Introdução
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) 3 é uma modalidade de ensino da educação básica que oferece os ensinos fundamental e médio àqueles que não tiveram acesso ou não puderam dar continuidade aos estudos na idade própria ( BRASIL, 2000). Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394/1996, é dever do Estado garantir a “Oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola” ( BRASIL, 2011, p. 2).
Entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000, a EJA no ensino médio era uma modalidade respaldada por textos legais mais abrangentes e por outros textos oficiais complementares, como a LDBEN e a Resolução CNE/CEB nº 1/2000 4 , por exemplo. Todavia, a atual Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento de caráter normativo da educação básica, não contempla a EJA em sua versão final homologada com a inclusão do ensino médio ( BRASIL, 2017).
De acordo com LDBEN de 1996, o público da EJA é bastante diversificado, constituído por indivíduos com características e necessidades específicas ( BRASIL, 2011), o que permite entendê-los sob uma perspectiva pedagógica particularizada de ser e estar no mundo ( VARGAS; GOMES, 2013). Reis e Molina Neto (2014) apontam a importância de considerar as características dos sujeitos que integram a EJA para o processo de ensino. Geralmente inseridos no mercado de trabalho ( CARRANO; MARINHO; OLIVEIRA, 2015), ocupam posições pouco qualificadas, passam mais tempo na escola em decorrência da evasão ou repetência escolar e retomam os estudos por exigências profissionais ou em busca de uma vida melhor ( CASTRO, 2017).
Contudo, os jovens e adultos possuem os mesmos direitos e deveres assegurados pelo Estado que os alunos do ensino regular e, portanto, a educação física, entre todas as outras disciplinas, deve ser oferecida ( BRASIL, 2000). Por se tratar de um espaço diferenciado na prática educacional, as aulas de educação física muitas vezes se tornam o único momento em que os alunos, especialmente os integrantes da EJA, têm a oportunidade de vivenciar diferentes práticas corporais 5 , além de ser espaço privilegiado para que assuntos sobre corpo e saúde possam ser abordados. No entanto, por vezes, esse componente curricular é tratado como uma “mera atividade” ou é marginalizado pela instituição escolar ( GÜNTHER, 2014). Martins e Neira (2018) alertam sobre uma visão ainda presente sobre a educação física na EJA, destinada apenas a amenizar os esforços laborais dos trabalhadores que frequentam a escola.
Nesse sentido, a BNCC orienta a ação pedagógica ao propor que, no ensino médio, as práticas corporais sejam tematizadas também no sentido de propiciar reflexões sobre as potencialidades e os limites do corpo para incorporar um estilo de vida ativo, com vistas à manutenção da saúde ( BRASIL, 2017). Assim, ações didático-pedagógicas na EJA poderiam colaborar para explorar diferentes possibilidades formativas ( REIBNITZ; MELO, 2021).
Diante do exposto, nota-se a necessidade de se discutir continuamente esta temática no âmbito da educação física no ensino médio, especialmente na EJA. Ainda são raros os estudos que buscam compreender o ponto de vista dos protagonistas desse segmento e que podem avançar na compreensão das percepções dos corpo de alunos, bem como propiciar reflexões sobre a prática pedagógica, que é o foco principal desta pesquisa. É fundamental compreender e discutir as particularidades da educação física no ensino médio da modalidade EJA a partir da visão dos alunos envolvidos, em uma perspectiva sociocultural.
Estudos dessa natureza colaboram para compor o mosaico de compreensões acerca do ensino da EJA, bem como possibilitam deslindar algumas das possibilidades de interpretação sobre quem são estes estudantes e em quais contextos ocorrem as práticas pedagógicas, por exemplo, as relacionadas à educação física. Assim, empreendimentos investigativos, como este estudo, ajudam a visibilizar e viabilizar possibilidades pedagógicas para esses grupos sociais, por vezes, marginalizados nas políticas educacionais da educação básica ( ARROYO, 2019) ou, até mesmo, no cenário da produção acadêmica do campo da educação ( SANTOS; SILVA, 2020) e, especificamente, da área de educação física ( et al., PELUSO, 2020).
Assim, o objetivo deste estudo foi compreender as percepções dos alunos da EJA sobre o corpo e como a disciplina de educação física contempla as abordagens pedagógicas acerca do tema 6 .
Notas sobre corpo e educação física no ensino médio da EJA
Com base na perspectiva sociocultural, as compreensões de corpo, as relações que cada um estabelece consigo, assim como os cuidados que demandam com a saúde, sofrem influências de diferentes culturas, sociedades e tempos históricos. Neste contexto, Le Breton (2007, p. 7) afirma:
Moldado pelo contexto social e cultural em que o ator se insere, o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída: atividades perceptivas, mas também expressão dos sentimentos, cerimoniais dos ritos de interação, conjunto de gestos e mímicas, produção da aparência, jogos sutis da sedução, técnicas do corpo, exercícios físicos, relação com a dor, com o sofrimento, etc.
Para Le Breton (2004, p. 8), as questões socioculturais estão diretamente ligadas à relação identitária que o sujeito estabelece com o corpo, pois: “Nas nossas sociedades o corpo tende a tornar-se uma matéria prima a modelar segundo o ambiente do momento”.
Em relação à educação física, nota-se que estudos relacionados ao corpo, em interfaces teóricas com as ciências humanas e sociais, foram ampliados a partir dos anos 1980 e ganharam ainda mais espaço, especialmente nas décadas de 1990 e 2000, tensionando a visão biológica preponderante na área até então.
Embora uma visão técnico-biológica ou dual de corpo esteja bastante presente no campo científico da Educação Física, dado seu contexto histórico e configurações atuais do campo, importa destacar que o corpo passa a ser analisado sob outro prisma na medida em que surgem […] muitas outras contribuições inspiradas em referenciais teóricos originários das ciências humanas e sociais […]. ( LÜDORF, 2019, p. 12).
O corpo não é apenas um artefato biológico, mas construído culturalmente a partir da inserção social em dados tempos e espaços, mediante a influência de diferentes condições econômicas, étnicas, políticas, dentre outras ( LE BRETON, 2011). Ao compreender o corpo para além do olhar biológico, por meio de uma dimensão transdisciplinar, entende-se que são inúmeras as suas representações, influenciadas por diferentes sociedades e momentos históricos ( LÜDORF, 2019).
Santos e Silva (2021) desenvolveram uma pesquisa com estudantes do ensino médio, alunos regulares das aulas de educação física, e constataram que, apesar de reconhecerem que os padrões corporais e de beleza mudam ao longo do tempo, apresentavam desejo de realizar modificações em seus corpos. Dessa forma, pensar o corpo pautado nos pilares sociais, culturais, históricos e biológicos é entender sua complexidade, principalmente no contexto da educação física, que deve considerar os diferentes marcadores sociais do público que frequenta essa modalidade de ensino ( GÜNTHER, 2014).
O currículo da EJA apresenta a educação física escolar como disciplina que aborda a cultura corporal de movimento 7 evidenciando as temáticas de saúde, lazer e trabalho. Ao articular-se com a área da saúde, a educação física deve privilegiar as dimensões antropológica, sociológica, política, econômica e biológica, a fim de colaborar para o entendimento do ser humano integral e sua atuação como cidadão, privilegiando as questões éticas e estéticas ( SILVA, 2017).
Kuhn, Silva e Molina Neto (2020), ao investigarem as perspectivas de estudantes do terceiro ano do ensino médio sobre as aulas de educação física, identificaram que, conquanto o esporte e as atividades voltadas para a aptidão física estivessem presentes em grande parte das aulas, temas como a socialização, a relação interpessoal e os debates após a aula foram destacados na fala dos estudantes como conhecimentos construídos a partir das aulas de educação física.
Em contrapartida, Costa e Almeida (2018) destacam que, no Brasil, os significados de corpo estão relacionados às diferentes vertentes da educação física. Especialmente na área escolar, a compreensão de corpo encontra suporte na sociologia e antropologia e é considerada fruto da linguagem e/ou cultura. Daolio (2020) afirma que o corpo é biológico, mas também cultural, deixando clara a não dissociação do corpo físico e os elementos socioculturais que permeiam essa temática. Ao tratar a educação física por meio das dimensões social, cultural e política como área responsável por estudar práticas corporais e suas formas de comunicação intra e interpessoais, entende-se que sua ação pedagógica se torna elemento integrador e essencial, principalmente na EJA ( CAMILO, 2014).
Dessa forma, as aulas de educação física escolar emergem como campo de trocas e relações políticas, sociais e culturais entre indivíduos que constroem e são construídos por seus corpos ( SANTOS; COSTA, 2018).
Procedimentos metodológicos
A pesquisa é pautada na abordagem qualitativa, pois buscou interpretar os significados atribuídos a determinado fenômeno ( TURATO, 2011). Para André (2013), essa perspectiva interpretativa concebe o conhecimento como um processo socialmente construído pelos sujeitos e suas interações.
Para a geração do material empírico, foi selecionada uma escola estadual localizada na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, no Pechincha. Este é um bairro pequeno, parte da região administrativa de Jacarepaguá, basicamente residencial, com poucas opções de entretenimento e, aparentemente, com oferta satisfatória de escolas públicas e privadas. A seleção desta escola ocorreu a partir das autorizações obtidas pela direção e pela Secretaria Estadual de Educação.
Com o objetivo de facilitar a inserção em campo e a aproximação com os alunos, iniciou-se um processo de observação durante as aulas de educação física e nos tempos livres de aulas, de duas a três vezes por semana, de abril a junho de 2017. Durante esse período, foram realizados registros em diário de campo, especialmente acerca das aulas, temáticas abordadas, participação dos discentes e comentários entre alunos e entre aluno e professor, sem que houvesse interação do pesquisador com os alunos, apenas com o professor. Observações são apropriadas quando se deseja verificar a maneira como os indivíduos se comportam em seu ambiente natural ( LÜDORF, 2017).
Em um segundo momento, conforme contato prévio com a instituição, foram realizadas entrevistas qualitativas com os alunos, no intuito de conhecer suas percepções sobre a temática de estudo. Segundo Gaskell (2015), esse tipo de entrevista fornece dados para que seja possível compreender e desenvolver as relações entre os atores e sua situação. Possibilita, ainda, a compreensão de valores, atitudes, crenças e motivações relacionados aos comportamentos de determinados grupos em contextos sociais específicos.
É importante ressaltar que o instrumento de coleta foi formulado especificamente para esta investigação, respeitando o processo de validação que compreendeu a revisão por especialistas e a aplicação prévia do roteiro em estudo piloto. Somente após obtidos os primeiros resultados e realizados os devidos ajustes, foram iniciadas as entrevistas individuais a partir de junho de 2017.
Com o intuito de contemplar o público heterogêneo participante das aulas de educação física do ensino médio da referida modalidade de ensino, foram considerados os seguintes critérios para a seleção dos entrevistados: a) estar devidamente matriculado na escola selecionada; b) frequentar as aulas de educação física regularmente, objetivando atingir os alunos que participam das aulas (a regularidade na frequência foi verificada por meio das observações); e c) possuir, no mínimo, 18 anos de idade. Além disso, houve preocupação em contemplar os diferentes gêneros, na expectativa de ampliar o espectro dos pontos de vista ( GASKELL, 2015).
Com a permissão dos professores e da direção, os alunos foram abordados, a depender da disponibilidade e, quando atendiam aos critérios de seleção, eram convidados a participar da entrevista. Ressalte-se que alguns manifestaram interesse em participar, ao passo que outros não, o que foi respeitado. Os alunos que não demonstraram interesse em participar alegaram indisponibilidade de tempo ou impossibilidade de permanecer na escola após o término das aulas.
Foram realizadas treze entrevistas, com tempo médio de duração de 25 minutos, com alunos da EJA que cursavam o ensino médio na instituição selecionada, sendo oito mulheres e cinco homens, com idades entre 18 e 56 anos (adolescentes e adultos), conforme o Quadro. 1.
Aluno(a) | Sexo | Idade (anos) | Ocupação | Naturalidade |
---|---|---|---|---|
A1 | F | 34 | Entregadora | Ceará |
A2 | F | 29 | Gari | Rio de Janeiro |
A3 | F | 37 | Dona de casa | Rio de Janeiro |
A4 | F | 18 | Estudante | Rio de Janeiro |
A5 | M | 20 | Militar | Rio de Janeiro |
A6 | M | 19 | Militar | Rio de Janeiro |
A7 | M | 18 | Estudante | São Paulo |
A8 | F | 19 | Estudante | Rio de Janeiro |
A9 | M | 18 | Auxiliar de armazém | Rio de Janeiro |
A10 | F | 56 | Diarista | Rio de Janeiro |
A11 | M | 19 | Estudante | Rio de Janeiro |
A12 | F | 23 | Estudante | Paraná |
A13 | F | 44 | Manicure | Maranhão |
Fonte: Elaboração própria.
O número de entrevistas respeitou o ponto de saturação dos dados, ou seja, a captação de novos participantes foi interrompida quando passou a haver repetição das informações obtidas ( MINAYO, 2017). As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas e tratadas com base na análise de conteúdo, de modo que tornasse possível a formação de categorias a partir dos critérios de repetição e de relevância ( TURATO, 2011). Registros em diários de campo que pudessem colaborar para interpretação dessa determinada realidade, derivados da observação do ambiente da escola, das aulas e dos alunos, também foram considerados no processo de análise do material empírico ( FONTANELLA; CAMPOS; TURATO, 2006).
A pesquisa está respaldada pelo processo nº 65/2009 e aprovada sob parecer nº 09/2010 do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ).
Apresentação e discussão dos achados
Percepções sobre corpo: dos estranhamentos de si aos usos instrumentais
Para compreender as percepções sobre corpo, é importante atentar, inicialmente, para quem são os sujeitos participantes desta modalidade de ensino. Normalmente possuem rotinas diárias exaustivas dentro e fora de casa, como pode ser visto a seguir:
[…] eu acordo cinco horas da manhã, vô ao trabalho e volto às cinco… às quatro e meia, mais ou menos às quatro e quarenta, eu to sempre passando aqui… pegar o filho na escola, voltar… aí tem um intervalozinho, é tomar um banho, fazer um lanche e vim pra aula. Chego da aula, eu janto, mal vejo um pouco de televisão, porque… o corpo já não aguenta mais […]. (A1, F.34 anos) 8
É bem corrida [risos]. Eu saio de casa às quatro e quarenta… pego um ônibus… pego um ônibus, solto, pego um metrô, solto em São Cristóvão, que é onde eu trabalho… eu trabalho na Quinta da Boa Vista… e… pego das seis às dez pras quatro, aí saio de lá, vô pra casa, faço algumas coisas que eu tenho que fazer em casa, depois venho pra cá e depois vou pra academia. Aí chegando em casa, eu não faço mais nada… não tenho condições físicas nem mentais de fazer mais nada [risos]. (A2, F.29 anos).
Embora os documentos oficiais apontem que o público da EJA é bastante diversificado, composto de jovens, adultos e idosos que geralmente já possuem experiência profissional no mercado de trabalho ( BRASIL, 2011), a realidade encontrada na EJA desta escola apresentou um grupo mais jovem, além da ausência de idosos.
O estudo de Pires et al. (2015) também apresenta um perfil de estudantes dessa modalidade de ensino mais jovens, com média de idade de 25 anos. Reis (2011) afirma que a urgência do mercado de trabalho e a configuração do sistema escolar nacional contribuem para o rejuvenescimento dos alunos da EJA.
A partir do público característico analisado, foi possível compreender as percepções dos alunos da EJA sobre corpo. Temas relacionados a corpo parecem distantes da realidade cotidiana desses discentes, como é possível observar nos trechos a seguir:
Corpo? Ah… num sei [risos]. (A11, M.19 anos).
Ah… sei lá… ser bem fisicamente. É… eu não sei muito bem. (A8, F.19 anos).
Corpo é… aonde a gente… ai… é complicado! [risos]. (A4, F.18 anos).
Corpo? Um conjunto de… é… é… Como é que se fala? Eu esqueci a palavra… Corpo pra mim é uma pessoa saudável, é uma pessoa que coma de tudo… não é nem uma pessoa muito magra, nem muito forte… (A5, M.20 anos).
A reação de estranhamento inicial demonstrada pelo público da EJA, principalmente entre os mais jovens, com relação ao corpo foi um aspecto que chamou a atenção nesta investigação e que pode fornecer elementos importantes para o “fazer pedagógico” do professor. Considera-se, de certo modo, um dado diferenciado em relação a outras pesquisas sobre corpo voltadas ao ensino médio regular. Costa (2014), por exemplo, em estudo com alunos do ensino médio de uma escola particular, identificou que, além de compreenderem corpo como organismo biológico, esses alunos também o consideraram como meio para alcançar saúde, autonomia, estética e bem-estar.
Embora as preocupações com a saúde e com o corpo possam se apresentar de diferentes maneiras de acordo com a camada social ( BOLTANSKI, 2004), como poderia ser visto em uma breve comparação entre instituições privadas e públicas, esta não deve ser considerada a principal razão para tal contradição. Práticas sociais e percepções do corpo são construídas a partir de dadas estruturas de relações e, sobretudo, de coletividades sociais que a todo instante interagem em determinadas sociabilidades (BERTONCELO, 2013).
Assim, algumas possibilidades de interpretação para esse estranhamento foram analisadas. Pelo fato de apresentarem rotinas diárias cansativas, possivelmente os discentes da modalidade EJA não conseguem dedicar tempo para pensar no seu próprio corpo. Ademais, por não terem sido estimulados a refletir sobre o assunto, principalmente em suas experiências descontínuas durante o processo de escolarização, em especial na educação física, entender os sentidos e significados desse corpo parece algo distante para esses sujeitos.
Na busca de captar mais detalhes sobre os significados atribuídos ao corpo pelos alunos, detectaram-se duas possibilidades de compreensão de corpo. A primeira delas foi de corpo como veículo para a saúde:
Ah… eu acho que corpo, assim, é uma estrutura que a gente precisa cuidar bastante do corpo, né! […] essa correria… então acho que a gente tem que cuidar um pouco mais do corpo, não só na beleza, mas acho que na saúde mesmo. (A13, F.44 anos).
[…] tô sempre… é… tendo… procurando um espaço pra poder fazer exame de rotina, vê como é que tá, ir ao dentista, cuidar… não tenho assim, uma… eu não tenho condições financeiras de me cuidar assim… igual eu vejo tantas pessoas… eu acho bonito uma pessoa que tá sempre se cuidando, tá no cabelelero, tá no… eu não tenho tanto tempo pra isso […] eu gostaria de ter um tempo… é… pra ter uma, pra ter uma, como posso dizer… fazer uma atividade física, entendeu? (A1, F.34anos).
Apesar de perceberem a importância de cuidar do corpo e da saúde e demonstrarem admiração por aqueles que conseguem se dedicar a esses tipos de cuidados, essa preocupação parece ser descolada da realidade deles. Concretamente, os alunos da EJA muitas vezes não encontram tempo disponível e suporte financeiro para a realização dessas necessidades.
Assim, o tempo (ou a falta de) emergiu como característica marcante nos relatos dos participantes. Expressões como “eu não tenho tanto tempo”, “essa correria” ou “eu gostaria de ter um tempo” apareceram de modo a justificar a impossibilidade de realizar uma atividade física e outros tipos de cuidados com o corpo. Tal dado demonstra a importância de aliar o compromisso afetivo às competências técnico-pedagógicas inerentes ao ofício docente nessa modalidade de ensino, como assinala Camargo (2017). Docentes (de educação física) sensíveis e atentos a essas questões podem problematizar ou relativizar as relações entre atividade física, corpo e saúde.
Na contemporaneidade, há discursos medicalizantes de cunho biomédico que difundem a ideia de que os sujeitos são responsáveis pelo gerenciamento de seu corpo, objetivando a melhoria da saúde ( LÜDORF; SILVA, 2012). No entanto, as exigências de maior produtividade no trabalho ou na rotina doméstica e a dedicação aos estudos acabam privando os indivíduos da rotina de cuidados com a saúde. Isso, por vezes, emerge na educação física potencializando um discurso pedagógico normativo acerca do corpo dito saudável, pautado eminentemente por parâmetros biológicos e neoliberais que desconsideram os aspectos biopolíticos e socioculturais ( NEIRA; BORGES, 2018).
Outra possibilidade de compreensão de corpo apresentada pelos discentes foi a de instrumento, exemplificadas nas passagens a seguir:
[…] Corpo… é o que nos mantém vivo, né! Que, sem ele, a gente não estaria aqui… É com ele que nós praticamos as coisas, com ele que usamos para, para praticar, no caso, o esporte, sair, trabalhar. Porque sem o nosso corpo, a gente não conseguiria fazer… essas coisas. (A6, M.19 anos).
Assim, pro meu esporte, né, pra minha vida, acho que é o principal, né! Acho que sem o meu corpo, assim, sem a minha parte física, eu não seria nada […]. Então como eu disse, o meu treinamento, o meu descanso, minha alimentação, tudo envolve pra eu ter uma boa performance dentro do campo. (A7, M.18 anos).
O corpo, segundo os relatos, representa um instrumento utilizado em função das necessidades dos sujeitos. Os cuidados com o corpo que envolvem alimentação, descanso e treinos são associados ao bom desempenho em suas atividades diárias. A importância concedida ao corpo parece, portanto, estar relacionada aos papéis desempenhados pelos indivíduos na sociedade. Nessa perspectiva, o corpo, para os discentes da EJA, representa uma ferramenta objetiva para obter algum lucro material, simbólico ou social.
Com base em Bourdieu (2014), tal dado indica como a própria percepção subjetiva do corpo constitui-se por um sistema de determinantes sociais. Exemplarmente, destaca-se que os alunos que compreendem corpo como instrumento são jovens e exercem funções que exigem muito da parte física (jogar futebol e treinamento militar). Para Boltanski (2004), o uso instrumental do corpo tem relação com a atividade física e a força física. Segundo o autor, ao se sentirem doentes, os sujeitos são impedidos de utilizar seu corpo para as funções normais e, principalmente, para as atividades profissionais.
Deve-se mencionar que esses mesmos jovens responsáveis por funções que demandam do seu corpo possuem o respaldo da LDBEN para realizar ou não as aulas de educação física e, mesmo assim, alguns optam por participar. O art. 26, inciso 3º, responsável por integrar a educação física à proposta pedagógica da escola e como componente curricular obrigatório da educação básica, estabelece como facultativa a prática em alguns casos: como o trabalhador que cumpre jornada de trabalho igual ou superior a seis horas; maior de trinta anos; que estiver prestando serviço militar inicial; que, em situação similar, estiver obrigado à prática da educação física; ou que tem prole ( BRASIL, 2011).
Por meio das observações, foi possível constatar que alguns alunos não participavam das aulas de educação física. Em interações com o professor, foi mencionado que os alunos alegavam cansaço depois de trabalhar ao longo de todo o dia. Pode-se perceber que o “corpo do/no trabalho” era mais privilegiado pelos alunos do que o “corpo da/na escola”. Nesse caso, cabe apontar que as possibilidades de vivências corporais na disciplina de educação física disputavam, concorriam ou eram tensionadas a partir das experiências da vida social (e laboral) cotidiana.
Em síntese, as reflexões dos alunos da EJA sobre o próprio corpo pareceram ser “estranhas” em um primeiro momento. Contudo, ao compreender este eventual estranhamento de modo mais contextualizado, verificou-se que, além de não terem experiência em discussões sobre o assunto, os discentes atribuíram ao corpo basicamente uma “utilidade” para alguma “finalidade” – leia-se objetivando (sobre)viver. Destarte, tal achado faz pensar na relevância de valorizar as práticas curriculares e discursivas na EJA (ou, mais especificamente, na educação física) que ampliam um processo diversificado de ensino-aprendizagem calcado em um compromisso ético-pedagógico de interesse das coletividades sociais presentes nessa modalidade de ensino ( CARVALHO, R. T., 2012).
Educação física, corpo e EJA: relações em movimento
Há inúmeros desafios e possibilidades que envolvem a educação física na EJA. Os alunos, principais sujeitos envolvidos no processo pedagógico, apresentam suas histórias, vivências e opiniões relacionadas às aulas dessa disciplina nessa modalidade de ensino. Segundo Barros et al.(2014), para que a educação física apresente sentidos e significados na EJA, as dificuldades encontradas no processo de desenvolvimento das aulas, como evasão, carga horária de aula inferior e deficiência na sistematização dos conteúdos de maneira organizada e significativa por parte dos professores, são alguns dos desafios a serem superados.
Diante desse contexto educacional e institucional, os estudantes comentaram sua relação com a atividade física até ingressarem na EJA e afirmaram já terem vivenciado alguma prática corporal em dado momento da vida. Entretanto, os depoimentos sugeriram que alguns indivíduos tiveram seu único contato com a atividade física apenas nas aulas de educação física escolar:
Só um… lá, lá atrás, né! Na educação física na escola […]. É uma coisa também que eu gosto muito, mas nunca tive oportunidade de poder fazer. (A10, F.56 anos).
Já sim! No colégio que eu estudava lá, mas só mesmo… Tinha um dia na semana que a gente tinha educação física. Numa quadra, a gente ia na quadra, sabe? E fazia algumas flexões somente. (A1, F.34 anos).
A valorização do espaço destinado às aulas de educação física na escola torna-se essencial por ser um dos poucos momentos, ou até mesmo o único, em que os alunos, em especial os da EJA, têm a oportunidade de vivenciar diferentes práticas corporais, interações sociais e construção de conhecimentos de maneira crítica. Souza (2018) identificou que, a depender do grupo social, o contato com a educação física escolar pode ser inexistente, o que, de certo modo, pode impactar os usos do corpo no decorrer da vida.
Para Pereira (2013, p. 41), a disciplina vai muito além das práticas corporais e do contato com o movimento: “A educação física como disciplina integrante do currículo escolar necessita atender às exigências de uma pedagogia que implica auxiliar no processo de humanização do homem, provocando a consciência crítica”. É nesse contexto, portanto, que se torna imperativo o processo de reflexão e reconstrução curricular em educação física que atenda ou reconheça, nas palavras de Arroyo (2013), os sujeitos sociais e suas experiências.
Ao entender as aulas de educação física escolar como espaço privilegiado para a abordagem de diferentes conceitos e conteúdos relacionados à cultura corporal do movimento, buscou-se verificar os conteúdos efetivamente articulados nas aulas da escola investigada. Foi possível identificar que principalmente os mais jovens compreendem que as aulas relacionam-se aos esportes:
Ah… as aulas aqui são boas. Aí o professor vem, dá os esportes […]. Aí tem o futebol, tem o basquete, tem o novo esporte agora que se chama badminton, que ele trouxe pra escola, novo. (A6, M.19 anos).
Então, a gente… a gente tava estudando agora… a gente estuda bastante coisa, vários tipos de esporte […]. (A7, M.18anos).
Ele dá esportes, assim, pra gente fazer… futebol… é… pra gente interagir […]. (A12, F.23 anos).
Por meio das observações, verificou-se que as aulas de educação física eram majoritariamente práticas e ocorriam na quadra poliesportiva, no estacionamento ou em um pátio próximo às salas de aula e ao refeitório. O esporte que prevaleceu durante as aulas era o badminton, ao menos durante o período investigado, e os alunos demonstraram interesse pelas regras do jogo, que, até então, parecia não ser conhecido. De acordo com Martins e Neira (2018), a seleção de uma prática corporal tematizada é o ponto de partida para o desenvolvimento de um trabalho dialógico nas aulas de educação física dessa modalidade de ensino.
O estudo de Santos e Costa (2018) salienta que, principalmente no segundo segmento do ensino fundamental e no ensino médio, os conteúdos trabalhados nas aulas de educação física estão relacionados, em sua maioria, aos esportes de maneira não contextualizada. A partir dessa constatação, torna-se importante destacar que o trabalho envolvendo essa temática deve ocorrer tratando o esporte como “um fenômeno contraditório e é no movimento de transformações da sociedade que pode ser entendido, como expressão da experiência histórica de indivíduos e grupos sociais” ( VAZ, 2020, p. 123).
Durante a observação, não foram presenciados comentários ou interações em que temáticas relacionadas a corpo fossem abordadas de modo explícito. Por meio dos relatos, contudo, foi possível identificar que alguns assuntos relacionados à prática de atividade física pareciam ser comentados no espaço escolar, mas não contextualizados como conteúdo nas aulas de educação física:
Ele faz… ele fala muito… da caminhada… Ele fala que você é… tem… que você tem que tá, é, sempre dentro do teu peso… Ele faz a gente dá umas dez voltas em volta do campo. (A3, F.37anos).
Ele… ele comenta bastante coisa, né! Aquela coisa do: “Pessoal! Faz uma caminhadinha, não vai fazer mal! Você caminha meia hora, depois caminha uma hora… Vai caminhando devagar”. (A2, F.29anos).
De acordo com a BNCC ( BRASIL, 2017), o uso da linguagem corporal está entre as competências gerais da educação básica, além de estar vinculado a diversos momentos do processo de ensino e aprendizagem. Em estudo realizado com professores de educação física do ensino médio, Silva, Silva e Lüdorf (2015) detectaram que as discussões envolvendo assuntos relacionados a corpo não faziam parte do planejamento do curso. Segundo os docentes dessa pesquisa, essas discussões ocorriam de maneira informal quando os alunos manifestavam alguma dúvida ou traziam algum assunto disseminado pela mídia, geralmente relacionados aos hábitos e cuidados com a saúde. Dessa maneira, torna-se importante a condução de aulas que correspondam aos interesses e às necessidades dos discentes da EJA, trazendo como conteúdo da educação física temáticas envolvendo corpo e saúde, por exemplo.
No que se refere à percepção dos alunos da EJA sobre as aulas de educação física, observa-se tendência de dissociação da vida dos estudantes dessa modalidade de ensino:
Na minha vida mesmo, não tem muita diferença. (A10, F.56 anos).
Não me influencia em nada! Não sei por que tem educação física na escola […]. (A12, F.23 anos).
Não! É desnecessário! Só pra perder tempo nas matérias que a gente precisa. (A13, F.44 anos).
Os discentes atribuíram pouca importância às aulas e afirmaram que estas não influenciavam suas rotinas cotidianas. Por meio dos relatos e das observações realizadas durante as aulas, foi possível apreender que muitas vezes pareciam não corresponder aos interesses dos alunos. Os indivíduos que participam da EJA possuem diferentes histórias de vida. Geralmente são pais, mães, donas de casa, diaristas, gari, militares, que cumprem jornadas de trabalho exaustivas e ainda buscam no estudo, no período noturno, uma possibilidade de conquistar um emprego melhor e uma vida mais confortável. Franchi e Günther (2018, p. 221) argumentam que hoje em dia há:
[...] um segmento de educandos que não está exatamente retornando aos estudos, mas se deslocando para a EJA, na maioria das vezes, carregando um histórico de repetência e problemas disciplinares que corroboram para uma relação negativa com a escola. Esse novo público traz consigo elementos da cultura juvenil que, em grande medida marcam seus corpos e seus anseios em relação a formas de manifestação da cultura corporal de movimento que a escola historicamente não tem contemplado. Complementar a isso, há uma memória de EF [educação física] muitas vezes marcada pela hegemonia dos esportes coletivos, notadamente o futebol.
Assim, respeitar as diferentes trajetórias de vida, idades e condições físicas desses sujeitos poder interferir na representação e importância das aulas de educação física na realidade em que estão inseridos. Isso vai ao encontro da perspectiva de Arroyo (2014), que defende a ideia de “outras pedagogias para outros sujeitos” no sentido de justamente atender as necessidades e os interesses dos grupos sociais com os quais os professores lidam.
Segundo Carvalho (2013), as aulas de educação física, ao tratarem da ludicidade e das práticas corporais de maneira contextualizada, valorizam as experiências de cada sujeito envolvido no processo pedagógico. Aproximar essas aulas da realidade dos alunos pode colaborar para uma EJA que não valoriza apenas o aumento da escolaridade, mas também a preparação para o mundo do trabalho e um processo de educação contínua. Desta forma, poderia deixar de ser entendida como um espaço de pouca importância e, sobretudo, com base em Bourdieu e Passeron (2014), que evita um trabalho pedagógico de reprodução de saberes e práticas estruturantes que reforçam dadas identidades que não correspondem ao público escolar em tela. Santos e Ribeiro (2020) problematizam justamente a possibilidade de reprodução social que impacta o processo de ensino-aprendizagem dos alunos da EJA.
Considerações finais
Foi possível compreender algumas percepções dos alunos da EJA sobre corpo e como a disciplina de educação física (não) contempla abordagens pedagógicas do tema. Em termos gerais, este empreendimento investigativo conseguiu fornecer ou revelar elementos empíricos que podem ser facilmente debatidos no interior das instituições escolares como forma de repensar os ofícios docentes, como também para além dos “muros da escola”, como no âmbito legal ou das políticas educacionais, no sentido de demonstrar o que pode ocorrer no “chão da quadra”.
Em síntese, os alunos do ensino médio da EJA da escola investigada aparentavam não terem sido estimulados a pensar sobre assuntos relacionados a corpo até o momento. As percepções de corpo assemelham-se aos discursos disseminados na contemporaneidade, associados à necessidade de cuidar da saúde, porém, que se mostram concretamente distantes em virtude de sua rotina atribulada. Os alunos recorrem também ao argumento da importância de cuidar de si, mas que se revela praticamente impossível de ser aplicado na prática. Em razão de um cotidiano adverso, a falta de tempo é algo que permeia a vida desses discentes e, juntamente com a falta de dinheiro, dificultam os cuidados com o corpo. O corpo como instrumento emerge como outra percepção, uma vez que se mostra importante para o desempenho das atividades diárias.
Ao que se pode detectar, parece haver uma carência de debates que abordem assuntos relacionados a corpo nas aulas de educação física. Ademais, a disciplina não desperta muito interesse e aparenta estar dissociada das necessidades dos alunos dessa modalidade de ensino, com perfil diversificado e expectativas variadas.
Destaca-se que a pesquisa foi realizada a partir dos relatos dos alunos, porém, outras possibilidades investigativas tornam-se necessárias para ajudar a compreender a realidade dos discentes da EJA e suas possíveis relações com o corpo e as aulas de educação física. Nesse sentido, recomenda-se a realização de estudos com a participação de outros atores envolvidos no processo de ensino da referida modalidade da educação básica.
Por outro lado, ao abordar essa discussão pouco trabalhada no âmbito da EJA, espera-se trazer subsídios que possam contribuir para repensar o processo pedagógico, em especial para aqueles envolvidos com essa modalidade de ensino, não apenas da educação física. Assim, sob uma perspectiva sociocultural, considera-se a relevância de práticas pedagógicas que estejam em consonância com a realidade dos alunos da EJA. Afinal, estratégias didáticas de qualquer componente curricular que levem em conta os pontos de vistas do corpo discente podem potencializar seu engajamento no processo de ensino-aprendizagem.