusófona, ocorrem desentendimentos, entre professores portugueses e brasileiros, a respeito do significado da língua portuguesa, da educação e da própria cooperação internacional. Tal dissenso é motivado, entre outras coisas, pelos diferentes currículos e histórias do colonialismo que foram ensinados em cada país e que formaram seus cooperantes.
Historicamente, a presença da cooperação brasileira no campo da educação em Timor-Leste sempre foi muito mais reduzida que a portuguesa. Em 2013, o PQLP desenvolvia uma atividade de formação de professores na única escola do ensino secundário, em Díli, em que a cooperação portuguesa não atuava. Nessa escola, acompanhei a introdução dos novos livros didáticos feitos em Portugal. Em Timor-Leste, o nível secundário é constituído pelo 10º, 11º e 12º ano, e a inserção dos manuais didáticos se deu aos poucos. O material do 10º ano começou a chegar nas escolas no fim de 2011, e o do último ano começou a ser distribuído apenas no final de 2014. Como forma de difundir seu uso, a cooperação portuguesa conduziu praticamente todo o processo, desenvolvendo cursos de formação em massa em todo o território. Em verdade, esses livros transformaram-se nos principais instrumentos utilizados tanto no ensino secundário quanto na formação dos próprios professores, realidade expressa nas respectivas versões do Manual do aluno e Manual do professor e que revela o potencial impacto dessas obras no sistema educacional timorense.
O livro didático é um artefato cultural nada inocente. Choppin (2004) argumenta que ele pode vir a constituir uma poderosa ferramenta para disseminar e fundamentar, de modo sistemático e homogêneo, determinadas ideias e conceitos nacionais para uma geração mais jovem e que se encontra em processo de socialização e formação. Numa perspectiva mais contextual, Apple (1995) sugere tratar o livro como um um objeto de disputa, vinculado a experiências comunitárias locais ou dinâmicas societárias mais amplas, podendo estar associado a diferentes tradições linguísticas e intelectuais e inserido numa rede de instituições e práticas que determinam sua circulação e distribuição. No caso do livro de história do ensino secundário de Timor-Leste, ele está inserido e é resultante de uma rede transnacional, que envolve múltiplos profissionais, protocolos e agências financiadoras e de cooperação, conectando representações históricas, leitores, autores e agentes situados em distintos e distantes contextos geográficos, culturais e linguísticos.
Em 2010, o governo timorense solicitou o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian para proceder à reestruturação curricular do ensino secundário. Para tal, o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, com o suporte técnico da Universidade de Aveiro, apresentou ao Fundo da Língua Portuguesa uma proposta que foi aprovada para financiamento. Dois anos depois, em 2012, o Projeto de Reestruturação do Currículo do Ensino Secundário Geral em Timor-Leste havia sido concluído (CABRITA, 2015). Para a elaboração dos livros didáticos, foram convocados especialistas timorenses, que, contando com a supervisão e o financiamento do Ministério da Educação timorense, se deslocaram até Portugal. A equipe responsável pela feitura específica do livro de história foi composta por cinco pessoas: três professoras timorenses aposentadas do ensino secundário, um professor doutor português da Universidade de Aveiro e um consultor científico, professor catedrático aposentado da Universidade de Nova Lisboa. A dinâmica estabelecida entre as professoras timorenses e os doutores portugueses no processo de elaboração dos livros não é explicada nos materiais nem nos documentos disponíveis no site do projeto2. Contudo, a coordenadora do projeto conta que a redação final dos livros foi feita pelas equipes portuguesas e reconhece que não foi “possível situar ao mesmo nível de participação as equipas timorenses e portuguesas” (MARTINS, 2013, p. 22).
Nas escolas e instituições educacionais de Díli, ouvi muitas histórias que questionavam as condições da participação timorense na produção dos livros didáticos. Rumores enfatizavam que as exigências de elaboração dos livros foram muito assimétricas ou que os timorenses só foram para Portugal para legitimar a compra dos livros. Mesmo com a inclusão formal de especialistas timorenses em sua confecção, os livros didáticos são comumente interpretados como Manuais de Portugal. E é por esta particular designação nacional que as obras são chamadas nas escolas e salas de aula em Timor-Leste.
A seguir, analiso o conteúdo do livro didático, refletindo sobre o modo como a obra localiza Timor-Leste na história global e as perspectivas dos principais sujeitos dessa história. Esses são os prismas privilegiados no estudo desses materiais que, ao consolidarem um discurso histórico-pedagógico por meio da seleção de personagens e visões do passado, evocam turbulentos campos de conflito, ainda hoje marcados pelo ressentimento e pela memória da violência.
Timor no livro didático de história
O material didático de história compreende três volumes (Quadro 1), um para cada ano, e cada volume apresenta três unidades temáticas que, em conjunto, perfazem o total de nove unidades temáticas. Enquanto a primeira unidade do primeiro volume trata dos impérios clássicos do espaço euro-asiático, a última unidade do último livro volta-se para o Timor-Leste no limiar do século XXI. Dessa forma, a narrativa apresentada nos três livros incorpora, ao mesmo tempo, matérias relativas à história geral e à história de Timor, sempre a primeira englobando a segunda. O conjunto dos manuais compõe quase quinhentas páginas, sendo que apenas cerca de 140 delas são dedicadas especificamente a Timor. Nesse aspecto, há uma discrepância entre o primeiro e o último livro: enquanto o primeiro trata apenas de um pequenino e último subtema voltado a Timor (vinte páginas de um total de 160), o terceiro livro apresenta uma unidade temática inteiramente voltada ao país e constitui o livro com a maior quantidade de informações sobre Timor (oitenta páginas de um total de 173). O conjunto da narrativa vai do geral para o particular, do global ao local, e quanto mais contemporânea a história, mais informações sobre a situação do território vão sendo colocadas.
VOLUME 1 | VOLUME 2 | VOLUME 3 |
---|---|---|
1. IMPÉRIOS CLÁSSICOS DO ESPAÇO EURO-ASIÁTICO (SÉC. IV A.C. A IV D.C.) | 4. OCIDENTE E ORIENTE EM PRESENÇA (CERCA DE 1650 A CERCA DE 1825) | 7. A ORDEM INTERNACIONAL APÓS A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL |
2. EURÁSIA NO SÉCULO XIII | 5. EXPANSÃO DA CIVILIZAÇÃO INDUSTRIAL E IMPERIALISMOS (INÍCIO DO SÉC. XIX ATÉ 1920) | 8. A EMERGÊNCIA DO NOVO SISTEMA MUNDIAL NO ÚLTIMO TERÇO DO SÉCULO XX |
3. ÁSIA-PACÍFICO E O PRIMEIRO ESTÁDIO DA GLOBALIZAÇÃO (SÉC. XV-XVII) | 6. DOS ANOS 1920 À SEGUNDA GUERRA MUNDIAL | 9. TIMOR-LESTE NO LIMIAR DO NOVO MILÊNIO |
O material inicia com conhecimentos históricos a respeito das configurações regionais da Ásia e da Oceania, o que desloca o projeto de uma história universal eurocêntrica. Há algum esforço de descentramento da grande narrativa ocidental, ancorando a história e seus primórdios nos grandes centros civilizacionais a Oriente e, assim, “provincializando a Europa” (CHAKRABARTY, 2000). Nesse primeiro volume, Timor aparece nos séculos XIV-XVII, o que sugere uma coincidência não ocasional com o expansionismo português, protagonizado no livro como “o primeiro estádio da globalização” (VIEIRA; MENDES; NEVES, 2012, p. 4). Há, portanto, um descompasso entre o tratamento dado à história global e à história local. Se, de um lado, a grande narrativa ocidental sobre a história mundial é parcialmente descentrada, de outro, é possível identificar uma reafirmação da perspectiva colonial europeia, particularmente a portuguesa, quando o manual de história aborda especificamente temáticas relativas à ilha de Timor. O ensinamento implícito é de que a história de Timor tem início com o advento português.
No segundo volume, a história de Timor é principalmente tratada a partir dos problemas do poder administrativo na ilha. O que faz com que as formas da consciência timorense percam espaço para os interesses imperiais baseados em questões de lei e ordem: os governadores, a implantação dos impostos, as campanhas punitivas de pacificação, a demarcação das fronteiras, a exploração econômica, a atuação das ordens missionárias etc. As referências do período parecem seguir os princípios dos próprios documentos portugueses (decretos, mapas e orçamentos), uma operação que, ao não interrogar os pressupostos coloniais, promove inúmeros apagamentos históricos a respeito da perspectiva dos ilhéus. Isso ocorre no debate sobre a questão fundiária, quando se lê que “a partir de 1901, foram concedidos terrenos a portugueses ou estrangeiros residentes” (VIEIRA; MENDES; NEVES, 2013, p. 100), mas em nenhum momento se explica que isso ocorreu às custas da ocupação militar, da despossessão e do desterro dos próprios autóctones. Também as revoltas locais não são consideradas na complexidade de suas motivações e formas de organização, e a ação timorense tende a ser interpretada, quando isso ocorre, na chave da reação. Além disso, o livro afirma que, no século XVII, a escravidão experimentada em Timor “tinha um estatuto mais conotado com a servidão, bem diferente da prática dos traficantes holandeses, que se tornaram detestados” (VIEIRA; MENDES; NEVES, 2013, p. 46). Tal citação demonstra uma seletividade estratégica, pois denuncia o tráfico praticado pelo império rival, mas silencia o comércio de escravos controlado pelos dominicanos portugueses que, de acordo com Boxer (2002), foi o segundo mercado mais lucrativo na região (depois do sândalo) e que era praticado pelo menos um século antes dos holandeses.
O terceiro e último volume do manual do aluno é aquele que mais se dedica às dinâmicas propriamente timorenses, o que sugere que eles teriam “chegado tarde” na história. O livro dá um interessante destaque aos poucos espaços de desenvolvimento do pensamento nacionalista no período tardo-colonial, mas silencia o fato de que muitos dos intelectuais timorenses aí envolvidos foram perseguidos, presos, castigados e deportados pelo Estado salazarista. Com a Revolução do Cravos, Timor figura enredado numa trama histórica mais densa e entrelaçada. O livro detalha a invasão e a violência indonésia, a cumplicidade das potências internacionais, a organização da resistência timorense e a articulação da conjuntura global e local que foram necessárias para a conquista da independência. O livro conclui lembrando dos vínculos de Timor-Leste com os países de língua oficial portuguesa. Tal como no primeiro volume, que sugere iniciar a história de Timor com a presença portuguesa, no último volume, o término de sua história perfaz o laço lusófono.
Ao final da leitura vemos que os manuais de história são muito mais críticos à presença holandesa, japonesa e indonésia na ilha que à colonial-portuguesa, cujo longo legado de violência e poder é naturalizado e não questionado, e cuja língua e catolicismo são apresentadas como contribuições indeléveis. Chama a atenção como as dificuldades do controle colonial no território são apresentadas sem problematização alguma, como se correspondessem às reais preocupações dos ilhéus. Destes, pouco se fala a respeito de suas formas de vida, concepções de história e transmissão de conhecimento. Essa marginalização da perspectiva timorense não é pontual, mas integra um sistema de representação global. Ela está inscrita na própria periodização dos livros, cadenciada linearmente pelos grandes eventos mundiais, que apresentam Timor como parte de uma história estrangeira que lhe é anterior, que lhe precede em importância temática, em massa de conteúdo e em termos de agência. Fica evidente aqui o lugar subalterno do país na narrativa didática: tratar-se-ia de um território com uma história periférica em relação ao centro dos acontecimentos relevantes. Um contraponto a esta abordagem pode ser ser encontrado no livro bilíngue (tétum e português) de Frédéric Durand (2010), escrito para o ensino secundário, mas que não foi incorporado na rede pública. Ali há um claro esforço em contar a história do país a partir de um ponto de vista mais próximo ao dos habitantes da ilha, segundo o qual a presença portuguesa é figurada apenas como mais uma entre outras tantas turbulentas presenças estrangeiras. Aqui, Timor não é um lugar onde as forças globais vão desaguar, mas um sítio a partir do qual o mundo se revela e é orquestrado por meio de referências locais e não externas.
O manual didático de história do ensino secundário oferece uma narrativa que gravita em torno dos impérios e dos Estados estrangeiros, que são apresentados como os principais sujeitos da história. Considerando as inovações dos estudos históricos, chama a atenção a pouca dedicação dada ao cotidiano na obra, sobretudo aquela organizada em função das formas de trabalho, das estruturas mítico-religiosas, da vida familiar e, principalmente, das mulheres e das crianças. Estas duas últimas categorias são especialmente importantes no país, pois, além de constituírem a esmagadora maioria da população, com frequência não encontram referências de identificação na memória oficial produzida pelo Estado, em museus e monumentos. Com isso, a centralidade dada aos grandes poderes acaba por produzir uma história teleológica e de cima para baixo, encobrindo importantes dinâmicas endógenas e histórias alternativas.
Apesar disso, os livros exibem uma massa organizada de informações, com metas específicas de aprendizagem e recursos didáticos: imagens, mapas, fotografias, palavras-chave em negrito e glossários. Atividades práticas são sugeridas e no interior de caixas coloridas destacam-se registros documentais a serem trabalhados. Sites para visita também são indicados, mas no país a internet é um privilégio de poucos. Ainda que estes recursos busquem uma relação mais intensa dos estudantes com o passado, o corpo textual é excessivo, em tamanho, para os parâmetros timorenses e, o mais importante, o livro parece ter sido escrito para falantes nativos da língua portuguesa. Como vários estudos têm apontado, em Timor-Leste a linguagem mais indicada para o ensino em português é aquela classificada como segunda língua (L2) ou então como língua estrangeira (LE). Estes são dois modos de uso pedagógico da língua portuguesa que facilitam o acesso dos conteúdos para usuários que não são falantes maternos, e que em Timor-Leste compõe a quase totalidade de sua população. Esse emprego da língua portuguesa não ocorre nos manuais didáticos do ensino secundário, que, além de serem monolíngues, foram escritos por autores portugueses que imaginaram leitores dotados de habilidades linguísticas próximas às suas.
Manual de Portugal, manuseio timorense
Estudos contemporâneos sobre os manuais escolares têm insistido na importância das formas de recepção e apropriação da literatura didática, compreendendo melhor as condições concretas sob as quais esses materiais são utilizados e adquirem sentido nas relações com os professores, os alunos e a escola (BITTENCOURT, 2011). Essa abordagem evita uma perigosa concepção determinista que fetichiza o livro e se ilude a respeito de seus efeitos, tratando seus intérpretes como seres passivos e ignorando a presença de outras tradições de conhecimento forjadas tanto no ambiente escolar quanto fora dele. Esse deslocamento analítico sobre o estudo do manual valoriza o contexto social de recepção, mais que o texto e sua produção, e justifica a relevância de uma etnografia do uso do livro e da leitura (BOYARIN, 1993).
Tive contato com o manual de história no contexto da Escola 5 de Maio, localizada no bairro de Becora, na periferia de Díli, construída no período indonésio e depois queimada com a saída do exército em 1999. Como formador da cooperação brasileira, entre os anos de 2013 e 2014, acompanhei por cerca de oito meses, um professor de história daquela escola. Em conversas que transitavam da língua tétum ao português, num criativo “tetum-guês”, o professor Pedro Pinto foi meu principal interlocutor. Integrante de uma família extensa e formado em economia, ele começou a lecionar gratuitamente na escola logo após a desocupação indonésia e, depois de três anos, conseguiu ser efetivado tendo direito a um salário de menos de trezentos dólares por mês. Assumiu a disciplina simplesmente porque não havia ninguém para dar aulas nessa matéria.
A 5 de Maio era um dos equipamentos de ensino mais precários da capital e, à época, contava-se como a Frente Revolucionária Timor-Leste Independente (FRETILIN), então principal partido de oposição ao governo, projetava fotografias daquela escola no Parlamento Nacional, como evidência crítica de que as políticas educacionais do governo são ruins. Como ainda não haviam distribuído os livros didáticos ali, utilizávamos uma fotocópia em preto e branco do manual do aluno. Interessante era o modo como o conteúdo era mobilizado em classe. O professor não seguia a organização nem a cronologia proposta pelo livro, estudava em casa e selecionava as seções que mais lhe interessavam, quase sempre relativas a Timor. Copiava trechos em seu caderno de notas e, em aula, os transcrevia no quadro para os alunos copiarem. Tal como os professores daquela escola, os estudantes também não possuíam o material didático em mãos e anotavam o texto escrito no quadro em seus cadernos. Depois a leitura do trecho copiado era feita em voz alta e, a depender, os alunos acompanhavam o professor numa espécie de recitação vocal coletiva. As classes eram cheias, lotadas, e a sonoridade ganhava corpo, muitas vezes em descompasso. Os alunos achavam graça naquele empenho de decodificação e expressão verbal das palavras em português. Esta era uma das poucas situações em que o português era falado na sala. Como toda a aula era em tétum, o trecho do livro didático também era explicado nessa língua. Nesse momento é que o professor expressava, junto com a turma, um esforço maior na tradução e compreensão do texto. E, por vezes, os estudantes demonstravam mais domínio da língua portuguesa que o próprio professor.
No ano de 2014, com a chegada dos materiais didáticos na escola, o procedimento de uso foi um pouco modificado. O professor ia até a estante da diretoria, onde estavam guardados, pegava um grande número de livros e distribuía para os alunos consultarem durante a aula. Contudo, a explicação continuava centrada em alguma seção previamente escolhida. Pedia para os estudantes localizarem o trecho selecionado para o estudo em aula, lia-se coletivamente em voz alta, copiava-se, e, terminado o período, os livros eram recolhidos e devolvidos à diretoria. Ainda que os estudantes continuassem sem acesso aos livros em casa, tendo ali somente seus cadernos para anotações, com a chegada dos materiais na escola, pelo menos podiam folheá-los em sala numa leitura mais selvagem e iconográfica: interessavam-se pelas imagens e figuras, observavam com interesse as caixas coloridas e levantavam perguntas de vocabulário sobre o glossário e os títulos em destaque. A trama corrida do texto de história parecia, no entanto, algo por demais fechado e inacessível para a penetração.
Do ponto de vista dos estudantes, que não passavam muito tempo com os livros, a apropriação do saber histórico curricular ocorria principalmente em função dos elementos selecionados previamente pelo mestre. Ele era o principal mediador do texto impresso no manual. Decidia e selecionava o conteúdo. Escrevia, traduzia e explicava a matéria escolhida. Com isso a prática do registro e da transmissão do conhecimento operava principalmente por meio da linguagem oral e do manuscrito: a transcrição no quadro, sua leitura em voz alta em português, a explicação em tétum e a transcrição manual dos trechos em português nos cadernos dos alunos. Era um procedimento que fortalecia sobretudo a íntima relação dos conhecimentos entre professor e aluno, um modelo pedagógico marcado por princípios de repetição da tradição oral (PAULINO; APOEMA, 2016) e pela ausência de recursos escolares convencionais, fazendo com que a relação com o mundo textual ocorresse principalmente por meio dos manuscritos. Essas práticas escolares marginalizavam os processos interativos de leitura e interpretação de textos impressos pelos alunos.
Mesmo assim, os livros didáticos eram objetos extremamente valorizados e esse preciosismo chegou a criar problemas em algumas outras escolas. Como foi relatado por professores, certos diretores, ao receberem os manuais do Ministério da Educação, e com a intenção de preservá-los melhor, os mantinham consigo, em sua casa ou trancados em sua própria sala, dificultando ou mesmo impedindo o acesso a eles. Também foram narradas histórias sobre livros didáticos que seriam prisioneiros da biblioteca da escola, que ali estariam muito bem guardados e protegidos da comunidade escolar. Tanto o professor de história quanto os estudantes da Escola 5 de Maio diziam gostar do manual de história. Tinham, enfim, um livro oficial distribuído pelo Ministério da Educação. Mas o texto escrito se apresentava como algo muito distante. Frequentei e participei das aulas de história do professor Pedro e, muitas vezes, minha presença foi requisitada como dicionário para traduzir e explicar as palavras do manual que ninguém entendia. Também em nossas conversas, a discussão ganhava mais vulto e gravidade, sobretudo quando se refletia sobre os conteúdos mais sensíveis apresentados no manual. Se é verdade que os usuários gostavam do livro, nem por isso o professor Pedro deixava de ter uma posição particularmente crítica. Afirmava que o manual de história não conta toda a história.
O problema não são as datas, que estão certas, mas é que o manual foi feito em Portugal e por isso ele só conta as coisas boas do colonialismo português e não as más. […] Ele fala que os portugueses trouxeram o café e a igreja, mas não fala da guerra. Não fala de como os colonialistas batiam nos timorenses, na tortura, no trabalho forçado. [Não conta] que os portugueses não deixavam Timor se desenvolver. Não fala de como no tempo português timorenses foram presos e mandados para longe, para África, Angola e Moçambique, por resistirem ao poder português. […] Falta muita história. (entrevista, PEDRO PINTO, 2013).
As críticas ao material didático produzido na Universidade de Aveiro não eram uma prerrogativa individual. Havia debates frequentes no sindicato dos professores de Díli: sobre a escassez do material didático disponível nas escolas, sobre a linguagem ser demasiado exigente e sobre como os educadores timorenses deveriam se colocar perante aquela situação. E as controvérsias também giravam em torno do próprio conteúdo disposto. Em 2011, ano em que os livros começaram a chegar no país, numa matéria do semanário The Díli Weekly, o secretário-geral do sindicato dos professores criticou publicamente o conjunto dos livros de ciências sociais que, segundo ele, omitem aspectos importantes da história do país, e questionou a falta de conhecimento dos estrangeiros a respeito da história, da cultura e do ensino em Timor-Leste3.
Mas as críticas do professor Pedro também tinham outra origem. Ele estudou durante a ocupação indonésia, em língua indonésia e seguindo o currículo indonésio, conhecia a perspectiva histórica contada pelos professores indonésios, uma narrativa que enfatizava justamente a violência colonial europeia no arquipélago e a resistência dos ilhéus nas lutas de libertação. Contudo, os manuais indonésios não descreviam a ocupação de Timor-Leste como uma invasão ilegal, contavam que a antiga colônia portuguesa desceu ao caos durante a descolonização e a Indonésia teve que intervir para ajudá-la. No sistema de ensino da ocupação, timorenses eram representados como grandes beneficiários da generosidade indonésia, que teria levado o desenvolvimento ao território, construindo novas estradas, clínicas e escolas, e sendo a grande responsável por alfabetizar uma população que vivia até então à margem do mundo moderno. O professor não concordava com muitos aspectos dessa narrativa. Dizia que a história indonésia não reconhece a proclamação de independência de Timor-Leste, feita pela FRETILIN em 1975, e afirma que a resistência timorense é terrorista.
Durante a ocupação indonésia, o material didático de história utilizado em Timor era em grande parte condicionado pelo contexto sóciopolítico vigente naquele país. Desde o golpe de Estado em 1966, que levou à morte mais de um milhão de cidadãos indonésios e que fez Suharto chegar ao poder, os materiais escolares passaram a sofrer uma duríssima censura ideológica. O próprio golpe militar passou a ser explicado pela historiografia oficial indonésia como um movimento positivo e necessário contra o perigo latente do comunismo. Assim, os livros didáticos evitavam discutir questões centrais ao próprio país, tais como o controle da imprensa, a corrupção militar, a perseguição de adversários políticos, o extermínio de comunistas e, claro, o conflito em curso em Timor-Leste. Mesmo hoje, após a longa ditadura de Suharto (1966-1998) e uma relativa abertura democrática, alguns desses temas continuam ausentes nos livros de história e muitos professores indonésios ainda se calam devido ao medo de perderem seus empregos (SUWINGNYIO, 2014).
Em conversa com o professor Pedro, aprendi muito sobre o currículo indonésio. Compreendi também que era sobretudo de uma perspectiva mais nativista, nacionalista e anticolonial que o professor Pedro sentia falta no novo manual de história vindo de Portugal. Antes do manual de Portugal chegar na Escola 5 de Maio, ele utilizava um antigo manual da Indonésia, que também incorporava seletiva e criticamente nas suas aulas. Transitava entre um livro e outro. Essa navegação inventiva entre os dois pontos de vista apresentados revelava como os saberes metropolitanos sobre a história podiam ser descolonizados no ambiente escolar. Eram saberes parcelares que demonstravam não apenas limites, mas também divergências entre perspectivas históricas distintas. Em todo caso, o manual feito em Portugal e encaminhado pelo Ministério da Educação podia até ser colonialista, como o professor Pedro por vezes chegou a acusar, mas em sala de aula, seu manuseio era definitivamente timorense.
Colonialidade do currículo, descolonização da história
A internacionalização do sistema de ensino timorense está na ordem do dia. Ela é apresentada como receita universal para a educação e um critério de qualidade para a boa avaliação nos rankings globais. Entretanto, essas preocupações não podem atropelar o valor das histórias, línguas e saberes locais que constituem parte importante do patrimônio cultural timorense. Na busca por um novo currículo, a solução adotada foi a importação. Histórias viajaram da Europa Ocidental ao Sudeste Asiático com o intuito de ensinar às novas gerações de Timor-Leste sua própria história. Os livros utilizados no ensino secundário foram gestados fora do país, na antiga metrópole, com o apoio do Ministério da Educação timorense, mas sem a consulta e a efetiva participação de estudantes, professores, diretores e outros profissionais da educação de Timor-Leste. Estes não foram questionados a respeito de seu objetivo, conteúdo, linguagem e pertinência nos ambientes de ensino e espaços comunitários. Não é claro o papel das professoras timorenses aposentadas que são citadas como colaboradoras dos manuais de história nem sabemos a respeito das políticas editoriais envolvidas em sua produção, mas o resultado final demonstra uma falta de atenção em relação às condições escolares, à oralidade e principalmente ao conhecimento linguístico timorense. Isso fica evidente pelo fato de os livros apresentarem uma densa trama textual, escrita num português considerado difícil para um público poliglota que não utiliza cotidianamente essa língua, falada ou escrita.
Esta exterioridade geopolítica, determinante na produção do currículo em Timor-Leste, paradoxalmente, nem sempre é considerada nos processos de avaliação da política educacional, como fica evidente num estudo sobre a monitorização da reestruturação curricular do Ensino Secundário Geral, que, desenvolvido por pesquisadoras ligadas à Universidade de Aveiro, identificou nos constrangimentos à implementação dos livros didáticos, basicamente razões de natureza local: “a falta de domínio dos conteúdos científicos a lecionar, as limitações relativas ao domínio da língua portuguesa e o elevado número de alunos por turma, fruto da não existência de infra-estrutura” (FERREIRA et al., 2017, p. 132). A avaliação não problematiza a origem dos manuais, responsabiliza os usuários das obras por seu possível mau uso e conclui que os problemas vinculados à implementação do novo currículo seriam decorrentes das limitações dos conhecimentos, das línguas, dos agentes e dos materiais timorenses. Ao propor uma abordagem completamente cega em relação à inadequação do conteúdo dos livros e seu processo de confecção, esse tipo de avaliação reforça ainda mais a colonialidade do saber (WALSH, 2001), afirmando a subalternidade e o subdesenvolvimento timorense no mesmo ato em que invisibiliza completamente a autoridade da ex-metrópole, sob o argumento de ser uma avaliação objetiva e neutra.
O livro didático de história integra uma proposta curricular que se apresenta como internacional, mas cuja análise revela uma matriz discursiva particular e que replica certas leituras coloniais do passado. O provincialismo dessa narrativa está associado a uma historiografia nacionalista portuguesa que tende a ser acrítica em relação ao colonialismo e que prefere destacar aspectos de sua benevolência e cordialidade, e não as consequências dramáticas e estruturais de sua violência histórica. Esse elogio à tolerância e à convivialidade afetiva entre os portugueses e as diferentes gentes e terras dos trópicos é uma das característica essenciais do mito do lusotropicalismo (CASTELO, 1999). Tal matriz curricular lusocêntrica sugere formas particulares de violência epistêmica e imperialismo intelectual, visto que nega significados importantes atribuídos ao conhecimento histórico em Timor-Leste e impõe ideias metropolitanas sobre o que é história, como ensiná-la e em que língua.
Contudo, o estudo etnográfico da recepção dos manuais permitiu complexificar essa geopolítica do conhecimento que, na estruturação do sistema de ensino secundário, posiciona desigualmente os agentes da cooperação internacional, portuguesa e brasileira, o governo timorense, suas instituições educacionais e escolas, bem como os sujeitos mais diretamente atingidos: estudantes e professores. Na escala cotidiana das práticas de ensino, não há uma simples reprodução do discurso do material didático, e seus usuários não apresentam uma mentalidade cativa. Seria necessário ampliar os casos de estudo, mas a etnografia mostrou como a influência exercida pelos manuais produzidos em Aveiro é mais reduzida do que se poderia imaginar. Os estudantes passam muito pouco tempo com os livros e professores têm muita dificuldade de compreendê-los. Além disso, há uma triagem ativa dos temas lecionados, atividades de tradução para o tétum, transcrição no caderno e recitação coletiva de trechos que não foram planejadas pelos idealizadores do manual.
O uso e a interpretação do livro, feita pelo professor, também é resultado de outros conhecimentos acumulados, sejam aquelas formas de relatos associadas aos sacerdotes rituais das artes verbais, conhecidos em Timor-Leste como lia nain (literalmente dono da palavra, porta-voz), sejam aquelas histórias escolares presentes no currículo indonésio e aprendidas nos anos da ocupação. As violentas mudanças nos regimes políticos do país também implicaram bruscas modificações nos regimes de saber e de historicidade timorense. Hoje, um dos desafios colocados para a educação histórica é o de tentar neutralizar os aspectos indigestos das duas narrativas coloniais mestras que, por anos, impuseram sua história ao país. Como bem explicou outro professor timorense em conversa: “o mais difícil hoje é contar uma história de Timor que não seja nem a portuguesa nem a indonésia. […] Entre essas duas temos de encontrar uma diferente onde o povo possa nela se reconhecer” (entrevista, SAVIO MA’AVERU, 2015). Vemos então como as histórias que viajam e chegam de longe têm de dialogar com as formas nacionais e locais, escolares e não escolares, de ensino e aprendizagem. E os livros são apenas mais um elemento na imaginação histórica dos professores e estudantes. Uma imaginação que tem início antes da escolarização e se prolonga no decorrer da vida, fora da escola e por diferentes meios. Essa assimilação criativa dos materiais rejeita qualquer forma simplória de servidão intelectual e revela um potente e singular modo de descolonizar histórias.