Visibilidades escolares: a cartógrafa na sala de aula de matemática
Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa. Esses instantes que decorrem no ar que respiro: em fogos de artifício eles espocam mudos no espaço.
Clarice Lispector, ( 1998, p. 13).
A tentativa de captura de Lispector ( 1998) da quarta dimensão do instante ajuda-nos a pensar em possibilidades de criação de encontros outros na formação de professoras 3 de matemática. Para isso, nosso objetivo é fazer um exercício de movimentar o conceito da cartografia buscando devires, geografias, direções, entradas e saídas a partir das linhas de força produzidas em duas teses cartográficas (SILVA, 2014; TÁRTARO, 2016) que apresentam uma possibilidade outra de pensar a respeito da formação de uma professora de matemática a partir de suas múltiplas subjetivações.
A apropriação conceitual da cartografia tem como base, principalmente, a filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari ( 1995), na obra Mil Platôs, na qual os filósofos a tratam como uma prática do conhecer que está além de apenas reconhecer, mas, sim, criar, (re)inventar o que já se conhece. Ou seja, conforme Deleuze ( 2006), uma prática do conhecer que provoca no pensamento forças que não são as da recognição, privilegiando a diferença enquanto uma produção de si mesmo. Pensar esses conceitos interessa-nos enquanto pesquisadoras que têm procurado caminhos outros para pensar a formação de professoras, a escola, a educação matemática, caminhos com propostas que abrem margem para outras formas de movimentar o conhecer, vinculados a um pensar como ação e não como recognição 4.
No Brasil, um dos primeiros trabalhos cartográficos foi o livro Micropolítica: cartografias do desejo, de Félix Guattari e Suely Rolnik ( 1986). Os autores lançaram-se ao encontro de trajetórias diversas com indivíduos e grupos implicados em movimentos sociais e políticos. Os registros dos corpos e vozes dos sujeitos naquele momento ainda hoje atingem o presente com a força das indagações e da experimentação que exerceu sobre os modos de produção de conhecimento. A obra apresenta que cartografar um território é exercitar seu corpo vibrátil, buscando acompanhar processos e acessar o plano das forças, possibilitando ao cartógrafo ser curioso, experimentar, agenciar-se, estar aberto ao que passa.
No caso desta escrita, a ideia é movimentar atravessamentos que, a partir de um exercício cartográfico, buscam criar espaços que mobilizam práticas e táticas de professoras, tanto na educação como na educação matemática, que possibilitam estarmos atentas às questões que nos ajudem a tensionar as relações de sala de aula.
Tenho uma história com o André, que rouba as câmeras da escola. Esse menino é um toquinho. Ele não sabe nem falar direito. [...] a mãe e a avó estão presas por tráfico de droga. O pai é viciado em crack e está na rua e quem cuida dele é uma tia de terceiro grau. Conclusão: ele vem para a escola e fica aprontando. Aí eu comecei a pegá-lo e fazer com que ele ficasse do meu lado, logo, ele só tinha presença na minha aula. Observei que todas as atividades que eu dava, ele conseguia fazer, inclusive as atividades de quinta série. Ele sabe fazer, apenas não quer fazer. O que acontece é que, nas outras aulas, ele foge. Ele só participa das minhas aulas, me procura em outras salas e fica me perguntando que horas eu irei à classe dele. Ele nem gosta de Matemática. [...] ele gosta de mim. Um dia ele estava acendendo fósforos e arremessando-os no cabelo das meninas da classe, eu chamei a diretora. Ele olhava com tanto ódio para mim e dizia: “eu te odeio, professora, eu te odeio”. A diretora o tirou da sala e, depois de um tempo fora, ele chegou chorando e dizendo: “eu não te odeio, professora”. Ele estava aos prantos. O problema é que eu não tenho apenas esse na sala, eu tenho vários outros que o pai é traficante, não tem mãe, se tem mãe ela não sabe o que faz com o filho. Esses dias eu estava dando aula em uma sala, demorei 15 minutos para fazê-los sentarem e abrirem o caderno. Quando eu ia começar a aula, chegou o André na porta e gritou assim: “quem quer bala...?” E tacou bala pela sala e saiu correndo. O que eu tinha feito foi desfeito por conta da bala. Não é para desistir de tudo, sentar e chorar? Ele fez isso em todas as salas do corredor em que eu estava. Nenhum professor, a não ser eu, fica com ele na sala. Alguns dias atrás, ele ficou quatro aulas comigo, foi o único jeito que achamos para ele não ser suspenso novamente 6. (TÁRTARO, 2016, p. 32).
Aonde estão meus olhos de robô?
Como o aluno André se fez visível para além de um sujeito que rouba câmeras da escola? Que subjetivações foram produzidas entre a professora de matemática e o André? Caso o André seja percebido sem os estereótipos estabelecidos pela escola, pode surgir a possibilidade de encontros outros? Talvez um encontro não mútuo. Talvez um encontro assimétrico. Talvez uma evolução a-paralela.
Encontram-se pessoas [...], mas também movimentos, ideias, acontecimentos, entidades [...]. Encontrar é achar, é capturar, é roubar, mas não há método para achar, nada além de uma longa preparação. Roubar é o contrário de plagiar, de copiar, de imitar ou de fazer como. A captura é sempre uma dupla-captura, o roubo, um duplo-roubo, e é isso que faz, não algo de mútuo, mas um bloco assimétrico, uma evolução a-paralela, núpcias, sempre “fora” e “entre”. Seria isso, pois, uma conversa. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 6-7).
Múltiplos são os encontros. Ora produzimos encontros, ora os encontros são produzidos pelos espaços onde nos encontramos. Com ou sem nossa permissão, a vida se dá por uma sucessão de encontros, os quais podem se produzir dentro e fora de ambientes de formação de professoras de matemática. Não há um tempo cronológico dos encontros com nós mesmos e com o mundo que nos cerca. ”Achar, encontrar, roubar, ao invés de regular, reconhecer e julgar. Pois reconhecer é o contrário do encontro” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 8).
A cartografia interessa-se por mapear questões processuais que, neste caso, ajudarão a compor processos de subjetivação na formação da professora de matemática. Traçar mapas é abrir-se ao instante, tal qual Rolin ( 1989, p. 23): “[...] é acompanhar um desenho que se faz com os movimentos de transformação de uma paisagem. Não se trata de representar, mas sim criar imagens, sendo, portanto, sempre processo”. Os mapas são constituídos pelas linhas de força verticais, horizontais, transversais, existentes nesses espaços de formação de professoras. Movimentar as linhas de forças - enxergar o não oculto que ninguém vê - escolher quais linhas de força constituem minha subjetividade são práticas/exercícios que encontramos no conceito da cartografia que tem como objetivo:
[...] desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente. Para isso é preciso, num certo nível, se deixar levar por esse campo coletivo de forças. (BARROS; KASTRUP, 2009, p. 57).
Para se deixar levar por um campo coletivo de força é necessária uma postura da cartógrafa que implica, enreda e agencia, de modo a compor a teia de relações presentes em um processo. Participar, embarcar nos territórios das afetações que podem surgir em uma escola é “[...] conhecer com a cognição ampliada, isto é, aberta aos planos dos afetos” (BARROS; KASTRUP, 2009, p. 61).
Diferente do método da ciência moderna, a cartografia não visa isolar o objeto de suas articulações históricas nem de suas conexões com o mundo. Ao contrário o objetivo da cartografia é justamente desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente [...] do cartógrafo se espera que ele mergulhe nas intensidades do presente. (BARROS; KASTRUP, 2009, p. 57).
Como mergulhar nas intensidades do presente? Uma das possibilidades é participar, conhecer o território que se deseja cartografar. É importante que a cartógrafa tenha a possibilidade de conhecer os espaços de experimentações dos sujeitos do seu trabalho. Experimentar, conhecer esse local como alguém que pertence a ele. Por exemplo, na tese de Silva ( 2014), a pesquisadora permaneceu durante um ano na escola conversando semanalmente com as professoras de matemática que aceitaram participar de uma ATPC (Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo) coordenada pela pesquisadora. Esses encontros permitiram que a pesquisadora conversasse com as professoras sobre o que estava acontecendo naquele dia, naquela semana, participasse da processualidade que ocorreu naquele momento, possibilitando, assim, “surfar a onda”, expressão usada por Rolin ( 1989) quando a autora discute o conceito de pesquisador-surfista, como aquele que exercita com disciplina o seu corpo vibrátil, principalmente seu olho vibrátil. Para Rolnik, vibrátil é uma qualidade que faz com que o pesquisador seja tocado pela força do que vê e, para isso, é preciso que a experiência o atravesse.
Pense, fale, compre, beba (PITTY, 2003).
[...] eu quero mostrar que havia diálogo e participação de todos [...] que representasse a gente conversando sobre o que está acontecendo na escola, na realidade! Sabe? Não estamos jogando conversa fora! Nesses encontros tinha uma ajuda. [...] a Lucinéia tinha uma sala muito difícil, ela estava sofrendo muito por causa dessa sala e quando ela colocou esse problema no grupo o pessoal acolheu o problema dela, muitos até se identificaram. E você falou sobre o jeito dela lidar com os alunos desinteressados e indisciplinados. Quem não tem aluno assim? Você propôs que ela tentasse conversar com os alunos sobre outros assuntos, talvez fora da sala de aula. Essas conversas, essas ideias que parecem tão simples, trouxeram algo de bom para nossa prática. Foram coisas produtivas que, muitas vezes, eu não sabia colocar nas minhas salas. [...] o professor falava das dificuldades dele na sala de aula e você ouvia e conversava com esse professor, mas quem estava na reunião também tomava a experiência para ele, e, muitas vezes, a gente percebia que também dava certo colocar determinada tática na nossa sala de aula. Foram debates produtivos, voltados para nós mesmos. Foi uma troca de informações, realmente um diálogo entre os professores de Matemática. (SILVA, 2014, p. 39).
Use, seja, ouça, diga
Como pode a cartógrafa exercitar o olho vibrátil diante das relações de saber e poder nos espaços escolares? Como capturar as intensidades e produzir uma geografia dos afetos com as professoras de matemática que estão atentas às linhas de visibilidades que podem fazer falar, ver e escutar o que acontece na escola?
A cartografia mapeia as relações de saber e poder que podem atravessar e constituir subjetividades dos sujeitos da escola. Ou seja, estamos entre relações de saber e poder que se configuram a partir de um diagrama de linhas de forças. “[...] A subjetivação é essa relação de si para consigo mesmo, encontrada nas relações de saber e poder. [...] Subjetivação se faz por dobras, por afetos, sempre segundo uma regra singular de forças” (TÁRTARO, 2016, p. 61).
Para Deleuze ( 2005), o sujeito é formado pelas pregas das subjetivações, as quais são formadas a partir das linhas de força existentes em um plano situado fora do sujeito.
O sujeito, então, vive em uma multiplicidade de linhas de força que agem em si e ao seu redor, de maneira que, ao mesmo tempo, em que o sujeito se forma ele é formado por subjetivações. Podemos dizer que estas subjetivações, que são a capacidade de essas linhas de força nos atingir, produzem um dentro, totalmente singular em cada sujeito. No entanto, embora singular, este dentro é móvel e se transforma a cada nova prega de subjetivações. (TÁRTARO, 2016, p. 68).
Tal qual no sujeito, a produção da cartografia é singular e, inclusive, por conta disso, não há uma exigência com perguntas pré-definidas ou um compromisso com coisa alguma, muito menos técnicas nas quais os cartógrafos irão se apoiar na sua construção. O que há, parafraseando Passos, Castro e Escóssia ( 2015), são pistas que irão auxiliar o sujeito a preparar o seu corpo para a composição de uma geografia dos afetos.
Mia Couto ( 2004), no livro O fio da missanga, dirá: “A missanga, todas a veem. Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo. (COUTO, 2004, p. 5)
Como a cartógrafa se prepara para deixar de perceber as missangas e notar os fios que passam despercebidos nas relações escolares? Não há uma só maneira de compor com as missangas, nem tampouco um modo ou uma regra para notar os fios despercebidos. A cartografia busca em diferentes espaços especificidades que compõem o olhar, não visa a construir um mapa que sirva de guia para todos os olhares, até porque cada olhar muda com as experimentações que, nesse caso, busca perceber as dinâmicas, os fluxos e as intensidades que se mostram nessas relações.
A cartografia busca apresentar não só as formas constituídas da subjetividade, mas também o:
[...] campo de forças que as constitui – ao diagrama, segundo Foucault, ao território intensivo, segundo Deleuze, a micropolítica, segundo Guattari. Ou seja, pretende aceder à dimensão das forças que constituem e desfazem as formas subjetivas permanentemente em formação. (FARINA, 2008, p. 10).
Ressaltamos que o desafio da cartógrafa é alcançar o plano das forças, buscar nas estruturas visibilidades que constituem as relações escolares, entrar pela forma escola e forma professora e forma aluna e... Para ir em direção às forças que a constituem. Criar desenhos/mapas das paisagens possibilita se tornar aparente as linhas de forças. A visibilidade também pode ser dita como um movimento que tira do lugar comum o pensar, o ensinar, o aprender, desterritorializar.
[...] pois as visibilidades, por sua vez, por mais que se esforcem para não se ocultarem, não são imediatamente vistas nem visíveis. Elas são até mesmo invisíveis enquanto permanecermos nos objetos, nas coisas ou nas qualidades sensíveis, sem nos alçarmos até a condição que as abre. (DELEUZE, 2005, p. 66).
Cartografa-se para desemaranhar as linhas e descrever o que se passa, mesmo sem ser escritor. Produção de um exercício que topografa as linhas de força, desenhando mapas das afetações. As afetações podem ser entendidas como acontecimentos 7 que incomodam os sujeitos, ou mesmo, o exercício de se incomodar com o que vê e ouve, com o dito e o não dito.
Parafuso e fluído em lugar de articulação (SOARES, 2018).
Teve uma aula que a gente não aguentava mais ficar na sala e o professor perguntou por que nós não estávamos participando. Eu falei: “professor, o senhor me desculpe, mas eu irei falar com toda franqueza. A aula do senhor não vale nada.” Ele se assustou e eu falei novamente que a aula dele não valia nada. “Eu não tenho interesse nenhum em assistir à aula do senhor, porque entre assistir à sua aula ou ficar a tarde toda na biblioteca estudando, eu prefiro a biblioteca. Eu só venho aqui para não ser reprovado por falta.” Ele parou, sentou e, na outra aula, ele chegou na sala e disse que eu tinha razão e que ele iria mudar o modo como ele dava a aula. (TÁRTARO, 2016, p. 52).
Não senhor, sim senhor, não senhor, sim senhor
O que acontece quando nada parece estar acontecendo? O que acontece quando a professora mostra na lousa como resolver a equação do segundo grau usando a fórmula de Báskara? Como encontrar o Mínimo Múltiplo Comum dos denominadores das frações usando a fatoração entre os números primos? E, ainda, que para fatorar devemos seguir a sequência 2, 3, 5, 7... Aprender matemática “como” a professora ou “com” a professora? Aprender com os livros? Com os colegas? Com as famílias? Como pode o aprender? A professora ensina como resolver o problema, como o livro didático resolve o problema. O livro didático está para a verdade da professora, assim como a professora está para a verdade da aluna. Será possível operar o “com” a partir dos fluxos existentes nos espaços escolares? Para Deleuze ( 2006, p. 48), “A aprendizagem não se faz na relação da representação com a ação (como reprodução do Mesmo), mas na relação do signo com a resposta (como encontro com o Outro)”.
A cartografia enquanto uma intervenção provoca as linhas de forças que circulam nas relações entre professoras e alunas e autoras e… A ideia é produzir com o outro. Uma aula em que as alunas possam inventar, criar, decidir sobre si mesmas. Um movimento de pensar suas próprias subjetivações pela matemática. Estar na escola, habitar o mesmo plano intensivo das professoras, afetar-se por aquilo que as afeta. Cartografar para desenhar as redes de forças à qual um fenômeno em questão se encontra conectado dando conta de suas processualidades.
Pararam pra reparar? (BLACK; MAITA, 2011).
[...] é natural não dar aula quando tem pouco aluno, deixar os alunos à toa na escola fazendo qualquer coisa. [...] Infelizmente o que eu tenho para dizer é que a maioria dos professores afirma que escola boa é escola sem aluno. Também é natural não ter aluno na sexta-feira. A impressão que tenho é que quando chega à sexta-feira os professores não aguentam mais nada e não veem a hora de ir embora da escola. (SILVA, 2014, p. 84).
Som de corte pungente, mundo doente além da conta
O que acontece quando nada parece acontecer sem alunas na escola? É natural não ir à escola às sextas-feiras no período noturno? É natural a professora não considerar que dará suas aulas de matemática às sextas-feiras à noite 8, e ainda, registrar/considerar como aulas dadas? É natural as professoras torcerem para as alunas não irem à escola? Qual o número suficiente de alunas para que uma professora ministre sua aula? Esse natural foi construído a partir de linhas de forças movimentadas nas próprias relações que constituem um ambiente escolar. Tais práticas e táticas são legitimadas a partir de um conjunto de subjetivações que pertencem a um cotidiano e se tornaram um hábito, em que ninguém questiona suas razões e os argumentos que levam a determinadas decisões. Tais costumes geram sensações em que o termo ”natural” é suficiente para justificar o fato da escola praticar determinadas normas.
Conforme Nietzsche ( 2004) 9, o hábito é uma ação herdada pelo sujeito que o leva a aceitar uma crença baseada em costumes, sendo nessa névoa de opiniões e hábitos que ele cresce e vive quase que independente das pessoas que o envolvem. É dessa ação que sobrevivem os juízos universais.
E o que as crianças estão pensando? (SOARES, 2008).
Eles não param sentados nas carteiras e nada muda o comportamento deles. Se você fala que vai mandar bilhete para os pais, eles nem se importam, e o pior é que essa sala vai fazer prova do SARESP 10 esse ano [...] no ano passado, a direção e os professores tentaram uma conversa com os pais para relatar a indisciplina e as dificuldades com os alunos [...] mas não adiantou nada. Então, no segundo semestre fizemos assim, se eles não fizessem as atividades não teriam intervalo, ou não saíam às onze e meia, ficavam na sala de aula até meio dia e meia e os professores dessa sala, que tinham aula vaga nesse horário, ficavam tomando conta da sala, mesmo sem ganhar nada! Eu lembro que a coordenadora sempre dizia: “Se eles não aprendem pelo amor, aprende pela dor”. (SILVA, 2014, p. 28).
Quais são os recados que as baleias têm para dar a nós [...]?
Indisciplina na sala de aula gera: alunas sem intervalo, sem aula de educação física na quadra, sem permissão para sair da sala para ir ao banheiro e para beber água. Será a punição uma tática para o controle? O controle é o maior signo (DELEUZE, 2006) produzido na escola? O ensino na escola é mediado por uma disciplinarização dos corpos? Punição gera resistência? Para Foucault ( 2006), há uma relação intrínseca entre as linhas de poder e as linhas de resistência, “[...] que lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder” (p. 103). Não nos cabe a discussão de quem tem o poder, mas sim de como reconhecemos e controlamos essas linhas de força, uma vez que “[...] a relação de poder é o conjunto das relações de forças, que passa tanto pelas forças dominadas, quanto pelas dominantes, ambas constituindo singularidades” (DELEUZE, 2005, p. 37).
Na sensibilidade nova, recém-desenhada sobre a pele e o coração, agastava-se a mocinha, incapaz de resolução. Urge, contudo, a decisão drástica, na imposição da disciplina que não pode mais tardar: SE NÃO PARAM OS BARULHOS HOJE, A TURMA TODA FICA SEM RECREIO. À turma, durante muitos dias, faltou o recreio. O que não dissolveu os ruídos que, freqüentando o hábito de viver, instalavam-se na sala, ao lado da moça desprotegida, ao alcance mesmo de sua mão. Ao ouvir qualquer coisa entre as colegas, a passagem rápida no corredor, descobriu, de relance, não precisar mais daqueles óculos. Abandonou-os no ônibus, vomitou a tarde inteira e retorceu-se toda, as dores advindas do ver. (LACERDA, 2001, p. 12, grifo do autor).
Que óculos usamos na escola? Usamos as lentes da diretora? Das alunas? Dos livros? Usamos as lentes da Base Nacional Comum Curricular? Das habilidades e competências comuns nas 184,1 mil escolas de educação básica 11? Usamos as lentes dos outros ou as nossas? Minhas lentes? Eu tenho lentes? O que vomitar? O que retorcer? “Como o professor de Matemática pode lidar com as subjetivações (poderes) instituídas na escola?” (SILVA, 2014). Qual o efeito (des)potencializador dessas subjetivações? Qual o produto dessas práticas de disciplinarização? A escola “[...] o hospital, a prisão, são antes de tudo, lugares de visibilidade dispersos numa forma de exterioridade, remetendo a uma função extrínseca, a de isolar, a de enquadrar...” (DELEUZE, 2005, p. 69).
Nada é orgânico, é tudo programado (PITTY, 2003).
O primeiro dia que cheguei à escola em que leciono atualmente, a vice-diretora me olhou e deve ter pensado que eu não tinha experiência em dar aula, então ela disse: - olha, para dar aula aqui você tem que entrar na sala de aula com cara fechada. Não pode mostrar os dentes para os alunos. E foi isso que eu fiz, me tornei a professora mais brava da escola. Acho que até meio carrasca. Mas hoje eu acho que não sou mais, pelo menos quando eles vão falar de mim, eles falam com certo carinho. Mas quando eu apareço no corredor sempre vejo alunos voando para dentro da sala e gritando: - Olha a rota! Até acho engraçado, mas não me formei para ser um carrasco. (TÁRTARO, 2016, p. 62).{dir=“rtl”}
Reinstalar o sistema
As práticas e táticas escolares são características de uma educação que modela o corpo.
O exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da duração, não culmina num mundo além; mas tende a mudar para uma sujeição que nunca terminou de se completar. (FOUCAULT, 2010, p. 156).
Em uma escola onde as relações de poder e saber disciplinam e imperam, não importará a vontade da professora ou aluna, mas apenas o que fazer com esse corpo, indicando, assim, a existência de uma importância exacerbada no que seu corpo faz conforme uma moral estabelecida. Para Foucault ( 2010), os dispositivos de poder têm o objetivo de normalizar/disciplinar e cabe ao sujeito resistir a tais dispositivos.
[...] uma sociedade, um campo social não se contradiz, mas ele foge, e isto é primeiro. Ele foge de antemão por todos os lados; as linhas de fuga é que são primeiras (mesmo que primeiro não seja cronológico). Longe de estar fora do campo social ou dele sair, as linhas de fuga constituem seu rizoma ou cartografia. As linhas de fuga são quase a mesma coisa que os movimentos de desterritorialização: elas não implicam qualquer retorno à natureza; elas são as pontas de desterritorialização nos agenciamentos de desejo. (DELEUZE, 1993, p. 5).
Semelhante à prisão, o espaço escolar é um aparelho que reproduz práticas e táticas disciplinares. Trata-se de operários das disciplinas que movimentam a fábrica-escola com alta produção de sujeitos dóceis. Para Tártaro ( 2016), a educação tende a ser um mecanismo que modela o corpo com o objetivo de produzir saberes específicos e passividade. Além disso, nesses espaços, o corpo passa a ser objeto de práticas de poder, que têm a intenção de treinar, disciplinar, ordenar e organizar.
Por exemplo, várias são as frases que já ouvimos nesse sentido: “o importante é o silêncio, pois só se aprende no silêncio”; “a lousa deve ser extremamente organizada, uma organização linear dos conteúdos deste momento”; “a conversa não forma”. (TÁRTARO, 2016, p. 54).
Reiteramos que o poder não é visto como posse, mas sim como um plano constituído por relações de forças, “[...] o poder não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis” (FOUCAULT, 2006, p. 104). Vivemos uma microfísica do poder, nossas lutas e resistências ocorrem num nível micro, individual, daí a importância do exercício de escolha das nossas subjetivações, uma vez que permitem o controle das linhas de forças que demandam a necessidade do sujeito autônomo que, através das práticas e dos exercícios do cuidado de si, pode cuidar de si e dos outros (SILVA, 2014).
Aí é choro doído, é sonho moído, é fim de trilha (BLACK; MAITA, 2011).
[...] O que eu menos gosto da escola? [...] eu poderia citar os próprios alunos (SILVA, 2014, p. 109). [...] o que é mais importante na escola? Olha, eu acredito que a questão mais importante na escola é transmitir o conhecimento que a gente tem dentro de cada disciplina. Existe uma lousa com conteúdo a ser transmitido. (SILVA, 2014, p. 112).
Já mortalmente ferido, lobo banido da matilha
A professora precisa gostar da escola? E das alunas? É possível transmitir conhecimento? A escrita da lousa transmite conhecimento? Copiar da lousa? Decorar e memorizar os conceitos da professora? Seguir passo a passo as ideias do livro didático? A lousa enquanto ato representativo não seria o próprio “isto não é um cachimbo” de Magritte?
[...] Colocando o desenho do cachimbo e o enunciado que lhe serve de legenda sobre a superfície bem claramente delimitada de um quadro (na medida em que se trata de uma pintura, as letras são apenas a imagem das letras; na medida em que se trata de um quadro-negro, a figura é apenas a continuação didática de um discurso), colocando esse quadro sobre um triedro de madeira espessa e sólida, Magritte faz tudo o que é preciso para reconstituir (seja pela perenidade de uma obra de arte, seja pela verdade de uma lição de coisas) o lugar-comum à imagem e à linguagem. (FOUCAULT, 2014, p. 35).
A professora produz uma imagem da sala de aula de matemática ou a única imagem da sala de matemática? Com qual método a professora transmite conhecimento? Com as metodologias da educação matemática? As metodologias da educação matemática também podem ser estudadas e praticadas como representação de um desenho, suas regras criam um manual que não dá conta do que compõem uma aula de matemática. Inclusive, as etapas das metodologias podem se tornar leis que definem a eficácia de um modo de lecionar. Tudo isso coloca determinada maneira de ensinar matemática no altar das representações; cria a ilusão de um método que diminui as dificuldades desse processo; contribui para interromper com o inusitado, o imprevisto, o impensável; impede a possibilidade de criação e invenção na sala de aula. Vislumbramos práticas rizomáticas na aula de matemática em detrimento às práticas arborescentes.
Estou vivendo como um mero mortal profissional (SOARES, 2018).
Eu tenho a necessidade de ouvir a minha própria voz. E eu sou muito presa ao silêncio e organização, sabe? Mas eu sei que vou ter que começar a pensar diferente. Às vezes eu tento, outro dia eu fui conversar sobre bullying com o sexto ano, então pedi para os alunos realizarem uma pesquisa para eu trabalhar porcentagem com esse assunto. Mas eu desisti, não deu certo, era muita bagunça [...]. Então, por essa e outras eu fui desistindo de fazer as coisas.(SILVA, 2014, p. 24).
Percebendo que às vezes não dá pra ser didático
Barulho na sala de aula? Silêncio? Quem pode falar na sala de aula? Ditado na aula de matemática? Aprende-se falando e se ensina ouvindo? Para discutir bullying precisamos conhecer os conceitos de porcentagem? Sala de aula de matemática sem números? Sem gráficos? Sem equações? O ensino da matemática está a serviço de quem? Do currículo hegemônico ocidental capitalista que mantém as engrenagens da representação?
Nos distanciamos desse pensamento representativo e abrimos espaço para os acasos que irão compor uma aula de matemática. No entanto, as metodologias que poderiam produzir modos outros de ensinar-aprender-ensinar, na maioria das vezes, reproduzem um método. Portanto, não se trata de criar uma aula regimentada, e sim preparar-se para uma aula com movimentos que serão percorridos enquanto o outro aprende. “[...] Não há método para encontrar tesouros nem para aprender, mas um violento adestramento, uma cultura ou paideia que percorre inteiramente todo o indivíduo” (DELEUZE, 2006, p. 160). Essas sucessivas representações criam um modelo em que a disciplinarização será fundamental para verificar e quantificar a aprendizagem?
Pararam pra reparar? Estão ouvindo esse som? (SOARES, 2018).
Tive uma experiência na minha terra e aqui de vez em quando faço isso. Faço com que o aluno desenvolva um espírito de honestidade. E como faço isso? Você entra em uma sala e aplica uma prova. O que o professor faz? Ele tem que ficar lá, porque se o professor sair, você sabe que o bicho pega... [...] eu combino com os alunos em fazer a prova fora do horário de aula ou no sábado. Ok. Porque duas horas às vezes é insuficiente, então eles irão ter o tempo que quiserem. Eu ia, distribuía as provas e, no início, aparentava que ia embora, saia da sala e ficava olhando a turma de um lugar que eles não percebiam. A princípio, há uma tentação de conversar com o colega, mas quando eles menos esperavam eu entrava na sala de aula e pegava. Fiz isso várias vezes com uma turma, até que chegou o momento em que eu não precisava ficar na sala de aula. Chegava, entregava as provas e ia fazer minhas coisas. E quando voltava, eles estavam do mesmo jeito. (TÁRTARO, 2016, p. 54).
Jogos de egos gigantes
A prova mede conhecimento? E se houvesse uma lei que proibisse provas na escola? Qual a relação do conhecimento com o panóptico? Fim das “colas”? Elaborar vinte modelos de provas para o ensino remoto 12? Manutenção dos sistemas de punição escolares? Manutenção da organização escola/manicômio/presídio? (Re)produção do signo da punição? Da disciplina? Vigiar quem decorou a resolução do exercício? Quem controla quem? As práticas e táticas da professora na aplicação da prova permitem a construção de sujeitos éticos ou apenas contribuem para uma ideia cristã, na qual sempre estamos sendo vigiadas, julgadas e castigadas pelas práticas que fogem às normalizações?
Nossa sociedade não é de espetáculos, mas de vigilância: sob a superfície das imagens, investem-se os corpos em profundidade; atrás da grande abstração de trocas, processa-se o treinamento minucioso e concreto das forças úteis; os circuitos da comunicação são os suportes de uma acumulação de saber; o jogo de sinais define os pontos de apoio do poder; a totalidade do indivíduo é cuidadosamente fabricada, segundo uma tática das forças e dos corpos. (FOUCAULT, 2011, p. 205).
A cartografia pode dar visibilidade às linhas de forças dos discursos disciplinadores orquestrados pelos Estados, nações, pertencentes às políticas educacionais públicas de caráter neoliberal e homogeneizantes, que possibilitam a concepção de sujeitos que participam das engrenagens contemporâneas capitalistas, bem como fortalecem a crença em um currículo acadêmico tomado por verdades balizadoras. Se, por um lado, a cartografia mapeia tais linhas, por outro, ela abre caminhos para os desvios e resistências a tais regulamentações. O mover do cartógrafo não se dá por um início, nem tampouco se acredita em uma raiz onde tudo teve um começo. O mover do cartógrafo se dá por rizomas.
De acordo com Deleuze e Guattari, o rizoma funciona como um mapa, à medida que:
[...] o mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói [...]. O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social [...]. Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 22).
Um rizoma, para esses autores, é formado de platôs, regiões de multiplicidades e intensidades conectáveis pelo meio. Deleuze e Guattari ( 1995) relacionam a multiplicidade com os fios da marionete, que nada têm a ver com a vontade do artista, mas com os possíveis caminhos que ele pode tomar. Uma escola e uma professora e uma aluna podem criar caminhos múltiplos.
[...] não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). (DELEUZE, 1995, p. 13).
Diferentemente do rizoma, o sistema escolar é composto de uma estrutura verticalizada, formada por uma ordem hierárquica de poder de cima para baixo (Ministério da Educação, Secretaria da educação, Diretoria regional, diretor da escola, coordenador pedagógico, coordenador de área, professora, alunas, família) e horizontalizada (GALLO, 2008). Nessa estrutura também encontramos certas determinações como o uso de livros didáticos e a sequência dos conteúdos, a preparação para os sistemas de avaliações, o cumprimento do currículo escolar, entre outras.
Aí é choro doído, é sonho moído, é fim de trilha. Enquanto o homem não acorda (BLACK; MAITA, 2011).
Minha relação com os alunos na sala de aula estava cada vez mais difícil, em algumas salas estava ficando insuportável. [...] então decidi que ia começar a conversar mais com eles, sabe? Aquela conversa de alguém que se importa com o outro? E fui conversando, me interessando mais pela vida pessoal e familiar de cada um. Comecei a levá-los para fora da sala de aula para ter essa conversa, íamos para debaixo de uma sombra de árvore que tem na escola, [...]. A direção e coordenação não aprovaram muito isso, vejo que olham feio e criticam, mas não me importo, pois depois disso começou a melhorar meu trabalho na sala de aula. Eu nem acreditei! (SILVA, 2014, p. 86).
Idiota, nem nota, se enforca com a corda da própria tensão
É possível enfrentar o sistema arbóreo escolar e criar territórios outros com rotas de fuga? O que leva a professora a deixar a sala de aula de matemática (espaço institucionalizado) e fazer da sombra da árvore um espaço de formação? Como produzir linhas de fuga na sala de aula de matemática? Como criar espaços para pensar e discutir o que acontece na sala de aula? “ATPC de matemática”. (SILVA, 2014)? Há espaço para o exercício da autonomia (FOUCAULT, 2010) na escola, ou seja, movimentos que subvertem uma ordem e engendram relações outras abrindo possibilidade de práticas de resistências que rompam com as linhas imaginárias dos poderes instituídos?
Práticas rizomáticas são compostas por linhas de força que podem ser escolhidas pelo sujeito. Tais linhas podem ser rompidas e desse rompimento podem surgir outras linhas a serem percorridas. Essas rupturas que existem no rizoma criam linhas de fuga que levam a outras formatações. A linha de fuga marca, ao mesmo tempo, a realidade de um número de dimensões finitas que a multiplicidade preenche efetivamente (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Em uma escola, existem linhas que se conectam, que nos fazem pertencer ou permanecer em determinado território. Também existem linhas que se quebram, que nos desterritorializam para nos territorializarem novamente em outro movimento. Linhas se abrem, se cruzam e se transformam em um movimento em constante devir.
Vislumbramos práticas docentes que produzam linhas de forças, movimentos rizomáticos que possibilitem desvios e resistências às regulamentações escolares. Para isso, a prática da cartografia, inclusive por não ter um plano a priori, pode produzir acontecimentos, afetações em um corpo vibrátil e permitir visibilidades das linhas de forças que compõem um espaço escolar, sejam elas institucionalizadas ou não.
De acordo com Rolnik ( 1989, p. 3), o cartógrafo:
[...] não segue nenhuma espécie de protocolo normalizado. O que define, portanto, o perfil do cartógrafo é exclusivamente um tipo de sensibilidade, que ele se propõe a fazer prevalecer, na medida do possível, em seu trabalho. [...] É muito simples o que o cartógrafo leva no bolso: um critério, um princípio, uma regra e um breve roteiro de preocupações – este, cada cartógrafo vai definindo para si, constantemente [...].
Cabe à cartógrafa o comprometimento com a prática da intervenção que irá sustentar o mapeamento dos fluxos e estabelecer as conexões de uma aula de matemática. A cartografia é uma topografia das forças, na medida em que impulsiona, movimenta e ativa um pensamento, uma escola. Cartografar é uma prática e não uma aplicação, na qual o pesquisador está inserido de um modo diferente, não apenas coletando dados, mas processando dados, produzindo-os. É uma intervenção que se inventa enquanto se pesquisa, conforme as necessidades que surgem, de acordo com os movimentos da escola. Cartografar é produzir mapas-rizomas que questionam o modelo explicativo da realidade na produção de saberes, abrindo mão da linearidade e da causalidade em suas práticas discursivas.
Vislumbrando a diferença: possibilidades de resistência na escola
Com a filosofia da diferença, a ideia de resistência apresenta-se como um processo de invenção de si (KASTRUP, 2005) enquanto professora de matemática. Resistir é produzir espaços, linhas de fugas, diante de práticas escolares que têm por objetivo reproduzir modos que indicam um único caminho de ser professora. Como uma possibilidade de percorrermos caminhos outros, Foucault ( 2010) discute a importância do exercício do cuidado de si 13, como uma prática de formação do sujeito enquanto senhor das escolhas que precisam ser realizadas em todos os movimentos da sua vida. Tais exercícios contribuem para uma atenção permanente às questões que direcionam a professora de matemática a olhar para si mesma e para as relações/forças escolares que a afetam “é preciso que te ocupes contigo mesmo, que não te esqueças de ti mesmo, que tenhas cuidado contigo mesmo” (FOUCAULT, 2010, p. 6).
Vale destacar que esse cuidado de si no conhecimento de si não implica uma atitude egoísta do sujeito, ao contrário, na medida em que a professora de matemática cuida dela, escolhe as forças escolares que deseja ser subjetivadas; ela cuida de si ao mesmo tempo que cuida da escola. “[...] Salva-se a si mesmo na medida em que a cidade se salva e na medida em que, ocupando-se consigo mesmo, permitiu-se à cidade que se salve” (FOUCAULT, 2010, p. 159).
A prática da cartografia está em consonância com o exercício do cuidado de si, uma vez que ao desenhar/mapear as visibilidades que compõem a aula de matemática, cria linhas de força, caminhos outros em meio a uma processualidade composta nas práticas e táticas desenvolvidas pelas professoras.
Na formação de professoras dos cursos de licenciatura em matemática, a cartografia pode contribuir com as questões que envolvem as atividades práticas das alunas e professoras da licenciatura enquanto observadoras dos trabalhos escolares, na medida em que as licenciandas não assumem apenas a função de espectadoras, mas sim de sujeitos que intervêm nos processos da sala de aula de matemática.
A escola e a universidade são responsáveis pelo pensar e fazer o ensino de matemática na sala de aula. As duas instituições são produtoras de conhecimento e fundamentais na conversão da não-dualidade teoria-prática, inclusive, esses processos e instituições precisam dialogar-se constantemente, uma vez que são importantes na produção de linhas de forças que podem formar professoras. A cartografia possibilita, por meio da sua intervenção, uma prática em que o sujeito possa pensar/agir frente à própria formação, um processo para além das discussões de práticas escolares que abordam apenas metodologicamente a “melhora” do ensino da matemática.
A cartografia não está preocupada em discutir os modos e usos de práticas de sala de aula de matemática, tampouco se trata de salvar as mazelas do ensino da matemática a partir de uma metodologia específica, mas sim de operar com as linhas de força que a matemática e a escola podem potencializar. Estamos distantes das práticas colaborativas em que os procedimentos visam às conversas e reflexões apenas sobre a “melhora” da aprendizagem a partir de uma determinada metodologia. Tais práticas trocam experiências sobre a profissão e a reprodução de seus métodos e não sobre as afetações e o cuidado de si, a autonomia e a invenção.
O que seria uma prática pedagógica capaz de produzir uma política cognitiva da invenção, deslocando o foco da informação para a problematização? Em que consistiria manter viva a atenção ao plano de forças e dos devires, a potência de resistência à recognição? E, ainda, como expressar a potência do abalo, das dissonâncias e da bifurcação que uma certa prática pedagógica pode produzir na subjetividade? Pois para ser mestre não basta transmitir informações novas, que logo serão substituídas por novas informações novas e igualmente descartáveis, mas produzir uma experiência nova, que não envelhece, que conserva sua força disruptiva e se mantém sempre nova. (KASTRUP, 2005, p. 1285).
O que pode a cartografia? Criar movimentos em que a professora tome as próprias decisões frente às relações de poder e saber vigentes na educação? Exercitar o corpo vibrátil na escola? Estar atenta às visibilidades outras nas relações escolares, inclusive, no ensino de matemática? Pensar nas afetações e incômodos produzidos nas experimentações da sala de aula de matemática, bem como na escola em geral? Discutir questões de interesse próprio em relação às práticas e táticas escolares? Afetar-se por questões outras, distintas das ideias contidas nos livros didáticos de matemática, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), nos Parâmetros Curriculares Comum Nacionais (PCNs)? Exercitar o cuidado de si e, consequentemente, o cuidado da escola? Encontrar nas instituições escolares brechas por meio de práticas de resistência? Inverter uma ordem? Estar atenta aos acontecimentos que compõem um espaço escolar?
Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o instante. É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo-a-corpo comigo mesma. Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro. (LISPECTOR, 1998, p. 10).