Introdução
O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) foi instituído pela Portaria nº 438/1998 para cumprir o papel de avaliar o ensino médio (BRASIL, 1998). De caráter opcional e realizado anualmente, o exame foi bastante utilizado para promover um ranking das instituições escolares [SILVA; MELO, -SILVA; MELO ( 2018)]. Contudo, ao longo de suas 23 edições (1998 a 2021), o exame se propôs a diferentes objetivos e passou, gradativamente, a ser um mecanismo articulado de ingresso ao ensino superior público.
O processo de transformação do ENEM ganhou força com a criação do Sistema de Seleção Unificada (SISU) pelo governo federal, em 2009. A implementação do sistema proporcionou a criação de uma plataforma responsável pela unificação dos processos seletivos de diversas universidades públicas federais e estaduais (FERREIRA, 2014). A gradual adesão de universidades públicas ao SISU eliminou a realização de vestibulares e processos seletivos por cada universidade, reduzindo custos e recursos humanos alocados nesses processos. Em 2001, o exame passou a adotar a isenção da taxa de inscrição para estudantes de escola pública, o que colaborou para um significativo aumento do número de inscrições nos anos seguintes. Três anos mais tarde, com o lançamento do Programa Universidade para Todos (Prouni), a inscrição e o ingresso no programa passaram a ser absorvidos também pelo ENEM, o que viria a ocorrer posteriormente com programas como o Sistema de Seleção Unificada da Educação Profissional e Tecnológica (Sisutec) e o próprio Fundo de Financiamento Estudantil (FIES).
Outro aspecto importante diz respeito ao modo como o exame conduziu uma progressiva reestruturação dos currículos do ensino médio. As novas exigências da prova provocaram nas escolas a necessidade de operar reestruturações capazes de adequar o ensino oferecido às habilidades e aos conhecimentos demandados pelo exame.
A avaliação do desempenho dos estudantes, característica constitutiva do modo como o ENEM opera atualmente, acabou se tornando também uma importante ferramenta para avaliar a qualidade das escolas e, mais ainda, do ensino médio no Brasil. Os mecanismos de avaliação do ensino e de mensuração do impacto das políticas de educação que puderam ser estruturados por meio da realização do exame nos últimos anos colaboraram para o aprimoramento e para a avaliação das políticas de ensino.
Se é possível identificar melhorias, faz-se também necessário pontuar seu alcance e suas limitações. Brito ( 2014, p. 193) afirma que:
A demanda por escolarização superior impulsionou uma expansão significativa do sistema no país. Em 1991 haviam 1,5 milhões de estudantes matriculados em instituições superiores no país, número que ultrapassava os 6,3 milhões de pessoas em 2010. No entanto, tal crescimento fundamentou-se principalmente nas matrículas em instituições privadas de ensino.
O que os dados sociodemográficos analisados nesta pesquisa informam, como será demonstrado, nos permite identificar a repetição de certos padrões e desníveis que traduzem as desigualdades ainda presentes na sociedade brasileira.
Para verificar o desempenho dos estudantes no ENEM realizado em 2019, buscou-se identificar desvantagens entre estudantes e como tais desvantagens podem estar relacionadas a critérios como desempenho escolar e características individuais familiares, que oferecem diferentes resultados em cada contexto analisado. O argumento construído por alguns estudos, tais como Almeida e Ernica ( 2015), que caracterizaram estudantes em termos da escolarização dos pais, considera os efeitos da herança cultural sobre o acesso ao ensino superior. Já Gomes e Melo ( 2021) encontraram padrões de desigualdade socioespaciais relacionadas ao ensino no Brasil. Esses padrões são, para as autoras, decorrentes do histórico de desenvolvimento de políticas educacionais e da constituição desigual da ocupação do espaço urbano.
Compreender o modo como as desigualdades estruturam o ensino no Brasil não implica, no entanto, relegar às políticas educacionais a tarefa de reduzir tais desigualdades. Como é apontado por Gomes e Melo ( 2021) e por outros estudos (ALVES; SOARES, 2013), é necessário considerar fatores externos que também incidem no desempenho escolar e no ensino construído nas escolas. O que interessa à análise apresentada neste trabalho, portanto, não é afirmar que as variações socioculturais analisadas são exclusivamente responsáveis pelas assimetrias no desempenho escolar, mas antes apresentar uma perspectiva sobre o desempenho escolar de escolas mineiras no ENEM que considere o impacto dessas variações.
As condições para a realização da pesquisa que permitiu a elaboração das análises que serão apresentadas partem de estudos dos microdados produzidos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) que consideram a incidência de fatores como raça, renda, sexo, tipo de instituição frequentada e escolaridade dos pais. Objetiva-se analisar o desempenho geral de estudantes concluintes do ensino médio no ano de 2019 provenientes de escolas do estado de Minas Gerais no ENEM, buscando compreender quais fatores contribuem para um melhor ou pior desempenho.
A hipótese é que algumas características que compõem o perfil socioeconômico ajudam a explicar ou, ao menos, compor as variações de desempenho na comparação entre as instituições escolares. Nesse sentido, e para esta pesquisa, o ENEM se mostra oportuno. Não apenas por disponibilizar os resultados da avaliação, permitindo diagnósticos comparativos de aprendizado, mas também por fornecer dados detalhados e autodeclarados das características socioeconômicas de uma grande base de inscritos.
Caracterização da educação básica no estado de Minas Gerais
Nos 852 municípios de Minas Gerais, existem 47 superintendências regionais de ensino, “braços” da Secretaria de Estado de Educação (SEE) que estão mais próximos das escolas estaduais. Segundo o Censo da Educação Básica 2019, Minas Gerais possui 3.184 escolas que ofertam o ensino médio (IBGE, 2020b). A estrutura de ensino mineira em 2018 contou com 143.977 docentes em exercício no ensino fundamental e 60.729 no ensino médio. Estes profissionais trabalharam nos 10.734 estabelecimentos de ensino fundamental e 3.168 de ensino médio identificados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no mesmo ano.
Cerca de 89,5% dos jovens com idade entre 15 e 17 anos residentes no estado estavam matriculados nas escolas (IBGE, 2020a). No ensino médio mineiro, em 2019, havia 751.103 matrículas registradas segundo o Censo da Educação Básica 2019. É na rede estadual que se concentra a maior parte das matrículas do ensino médio, com 86,3%. Essa parcela é gigante se comparada às matrículas na rede privada, 9,8%. Cerca de 3,2% dos alunos estudavam no ensino médio ofertado por escolas federais e apenas 0,7% em escolas municipais.
A rede estadual é a que dispõe de um maior número de instituições escolares no território mineiro. Das escolas que oferecem o ensino médio, 23,3% são privadas. Entre as escolas públicas, 74,1% são estaduais, 2% são federais e 0,7% são municipais. Essas cinco unidades administrativas escolares foram consideradas nas análises deste trabalho, uma vez que, como será apresentado, elas variam quanto às formas de ingresso, ao grau de formação do corpo docente, ao repasse de recursos, à organização da gestão escolar, ao número de alunos matriculados no 3º ano, que são os que realizam o ENEM, e ao perfil socioeconômico dos estudantes, por exemplo.
Apesar de a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, prever o ensino médio como atribuição estadual e o ensino fundamental como responsabilidade do município (BRASIL, 1996), em Minas Gerais há um número pequeno de instituições municipais que oferecem o ensino médio. Esse tipo de modalidade tem baixa presença nos municípios, além de possuir reduzido número de unidades e de alunos se comparada às outras dependências administrativas escolares.
Dentre as 2.362 escolas estaduais mineiras, existem cerca de trinta unidades que são vinculadas à Polícia Militar do Estado de Minas Gerais (PMMG), denominadas de Colégio Tiradentes da Polícia Militar (CTPM). Essas unidades integram o sistema de ensino da PMMG, conforme a Lei nº 20.010, de 5 de janeiro de 2012. Para o ingresso nessas escolas, há prioridade para os dependentes legais de policiais e bombeiros militares. Quando há disponibilidade de vagas, são admitidos filhos de servidores civis da PMMG. Aos demais civis é comum que haja sorteio e/ou processo seletivo para ingresso.
As escolas federais são instituições públicas de ensino vinculadas ao Governo Federal e abarcam um conjunto de instituições distintas: os Colégios de Aplicação, os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG) e os Centros Federais de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG). Cada qual em um contexto, esses estabelecimentos foram criados ao longo do século XX e estão presentes em inúmeras cidades do interior mineiro. A entrada de estudantes pode se dar por diferentes formas: via sorteio ou processo seletivo, muitos deles com ações afirmativas. Diferente das escolas estaduais comuns, o corpo docente desses estabelecimentos é altamente escolarizado – acima da média na educação básica –, possui plano de carreira e é bem remunerado. Para ingresso, a maior parte dessas instituições opta por sorteio e outras por vestibulares concorridos e específicos, com ações afirmativas.
As características da fonte de dados e os caminhos percorridos para extração deles são os temas da próxima seção.
Fonte e coleta de dados
Utilizaram-se para esta pesquisa os microdados do ENEM disponibilizados pelo INEP ( 2020a). No entanto, o arquivo disponível no site do INEP está em arquivo compactado que apresenta, em arquivo único, informações de todo o país. Por isso, tem um tamanho de aproximadamente 3 GB, o que exige um processador de alto desempenho para manipulação, não sendo possível, para a maioria dos computadores pessoais, realizar diretamente o processo de análise e filtro de dados com a extensão .csv. Assim, utilizou-se um recurso computacional de programação dinâmica para particionar a planilha por estado brasileiro, o que facilitou o posterior processamento, permitindo realizar a seleção de variáveis para a planilha contendo somente as respostas dos questionários de participantes de Minas Gerais. Desta forma, chegou-se ao universo de estudantes inscritos em Minas Gerais para o ano de 2019: 538.897 pessoas.
Os dados foram importados para o Excel e foram selecionadas as variáveis de interesse para cada aluno, conforme códigos e suas descrições contidos no manual (dicionário) do ENEM, disponível no site do INEP. Deve se ressaltar que, em bases de dados reais, é comum que alguns dados estejam incompletos ou sejam inconsistentes. Dados de determinados atributos com informação ausente ou ainda pouco detalhada, são considerados incompletos ( outliers). Para filtrar a base de dados que se deseja e extrair o conhecimento útil para a finalidade deste trabalho, foi realizada a seleção das categorias das variáveis de interesse, procedendo-se da seguinte maneira:
(i) Para a variável “situação de conclusão do ensino médio” (TP_ST_CONCLUSAO), foram selecionados apenas os alunos da categoria 2, que inclui, portanto, apenas os alunos concluintes do ensino médio em 2019;
(ii) Foram retirados da análise os alunos com nota “zero” ou “inexistente” em duas ou mais variáveis correspondentes às áreas de conhecimento, pois foram considerados, para a finalidade deste trabalho, como incompletos, o que poderia gerar inconsistência nos resultados;
(iii) Os dados foram divididos também por dependência administrativa, conforme a variável “dependência administrativa escolar” (TP_DEPENDENCIA_ADM_ESC);
(iv) Para o nível 2 da variável dependência administrativa, correspondente às escolas estaduais, realizou-se uma subclassificação através da variável “código da escola” (CO_ESCOLA), em que foram categorizados os alunos pertencentes aos CTPM ou às demais escolas estaduais (EE).
Para as notas obtidas pelos participantes, foi construída a curva normal (gaussiana) para cada dependência administrativa, que é o modelo mais esperado para a distribuição de notas considerando o tamanho da amostra e a hipótese de que os eventos estudados estão descorrelacionados. Ainda, conforme Viggiano e Mattos ( 2013), ao incluir os resultados iguais a zero nos cálculos, a distribuição resultante se afasta para a esquerda da curva normal teórica. Esse deslocamento implica a modificação dos parâmetros da curva teórica. Por outro lado, ao desconsiderarmos os sujeitos com nota zero, a curva aproxima-se consideravelmente da distribuição normal. Isso justifica, portanto, a exclusão dos alunos tratados no item ii, durante a seleção inicial.
Muitas pesquisas buscam compreender, via abordagens quantitativas, os desempenhos educacionais dos estudantes em metrópoles, estados ou regiões. Lima et al. ( 2019) evidenciam, por exemplo, que a análise estatística descritiva foi, nos estudos realizados sobre o ENEM e o Enade, o método mais utilizado. Muitos dos resultados encontram relação direta com questões internas e externas ao sistema escolar para explicar o sucesso e o fracasso educacional das instituições e de seus estudantes. Há pesquisas que enfatizam a relação do desempenho educacional atrelado: i) à formação de professores (CARMO et al., 2015; COSTA, R. M., 2018; COSTA; BRITTO; WALTENBERG, 2020); ii) às desigualdades socioespaciais (ERNICA; BATISTA, 2012; KOSLINSKI; ALVES, 2012); iii) às condições dos familiares (BARROS et al., 2001); iv) ao porte escolar como fator relevante para resultados (LEE, 2008; SOARES; SÁTYRO, 2008); v) às desigualdades socioeconômicas como determinantes para as desigualdades educacionais das escolas (ADEODATO; SANTOS FILHO; RODRIGUES, 2014; ALVES, 2008; ALVES; SOARES, 2013); entre outros.
Em diálogo com esta literatura que busca os nexos entre as influências sociais, econômicas e contextuais e o desempenho no ENEM, neste estudo, como será apresentado daqui em diante, foram cruzadas a variável “nota em função da dependência administrativa” com as variáveis “sexo”, “cor/raça”, “renda familiar” e “escolaridade dos pais”, para compreender como os fatores socioeconômicos se distribuem de modo diferente a depender do tipo de escola e como podem influenciar as análises sobre o rendimento de estudantes matriculados em Minas Gerais. Com os dados finais tabelados e organizados, realizou-se uma estatística descritiva considerando as variáveis selecionadas.
Desempenho de estudantes por dependência administrativa
Após a manipulação dos microdados do ENEM 2019, que reúne dados socioeconômicos e resultados do exame de estudantes do estado de Minas Gerais, obteve-se uma planilha final com 91.540 alunos distribuídos em cinco dependências administrativas, conforme Figura 1.
É possível observar que 75% dos alunos em Minas Gerais concluíram o ensino médio em 2019 nas escolas estaduais. Há também indicativo de um número expressivo de alunos em escolas de dependência federal. Em todo o estado, são cerca de sessenta instituições do tipo.
O quantitativo de alunos candidatos do ENEM 2019 em Minas Gerais segue a proporção de matriculados no ensino médio mineiro e brasileiro: de longe, há maior concentração de pessoas na rede estadual, seguida das redes privada e federal (INEP, 2020b). Este dado não está distante da distribuição porcentual dos estudantes por tipo de rede de ensino projetada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) publicada em 2020 ( IBGE, 2020a). No Brasil, 87,4% dos estudantes estavam matriculados no ensino médio oferecido pela rede pública, e, assim, apenas 12,6% estudavam em escolas privadas.
Inclusão da variável nota
O ENEM iniciou-se em 1998 com o objetivo de avaliar o desempenho dos alunos concluintes e egressos do ensino médio. Desde sua criação, o ENEM focaliza as competências e habilidades básicas desenvolvidas, transformadas e fortalecidas com a mediação da escola (BRASIL, 2012).
Em suas primeiras edições, o ENEM apenas verificava o desempenho dos estudantes, e as notas não eram utilizadas para ingressar no ensino superior. A intenção do Ministério da Educação era ter um método para avaliar a educação no país e, assim, aprimorar as políticas educacionais, especialmente da rede pública.
Até 2008, a prova constava de 63 questões e era aplicada em um único dia, com quatro horas de duração. A partir de 2009, um novo modelo de avaliação foi instituído na intenção de unificar o processo de seleção das instituições federais de nível superior. Além disso, os resultados do ENEM passaram a compor a avaliação dos cursos de graduação como uma “nota de entrada” e parte dos critérios de seleção de programas governamentais.
Segundo Kemiac ( 2011), o ENEM permite ao poder público dimensionar e localizar as lacunas que debilitam o processo de formação dos jovens e que dificultam sua realização pessoal e sua inserção no processo de produção da sociedade.
No ano de 2019 1 , período da prova sobre o qual recaem as análises deste trabalho, o exame teve duração de dois dias, continha 180 questões objetivas, divididas igualmente em quatro grandes áreas: Ciências da Natureza e suas Tecnologias (CN), Ciências Humanas e suas Tecnologias (CH), Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (LC) e Matemática e suas Tecnologias (MT), além da proposta de uma redação.
As notas registradas para os participantes de Minas Gerais permitem afirmar que, ao avaliar os resultados por dependências administrativas, a maior média, ou seja, o melhor desempenho, ocorreu na redação, seguida por Matemática e suas Tecnologias. O resultado menos satisfatório de todas as dependências administrativas se deu em Ciências da Natureza e suas Tecnologias ( Figura 2).
CN: Ciências da Natureza e suas Tecnologias; CH: Ciências Humanas e suas Tecnologias; LC: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; MT: Matemáticas e suas Tecnologias; CTPM: Colégio Tiradentes da Polícia Militar. Fonte: Elaboração própria, 2021.
Viggiano e Mattos ( 2013), ao comparar o desempenho dos estudantes de cada uma das regiões geográficas do Brasil no ENEM realizado em 2010, por áreas do conhecimento, concluíram que o desempenho na área de CN é um dos mais influenciados pela desigualdade social entre as regiões brasileiras, e que a diferença entre as notas nessa área foi muito maior que no caso da redação e ainda maior que em LC. Neste trabalho, ao considerar apenas Minas Gerais, percebeu-se também o resultado inferior na área de CN; no entanto, avaliando-se por dependência administrativa, a nota de redação foi a mais discrepante, apesar de atingir notas maiores do que as outras áreas em todas as dependências administrativas.
É importante considerar que, ao serem comparadas as médias dos alunos em cada uma das dependências administrativas, observa-se um melhor desempenho nas escolas privadas em todas as áreas do conhecimento do ENEM. Ao passo que os piores resultados foram observados em escolas municipais, seguidas das escolas estaduais comuns, em qualquer que seja a área de conhecimento analisada. Apesar de serem considerados colégios estaduais, as escolas militares CTPM possuem resultados bem distintos das escolas estaduais regulares, apresentando médias superiores às estaduais comuns nas cinco áreas de conhecimento. Além disso, as escolas federais e privadas apresentam resultados bem próximos, com uma diferença em torno de 10 pontos, com exceção da redação, pois a diferença entre as médias gerais é superior a 37 pontos, ficando as escolas particulares bem a frente.
A Tabela 1 apresenta a estatística descritiva considerando a nota geral, ou seja, de todas as áreas de conhecimento exigidas. Neste caso, se compararmos apenas a média geral, as escolas que garantiram médias gerais mais altas em Minas Gerais no ENEM 2019 foram, nessa ordem, as escolas privadas, as escolas federais, os CTPM, as escolas municipais que oferecem ensino médio e, por fim, com pior desempenho, as escolas estaduais.
Estatística | Dependências administrativas | ||||
---|---|---|---|---|---|
Estadual | Municipal | CTPM | Federal | Privada | |
Média | 511,88 | 546,62 | 605,78 | 628,33 | 642,57 |
Erro padrão | 0,18 | 1,35 | 1,34 | 0,71 | 0,48 |
Mediana | 509,60 | 545,00 | 588,30 | 604,60 | 615,20 |
Desvio padrão | 107,01 | 103,36 | 105,86 | 115,69 | 126,27 |
Fonte: Elaboração própria, 2021.
A ordem das médias gerais das diferentes dependências administrativas em Minas Gerais segue a tradicional hierarquia do ensino básico brasileiro. Tal hierarquia, muitas vezes resumida nas diferenciações entre escolas públicas e privadas, foi e ainda é objeto de ampla reflexão no campo da educação e gera pesquisas com aportes metodológicos diversos (CAMARGO, 2017; IBGE, 2020a).
Utilizando os resultados de média e desvio padrão, podemos realizar o ajuste de uma distribuição normal conforme a dependência administrativa ( Figura 3).
A partir de cada distribuição normal ajustada, é possível calcular algumas probabilidades que servem como embasamento teórico para a comparação de resultados e possibilidades de aprovação entre alunos de diferentes escolas, conforme as dependências administrativas ( Tabela 2).
Dependências administrativas | Pontuação mínima atingida pelo percentual de alunos | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
511,9 | 546,6 | 605,8 | 628,3 | 642,6 | 594,1 | 639,9 | 781,8 | |
Estadual | 50,00% | 37,28% | 19,01% | 13,83% | 11,09% | 22,11% | 11,58% | 0,58% |
Municipal | 63,15% | 50,00% | 28,35% | 21,47% | 17,65% | 32,30% | 18,34% | 1,14% |
CTPM | 81,24% | 71,19% | 50,00% | 41,58% | 36,40% | 54,39% | 37,36% | 4,82% |
Federal | 84,29% | 76,00% | 57,72% | 50,00% | 45,09% | 61,63% | 46,02% | 9,23% |
Privada | 84,96% | 77,64% | 61,46% | 54,50% | 50,00% | 64,95% | 50,84% | 13,51% |
Fonte: Elaboração própria, 2021.
O valor na linha superior corresponde à nota média obtida por cada dependência administrativa, que, neste caso, é a nota mediana, ou seja, aquela que 50% dos alunos daquela dependência administrativa atingiram. Assim, pode-se dizer que apenas 50% dos alunos das escolas estaduais atingiram nota superior a 511,9 pontos. Nota-se também que a probabilidade de um estudante da rede estadual atingir uma nota igual ou superior à média das escolas privadas (642,6 pontos) é de apenas 11,09%, enquanto de um aluno do CTPM atingir é de 45,09%.
Os valores em azul correspondem às notas de corte para o ingresso em cursos de uma instituição de ensino superior de Minas Gerais, a Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). É possível notar que, no caso do curso de Medicina, a probabilidade de um aluno de escola estadual atingir a nota de corte é inferior a 1%, o que evidencia ainda mais a discrepância de desempenho no ENEM entre os estudantes.
As consequências desses resultados podem ser percebidas facilmente, pois existe um claro descompasso entre escolas públicas e privadas na qualidade da escolarização obtida no ensino médio, e, assim, os estudantes com trajetórias vinculadas ao setor público encontram na competitividade por vagas em instituições públicas de ensino superior uma barreira muito proeminente para a continuidade de seus estudos (BRITO, 2014).
Inclusão da variável sexo
De acordo com o INEP ( 2020a), das 5,09 milhões de inscrições confirmadas no ENEM 2019, cerca de 59,5% eram do sexo feminino, não necessariamente em fase escolar. Com relação à variável sexo das pessoas inscritas em Minas Gerais e concluintes do ensino médio em 2019, obteve-se um quantitativo de 63,43% de alunas que fizeram o exame. Um percentual superior de participantes do sexo feminino se mantém em todas as dependências administrativas, conforme apresentado na Figura 4.
A porcentagem observada de maneira geral no estado é bem próxima da realidade das escolas estaduais, dos CTPM e das escolas municipais, sendo que, se observarmos as escolas federais e as privadas, o percentual entre alunos e alunas se aproxima, sendo praticamente iguais nas escolas federais.
Os dados encontrados para Minas Gerais seguem uma tendência brasileira de predomínio feminino na educação básica (IBGE, 2020a) e, também, no ensino superior (INEP, 2019), seja em número de pessoas matriculadas, seja no índice de conclusão dessas etapas de ensino. No ENEM, espécie de articulador entre a educação básica e a superior, esse padrão se repete nos contextos nacional e mineiro, ao menos no ano de 2019.
De acordo com José Francisco Soares (QUASE…, 2019), ex-presidente e docente nas faculdades de Estatística e de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o predomínio do sexo feminino em relação ao masculino no ENEM pode ser explicado pelo fato de os homens estarem mais excluídos do processo escolar. Essa desigualdade, isolando-se apenas a variável sexo, se inicia na educação infantil. Na educação brasileira, diz o pesquisador, 25% dos estudantes que ingressam no ensino fundamental sequer chegam ao ensino médio. Entre os que desistem, é notável que a maioria são meninos. As meninas, então, concluem o ensino médio em maior número (QUASE…, 2019). Essa análise encontra respaldo nos dados divulgados, em 2020, pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada pelo IBGE sobre evasão escolar no país (IBGE, 2020a). Segundo a pesquisa dos cerca de 50 milhões de jovens de 14 a 29 anos, 10,1 milhões, ou 20,2%, não completaram a educação básica por não frequentarem a escola ou por abandonarem o ensino. De fato, esse índice é maior entre os homens, 58,3%, se comparado às mulheres, 41,7%.
Nas subseções seguintes, as variáveis cor/raça e renda familiar ajudam a complexificar este debate.
Inclusão da variável cor/raça
No que diz respeito à variável cor/raça, foram consideradas para as análises as categorias adotadas pelo IBGE (branca, preta, parda, amarela, indígena e não declarada). Os dados consolidados a respeito dos estudantes mineiros concluintes do ensino médio que realizaram o ENEM 2019 estão dispostos na Tabela 3:
Dependência administrativa | Branca | Preta | Parda | Amarela | Indígena | Não declarada |
Estadual | 24.274 | 9.919 | 32.942 | 1.555 | 361 | 1.019 |
Estadual CTPM | 513 | 138 | 541 | 28 | 4 | 27 |
Municipal | 433 | 181 | 510 | 27 | 3 | 20 |
Federal | 2.573 | 540 | 2.010 | 74 | 13 | 173 |
Privada | 8.918 | 658 | 3.573 | 176 | 15 | 322 |
Total | 36.711 | 11.436 | 39.576 | 1.860 | 396 | 1.561 |
Fonte: Elaboração própria, 2021.
Na realização do ENEM 2019, os dados apresentados apontam para uma predominância de estudantes mineiros brancos em escolas federais e privadas. Nas escolas privadas, essa predominância é particularmente acentuada, fenômeno que ocorre de forma invertida ao serem observadas as escolas estaduais. Nas escolas federais, a predominância de estudantes brancos é menos acentuada, se observada isoladamente, chegando a ser praticamente equivalente à quantidade de estudantes pretos e pardos, se observados em conjunto.
Essas tendências permitem realizar algumas inferências sobre a distribuição socioeconômica dos estudantes analisados. A alta presença de estudantes brancos em escolas privadas e de estudantes pretos e pardos nas escolas estaduais, estaduais CTPM e municipais não apenas confirma como também reforça as clivagens derivadas dos critérios de raça e etnia. Em outras palavras, é possível inferir a pertinência do critério de raça e etnia na distribuição socioeconômica dos estudantes mineiros que realizaram o ENEM 2019, na medida em que o entrecruzamento dos dados aponta um cenário marcado pela desigualdade de renda e de acesso ao ensino entre estudantes pretos e pardos em relação a estudantes brancos.
Vale enfatizar que, neste trabalho, realizou-se um agrupamento das categorias amarela, indígena e não declarada, com a finalidade de verificar os percentuais correspondentes a cada categoria de maneira mais eficaz, como mostra a Figura 5. É importante lembrar que geralmente a categoria “negros”, para fins de políticas públicas, por exemplo, é a soma das categorias “pretos” e “pardos” conforme utilizadas e consolidadas pelo IBGE no Censo Demográfico.
Os dados dispostos permitem confirmar algumas das hipóteses lançadas anteriormente. Enquanto a porcentagem de estudantes pretos e pardos foi de 61,2% nas escolas estaduais, 54,2% nas escolas estaduais CTPM e 58,8% nas escolas municipais, o quadro é distinto nas federais e privadas. Nas federais, 47,3% dos estudantes inscritos são pretos e pardos, número que se torna ainda menor nas escolas particulares, nas quais 31% dos estudantes são pretos e pardos e 65,3% são brancos. Se agrupados amarelos, indígenas e não declarados, este grupo parece ter sofrido a menor variação dentre os demais. Vale destacar que, de acordo com o IBGE Cidades (IBGE, 2010), em 2010 havia, em Minas Gerais, 7.381.102 pessoas pardas, 1.629.079 pretas e 7.692.601 brancas, desta forma, havendo predominância da população negra residente no estado.
A alta presença de pessoas negras em escolas públicas segue a tendência apontada por alguns estudos. De acordo com a Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira (IBGE, 2020b), publicada em 2020 pelo IBGE, nota-se a presença de uma desigualdade entre as populações jovens preta, parda e branca. O relatório aponta que, em 2019, enquanto 17% dos jovens brancos não estudavam ou não estavam ocupados, esse índice se elevava para 25,3% para jovens pretos ou pardos.
Nos dados apresentados no documento também consta que, entre jovens de 18 a 24 anos, “um jovem de cor ou raça branca tem, aproximadamente, duas vezes mais chances de frequentar ou já ter concluído o ensino superior que um jovem de cor ou raça preta ou parda – 35,7% contra 18,9%” (IBGE, 2020b, p. 87). Esse cenário se reafirma quando observada a distribuição de estudantes por raça e gênero. Em 2019, a rede privada de ensino médio no Brasil era composta por cerca de 63,3% de estudantes brancos e 35,7% de estudantes pretos ou pardos. A rede pública de ensino, no entanto, tinha quadro invertido, em que 63,9% dos alunos eram pretos e pardos, ao passo que 35,3% eram brancos.
Ao observar a distribuição por raça e etnia de estudantes no ensino superior, no entanto, o relatório do IBGE indica que a “distribuição por cor ou raça dos estudantes das redes pública e privada é semelhante” (IBGE, 2020b, p. 95). De acordo com o estudo, ainda que exista a adoção de critérios raciais na legislação que colabora para a democratização do acesso ao ensino superior, sobretudo no que se refere às cotas, na rede pública federal, e ao Prouni, “o perfil do estudante de nível superior não reflete ainda a distribuição por cor ou raça da população jovem brasileira” (IBGE, 2020b, p. 95).
A aprovação no Brasil da Lei de Cotas – Lei nº 12.711/2012 (BRASIL, 2012) gerou a necessidade de estabelecer mecanismos suficientes para atingir as metas de inclusão universitária determinadas pela política educacional derivada da lei (SCALDINI, 2020). No entanto, ainda é notável uma permanência, quando não um agravamento, das desigualdades presentes entre estudantes negros e brancos. Alguns estudos (ANDRADE, 2017; CARVALHAES; FERES JÚNIOR; DAFLON, 2013) têm indicado mais dificuldades para a implementação da política de cotas para alunos pretos, pardos e indígenas (PPI) oriundos do ensino público do que para estudantes brancos oriundos do ensino público, em diferentes estados. Isso indica, por um lado, a pertinência dos critérios adotados pela Lei de Cotas no sentido de estabelecer medidas específicas que garantam a inserção de PPI no ensino superior. Por outro lado, esses dados apontam uma desigualdade de maior escala presente na população brasileira, baseada em critérios de raça e etnia. Essa desigualdade se faz particularmente presente na distribuição de estudantes mineiros inscritos no ENEM 2019, bem como nos dados produzidos pelo IBGE acerca da população jovem brasileira entre 18 e 24 anos. Essas informações permitem, em um primeiro plano, corroborar o argumento que tem sido desenvolvido ao longo desta pesquisa.
Variáveis renda familiar e escolaridade do pai e da mãe
A renda familiar, assim como o grau de escolaridade dos pais (analisada mais adiante), é parte dos indicadores que comumente são utilizados pelas principais pesquisas que buscam traçar o perfil socioeconômico de uma dada população. Almeida e Ernica ( 2015) indicam que a renda das famílias desempenha um papel importante na definição das chances de os estudantes ingressarem em universidades públicas.
Optou-se aqui por destacar essas duas variáveis voltadas às análises de desempenho educacional. Isso porque, dentre outros motivos, as diferentes condições materiais das famílias, bastante comuns em países onde imperam as desigualdades sociais, como o Brasil, tendem a definir processos de aprendizado desiguais e aproveitamentos educacionais distintos à medida que: i) impactam de maneira variada as horas que as crianças e os adolescentes podem se dedicar aos estudos; ii) diferenciam trajetórias de crianças que necessitam trabalhar para ajudar a complementar a renda e as que podem se dedicar exclusivamente aos estudos; iii) retardam o aprendizado das crianças e adolescentes que não possuem segurança alimentar se comparada às que possuem; e iv) direcionam, com raras exceções, os acessos às redes de ensinos (pública e privada) que geralmente possuem infraestrutura, graus de investimentos e valorização e capacitação de profissionais da educação desiguais.
Na Figura 6, apresenta-se a distribuição da renda familiar por dependência administrativa considerando cinco faixas salariais. Observa-se que, nas escolas estaduais comuns, as duas primeiras faixas salariais, que compreendem as rendas “menos de 1 salário mínimo” e “1 a 2 salários mínimos”, abrangem a maioria das famílias, 66,7% do total. Já nas instituições privadas, apenas 16,0% estão compreendidas nas mesmas faixas de renda familiar. Já nos colégios estaduais CTPM e nas escolas privadas, 48,2% e 50%, respectivamente, das famílias têm renda superior ou igual a cinco salários mínimos.
Nota-se que as escolas federais mineiras apresentam variações menos bruscas nas rendas familiares dos estudantes que fizeram o ENEM 2019 se comparadas com as instituições estaduais e privadas. Nestas, apesar de existirem mais alunos com renda familiar entre um e dois salários mínimos (27,6%) do que as instituições privadas e estaduais CTPM, há uma concentração considerável de alunos oriundos de famílias com rendimentos acima de três salários mínimos. No entanto, os colégios federais possuem um percentual de estudantes com renda familiar superior a cinco salários mínimos bem inferior às privadas e estaduais CTPM. Esse fato pode estar associado ao mecanismo de ingresso destas escolas, sendo que os colégios federais são únicos em que o acesso é, geralmente, através de processo seletivo. Apenas em alguns casos, admitem estudantes por sorteio, o que independe de variáveis que consideram questões materiais e qualidade de ensino anterior. Atualmente também é bastante comum que, em caso de existência de provas para admissão, haja sistema de cotas para alunos que estudaram em colégios públicos no ensino fundamental associado a critérios racial e de renda. Isso amplia o acesso de jovens oriundos de famílias com rendas familiares menores, cujos filhos realizaram o ensino fundamental da rede pública comum.
Associando-se o que foi apresentado na Figura 4, tem-se que, nas escolas privadas e federais, onde se concentram famílias com maiores rendas, a variação entre o número de alunos do sexo masculino e do feminino de inscritos no ENEM é bem menor. Nas escolas estaduais comuns, onde estão matriculados mais estudantes de baixa renda, o número de inscritos do sexo feminino é bem maior do que o de inscritos do sexo masculino, provavelmente porque muitos deles tiveram que continuar trabalhando e/ou não puderam sequer optar por dar segmento aos estudos tentando uma vaga nas universidades via ENEM. A necessidade de complementação da renda familiar é uma realidade bastante comum no cotidiano das famílias mais pobres e tende a interferir diretamente no rendimento escolar dos alunos (CASTRO, 2009; SANT’ANA; COSTA; GUZZO, 2008). Por outro lado, conforme citado por Torche e Costa-Ribeiro ( 2012), pais com bens materiais e melhores condições financeiras investem na educação dos filhos, proporcionando, por exemplo, a possibilidade de estudo em escolas privadas.
A variável escolaridade do pai e da mãe é mais um dos elementos extraescolares historicamente analisados do ponto de vista estatístico para estudar avaliações educacionais. Estes estudos argumentam, como já mencionado, que o desempenho dos estudantes deve ser contextualizado nas avaliações educacionais, como o ENEM, uma vez que as desigualdades sociais têm implicações diretas sobre a educação (BASSETTO, 2019; FRANCO; MENZES FILHO, 2012; JESUS; LAROS, 2004). Na Figura 7, é apresentado o grau de escolaridade dos pais dos estudantes por dependência administrativa.
As escolas estaduais comuns concentram o maior percentual de alunos cujos pais não estudaram ou que não sabiam a escolaridade do pai (11,6%), seguida das escolas municipais (9,5%). Nas demais dependências administrativas esse índice não chega a 5%. O principal grau de escolaridade dos pais de alunos matriculados nas estaduais comuns é o ensino fundamental incompleto (41%), um fenômeno exclusivo dessa dependência administrativa. Seguindo a lógica histórica de abandono escolar masculino no Brasil, um dos principais motivos para que meninos interrompam seus estudos é a necessidade de trabalhar ainda na infância. Isso tem impacto no tipo de ocupação conquistada por esses homens, geralmente de menor remuneração, que reverbera muitas vezes no baixo rendimento financeiro familiar.
Na maior parte das dependências administrativas, exceto a estadual comum, o de grau de escolaridade paterna com maior percentual é o ensino médio. Nota-se que essa concentração é extremamente maior nas escolas CTPM, provavelmente em razão de a maioria das vagas ser destinada a filhos de pais policiais, ocupação que demanda o ensino médio como escolaridade mínima.
As escolas privadas, os CTPM e as escolas federais concentram maior percentual de pais com ensino superior completo, 23,6%, 16% e 14,3%, respectivamente. Somente nas escolas privadas um percentual elevado de pais tem pós-graduação (20,6%). Nas demais dependências administrativas, o percentual de pais com escolaridade em nível de pós-graduação não chega a 10%. Nas escolas estaduais, onde mais de 55% dos pais estudaram até o ensino fundamental (completo ou incompleto), a porcentagem com pós-graduação é extremamente baixa (1,7%), assim como a de graduados (4,5%). Esses extremos da trajetória formativa (ensino fundamental e pós-graduação) escancaram as graves desigualdades no acesso ao ensino de pais de alunos matriculados nas redes pública e privada de Minas Gerais.
A análise do grau de escolaridade das mães de estudantes que fizeram o ENEM 2019 por dependência administrativa é apresentada na Figura 8.
Diferentemente dos dados referentes aos pais, conforme apresentado na Figura 7, em que havia maior variabilidade, no caso das mães, em todas as dependências administrativas de Minas Gerais, o nível de escolaridade mais frequente foi o ensino médio completo, sendo os colégios CTPM as instituições com maior percentual de mães com esse grau de escolaridade (44,8%). Esse dado segue a tendência brasileira na qual as mulheres estudam em média mais do que os homens e apresentam maior taxa de frequência escolar, segundo o boletim publicado pelo IBGE em 2018: Estatísticas de gênero: uma análise do censo demográfico 2010 (IBGE, 2014).
As escolas estaduais comuns, tal como ocorreu com os pais, concentram maior percentual de mães que não estudaram e que possuem fundamental incompleto, índices que somados chegam a 35,8%. Já as instituições que concentram as mães mais escolarizadas, com ensino superior completo, são as privadas, com 27,7% e, em seguida, basicamente com o mesmo índice, estão as federais (20%) e os CTPM (19,9%). Impressiona que a porcentagem de mães com pós-graduação nas escolas privadas (28,2%) seja ligeiramente maior que a de mães graduadas, enquanto nas estaduais comuns o percentual de graduadas não chega a 10%. Ainda que as mães apresentem maior escolaridade que os pais de modo geral (o que não é refletido no retorno salarial, menor que o masculino mesmo que elas estudem mais e atuem nos mesmos cargos), as diferenças de acesso das mães à escolaridade são enormes se comparada a rede privada com as demais.
Como afirmam alguns trabalhos que lançam mão de modelos estatísticos (BASSETTO, 2019; RIBEIRO; CENEVIVA; BRITO, 2019), tão importante quanto se atentar à escolaridade do pai, que exerce influência significativa na vida do filho, é analisar os dados associados à mãe, que são fundamentais, uma vez que em grande parte dos casos são elas que exercem papel determinante no desempenho escolar dos filhos.
Cabe dizer que a literatura que articula a escolaridade do pai e da mãe ao rendimento escolar e o desempenho em avaliações educacionais faz coro às pesquisas que têm apostado que grande parte das desigualdades entre os alunos tem origem nas famílias e no contexto social em que as escolas se inserem. Muitos desses estudos, mais recentes no Brasil (FERRÃO et al., 2001; GUERREIRO-CASANOVA; DANTAS; AZZI, 2011; SILVA et al., 2017) e já bastante antigos e tracionais no exterior (BOURDIEU, 2007; COLLEMAN et al., 1966), confirmam alguns pressupostos sobre como os conhecimentos prévios dos estudantes à entrada nas instituições escolares e o pertencimento socioeconômico são fortemente relacionados. Dessa forma, há relação positiva da proficiência ou o resultado dos estudantes com o nível socioeconômico deles. O que confirma o quanto o desempenho escolar e, posteriormente, acadêmico de alunos é muito influenciado por dinâmicas sociais, econômicas e culturais.
A renda econômica dos pais dos estudantes muitas vezes está relacionada ao nível escolar e ao acesso cultural deles. É muito comum que os recursos materiais familiares sejam revertidos como espécie de investimento na educação dos filhos, uma vez que pode estar em jogo a ideia de que um menor nível educacional proporcione a longo prazo um menor nível socioeconômico. Oliveira e Melo-Silva ( 2010) citam a força do capital cultural da família como influenciador de caminhos dos filhos e verificam que a escolaridade dos pais, o nível socioeconômico e a natureza do ensino cursado estão proporcionalmente relacionados ao sucesso no processo seletivo universitário e à escolha de carreira dos filhos.
Considerações finais
Neste trabalho foram analisados os resultados no ENEM 2019 de 91.540 alunos matriculados em escolas privadas, federais, estaduais, municipais e dos CTPM no estado de Minas Gerais, comparando-se algumas características que compõem o perfil socioeconômico declarado pelos estudantes.
Concluiu-se que o tipo de dependência administrativa é a variável de maior influência no resultado do ENEM e, entre as dependências administrativas escolares, os alunos das escolas estaduais comuns apresentaram as menores médias de notas em todas as áreas de conhecimento da prova, enquanto os alunos das escolas privadas mineiras apresentaram as maiores.
As variáveis analisadas sexo, cor/raça, renda familiar e escolaridade dos pais ajudaram a explicar ou, ao menos, a compor as variações de desempenho na comparação entre as instituições escolares.
Com a variável sexo foi demonstrado o predomínio feminino entre as pessoas que fizeram o ENEM. Esse fenômeno não é exclusivamente mineiro, já que, no Brasil, os homens estão mais excluídos do processo escolar de modo geral.
Sobre a cor/raça, foi encontrada alta presença de estudantes brancos em escolas privadas e de estudantes pretos e pardos em escolas estaduais e estaduais CTPM. É possível deduzir a pertinência do critério de raça e etnia na distribuição socioeconômica dos estudantes mineiros que realizaram o ENEM 2019, na medida em que o entrecruzamento dos dados demonstra um cenário marcado pela desigualdade de renda e de acesso ao ensino de estudantes pretos e pardos em relação a estudantes brancos.
Notou-se, ainda, maior concentração de renda e maior grau de instrução nas escolas privadas, bastante distantes da renda e do grau de escolaridade dos pais e das mães de filhos matriculados nas escolas estaduais comuns e municipais.
De certo, o nível socioeconômico de um jovem estudante não definirá o futuro dele de modo determinante – a ferro e fogo –, pois há algum nível de resultado que pode advir do esforço individual.
Neste contexto de intensos desafios, a avaliação educacional realizada a partir da estatística descritiva caracteriza-se como ferramenta útil e que já vem sendo consolidada. Assim, acredita-se que os resultados desta pesquisa podem contribuir para a temática relacionada ao desempenho educacional e ao contexto escolar mineiro, à medida que fornece informações gerenciais que podem ser manejadas por gestores públicos e demais pesquisadores.