Introdução
Questões relacionadas à diversidade cultural são hoje um tema fundamental no campo da educação. Esse debate mobiliza diferentes posicionamentos e projetos filosóficos, éticos, políticos e pedagógicos. Do ponto de vista normativo, a pluralidade cultural começou a ganhar espaço na educação brasileira na LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ( BRASIL, 1996 ). No ano seguinte, o assunto surgiu como tema transversal nos Parâmetros Curriculares Nacionais ( BRASIL, 1997 ) e suscitou controvérsias acerca de sua concepção e implementação. No início dos anos 2000, houve um avanço importante com o sancionamento da Lei 10.639/03 ( BRASIL, 2008 ), que definiu a obrigatoriedade da inclusão da “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo da rede de ensino público e particular no Brasil. Cinco anos depois, a Lei 11.645 ( BRASIL, 2008 ) incluiu as histórias e culturas indígenas. Essa atualização abriu a possibilidade de se desconstruir, por meio da educação escolar, imagens estereotipadas sobre os povos indígenas instaladas no imaginário nacional brasileiro, edificadas ao longo de séculos por narrativas populares e eruditas acerca do “índio” (RAMOS, 2011). O Parecer CNE/CEB 14/2015 ( BRASIL, 2015 ), elaborado pela intelectual Rita Gomes do Nascimento, do povo Potiguara, publicado em 2016, trouxe diretrizes operacionais para a implementação da “temática indígena” na educação básica.
Estes documentos são importantes no combate ao preconceito e à discriminação no país, e trazem novos horizontes e desafios para a educação. Representam avanço ao estabelecerem termos indutores de novos rumos a partir de referências, princípios e fundamentos para ações em diferentes níveis e modalidades educacionais. Contudo, a implementação dessas normativas ainda é ignorada por muitas instituições de ensino, inclusive superiores, que perpetuam lacunas no currículo obrigatório das licenciaturas pelo país. Na educação básica, em muitos casos, a implementação é fruto do engajamento pessoal de gestores e professores e há muito a ser feito entre o aparato legal e o cotidiano escolar.
Neste artigo apresentamos reflexões sobre um exercício de implementação da Lei 11.645 ( BRASIL, 2008 ) com temática indígena em uma escola pública do Distrito Federal. A experiência sobre a qual nos debruçamos foi realizada em 2019, no ensino fundamental II. Trata-se de uma pesquisa-ação que teve como objetivo compreender as percepções de professores e estudantes sobre a temática indígena, ao passo que colocamos em curso um conjunto de práticas pedagógicas nomeada de ciclos interculturais, balizados pelas diretrizes do Parecer CNE/CEB 14/2015 ( BRASIL, 2015 ).
Nesta iniciativa buscamos superar a crença na eficácia do simples repasse de informações e conteúdos relacionados às histórias e culturas afro-brasileiras e indígenas, no sentido cognitivo funcional, como caminho para transformar relações marcadas pelo racismo e preconceitos baseados em estereótipos culturais ( FLOR DO NASCIMENTO, 2019 ). Entendemos ser decisivo constituir outra relação com esses povos e conhecimentos no contexto escolar e acreditamos que essa outra relação implica a presença indígena na escola, conhecimento especializado e disposição institucional.
Segundo Ailton Krenak (1999) , o reconhecimento das diferenças como próprias da natureza de cada cultura e o desenvolvimento de novas formas de relação entre culturas é uma questão de educação. Aderimos ao seu convite à compreensão do contato entre a sociedade brasileira e os povos indígenas por meio de um esforço de ampliação de ambientes da nossa cultura contemporânea, sem atrelar esses povos ao passado e sem ignorar os conflitos históricos e atuais, promovendo novos tipos de encontros interculturais por meio da relação educativa.
Interculturalidade na educação
Nossa concepção das práticas pedagógicas que deram forma aos ciclos interculturais situa-se a partir da discussão sobre as relações entre culturas na educação. Esse debate é estruturado em diferentes sentidos teóricos, políticos e pedagógicos de termos como multiculturalismo, interculturalidade e diálogo intercultural. Esses conceitos têm fornecido molduras teóricas para refletir sobre um ambiente amplo de questões, como a constituição de Estados nacionais e estruturação de políticas públicas. Aqui esboçamos sinteticamente como esses conceitos vêm sendo elaborados para refletir sobre a educação escolar.
A polissemia do termo multiculturalismo abriga muitos modelos e tipologias ( GONÇALVES; SILVA, 2003 ; CANDAU 2008 ; PALADINO; ALMEIDA, 2012 ; NASCIMENTO, 2014 ). Para Hall (2003) , todas as sociedades, em diferentes tempos históricos e localizações geográficas, foram e são multiculturais. “Multicultural” é um termo qualificador, usado para descrever diferentes tipos de sociedades nas quais diferentes comunidades culturais convivem e buscam construir uma vida em comum. Essa condição multicultural possibilitou a emergência do multiculturalismo como termo para caracterizar processos, demandas políticas e modelos de gestão da diversidade cultural nas sociedades multiculturais modernas. Esses termos são interdependentes, logo, assim como há distintas sociedades multiculturais, também há multiculturalismos diversos.
Embora seja impossível datar ou identificar uma única razão para a emergência do multiculturalismo, parece ser consenso na literatura que esse fenômeno, como movimento político, tem origem na década de 1960, com as lutas do movimento negro norte-americano por direitos civis e oportunidades no contexto estadunidense. Nos anos 1970, a questão multicultural tornou-se fonte de preocupação no continente europeu em virtude da intensificação da presença de imigrantes e outras minorias étnicas em seus territórios, como os ciganos. Dentre a variedade de adjetivações do multiculturalismo, Candau (2008) identifica três abordagens fundamentais. A primeira é assimilacionista, que opera uma perspectiva prescritiva de que todos se integrem à sociedade e sejam incorporados à cultura hegemônica, sem que se mexa na matriz da sociedade. No domínio da educação é a universalização do acesso à escola, sem questionamento de seu caráter monocultural e homogeneizador. A segunda é a diferencialista, que enfatiza o reconhecimento das diferenças e a afirmação das identidades culturais. Segundo a autora, algumas vertentes nessa linha tendem a uma visão estática e essencialista das identidades culturais, privilegiando a formação de comunidades homogêneas e mais fechadas. A terceira perspectiva é o multiculturalismo aberto e interativo, com ênfase na interculturalidade.
A perspectiva da interculturalidade está em consonância com a maneira como o debate multicultural é feito no contexto latino-americano. Nessa região, o conceito surge no âmbito de programas de educação bilíngue destinados a povos indígenas ( TUBINO, 2005 ). No sentido básico, pode-se compreender a interculturalidade como inter-relação entre pessoas, saberes, valores e tradições culturalmente diferentes. Há uma segunda perspectiva denominada ainda pelo filósofo peruano Fidel Tubino (2005) , como “funcional”, que busca promover o diálogo e a tolerância, mas sem questionar as assimetrias sociais e culturais.
Alguns autores apresentam uma abordagem mais complexa da interculturalidade, argumentando em favor de uma postura crítica, como uma política epistêmica que visa localizar o monoculturalismo eurocêntrico vigente na educação. Essa perspectiva propõe confrontar esse padrão com uma pedagogia decolonial ( WALSH, 2009 ; OLIVEIRA; CANDAU, 2010 ), compreendida como práxis que abre caminhos para conversas e solidariedades diferentes. Nesse horizonte, a “educação intercultural” é compreendida como uma educação que parte da diferença como riqueza e que “promove processos sistemáticos de diálogo entre diversos sujeitos – individuais e coletivos –, saberes e práticas na perspectiva da afirmação da justiça – social, econômica, cognitiva e cultural” ( CANDAU, 2016 , p. 808). Isso não significa uma prática pedagógica ingênua em busca de harmonia ou pacificação de conflitos, mas uma prática de diálogo e negociação entre culturas ( TUBINO, 2002 ). Logo, como observam Paladino e Almeida (2012) , a educação intercultural não deve ter como destinatários apenas as populações indígenas ou outras minorias do país, mas deve ser endereçada ao conjunto da população nacional.
Ao esboçar sinteticamente esse debate, observamos que as diferenças entre multiculturalismo e interculturalidade não são apenas de ordem conceitual ou descritiva, mas de ordem sociopolítica ( TUBINO, 2005 ; NASCIMENTO 2014 ). As políticas multiculturais são inspiradas no ideal da tolerância e nos princípios da igualdade e da diferença típicos do liberalismo político. Não promovem cultura política pública e, paradoxalmente, fortalecem estereótipos negativos entre os diferentes. A interculturalidade, por outro lado, surge como resposta ético-política ao processo homogeneizador fracassado dos Estados Nacionais modernos na América Latina. No campo educacional, o modelo multicultural emergiu das tentativas de atender às demandas por reconhecimento das diferenças culturais e limitou-se a abordagens que reconhecem, enfatizam e enaltecem a diversidade como um dado, deixando de considerar a interação entre culturas como um enfoque valioso para transformar horizontes de compreensão dessas diferenças. Por outro lado, o modelo de educação intercultural enfatiza as relações entre os diferentes, surge como forma de promover relações entre pessoas considerando as condições sociais, econômicas e educativas dessas relações.
No cenário brasileiro, como destacam intelectuais negros e indígenas (GONZALEZ, 1980; KRENAK, 1999 ; MUNANGA, 2003 ; LUCIANO, 2016 ), a nossa formação histórica é marcada pela violência e se constituiu por meio de genocídios, etnocídios e epistemicídios (CARNEIRO, 2005). Estes pensadores também demonstram como seus movimentos políticos ressignificaram categorias como “raça” e “etnia” para dar sentido a suas próprias existências, desenvolvendo lutas por direitos, pelo reconhecimento de suas culturas e suas contribuições à sociedade brasileira. Como argumenta o escritor Daniel Munduruku (2012) , as lutas do movimento indígena são, elas mesmas, de caráter educativo para si próprios e para toda sociedade nacional.
Essas leituras nos levam a pensar a interculturalidade como prática pedagógica desestabilizadora da colonialidade do saber na educação. Nessa linha, percebemos a Lei 11.645 ( BRASIL, 2008 ) como possibilidade para um movimento transformador da educação escolar, ao abrir caminhos para confrontarmos o campo curricular convencional e redesenhar o mapa cognitivo estruturado essencialmente pela episteme moderna ( GOMES, 2012 ). Trata-se de uma oportunidade para transformar o próprio caráter monocultural da escola. Na prática, significa estabelecer conexões entre escola, comunidades e movimentos sociais contracolonialistas ( SANTOS, 2015 ). Inspirados nessa proposta da interculturalidade crítica, desenhamos práticas pedagógicas em atos de confrontação das representações e experiências concretas de relação entre estudantes e os universos indígenas sobre as quais refletimos neste texto.
Percurso metodológico
A experiência foi desenvolvida em uma escola pública do Paranoá, região administrativa do Distrito Federal (DF), onde vivem aproximadamente 65 mil habitantes, a 28 km de Brasília. Segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) realizada pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (DISTRITO FEDERAL, 2018), 53,2% dos moradores se autodeclaram pardos, 30,2% brancos, 14% pretos e 2,3 amarelos. Entre os habitantes com 25 anos ou mais, 33,8% declararam ter o ensino médio completo e apenas 9,9% possuem o ensino superior.2 Escolhemos esta instituição por identificar na sua localização, na disposição institucional da direção e na abertura de professoras/es para o diálogo, a oportunidade para a realização de uma experiência pedagógica fundamentada na Lei 11.645 ( BRASIL, 2008 ).
A pesquisa foi delineada como uma pesquisa-ação ( THIOLLENT, 1986 ). Esse tipo de abordagem pressupõe a articulação entre produção de conhecimento e intervenção em uma determinada realidade visando contribuir para uma questão, mas deve ir além, propiciando uma relação de aprendizado mútuo ( PALAVIZINI, 2012 ). Seguindo os princípios dessa metodologia, assumimos uma postura cooperativa na relação com a direção da escola, docentes, intelectuais e comunidades indígenas, e com os próprios estudantes, realizando a pesquisa por meio da execução de um conjunto de “práticas pedagógicas interculturais”.
A experiência foi realizada em 2019, dividida em dois ciclos de atividades, e envolveu três turmas do 6º ano do ensino fundamental II, no contexto da disciplina de artes. O primeiro aconteceu no segundo bimestre escolar, em duas turmas com cerca de 30 estudantes cada. O segundo foi realizado no quarto bimestre escolar, em uma turma composta por 33 participantes. Propusemos atividades com a intenção de permitir às turmas reconhecerem ao menos dois aspectos: a diversidade cultural dos povos indígenas no país e o caráter dinâmico dessas culturas, com ênfase na presença indígena no DF.
No início e no final do segundo ciclo realizamos entrevistas semiestruturadas com estudantes, no primeiro momento sobre seus conhecimentos prévios sobre os povos indígenas e, no segundo momento, quanto às atividades vivenciadas. Entrevistamos 11 estudantes antes, e, destes, 6 ao término do ciclo.3 A dinâmica de entrevistas gravadas tem limitações de participação e observamos que uma parte dos estudantes entrevistados no início do ciclo não se interessaram em participar da entrevista ao final. Esta flutuação tem muitos fatores, desde o desinteresse até a timidez diante da câmera. Com as entrevistas, nos interessava situar as representações acerca dos povos indígenas nas falas estudantis a partir de diferentes fontes: escola, mídia e outros ambientes sociais. Entrevistamos também os dois professores responsáveis pelas turmas ao término do ciclo de cada bimestre, para identificar desafios didáticos com a temática indígena.4
A análise dos dados seguiu as orientações de Bardin (2011) , em um percurso da pré-análise dos registros produzidos, seguida pela codificação e categorização do material e, finalmente, a interpretação dos resultados obtidos. A seguir, apresentamos uma descrição interpretativa dos ciclos de atividades para realçar alguns aspectos significativos da ação pedagógica.
Ciclos interculturais
Embora exista um debate teórico sobre tipos de interculturalidade, a prática pedagógica intercultural é uma tarefa complexa e desafiadora ( CANDAU, 2008 ). Procuramos desenvolver práticas pedagógicas que propiciassem, em um primeiro passo, o reconhecimento da diversidade cultural dos povos indígenas. No primeiro ciclo nosso objetivo foi mapear as representações acerca dos povos indígenas e oferecer elementos para romper o imaginário negativo existente sobre suas culturas e modos de vida. Como ensina Munduruku (2019), se apresentarmos referências positivas sobre essas culturas, especialmente nessa fase do ensino fundamental, os estudantes podem crescer com outras imagens dessa diversidade.
Na primeira atividade realizada convidamos os estudantes a apresentarem suas ideias sobre os povos indígenas e as escrevemos no quadro escolar. Em seguida instigamos os estudantes a expandir suas colocações, sem juízo de valor ou reparação de suas falas, para garantir a livre expressão de pensamento.
Nas duas turmas o léxico e o conteúdo das mensagens emitidas pelos estudantes confirmaram a força do imaginário negativo. Ouvimos mensagens como: os “índios são selvagens como animais e moram na floresta, não usam roupa, usam tanga/são cachaceiros. Em contraponto, que são responsáveis pela proteção da natureza/possuem uma cultura diferente, suas próprias tecnologias de construção de ocas e caça”. Em alguns momentos ocorreu uma banalização, gerando brincadeiras na sala de aula sobre o tema. Também notamos que muitos estudantes não sabiam dizer nada sobre povos indígenas. Quando perguntamos: “os indígenas são brasileiros?” Ocorreu um consenso negativo. Instigamos outras perguntas: “você já viu pessoalmente alguma pessoa indígena?” ou “já ouviu alguém próximo falar sobre os indígenas? Já viu algo na escola ou na televisão, nas redes sociais?” Mesmo assim, o silêncio, aparentemente reflexivo, tomou conta.
Na segunda atividade assistimos a dois vídeos: Abuela Grillo e Os indígenas – Raízes do Brasil. Abuela Grillo é um desenho curta-metragem que retrata o povo Ayoreo da Bolívia, mostra a relação da Abuela com a água e o conflito gerado por interesses capitalistas em tornar esse ente sagrado para aquele povo em uma mercadoria. A outra produção mostra a diversidade de povos indígenas no Brasil e a violência contra eles desde a colonização. Ainda que o segundo vídeo esteja relativamente desatualizado, retrata aspectos relevantes sobre a diversidade étnica e linguística indígena. Além disso, esse vídeo é um recurso didático relevante, pois traz elementos das relações de poder intrínsecas às relações interculturais.
Na sequência conversamos sobre a chuva de ideias inicial e os vídeos. Pesquisamos juntos no dicionário o significado das palavras “tribo” e “selvagem”; a partir disso discutimos o sentido desses termos quando são utilizados para se referirem a formas de organização social como inferiores, atrasadas e primitivas. No final do ciclo cada estudante escreveu em uma folha o que foi dito na chuva de ideias que representava pré-conceitos ( Figura 1 ) e, do outro lado da folha, escreveu seus aprendizados ( Figura 2 ).
O interessante nesse exercício não é a transição entre pré-conceitos e aprendizados. O percurso didático revelou imagens estereotipadas sobre as culturas indígenas, todavia, abriu espaço para elaborações das próprias identidades culturais dos estudantes no plano pessoal. Refletir sobre as culturas indígenas suscita elaborações sobre temas como ancestralidade, pertencimento, memórias e histórias das nossas próprias origens. Munduruku (2009) indica incentivar estudantes a buscarem sua ancestralidade como caminho pedagógico. Nesse percurso, segundo o escritor, “nossa responsabilidade cresce e o respeito à história do outro também” ( MUNDURUKU, 2009 , p. 18).
Esse é outro aspecto pedagógico da educação intercultural crítica ( CANDAU, 2008 ). Como um pêndulo, na medida em que promovemos a identificação de representações dos “outros”, propiciamos a desnaturalização das imagens de um “nós” mesmos ( TUBINO, 2002 ). Observamos isso acontecer. Ouvimos manifestações sobre experiências de injustiças. O exercício instigou debates sobre assuntos vivenciados no cotidiano, como o machismo e o racismo. Exposta aos preconceitos vividos pelos indígenas, uma estudante relatou sofrer preconceitos semelhantes por ser negra.
Diante da resposta discente às atividades, nos propusemos a ampliar a iniciativa com a continuidade do projeto na escola e montamos o 2° ciclo.
O novo ciclo foi expandido para seis atividades. Cada ação pedagógica teve duração de 1 hora e 30 minutos, com exceção da atividade final, que durou 3 horas 30 minutos. Nesse ciclo o objetivo foi apresentar aos participantes a diversidade cultural dos povos indígenas e o caráter dinâmico dessas culturas com ênfase na presença indígena no DF. Na primeira aula repetimos a “chuva de ideias” em que cada estudante contribuiu com uma palavra referente aos povos indígenas. A partir disso formamos a nuvem de palavras, como mostra a figura 3:
Na segunda atividade assistimos ao vídeo Índios no Brasil da TV Escola. Esse material impulsionou uma roda de conversa sobre os aspectos históricos e sociais da chegada dos portugueses no Brasil e, também, sobre os conceitos de cultura, etnia e tribo, a partir de autores negros e indígenas. Por fim, sugerimos como atividade de casa uma pesquisa individual sobre alguma etnia específica. Solicitamos também a cada estudante escolher três curiosidades e dúvidas sobre povos indígenas a serem apresentadas na aula seguinte.
Na quarta atividade a turma fez apresentações das suas questões sobre os povos indígenas pesquisados. A partir desse conteúdo construímos um mural nomeado “Desconstruindo o Pensamento”. As perguntas e curiosidades levantadas foram: 1) Os indígenas usam energia elétrica? 2) Existem indígenas que não têm contato com o branco? 3) Os povos indígenas contribuem para a preservação da natureza? 4) Na Índia o indígena é chamado de índio? 5) Se um indígena mexer no celular ou dirigir um carro ele deixa de ser indígena? 6) Quanto do território brasileiro está destinado para os indígenas? 7) Como os indígenas recebem dinheiro? 8) O que é FUNAI? 9) Os indígenas recebem dinheiro da FUNAI? 10) A língua dos indígenas é tupi? 11) Por que a etnia é importante? 12) Por que são vários grupos (etnias)?
Segundo Tubino (2002) , o princípio de reconhecimento do outro e o diálogo são componentes fundamentais da interculturalidade de fato. Todavia, como alerta Nascimento (2014) , conceber a interculturalidade como dialogicidade entre culturas pode nos reconduzir à essencialização da cultura. Segundo Ansion (2007 apudNASCIMENTO, 2014 ), um caminho para evitar esse erro seria definir a interculturalidade como encontro entre pessoas que compartilham culturas diferentes. Aqui entra uma questão central no debate sobre interculturalidade: definir o que entendemos por cultura. A reificação do conceito de cultura como totalidade abstrata e a-histórica, a delimitação de padrões culturais rígidos e fechados, suposições de autenticidade e pureza cultural são concepções teóricas e do senso comum já bastante criticadas em diferentes campos do conhecimento. Do ponto de vista pedagógico, uma característica da perspectiva intercultural proposta por Candau (2008) é a ruptura com ideias desse tipo, pois a concepção de cultura como uma unidade homogênea de valores, crenças e estilo de vida nos leva a encerrar a alteridade na diferença. Essa autora trabalha em favor de uma concepção das culturas como processo dinâmico e contínuo de elaboração, que são parte da produção humana de significados e não um modelo fixador e determinante das identidades, ações e visões de mundo das pessoas.
Considerando o diálogo entre pessoas como base da dinâmica educativa intercultural, no quinto momento promovemos o encontro da turma com uma liderança do povo Guarani e doutorando em antropologia pela Universidade de Brasília. O intelectual indígena começou se apresentando e falou sobre sua história pessoal e sobre as relações do seu povo com a sociedade não indígena. Em seguida os estudantes apresentaram as perguntas que haviam preparado. À medida em que o convidado respondia às perguntas, observamos o confronto entre as imagens estereotipadas do “índio genérico” e a presença indígena em sala de aula. As perguntas dos estudantes foram pontos de partida para que o convidado desenvolvesse algumas dimensões das culturas indígenas. Ele aproveitou a questão sobre eletricidade para contextualizar diferentes realidades indígenas no Brasil e lembrou que nem todos os povos usam ou têm acesso a energia elétrica. O tema também suscitou uma conversa sobre como a construção de hidrelétricas afetam a vida de muitos povos. Ao falar sobre a relação dos povos indígenas com a natureza, nosso convidado destacou o papel dos territórios indígenas para a conservação ambiental. Ele também falou sobre como diferentes povos cultivam alimentos em um modelo diferente da agricultura hegemônica, e como a relação com a comida é importante para a saúde.
Numa via de mão dupla, a fala do intelectual indígena retornava as questões para o modo de vida dos estudantes, que repercutiam seus hábitos alimentares, dependência de eletrônicos, manejo incorreto de resíduos em suas casas e na própria escola. A professora regente ficou surpresa com a participação da turma. Segundo ela, ainda não tinha visto os estudantes tão envolvidos em um tema/aula.
A última atividade foi a visita ao Santuário dos Pajés, um território indígena situado no enclave de uma das áreas mais valorizadas de Brasília onde vive uma coletividade pluriétnica. Uma das nossas preocupações ao organizar esse encontro era evitar um passeio turístico exotizante do modo de vida dos anfitriões. As expectativas eram muitas, desde a entrada no ônibus estudantes perguntavam se o território estava perto da escola, se lá tinha animais, se os indígenas sabiam falar português. Nós fizemos o trato de que tirassem suas dúvidas a partir da experiência. Ao desembarcarmos no setor realizamos uma pequena caminhada pela estrada de chão até a comunidade. A turma estava muito animada, alguns estudantes corriam para chegar mais rápido. Fomos recebidos por duas lideranças Fulni-ô. Eles contaram a história de resistência que vivenciavam para manter o território indígena, apresentaram um pouco de sua língua, suas pinturas, suas crenças, conhecimentos, rituais e destacaram aspectos do Cerrado. Enquanto conheciam o espaço físico, incluindo a casa de rituais, os estudantes interagiam em um jogo de perguntas e respostas com os anfitriões. Ao final da visita, notamos o encantamento da turma com esse encontro intercultural.
Nas próximas seções analisaremos os resultados das entrevistas realizadas com estudantes e professores neste processo.
Percepções discentes: estranhamentos, identificações
Nas entrevistas que precederam as atividades o objetivo foi situar percepções e conhecimentos prévios sobre os povos indígenas a partir de algumas perguntas norteadoras como: 1) O que você sabe sobre os povos indígenas? 2) Você conhece alguma pessoa indígena? 3) Fale de suas experiências sobre o Dia do Índio na escola. 4) Já notou informações sobre os povos indígenas em redes sociais, televisão e em seus espaços familiares? O que pensa sobre?
Todos afirmaram nunca terem tido contato direto com alguma pessoa indígena e poucos sabiam da presença indígena no DF. João, por exemplo, resgatou a experiência de uma viagem de sua irmã ao continente africano:
[...] eles fazem muita arte, como prato de terra, né? E às vezes, eles vão ter que caçar para comer, eles moram na floresta . [...] eles são muito pobres, moram em cabana de palha. Quando nascem os bebês, eles têm que cuidar porque a mãe abandona [...] realmente na época, os índios andavam pelados, só que agora é proibido né?”
Lucas se reconhece com fenótipo indígena e afirmou: “todo mundo fala que eu sou índio, [...] quando as pessoas me chamam eu faço é gostar, então pra mim é maravilhoso!” [...] tem vários índios que moram aqui”.
Já Marina disse: “Para mim eles são um pouco diferentes da gente. Eles são mais à vontade nos lugares, sabe. E acho que a gente da cidade não é não”. Para Aline “as roupas deles não são iguais às nossas”. Vitor, por outro lado, identificou os indígenas como “[...] povos lutadores, que viveram aqui no Brasil há séculos”. Davi contou que viu algo na televisão sobre Raoni Metuktire, líder Kayapó: “Não conheço muito sobre esse índio, mas sei que já foi visitar muita gente importante, o papa”. Esse estudante também acrescentou: “Tem muita gente que julga as pessoas pela classe social, pela cor da pele e isso eu acho que é pelo passado que a maioria dos escravos eram negros, né?”.
Sobre o ambiente escolar, ouvimos os seguintes enunciados: “Meu professor mesmo me ensinou não falar índios, falar indígenas. [...] Falar indígenas porque índios é uma palavra muito forte que não agrada eles”. Sobre o “Dia do Índio”: “a gente pintava o rosto, a gente fazia nossas próprias pulseirinhas, a gente fazia o nosso cocar”; “Colocava a gente como índio, pintava a gente como índio”; “a gente fazia algumas flechinhas, algumas apresentações e só”;“A gente pintou e vestiu umas vestimentas de índio do passado”.
As entrevistas iniciais mostraram que esses estudantes também absorveram imagens estereotipadas acerca das culturas indígenas, marcadas pela exotização. O comentário do estudante João é particularmente interessante, pois evoca a viagem da irmã ao continente africano quando ele traça paralelo entre sociedades daquela região e as sociedades nativas do Brasil sobre as quais estávamos estudando, a partir da palavra “indígena” como unidade de contexto. Com efeito, o paralelo guarda sentido, uma vez que, etimologicamente, o termo “indígena” compreende significados como “natural do lugar que habita”, “nativo de um território”, “autóctone”. Exemplo disso é que, em contextos internacionais, como eventos e ações do sistema ONU, o termo indígena engloba populações nativas de todos os continentes do mundo, como é o caso do Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas que tem representantes permanentes de povos africanos.
A frequência de algumas referências ressoa imagens do imaginário brasileiro sobre o “índio genérico” de que nos fala Ramos (2011), ao refletir sobre o indigenismo no país, reproduzido no ambiente escolar. Imagens reforçadas desde os anos iniciais de escolarização por práticas pedagógicas equivocadas, mas ainda bastante comuns nas escolas do país. Para mudar essa realidade, Raquel Rodrigues Kubeo (2021) , mestre em Educação pertencente ao povo indígena Kubeo, argumenta que é urgente conceber projetos pedagógicos que desconstruam a data estereotipada no calendário escolar, considerando o trabalho sobre as culturas indígenas nas escolas durante todo o ano letivo. Por outro lado, um resultado relevante dessa abordagem foi perceber que há outras concepções, de identificação pessoal positiva, de conhecimento apreendido sobre alguns aspectos da história do Brasil, além de cuidados terminológicos que refletem reconhecimento e respeito pelo outro nas mensagens emitidas por alguns entrevistados.
No final do percurso realizamos novas entrevistas com a finalidade de captar o que eles consideraram significativo durante as atividades realizadas. Vários destacaram o encontro com o líder indígena. Davi disse que cada etnia: “[...]tem suas diferenças. Muita gente fala que quando tem carro, celular, como o professor indígena diz, deixa de ter sua cultura. Mas os indígenas têm uma cultura, comidas típicas, jeito diferente de tratar as doenças”. Já Beatriz comentou: “interessante a cultura dele, do povo guarani, o tipo de rituais, a passagem de criança para adultos. E é interessante a forma que ele conversava com a gente, a forma que ele se comunicava”.
Os desafios vividos pela comunidade do Santuário dos Pajés também foram lembrados. Durante a nossa visita, os líderes Fulni-ô revelaram as ameaças diante do crescimento de condomínios de luxo em torno do território. E Beatriz observou:
Lá eles sabem preservar mais, a gente não, a gente só quer construir prédios onde eles vivem. A gente está tirando o lar deles, cada vez que a gente decide construir um prédio a gente está tirando onde eles moram. E tomando tudo pra gente, porque achamos que somos donos de tudo e que eles não, são selvagens”.
O tema das semelhanças/diferenças ficou presente em diversas mensagens. Marina observou que os indígenas são: “um pouco diferentes da gente, eles fazem coisas que não fazemos, por exemplo, eles pintam o corpo e a gente não”. E completou que devemos respeitar os indígenas “porque eles são iguais a gente, só mudam algumas coisas que eles fazem e a gente não”. Já Mayara pontuou: “Eu aprendi que a gente não deve fazer preconceito com os indígenas, porque eles são iguais a gente só que o que muda é só a cultura, a religião e o jeito deles serem”.
Antes, os estudantes descreviam as culturas indígenas em uma perspectiva marcadamente etnocêntrica. Como nos ensina Rocha (1984) , no plano intelectual, o etnocentrismo revela uma dificuldade de pensar a diferença, já no plano afetivo indica sentimentos de estranheza, medo e até mesmo hostilidade. Trata-se de um fenômeno arraigado e presente na história de todas as sociedades. Reconhecer o etnocentrismo nos coloca em posição de tentar compreender os mecanismos, formas e caminhos pelos quais representações distorcidas da alteridade são perpetuadas, especialmente no domínio da educação.
Nos parece que o percurso feito do mapeamento de representações, passando pela pesquisa e sistematização de dúvidas e curiosidades até o encontro em sala de aula e a visita, ampliou o léxico dos estudantes em relação às diferenças e às características comuns entre seus universos e os daqueles com quem entraram em diálogo, rompendo uma lógica maniqueísta de oposição cultural. O conteúdo dos discursos também foi ampliado e concepções plurais acerca das culturas, línguas, conhecimentos e realidades passaram a estar mais frequentes nas falas.
A visita à comunidade indígena fez Beatriz relembrar seu bisavô, quilombola do povo do Quilombo Mesquita, situado na Cidade Ocidental – GO, no entorno do DF. Para ela os quilombolas e indígenas:
[...] são parecidos porque muita gente julga os indígenas e negros por acharem que não são da mesma espécie ou raça que a gente. Mas eles são humanos. Isso foi culpa dos portugueses que chegaram no Brasil e acharam que aqui era a Índia.
muita gente da escola, espalhada pelo Brasil inteiro, pelo mundo inteiro é indígena e tem ancestralidade indígena, de negros e de quilombolas. É bom a gente conhecer nossos antepassados para entendermos nossa origem.
Temos que dar valor a nossa cultura, a nossa ancestralidade, ao meio ambiente e não julgar as pessoas pela cultura, cor da pele e religião”.
Esses relatos ressoam um aspecto relevante da perspectiva intercultural na educação destacada anteriormente, sua natureza pendular, que propicia olhar para o outro e olhar para nós mesmos. Historicamente na América Latina, e no Brasil em particular, as discussões e propostas de educação intercultural foram construídas no domínio da educação escolar indígena, tendo essas populações como destinatárias. Entretanto, se a interculturalidade deve ser compreendida como um processo de transformação das estruturas hierárquicas vigentes na nossa sociedade e na educação, a educação intercultural não deve ter como destinatários apenas os povos indígenas ou outras minorias, mas alcançar a população de todo o país ( PALADINO; ALMEIDA, 2012 ).
A riqueza de abordar a temática indígena mostra que uma oportunidade de encontro intercultural pode produzir novas sensibilidades para as relações humanas e para outras perspectivas de mundo. Candau (2008) já chamava atenção para a importância de concebermos práticas pedagógicas que estabeleçam relações entre cotidiano escolar e cultura(s), transformando a escola em um espaço de cruzamento de culturas, formação de novas identidades e mentalidades no mundo multicultural contemporâneo.
Percepções docentes: formação, recursos pedagógicos, iniciativas pessoais
Também entrevistamos os dois docentes responsáveis pelas turmas, com o objetivo de identificar: 1) desafios e possibilidades para construção de atividades pedagógicas sobre a temática indígena; 2) o que motiva o interesse pela temática; 3) as experiências durante o ciclo de atividades; 4) o Projeto Político Pedagógico (PPP) em relação à temática.
O professor regente do primeiro ciclo destaca alguns pontos:
O Projeto Disciplinar (PD) da escola não trabalha com essas questões. É importante a gente tocar nesse assunto porque a escola ainda tem o currículo eurocêntrico. [...] comecei a tocar nesse assunto justamente por perceber que a escola deixou passar batido essa temática. Tanto é que depois que passou o Dia do Índio , fui perceber que ninguém tocou nesse assunto na escola. Nem eu mesmo. Quando lembrei, levei o conto de um indígena wapichana, do menino que assoprava semente.
Nos livros didáticos a temática indígena é muito mal discutida e aprofundada, ainda na perspectiva de que foram povos submissos e não tratam das resistências, é colocado no lugar sempre passivo. É uma ideia muito generalizada, traz termos equivocados, não considera a diversidade que cada povo tem.
Trabalhar essas questões de uma maneira superficial, pode ajudar a reforçar estereótipos e pode gerar resistência (vinda dos estudantes) a tudo que for indígena. Até pensei ser melhor nem tocar nesse assunto de maneira tão superficial e genérica do que reforçar esses preconceitos trazendo uma abordagem mal trabalhada”.
Segundo o professor, a partir das atividades alguns estudantes passaram a questionar informações além da escola. A ação educativa repercutiu na “não normalização de uma notícia que, por exemplo, faz uma abordagem generalizada sobre os indígenas”.
Já a professora do segundo ciclo chamou atenção para a formação inicial de professores:
Temos uma formação muito precária sobre as questões dos povos indígenas e africanos também [...] na licenciatura não tive nenhuma disciplina de arte indígena e arte africana. A gente vai ter arte no Brasil, mas é sempre muito geral e acaba que foca muito na questão neoclássica, o que veio já com os portugueses da influência europeia na arte brasileira. E aí a gente vai ter um resgate das questões indígenas lá na arte moderna. Mas sempre muito artificial.
A professora também observou uma mudança na sociabilidade entre os estudantes: “percebi que no final de todo esse processo as crianças estavam mais entrosadas. No começo tinha colega que não queria trabalhar com outro e no final estavam juntos, todos juntos , e não mais isolados. Criou-se uma união da turma, eles se perceberam”.
Os dois professores indicam reflexões que também ocorrem nos estudos sobre a implementação da Lei 11.645 ( BRASIL, 2008 ) no país (BERGAMASCHI; ZEN; XAVIER, 2012; RUSSO; PALADINO, 2016 ; SILVA, E., 2017; SILVA, G.; COSTA 2018). Em um estudo sobre as percepções de 100 professores das redes públicas municipal e estadual no Rio de Janeiro ( RUSSO e PALADINO, 2016 ), cerca de 70% deles apontaram dificuldades em inserir questões sobre os povos indígenas em suas aulas, indicando “falta de embasamento”, “lacunas na formação inicial” e incômodo com o risco de tratar das histórias e culturas indígenas com “superficialidade”.
Grupioni (1996) já chamava atenção para como os povos indígenas eram jogados para o passado nos livros didáticos. Analisando os livros didáticos de história recomendados pelo Ministério da Educação no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) dos anos 1999, 2002, 2005, para as turmas de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental, Gobbi (2006) observou a permanência de muitos equívocos, como a reprodução de pressupostos evolucionistas e representação dos povos indígenas como pertencentes ao passado, ainda que, segundo a autora, no mesmo livro esses erros concorressem com informações mais atualizadas. Quanto a recursos textuais, é importante destacar que atualmente há uma produção qualificada para tratar da temática indígena, escrita por autores indígenas e pesquisadores do tema ( LUCIANO, 2006 ; FUNARI; PIÑÓN, 2011 ; COLLET; PALLADINO; RUSSO, 2014). Vale destacar que, além de escritos acadêmicos, floresce um movimento literário com uma diversidade de autorias provenientes de diferentes povos que podem ser utilizados dependendo do contexto de aprendizagem.
Quanto à formação inicial, ainda há um passivo nos currículos da educação superior sobre conteúdos étnico-raciais, e mais frágil ainda é a situação em relação às histórias e culturas indígenas. Como observa Edson Silva (2017) , são raras as disciplinas no ensino superior, nas licenciaturas e nos cursos de pedagogia que tratam da temática indígena. Para os professores em exercício na educação básica, as formações oferecidas por secretarias estaduais e municipais de educação ainda parecem improvisadas para atender à exigência da lei, com cursos de curtíssima duração e reunindo todos os níveis e modalidades de ensino de maneira indistinta.
Em um estudo realizado sobre as disciplinas com ementas relacionadas às relações étnico-raciais nos currículos de licenciaturas da Universidade de Brasília (UnB), Almeida (2019) identificou 47 matérias alusivas à temática, distribuídas entre 26 cursos nos dois semestres de 2019. Embora exista um avanço na oferta, essa pesquisa demonstra que as relações étnico-raciais permanecem à margem de um currículo obrigatório e as disciplinas identificadas não são regulares.
Esses pontos nos levam à discussão sobre currículo como um território de disputa entre concepções educacionais. Nesse campo marcado por tensões, há posições mais tradicionais que pretendem ser neutras, científicas e técnicas enquanto outras perspectivas, críticas e pós-críticas, reconhecem que o currículo é sempre o resultado de um tipo de seleção que privilegia, em sua dimensão cultural, política e epistemológica, determinados saberes, valores, sujeitos e não outros, colocando interrogações a essas escolhas ( ARROYO, 2011 ; SILVA, T., 1999). Teorias pós-críticas do currículo enfatizam a importância de noções como identidade, alteridade, diferença, cultura, raça e etnia, reconhecendo que o conhecimento corporificado no currículo é um discurso marcado por relações de poder e guiam percursos formativos formadores (ou destruidores) de identidades que forjam o universo subjetivo. No campo das artes visuais, a professora participante da pesquisa fez uma crítica importante à hegemonia dos conhecimentos eurocêntricos no universo artístico. Essa crítica nos remete à necessidade de descolonização dos currículos do ensino que hierarquizam e invisibilizam historicamente a arte indígena.
Considerações finais
Segundo dados do último censo realizado pelo IBGE (2010), atualmente são 305 povos indígenas no Brasil, falantes de 274 línguas diferentes. Presentes em todas as regiões do país, esses povos vivem realidades muito diversas entre si, alguns vivem em isolamento voluntário ou de recente contato, enquanto outros vivem em contextos urbanos das grandes cidades, muitos habitam territórios reconhecidos e regularizados, mas outros ainda lutam pelos seus direitos territoriais e todos sofrem pressões de diferentes ordens, exclusão social, invasões de suas terras, além dos recorrentes episódios de violência e perseguição contra suas lideranças. No cenário atual em que vivemos, de graves ameaças aos direitos indígenas garantidos na Constituição Federal de 1988, é imperativo desconstruir preconceitos contra esses povos.
Neste artigo apresentamos a experiência de um conjunto de práticas pedagógicas com estudantes do ensino fundamental em uma escola do Distrito Federal, seguindo princípios de uma educação intercultural crítica que procurou compreender e transformar as percepções desses educandos sobre os povos indígenas. Como destacam diferentes trabalhos dedicados a teorizar a interculturalidade ( CANDAU 2008 ; WALSH, 2009 ; NASCIMENTO 2014 ) esse conceito pode ganhar diferentes concepções e perspectivas no campo da educação. Pode ser compreendida como um processo complexo e multidimensional, um projeto, uma tarefa, uma meta, um ideal ou utopia, mas também como uma prática pedagógica interessada em criar espaço de diálogo sobre as diferenças e as desigualdades socioculturais que transcenda o plano pessoal e tome contornos coletivos. Optamos por uma abordagem propositiva ( CANDAU, 2008 ), cientes das tensões e limitações existentes, visando expandir a educação intercultural para além dos seus destinatários usuais a um público heterogêneo de uma escola pública. Este ciclo revelou que há muito a ser feito. Como observa o antropólogo e educador do povo Baniwa, Gersem Luciano (2016) , superar imagens preconceituosas e estereotipadas requer muito trabalho educativo pois essas referências têm origem no desconhecimento ou em conhecimento deturpado, que é mais difícil de desconstruir.
Temos consciência do caráter restrito da ação sobre a qual refletimos neste texto e seus limites em termos de uma interculturalidade de fato, capaz de transformar comportamentos, atitudes e valores. Um ciclo como o realizado configura um processo pedagógico pontual e o tratamento da temática indígena deve compor o currículo criando possibilidades de um trabalho continuado, em diferentes disciplinas e em atividades transversais. Ainda assim, este experimento pedagógico nos permite destacar alguns pontos.
O primeiro é a força com que imagens estereotipadas acerca do “índio genérico” permanecem presentes no imaginário de crianças tão jovens. A reprodução desse imaginário tem muitas fontes, desde a mídia ao senso comum dos ambientes familiares e círculos sociais que todos convivemos no Brasil. Como as experiências desses estudantes revelaram, a educação escolar também tem responsabilidade na reprodução desses conhecimentos equivocados e distorcidos desde os anos iniciais.
Nossa pesquisa também confirma uma série de desafios pedagógicos persistentes para a implementação da Lei 11.645 ( BRASIL, 2008 ). Perduram problemas com livros didáticos, embora hoje exista um universo significativo de materiais produzidos por intelectuais, artistas e ativistas indígenas (artigos acadêmicos, livros, filmes, obras de arte) mais acessíveis aos educadores. A formação inicial e continuada de professores permanece insuficiente.
Esperamos que este trabalho possa indicar caminhos para iniciativas educacionais de maior fôlego sobre a temática indígena na escola. Neste artigo, apresentamos um percurso pedagógico que se inicia em um mapeamento do repertório de imagens sobre a alteridade indígena, a aprendizagem através da pesquisa, o estímulo a curiosidades e o encontro intercultural de fato, com intelectuais e comunidades indígenas.
Podemos afirmar que as interações da turma com indígenas foram as atividades mais significativas para esses estudantes, sinalizando que esta é uma estratégia acertada, especialmente no ensino fundamental. Todavia, essas interações não devem ser fortuitas, mas sim antecipadas por outras atividades introdutórias, caso contrário, podem transformar o encontro intercultural dentro da escola em uma experiência exótica, e a visita a uma comunidade indígena, em apenas um passeio escolar. Reiteramos que a implementação da Lei 11.645 ( BRASIL, 2008 ) é um amparo normativo fundamental não só para combater preconceitos, mas também para redesenhar o mapa cognitivo do currículo escolar que permanece, de modo geral, implicitamente etnocêntrico e eurocentrado. Para além disso, como a nossa experiência mostrou, a perspectiva intercultural na educação é pendular. Ao lidar com as representações sobre as diferenças culturais que percebemos na alteridade, somos levados a uma reflexão sobre nós mesmos, bem como sobre o tipo de sociedade em que vivemos.