Introdução
Para uma análise ampla sobre as desigualdades e a sobreposição de opressões existentes em nossa sociedade, como é o caso das relações sociais de gênero e raça – foco deste estudo a partir da reflexão sobre a interseccionalidade –, importa compreender que as questões relacionadas ao acesso e à produção do conhecimento são profundamente imbricadas em um processo de colonização no âmbito do saber, produto de um processo de colonialidade. Nesse sentido, a colonização do saber é fruto da reprodução de lógicas (da modernidade e colonialidade) políticas, econômicas, cognitivas, da existência, da relação com a natureza, entre outras. Tais lógicas foram forjadas no período colonial, que remonta ao século XVI, e se configuram como saberes hegemônicos e estatutos de verdade, em detrimento de outros, subalternizados, lateralizados e considerados como menos importantes.
Na contramão desse pensamento, decolonialidade, projeto decolonial ou giro decolonial – no sentido amplo escolhido por alguns autores, são momentos – ações de resistência política e epistêmica e luta pela reexistência das populações indígenas e afrodiaspóricas, especialmente a população negra no Brasil com vistas a elucidar historicamente as colonialidades do poder, do ser e do saber para, então, refletir sobre estratégias de transformação da realidade. Para tanto, são fundamentais as discussões trazidas por autores da tradição do pensamento negro e de outras tradições terceiro-mundistas formuladas nas fronteiras dos países norte-cêntricos, assim como a colocação da centralidade da raça e sua articulação com o capitalismo histórico, como “dimensão estruturante do sistema-mundo moderno/colonial” ( BERNARDINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROFOSGUEL, 2020, p. 11).
No intuito de traçar uma crítica decolonial acerca do tema da exclusão de mulheres e negros frente à produção científica nas universidades brasileiras e entendendo decolonialidade como um projeto político-acadêmico, é necessário realizar um resgate histórico de como a sociedade – no caso, a brasileira – se formou. Cardoso ( 2008) destaca a importância da escravidão para compreender não só as relações de trabalho no Brasil, mas também a própria formação das nossas sociedades. O autor destaca ainda que o trabalho escravo deixou marcas profundas tanto no imaginário coletivo, quanto nas práticas sociais das gerações posteriores de tal forma que se construiu, para os negros e as negras, uma ética do trabalho degradado, precarizado. Além disso, desencadeou uma indiferença moral das elites para com as carências das pessoas mais vulneráveis em especial os negros e as negras: uma rígida hierarquia social e grandes desigualdades sociais. Assim, é possível afirmar que o racismo que lhe é inerente é tanto um princípio constitutivo, que organiza todas as relações de dominação da modernidade, incluindo a divisão internacional do trabalho e as hierarquias epistêmicas, sexuais, de gênero e religiosas, quanto “organizador daqueles que podem formular um conhecimento científico legítimo e daqueles que não o podem” (BERNARDINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROFOSGUEL, 2020, p. 11). A raça é, então, dimensão estruturante do sistema-mundo moderno/colonial.
A história nos revela ainda que, desde muito tempo, às mulheres cabia o papel de “dona do lar”, responsável pelas tarefas domésticas e educação dos filhos, além de se subordinar, por completo, ao marido (FREYRE, 1936). Havia, na sociedade patriarcal brasileira, segundo Gilberto Freyre, laços bem firmados de submissão à figura masculina, seja pela mulher, seja pelo filho. Cabe ressaltar também que, no Brasil, a mulher só conseguiu o direito de votar a partir de 1934.
É, portanto, a partir da herança do patriarcado e do racismo, que nossa sociedade (e muitas outras) se constituiu. Há, porém, um aspecto fundamental. As opressões e preconceitos têm encontrado na ciência um discurso de verdade que lhes deu (e ainda dá) suporte. Tem sido denominada de “racismo científico”, que no Brasil surgiu no século XIX, uma doutrina que toma, a partir das ciências biológicas, as características da cor da pele como um objeto de estudo e que advoga a ideia de que a humanidade é dividida por raças, as quais se apresentam em uma hierarquia biológica com os brancos ocupando o topo dessa hierarquia (SANTOS; SILVA, 2018).
De modo semelhante, não raro, é possível verificar uma tentativa de se estabelecer cientificamente diferenças entre os sexos masculino e feminino, considerando, inclusive, características cognitivas próprias de cada grupo (BRAGA et al., 2014).
A partir deste cenário de opressões, formam-se interseções que tornam determinados grupos ainda mais excluídos. Nas sociedades racistas, as/os negras/os são oprimidas/os; nas sociedades patriarcais ou machistas, as mulheres são fortemente constrangidas; em sociedades conjuntamente racistas e machistas, as mulheres negras sofrem uma opressão ainda maior. Essa condição conceitualmente se denomina interseccionalidade (CRENSHAW, 2002). Cabe destacar, entretanto, que não há uma hierarquia das opressões. O modo como se vivencia o machismo declara a experiência racista (DAVIS, 2016). Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge ( 2021, p. 16) destacam o principal entendimento da interseccionalidade considerando que:
[...] em determinada sociedade, em determinado período, as relações de poder que envolvem raça, classe e gênero, por exemplo, não se manifestam como entidades distintas e mutuamente excludentes. De fato, essas categorias se sobrepõem e funcionam de maneira unificada. Além disso, apesar de geralmente invisíveis, essas relações interseccionais de poder afetam todos os aspectos do convívio social.
Esse fenômeno social traz inúmeras dificuldades e, obviamente, atinge a universidade, lócus por excelência da produção de conhecimento científico. Diferentes estudos têm apontado que o acesso aos níveis de maior prestígio acadêmico ainda tem sido restrito aos homens (SILVA; RIBEIRO, 2014; TABORDA; ENGERROFF, 2017). De modo semelhante, há inúmeras barreiras para a carreira das/os negras/os na ciência ou nas universidades (MIRANDA; CHAVES, 2015).
Assim, o objetivo do presente estudo é identificar se há, no corpo docente, assimetrias de gênero, raça 6 e especialmente a interseccionalidade de gênero e raça no acesso acadêmico aos programas de pós-graduação stricto sensu em educação física no Brasil, bem como verificar se as linhas de pesquisa envolvem as referidas temáticas. Parte-se da hipótese de que os programas abrigam, em sua maioria, pesquisadores do sexo masculino e de cor de pele branca.
A pesquisa se justifica na medida em que, primeiro, é preciso romper com as assimetrias acadêmicas e sociais que impõem determinadas condições de privilégio; e, segundo, porque ainda são escassos os estudos dessa natureza no Brasil.
Método
Foi realizado um levantamento do quantitativo de pesquisadores/professores de todos os programas de pós-graduação stricto sensu em educação física no Brasil, a partir de busca prévia dos dados cadastrados e disponibilizados pela CAPES (em 23 de dezembro de 2020) e de posterior consulta aos sítios eletrônicos de cada programa (entre 23 de dezembro de 2020 e 26 de dezembro de 2020).
A partir do nome de cada docente, foi identificado o sexo dicotomicamente (masculino e feminino) e, após o acesso ao currículo Lattes, foi feita a identificação da cor de pele, igualmente de modo dicotômico (negros e brancos). Determinados docentes, por sua trajetória acadêmica conhecida, tiveram sua cor de pele identificada sem a necessidade de se recorrer ao currículo Lattes. Os docentes que não tinham fotografias no currículo e não eram conhecidos dos autores tiveram a verificação da cor da pele realizada através de busca na internet.
A identificação da cor de pele foi realizada por dois autores do presente estudo e, em casos de divergência, um terceiro autor opinava para classificação. Nos casos em que houve dificuldade de avaliação e não se chegou a uma conclusão adequada, foi utilizada a categoria “não identificado”.
Para a presente investigação, a categoria “negros” abrangeu pessoas de pele escura, classificadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ( [s.d.] IBGE) como pretos ou pardos. A categoria “brancos” incluiu as pessoas de pele clara, inclusive as de características orientais. Optamos por não realizar análises sobre indígenas, apesar de reconhecermos a enorme relevância, em razão da dificuldade de se realizar classificações da forma como se procedeu.
Foi utilizado um índice de paridade de gênero e de paridade racial para compreender as distâncias entre os grupos. O cálculo para a paridade de gênero se dá pela razão entre sexo feminino (numerador) e masculino (denominador). O resultado igual a 1 (um) representa igualdade na distribuição. Valores acima de 1 (um) significam a existência de maior quantidade de casos do sexo feminino, enquanto valores abaixo de 1 (um) dizem respeito à ocorrência de menor quantitativo de casos. Cálculo semelhante é realizado para a paridade racial. Nesse caso, a razão ocorre entre negros (pretos e pardos) e brancos (brancos e amarelos), respectivamente, numerador e denominador (ARTES; RICOLDI, 2015).
Nos sítios eletrônicos dos programas, foram analisadas, ainda, as linhas e/ou projetos de pesquisa – esses últimos quando estavam disponíveis. Procurou-se por palavras-chave que dissessem respeito ao objeto do presente trabalho: gênero, mulher, preto/preta, negro/negra, raça, racismo, etnia. Não foram analisados os conteúdos dos produtos (dissertações e teses) decorrentes desses projetos ou linhas de pesquisa.
Adotou-se a ideia de interseccionalidade como ferramenta analítica, verificando a interseção de gênero e raça de modo a tentar explicar como tais categorias posicionam as/os docentes dos programas de pós-graduação em educação física no mundo acadêmico.
A pesquisa usou informações de acesso público e está em consonância com a Resolução n. 510, de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde. Portanto, está isenta de registro e avaliação pelo sistema CEP/CONEP. Ainda assim, todos os preceitos éticos foram respeitados.
Resultados
O estudo envolveu 38 programas de pós-graduação stricto sensu em educação física e 769 docentes. Desse total, cinco (13,2%) foram da região Centro-Oeste, sete (18,4%) da região Nordeste, dois (5,3%) da região Norte, quatorze (36,8%) da região Sudeste e dez (26,3%) da região Sul. Tal distribuição já denota uma importante desigualdade, na medida em que mais da metade dos programas está localizada nas regiões Sudeste e Sul.
As características de sexo e cor da pele dos envolvidos nos programas pode ser visualizado na Tabela 1 . Como levantado na hipótese deste trabalho, verifica-se uma predominância de docentes do sexo masculino e de cor branca. O índice de paridade de gênero foi de 0,42, indicando grande desigualdade, enquanto para a população brasileira, a partir do Censo Demográfico de 2010, seria 1,04. Para as diferenças dos/das docentes por cor da pele, o índice de paridade racial revela desigualdade ainda maior (= 0,03). O índice de paridade racial para a população brasileira também é 1,04.
Característica | n | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Masculino | 538 | 69,96 |
Feminino | 231 | 30,04 |
Cor da pele | ||
Brancos | 724 | 94,15 |
Negros | 23 | 2,99 |
Não identificados | 22 | 2,86 |
Fonte: Elaboração própria.
A Tabela 2 apresenta a condição de interseccionalidade. A situação de uma dupla opressão pode ser observada. Mulheres negras estão mais excluídas dos programas de pós-graduação em educação física.
Característica | n | % |
---|---|---|
Homens brancos | 506 | 65,80 |
Mulheres brancas | 218 | 28,35 |
Homens negros | 19 | 2,47 |
Mulheres negras | 4 | 0,52 |
Não identificados | 22 | 2,86 |
Fonte: Elaboração própria.
A Tabela 3 apresenta um comparativo entre as características da população brasileira e dos docentes investigados.
População brasileira | População estudada (docentes) | |||
---|---|---|---|---|
Característica | n | % | n | % |
Homens brancos | 44.603.892 | 23,48 | 506 | 65,80 |
Mulheres brancas | 48.532.042 | 25,55 | 218 | 28,35 |
Homens negros | 48.388.475 | 25,48 | 19 | 2,47 |
Mulheres negras | 48.406.819 | 25,49 | 4 | 0,52 |
Fonte: Elaboração própria.
A análise das linhas e/ou projetos de pesquisa revelou o baixo registro do interesse pela temática que aborda questões de gênero e/ou raça (entendida, aqui, como uma categoria sociológica). Ainda assim, as investigações sobre gênero apresentam quase o dobro de menções daquelas relacionadas às questões de raça ( Figura 1 ).
Por fim, um importante aspecto que envolve professores/pesquisadores de pós-graduação e reflete, ao menos em parte, a produção da área da educação física ou aquilo que tem sido valorizado pode ser observado na Tabela 4 . A análise dos atuais pesquisadores contemplados com bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ) permite verificar que tal fomento é destinado majoritariamente para pessoas do sexo masculino, de cor de pele branca ou amarela e que produzem a partir das ciências biomédicas.
Discussão
Até onde foi possível verificar, o presente estudo é o primeiro que analisa a distribuição quantitativa dos docentes e da produção acadêmica considerando o gênero e a cor da pele, além da região do país e área geral das ciências, no Brasil. Ainda que exista produção na área da educação física que aborde questões de gênero e raça (NÓBREGA, 2020; CASTRO; BAPTISTA, 2019; CROCETTA, 2014), há poucos estudos que se debruçam sobre tais aspectos no processo de formação e, especialmente, sobre as/os profissionais que trabalham em programas de pós-graduação. Neste sentido, os resultados expressam uma realidade possível de imaginar, mas carente de evidências científicas para ratificá-la, apresentando, portanto, a experiência acadêmica que reflete o poder cotidiano da masculinidade em conjunto à branquitude como lugar de privilégio.
Como no presente estudo, Sidone, Haddad e Mena-Chalco ( 2016) igualmente observaram uma heterogeneidade espacial da produção científica no Brasil, com distribuição em que a região Sudeste apresenta maior produção, seguida das regiões Sul, Nordeste, Centro-Oeste e Norte, mas consideram que existem evidências de um processo de desconcentração espacial ao longo dos anos.
Pouco mais da metade da população brasileira é formada por pessoas do sexo feminino. Além disso, as mulheres já são a maioria entre as/os estudantes de pós-graduação stricto sensu no Brasil. Em 2017, 54,29% de todas/os discentes de pós-graduação eram do sexo feminino, enquanto 57,02% e 54,39% representavam o valor percentual de mulheres entre todas/todos recém-mestres e doutores, respectivamente, nesse mesmo ano (LOPES, 2019). A despeito da maior quantidade de mulheres entre as/os discentes, foi possível observar, no presente estudo, que as/os docentes dos programas de pós-graduação stricto sensu em educação física no Brasil são majoritariamente do sexo masculino (pouco mais de dois terços). Tais achados estão em concordância com outras investigações científicas (ALVES, 2018; SILVA, 2015).
Para além do quantitativo de aproximadamente 30% de mulheres entre docentes que atuam na pós-graduação stricto sensu em educação física, a análise da concessão de bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ), considerada por muitos como um reconhecimento ao mérito acadêmico, permitiu verificar que, entre os/as pesquisadores/as contemplados/as, somente 21,4% eram do sexo feminino. Ademais, as desigualdades não se encerram nessa questão. Segundo, Silva e Ribeiro (2914), dados de 2010 sobre os/as bolsistas de produtividade de todas as áreas indicavam que 34,8% eram mulheres. Na mesma linha, Bolzani ( 2017) assinala que, em 2011, do total de bolsistas nível 2 (PQ-2) referente ao início da carreira, considerando todas as áreas, 37,2% eram do sexo feminino, enquanto para o maior nível (PQ-1A), havia 22,3%, número que se elevou para 24,6% em 2015. Dados mais recentes (CUNHA; DIMENSTEIN; DANTAS, 2021) mostram que, para as Ciências da Vida, grande área do conhecimento que inclui a educação física e mais vinte outras áreas de conhecimento, 42,17% do total dos/as pesquisadores/as contemplados com bolsa produtividade eram do sexo feminino. Contudo, para a área da educação física, do total, somente 19,15% eram mulheres, quadro que colocou a área como as três que menos contemplam as mulheres com este tipo de fomento dentro da grande área de conhecimento “Ciências da Vida”.
Dois outros aspectos relevantes verificados no presente estudo são que, na área da educação física, há somente uma mulher contemplada como bolsista de produtividade no nível mais elevado (PQ-1A) e não há nenhuma mulher preta contemplada. Cunha, Dimenstein e Dantas ( 2021), ao analisarem todas as áreas de conhecimento da Psicologia, observaram que, do total de 85 mulheres bolsistas de produtividade, somente quatro (4,71%) eram pretas.
Acerca da sub-representação feminina na pesquisa científica, Silva e Ribeiro ( 2014) esclarecem que, conforme se ascende aos níveis mais altos da carreira, a participação das mulheres se reduz no ambiente acadêmico. Uma explicação bastante comum e simplória diz respeito ao pseudofato de que as mulheres seriam menos produtivas e, por isso, alcançariam em menor proporção os cargos mais elevados. Silva e Ribeiro ( 2014), contudo, explicam que os padrões de produção científica são construções sociais que evidenciam as relações de gênero no meio acadêmico. As autoras destacam a pouca atenção que se tem dado aos processos de socialização para papéis sexuais, conflitos família-trabalho, níveis de investimento na educação feminina, além de outros mecanismos sutis de poder e opressão. Além disso, o gênero tem sido um relevante aspecto relacionado à carreira profissional. Para Bourdieu ( 2002), há três princípios decisivos para compreender a divisão sexual do trabalho: i) as ocupações destinadas às mulheres seriam aquelas que se caracterizam como um prolongamento de suas funções domésticas (cuidado, ensino, serviço etc.); ii) as mulheres não deveriam ter autoridade sobre os homens; e iii) o monopólio dos homens em relação aos objetos técnicos.
A divisão sexual do trabalho, segundo Kergoat ( 1996, p. 20), visa a “[...] articular essa descrição do real como uma reflexão sobre os processos pelos quais a sociedade utiliza essa diferenciação para hierarquizar as atividades. A divisão sexual do trabalho está dentro (no coração) do poder que os homens exercem sobre as mulheres”. Nesse sentido, o espaço da carreira universitária que goza de maior prestígio social ainda tem sido um espaço de dominação masculina.
Em outra publicação, Kergoat ( 2010) ressalta que a divisão sexual do trabalho é organizada por dois princípios, o da separação e o da hierarquia. O primeiro se refere à distinção do trabalho do homem e da mulher. Já no segundo, o valor do trabalho do homem é maior do que o da mulher. Para Hirata e Kergoat ( 2007), o que é estável é a distância existente no trabalho de homens e mulheres.
A exclusão das/dos docentes negras/negros é mais exacerbada. A maioria absoluta (mais de 90%) dos professores dos programas investigados tem a cor de pele branca ou amarela. Ao mesmo tempo, aproximadamente 98% dos pesquisadores contemplados com bolsa Produtividade em Pesquisa (PQ) são de pele branca ou amarela. Artes e Ricoldi ( 2015) demonstram que o número de negras e negros entre os estudantes universitários brasileiros aumentou consideravelmente nas últimas décadas, muito embora as autoras entendam que exista uma demanda reprimida para o acesso aos cursos superiores. Artes e Ricoldi ( 2015) ainda comentam que esse aumento da participação das/dos negras/negros foi decorrente das políticas de ação afirmativa adotadas pelas universidades públicas e mesmo privadas.
Por outro lado, as ações afirmativas destinadas a ampliar a diversidade de etnia/cor de pele no serviço público federal, especialmente aquelas destinadas à carreira docente, são ainda mais precárias e não atendem ao disposto na Lei n. 12.990/2014, provavelmente em decorrência do racismo presente nas lógicas institucionais do Estado e de sua condição estrutural na sociedade brasileira. Nesse sentido, destinou-se à elite branca a ocupação dos cargos de maior prestígio no mundo acadêmico (MELLO; RESENDE, 2020).
Outra ação afirmativa ocorreu com a aprovação, em 2012, da Lei n. 12.711 que criou cotas para negros e indígenas em todas as universidades federais. Carvalho ( 2020, p. 79) evidenciou que houve um impacto imediato no quadro discente, entretanto, na docência, atribui que é uma “batalha que deverá levar um tempo maior para ser vencida”.
Cabe destacar que o cenário ainda é crítico. Ao relacionarmos os dados aqui encontrados com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018 ( IBGE), evidenciamos que o acesso aos postos de trabalho que dependem de mais anos de instrução parece ser dificultado pelo baixo ingresso nas universidades, pois, do total de pessoas entre 18 a 24 anos que teve acesso ao ensino superior (54,4% dessa faixa etária), 18,3% eram de cor de pele preta e parda, enquanto aquelas de cor branca representavam 36,1%.
Santos ( 2005, p. 40) destacou que o conhecimento produzido nas universidades tem sua construção hierarquizada, em que a “distinção de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico e a autonomia do investigador traduz-se numa certa irresponsabilidade social deste ante os resultados e aplicação do conhecimento”. Segundo o autor, no entanto, nas últimas décadas, ocorreram movimentos que levaram à desestabilização desse modelo e que possibilitaram um caminho por ele denominado de conhecimento pluriversitário. Ele é pautado em um conhecimento contextual, com a partilha de pesquisadores e utilizadores, levando esse conhecimento extramuros de maneira transdisciplinar e, principalmente, trazendo o conhecimento popular para dentro das universidades.
Cabe ressaltar que a ciência moderna é instaurada a partir da constituição de um Estado-nação, que se configura como um Estado de direitos – colonizador – com Estados subalternos – colônias/países colonizados. Portanto, a estrutura da ciência é forjada na lógica da modernidade capitalista colonial, uma vez que não há capitalismo sem colonialismo (QUIJANO, 2010). O Brasil é contado a partir da colonização e isso constitui a fundação do identitarismo branco na nossa construção e funcionamento social, relações de trabalho e patriarcalismo. O branco passa a ser referência de humanidade, e esta forjou a produção de conhecimento nos diferentes campos (como na educação física brasileira, por exemplo). O colonialismo permite o desmantelamento de outras formas de vida que não estejam a favor dos interesses europeus e, posteriormente, norte-americanos, e o racismo é um dos processos de coisificação e animalização que torna esse projeto possível. Não nos parece à toa, portanto, que a maioria absoluta dos/das pesquisadores/as contemplados/as com a bolsa de Produtividade em Pesquisa transite pelas Ciências Biomédicas, uma vez que tem sido estas consideradas como a fundamentação teórica mais valorizada na área de conhecimento da educação física, com sua concepção anátomo-fisiológica e higienista de indivíduo e sociedade. Nunes e Louvison ( 2020), ademais, comentam que o saber das denominadas Ciências da Vida tem sido atravessado pelo processo de biomedicalização, o qual acaba por instituir uma monocultura da concepção dominante do saber biomédico e por definir as condições de validade do conhecimento.
Feitosa e Bomfim ( 2020, p. 721) resgatam o advento da modernidade e sua ênfase na racionalidade, concepção cartesiana e “fusão das experiências coloniais com as necessidades do capitalismo nascente” como fundamental para o avanço do “projeto de hegemonia eurocêntrica”. Assim, a homogeneização das culturas, sendo um resultado dessa lógica colonial capitalista, serve à hierarquização racial, social e cultural, na qual uns/umas são considerados/as como mais importantes e bem-sucedidos/as do que outros/as, assim como saberes são mais importantes e tidos como verdadeiros e outros são subalternizados. Essa lógica também demarca espaços e, dessa forma, sujeitos autorizados a dominar os/as demais, naturalizando violências e injustiças sociais.
A racionalidade hegemônica, a partir da instauração da ciência moderna, portanto, é colonial, e essa última condiciona o racismo por instauração de práticas higienistas, preconceituosas e racistas, que colaboram para legitimá-las (QUIJANO, 2010). Nesse sentido, o racismo sai de uma condição mítica de que o negro não tem alma, para uma justificativa racional, instaurada pela ciência, conforme supracitado. Diante desse contexto e considerando a academia como um espaço de poder e de produção científica, é premente questionar: por qual razão o quantitativo de mulheres e de pretos, mas, em especial, de mulheres pretas está sub-representado na ciência brasileira? Ou, em nosso caso específico, nos programas de pós-graduação stricto sensu em educação física?
Ferreira ( 2020) advoga que ainda está presente um racismo institucional, sendo a universidade um lócus privilegiado para que ele aconteça, na medida em que aqueles grupos subalternizados estão frequentemente sub-representados tanto entre os discentes quanto entre os docentes. Além disso, produção, circulação e reprodução de discursos e práticas discriminatórias têm sido corriqueiras e, portanto, torna-se imperioso tratar essas questões com urgência e cuidado.
Nóbrega ( 2020), em seu artigo intitulado “Por uma educação física antirracista”, explica que a educação em direitos humanos negros não pode mais tardar e clama pela urgência de se intervir nas condições de vida das pessoas pretas, além de repensar o modelo de proteção de direitos humanos que é ilusório e não reconhece a violência sofrida por essa população. Outrossim, evoca a necessidade de legitimar a diversidade étnico-racial nos currículos da educação física e da educação, em geral. Complementa afirmando que é necessário pensar o conceito de antirracismo na educação física considerando o pensamento feminista negro para compreender tal componente curricular a partir do ponto de vista dos saberes subjugados por conhecimentos colonizadores e epistemicidas.
Se o presente estudo identifica que tem sido negado às mulheres e aos negros o acesso à docência em cursos de pós-graduação stricto sensu em educação física, a situação da mulher negra, afetada pela interseccionalidade, é de ainda maior exclusão. De todos os docentes investigados, menos de um por cento era de mulheres negras. Oliveira ( 2020) destaca as inúmeras opressões – as quais se potencializam com as interseções – sofridas pelas mulheres negras e, em consequência, a condição de negação do aprendizado e instrução acadêmica, restando-lhes o espaço do trabalho doméstico, braçal, com frequência desprovido de diversos direitos.
A autora explora o tema e ressalta a existência de um discurso de verdade que busca justificar a exploração dos corpos das mulheres negras. Nesse discurso, elas são representadas para servir aos senhores brancos – seja por meio do trabalho braçal, seja das obrigações sexuais –, em contraposição à possibilidade de acesso à educação, ao conhecimento, à ciência ou à cultura. Dessa forma, está no imaginário coletivo a negação da intelectualidade e do saber, ao mesmo tempo que uma constituição enquanto objeto sexual e de exploração do trabalho, particularmente o doméstico. Em uma sociedade em que a branquitude e a masculinidade são normas, as mulheres negras são muito mais alijadas de todas e quaisquer situações que possam representar maior prestígio social.
A tradução dessas exclusões das mulheres, dos negros e, em especial, das mulheres negras provavelmente reflete-se no baixo interesse em estudos sobre gênero, raça e assuntos correlatos encontrado nos programas de pós-graduação em educação física. O padrão típico de projeto ou linha de pesquisa reproduz os interesses norte-americanos ou europeus. Assim, talvez possamos questionar se as pesquisas biomédicas hegemônicas realizadas no Brasil satisfazem, de fato, nossas demandas; se essa forma dominante de fazer ciência não tem resultado em processos de exclusões e silenciamentos; e se não seria o momento de apontar novos caminhos, em que outros grupos assumiriam o protagonismo na construção dos saberes e das próprias histórias.
Collins ( 2020, p. 139), em seus escritos sobre o feminismo negro norte-americano, traz um debate no qual destaca que o conhecimento ocidental é controlado por homens brancos da elite, de maneira a centrarem “em temas, paradigmas e epistemologias do trabalho acadêmico tradicional”. Em consequência, as experiências de mulheres negras têm sido “distorcidas ou excluídas daquilo que é definido como conhecimento”.
Dentro dessa mesma perspectiva, Mirza ( 2018) advoga que a noção de interseccionalidade possibilita compreender como o sistema de múltiplas estruturas de dominação e poder posiciona as mulheres pretas colocando-as constantemente à margem dos direitos, ao mesmo tempo em que homens brancos assumem lugares mais hierarquizados e de privilégio. Para a autora, assim como nossos dados apontam, o mundo acadêmico é um mundo branco e, embora as mulheres pretas o habitem, sentem-se estranhas. Essa compreensão expressa os custos pessoais de estar à margem e, portanto, é preciso questionar esse mundo e como estamos, todos nós, implicados em discursos, práticas e estruturas racistas e sexistas por meio de nossa inclusão, exclusão, escolha e participação.
É imperioso evocar um modo de produzir conhecimento pautado nas experiências, na possibilidade da escuta e de compreensão das histórias sociais. A ciência, ao contrário, tem sido androcêntrica, sexista, classista, colonial, nortecêntrica e se esforça para invisibilizar determinados grupos sociais. Nesse sentido, Carvalho ( 2020) enfatiza que a universidade precisa estar na centralidade das lutas antirracistas e decolonizadoras. Para tanto, há a necessidade do envolvimento dos docentes nos embates de poder existentes no cenário acadêmico.
Entrementes, um outro conceito sistematizado pelos teóricos da decolonialidade é a “noção de geopolítica e corpo-política do conhecimento como crítica ao eurocentrismo e ao cientificismo” (BERNARDINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROFOSGUEL, 2020, p. 11). A afirmação geopolítica e corpo-política do conhecimento pode ser encontrada na tradição do pensamento negro por meio da apresentação de outras lógicas de produção do conhecimento fora do escopo dos princípios da construção do conhecimento científico a partir de Descartes 7 e da tradição eurocêntrica, o que inclui as “experiências vividas”, “experiências corpo-sensoriais” e historicidades dentro do sistema-mundo moderno/colonial (BERNARDINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROFOSGUEL, 2020, p. 13).
Parafraseando Carvalho ( 2020, p. 91), como docentes brancos, somos de um grupo que foi forjado para “reproduzir a violência epistêmica fundadora”. A partir do momento em que nos comprometemos com o processo contínuo de soltar as amarras dessa lógica, abrimo-nos para os saberes não ocidentais, proporcionando, assim, um afinamento à ecologia dos saberes. Essa, por sua vez, de acordo com Santos ( 2019, p. 59), é constituída por dois momentos. Primeiramente, torna-se necessário reconhecer as dimensões de uma dada luta social, que possui “contexto, reivindicações, grupos sociais envolvidos ou afetados, riscos e oportunidades etc.” (SANTOS, 2019, p. 59), contemplando a tradução intercultural e interpolítica. Essa perspectiva favorece “à articulação de diferentes movimentos sociais e de diferentes lutas”, permitindo que essa convergência fortaleça a luta contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. O segundo momento é refletido pela “tradução intercultural didática. Ocorre em processos que combinam, por um lado, o individual e o coletivo e, por outro, o oral e o escrito” (SANTOS, 2019, p. 60).
Pelo exposto por Carvalho ( 2020) e corroborado por Santos ( 2019, p. 62), as lutas precisam ser coletivas, e não apenas de um segmento, visto que, ao serem segmentadas, levam à opressão de outros grupos mais vulneráveis, reforçando assim “um componente intrínseco da dominação capitalista”. Nessa medida, tivemos a preocupação de compreender o cenário da pós-graduação stricto sensu da educação física brasileira para poder visibilizar que nela encontram-se indícios fortes de ser colonialismo, patriarcado e lógica capitalista.
Por outro lado, a perspectiva decolonial/epistemologias do Sul pode proporcionar um amplo debate na educação física brasileira, na medida em que nos permitirá compreender melhor o cenário da formação/pesquisa, assim como descortinar determinadas posições que são excludentes. Para tanto, é preciso olhar para esse fenômeno complexo de maneira abrangente, entendendo as vulnerabilidades que estão inseridas nele para buscar a redução das iniquidades. Este fato é retratado por Santos, Pinto e Chirinéa ( 2018, p. 961), quando escreveram sobre “A Lei nº 10.639/03 e o Epistemicídio: relações e embates”. As autoras evidenciaram que, embora a lei discorra sobre o ensino de conteúdos de história e cultura Afro-brasileiras, torna-se necessário que o currículo e a proposta pedagógica sejam oriundos da “riqueza de conhecimentos e prismas epistemológicos que reside em nossa diversidade cultural”. Desse modo, é preciso o envolvimento de todos, refletindo sobre a realidade social para que de fato exista o resgate dos conhecimentos construídos ao longo do tempo e para que esses sejam agregados à produção científica. Como vimos nos dados trazidos por este estudo, 89,5% das linhas de pesquisa não tratam de gênero e 94,7% não abordam raça e etnia, o que reforça o apagamento dessas culturas/epistemologias.
Finalizando
O debate travado nos permitiu identificar as assimetrias de acesso acadêmico, por parte dos docentes, aos programas de pós-graduação stricto sensu em educação física no Brasil. Essa assimetria parece reproduzir o cenário social brasileiro de racismo, machismo e desigualdades. Embora tenhamos mais mulheres e pessoas de pele negra na população e existam agora importantes políticas de ações afirmativas, isso não resulta em conquistas numericamente expressivas nos espaços de maior prestígio social, se comparados aos homens brancos. Há, portanto, necessidade de se afirmar a produção intelectual de mulheres e negros frente às práticas racistas e machistas que se manifestam tanto nas verificadas assimetrias de acesso aos lugares de produção científica, quanto no epistemicídio curricular provocado pela uniformização e homogeneização dos saberes dominantes/coloniais do campo da educação física brasileira.
No presente estudo, foi observado que o acesso à docência na pós-graduação em educação física parece ainda negado às mulheres, aos negros e, principalmente, às mulheres negras. De fato, a dificuldade de acesso à universidade pública e aos trabalhos de maior status social ainda é uma realidade e carece de maior atenção.
Dessa feita, torna-se imperioso que as políticas afirmativas sejam ampliadas e que aqueles que estão em posição de influenciá-las assumam esse papel. Precisamos trabalhar para que a nossa sociedade tenha um processo efetivo de redução das iniquidades de maneira a propiciar que homens e mulheres, independentemente de sua raça ou cor de pele, tenham as mesmas oportunidades de acesso à escolaridade, ao mercado de trabalho e aos espaços de produção científica, considerando a necessária valorização da diversidade de saberes em prol da transformação social e melhoria das condições de vida das populações.
Destaca-se, ainda, que o presente estudo apresenta a limitação dos estudos quantitativos. Ainda que quiséssemos fazê-lo, não foi objeto de investigação, neste primeiro momento, buscar compreender os anseios, barreiras, opressões, preconceitos e outros aspectos, vivenciados por mulheres pretas na ciência. Entretanto, em outra investigação, de natureza qualitativa, talvez possamos apreender mais profundamente tais experiências.
Ressaltamos que, em uma perspectiva decolonial, para a produção de novos saberes no campo da educação física, não basta somente viabilizar uma inserção de negros e negras como docentes nos programas pós-graduação. Torna-se necessária a inclusão de saberes subalternizados ao longo do tempo, quais sejam, aqueles que considerem diferentes singularidades, experiências vividas, historicidades, enfim, que atuem decolonizando corpos-saberes, na perspectiva apontada por Souza ( 2019). A autora ressalta que o saber-corpo pode ser compreendido como o conhecimento construído com base na experiência corporal, uma vez que se coaduna com a noção de se localizar e de dizer a partir das marcas inscritas no corpo. Souza, todavia, ressalta que não se trata de pensar tal noção tendo por fundamento uma posição dualista (corpo e mente). Ao contrário, propõe que se tome o corpo como a instância produtora de saberes, inclusive, na ciência e, desta forma, rompe-se com a ciência hegemônica colonizadora.