Introdução
Esta investigação teve o objetivo inicial de conjugar publicações acadêmicas centradas na educação básica brasileira que se apoiaram no conceito filosófico de máquina abstrata de rostidade ( DELEUZE; GUATTARI, 1996c) para fundamentar argumentos sobre relações de poder que dificultam a construção de diversificados percursos educativos que vão além de uma via única para a educação nacional. Entretanto, o encontro com esse material despertou a vontade de nos inserirmos nessa coletânea crítica, por isso, ao nos depararmos com diferentes posicionamentos, criamos nossas próprias reflexões e estabelecemos um diálogo com os textos pela intermediação do conceito de educação menor proposto por Gallo ( 2002).
Esperamos que o acervo de ponderações aqui presente se junte ao pensamento do leitor e produza outros textos, outras chances. Para tanto, iniciamos este trabalho com o detalhamento técnico da revisão bibliográfica, o compartilhamento de nosso interesse pelo assunto e o motivo de escolhermos mergulhar em desejos e subjetividades coletivas para pensar nas possibilidades da educação básica. Em seguida, dissertamos sobre os principais conceitos que sustentam esta pesquisa, entrelaçamos os textos analisados com nossas observações e, por fim, registramos os principais ensinamentos que recebemos ao sermos atravessadas pela potência dessa experiência científica.
A busca digital da literatura sobre processos de rostidades na educação básica brasileira foi realizada sem especificação de data no portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e na base de dados Scientific Electronic Library Online ( Scielo) Brasil. No entanto, ambas as plataformas não apresentaram registro de textos combinados pelo operador booleano AND entre os termos “rostidades” e “educação básica”, razão pela qual elaboramos investigação mais aberta no indexador Google Acadêmico, no dia 5 de abril de 2022, tendo capturado 78 produções. Durante a filtragem, excluímos material repetido e trabalhos não publicados em periódicos científicos, resultando em um acervo de artigos divulgados, entre 2006 e 2021, em quinze periódicos nacionais e em um periódico internacional, de Portugal, qualificados pela Capes nos estratos A (37 por cento) e B (63 por cento) para a área educação no período 2013-2016.
Essas publicações continham crítica sobre o processo de rostidades operando enunciados de significância nos territórios da formação de professores, da prática docente, da regulação para o currículo, da regulação da educação especial, da regulação para as relações de gênero, da raça e etnia e da gestão dos sistemas de ensino, conforme expressam seus textos, que foram analisados em blocos temáticos.
O interesse por esse tipo de revisão científica foi crescendo durante o acompanhamento de pronunciamentos do poder público sobre as intenções para a educação brasileira, expressos em documentos oficiais ou veiculados pela mídia nacional, como é o caso dos trechos em destaque: “A ideia de universidade para todos não existe [...]. As universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual” – afirmações do ex-ministro da Educação Ricardo Vélez Rodrigues ( PASSARELLI, 2019, n.p.); e “alunos com deficiência atrapalham o aprendizado de outras crianças sem a mesma condição” – afirmação do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro ( NOBERTO, 2021, n.p.).
Enunciados como esses nos incomodaram a ponto de nos desacomodar. Porém, tal desafeto não se deu por emoção de surpresa, mas por indignação, incentivando-nos à investigação de produções acadêmicas denunciadoras de afirmações semelhantes, cujos discursos externalizam projetos maiores e desejantes de chegar a espaços menores do complexo território da educação, de modo a torná-lo uma fábrica de ideias universais que funciona pela lógica binária de dentro-fora, sim-não e aprovado-rejeitado.
Para tanto, escolhemos o conceito de máquina de rostidades de Deleuze e Guattari ( 1996a, 1996b, 1996c) porque nos fornece argumentos políticos, éticos e estéticos para pensar filosoficamente sobre a construção do desejo comum, capaz de criar, pela força do consenso coletivo, um modelo de pensamento em cada época social, estratégia facilitadora para a produção e a circulação de mercadorias materiais e imateriais e a manutenção de determinada ordem de poder.
Os dois filósofos assumiram que tudo é produção conectada. O próprio corpo humano não para de produzir a si mesmo, portanto, ele é uma máquina, e cada órgão também é maquínico, com funcionamento dependente da força de si mesmo e da potência do atravessamento de fluxos externos. Sob esse raciocínio, Deleuze e Guattari ( 2010) entenderam que o rosto é uma emblemática imagem também derivada do processamento externo operado pelo sistema capitalista, cuja engrenagem básica é prover códigos de conduta, valores e desejos subjugados ao capital, para que, de preferência, todos desejem coletivamente o mesmo rosto, concedendo-lhe validade.
Todavia, a história humana mostra que a validade de um rosto não é tarefa fácil, pois sempre houve fugas, rostos anômalos que insistiram em se projetar, sendo necessário vigiar e punir ou, mais recentemente, controlar, regular e disciplinar ( FOUCAULT, 2014). Para isso, de posse de invisíveis manuais de controle de qualidade, operadores de máquinas de padronização estão sempre atentos em aparar arestas e em separar produtos, de modo que os desvios não atrapalhem o projeto de poder para a soberania da moeda.
Assim o mito constrói o modelo imanente ou fundamento-prova de acordo com o qual os pretendentes devem ser julgados e sua pretensão medida. E é sob esta condição que a divisão prossegue e atinge seu fim, que é não a especificação do conceito, mas a autenticação da ideia, não a determinação da espécie, mas a seleção da linhagem.
( DELEUZE, 1974, p. 263).
No entanto, nesse território de rostificação social, há aqueles que buscam entender como se efetua tal produção, na intenção de defender o direito à existência de outros rostos, outros códigos, conforme fizeram os pesquisadores dos artigos encontrados, analisados de acordo com a perspectiva cartográfica ( DELEUZE; GUATTARI, 1996a), a qual propõe o mapeamento de caminhos percorridos por desejos e afetos surgidos pela força de encontros entre diferentes modos de vida e mesmo entre pessoas, instituições e coisas. Desse modo, a cartografia não analisa objetos e fenômenos, mas parte em busca de intensidades capazes de desacomodar a indiferença, relevante mantenedora do status quo social, cuja inércia facilita a produção do ainda almejado perfil padrão – o rosto dominante, configurado pelo homem heterossexual, branco e líder. Por isso, além da revelação de processos de dominação, a cartografia se interessa por descobrir movimentos inusitados, capazes de se distanciar do percurso circular de significâncias sociais e políticas, ainda que a vida exija se manter em territórios sob dominação.
Como oportunidade para o surgimento de outros sentidos de vida no mesmo território de opressões e opressores, Gallo ( 2002) propôs desbravar caminhos pela educação menor, aquela que se situa no cotidiano da escola, cujas ações possuem três características: desterritorialização – depende da força de desejos e afetos brotados entre encontros de resistência; ramificação política – é a própria ação contra fluxos de determinações; e valor coletivo – considera que nada se (des/re)constrói sozinho.
Assim, apoiadas na proposta de Gallo, encontramos pistas de movimentos da educação menor entre as rostidades desveladas nos artigos constitutivos do acervo sob análise, apontando a existência de inusitadas trincheiras entre as brechas dos espaços dominantes da educação básica nacional. Porém, antes disso, consideramos apropriado tratar dos conceitos que amparam esta revisão crítica.
O rosto através do espelho
O processo de rostificação, assim como a individuação, ocorre reciprocamente por fluxos externos da vida que atravessam sociedades e por fluxos internos que não cessam seus movimentos, circulando sem cadência e sem direção no seio de cada um, linhas de vida que se interpõem umas sobre as outras e entre umas e outras. Esse movimento é social, pois ninguém se constrói sozinho, e é responsável pela subjetividade, razão pela qual Deleuze e Guattari ( 1996a) argumentaram que a singularidade humana, na verdade, é plural, e seu devir depende do quanto os fluxos de signos conseguem atravessar os sujeitos e neles deixar suas marcas. Diante disso, traçamos um percurso, de tantos possíveis, de como os agenciamentos sígnicos assaltam a intimidade do ser e como suas significâncias atravessam o espelho da alma, transitam e ricocheteiam entre a superfície e o interior até se concretizarem no rosto (in)desejado.
O conceito de signos dos dois autores acata brevemente a semiose social de origem peirceana ( DELEUZE, 1974; DELEUZE; GUATTARI, 1996b), a qual compreende que a linguagem, um dos principais mecanismos de conexão enunciativa, é formulada por símbolos e outros sinais marcadores de representações, relacionados segundo um ordenamento hierárquico: há signos que dominam – os significantes; e há aqueles que obedecem – os significados. Contudo, a construção de algo no pensamento não é exclusividade dos códigos linguísticos, pois, nesse processo maquínico de subjetividade ( GUATTARI, 1992), também participam artefatos manuais e tecnológicos, emoções e desejos, relações familiares e sociais e contextos históricos, políticos e econômicos, complexidades que afetam distintamente cada indivíduo.
E, ainda, ao analisar a obra de Marcel Proust, À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido), Deleuze ( 2003) expôs diferentes signos que extrapolam o mundo da linguagem e das formas. Na sua concepção, há signos somente perceptíveis, que não possuem corpo, mas se manifestam quando há encontros capazes de sacudir o pensamento, instante criador, podendo surgir de um aroma, um toque, uma canção, comportamentos, relações afetivas e tantos outros modos de sentir e de viver. Para ele, o mundo das artes é onde residem os signos mais sensíveis, nele só há signos em essência, e são esses que possibilitam “ultrapassar o nível da interpretação [...]. É por esta razão que todos os signos convergem para a arte; todos os aprendizados, pelas mais diversas vias, são aprendizados inconscientes da própria arte. No nível mais profundo, o essencial está nos signos da arte.” (p. 13).
Nessa crítica à dependência da análise binária, Deleuze e Guattari ( 1996b) consideraram que o ordenamento da linguagem e de outras semioses não foi suficientemente arbitrário para manter estável a relação dominante/dominado e apostaram na potência desviante dessa cadeia contínua de hierarquia simbólica, o elemento capaz de operar o inusitado, o imprevisível – a expressão subjetiva ou os sentidos –, a partícula mais embrionária da subjetividade, pois essa ainda se encontra em estado não dominado, sendo a-significante. É por ela que se pode criar outros enunciados, em detrimento de repetir ou de representar enunciados já concretizados.
A imprevisibilidade é possível porque os sentidos estão presentes em cada ser antes dos agenciamentos entre pessoas, coisas e regramentos, mas o devir-criativo dos sentidos somente surge quando o sujeito se deixa afetar por estranhezas que vêm a seu encontro, seja para o melhor ou pior que a vida tem a oferecer. É, pois, a força dos encontros com as diferenças que tira alguém de seu próprio mundo, desterritorializando-o por um breve instante, momento em que os sentidos se alteram, mas logo são vencidos por significâncias mais poderosas; ou desterritorializando-o por tempo indeterminado, a ponto da força dos fluxos de experiências se espalharem pelas entranhas, emergirem e (de/re)formarem a superfície da enunciação – o rosto, momento em que a diferença ocupa seu lugar ( Figura 1).
Fonte: Painel de elaboração própria (2022), composto por: 1 – Fotografia de Arthur Bispo do Rosário com seu Manto da Apresentação – Disponível em: http://culturissima.com.br/wp-content/uploads/2015/04/arthur_bispo_do_rosario_manto.jpg. Acesso em: 13 jun. 2022. –; 2 – Assemblage do artista Arthur Bispo do Rosário – Disponível em: http://3.bp.blogspot.com/-XGcCLgkkgSo/UGnhSzbE66I/AAAAAAAAC5k/9OucgimX-b8/s1600/12.jpg. Acesso em: 13 jun. 2022. –; 3 – Trecho do texto Arthur Bispo do Rosário – a salvação pela arte, de Larissa Paes, para o caderno on-line Artes e Ideias . Disponível em: http://lounge.obviousmag.org/promiscuidade_artistica/2014/04/arthur-bispo-do-rosario-a-salvacao-pela-arte.html . Acesso em 15 ago. 2022.
Além de sujeitos com seus próprios rostos, embora sempre calcados por partículas coletivas, há um só rosto para muitos – o rosto-cópia, assim como as coisas também possuem rostos, visto que há escolas, fábricas e empresas que dividem, por exemplo, frações de um único rosto ( Figura 2), sendo que algumas instituições, conceituadas por Deleuze e Guattari ( 2010) de máquinas capitalistas, possuem função reprodutora.
Fonte: Painel de elaboração própria (2022), composto por: 1 – imagem de escola – Disponível em: https://www.colegioweb.com.br/wp-content/uploads/2014/06/alunos-na-sala-de-aula-1024x768.jpg. Acesso em: 13 jun. 2022. –; 2 – imagem de empresa – Disponível em https://soarescontabilidade.com.br/img/empresa/sala-de-trabalho.jpg Acesso em: 13 jun. 2022. –; 3 – imagem de fábrica – Disponível em: https://4.bp.blogspot.com/-ZxmAh3VVImc/TVlfD57ZO0I/AAAAAAAAAZs/_AyfshPELhI/s1600/COSTURA.jpg. Acesso em: 13 jun. 2022.
Nessa perspectiva, escolas podem ser potentes máquinas de rostidades, e seu produto ideal é um perfil único para grupos semelhantes, compreendido como o rosto social, no qual, para cada tipo, há um enunciado apropriado, com possíveis variações entre a ordem de poder de relações binárias, como elite-pobreza, conhecimento-ignorância, chefe-operário, dentro-fora e sim-não ( DELEUZE; GUATTARI, 1996c). Qualquer rosto externo ao binarismo deve ser, se possível, capturado para transformação remodeladora ou, até mesmo, excluído, seja de modo sutil e a longo prazo, seja categórica e explicitamente, tal como proclamaram os ex-ministros citados no início deste texto.
Com isso, se a criatividade, fluidez imprevisível advinda dos sentidos, é a chance de resistir a enunciados produzidos pela máquina de rostidades, ela requer atenção conforme a função política assumida por educadores em diferentes territórios – no macrocampo, espaço oficial dos ordenamentos, e no microcampo, espaço mais propício para a desacomodação da indiferença. Ancorados, portanto, no conceito de rostidades, os artigos sob revisão crítica se mostraram vigilantes quanto a possíveis iniciativas de castração da imaginação, ao mesmo tempo que esboçaram caminhos distanciados de impositivas reproduções, ação que nos instigou a ampliar esta investigação com a inserção do conceito de educação menor, de Gallo ( 2002).
Quando o menor tem mais força
A intensidade dos artigos reveladores de rostidades na educação remeteu nossos sentidos para um texto estranho ao acervo em revisão: “Em torno de uma educação menor”, de Gallo ( 2002). Inspirado no conceito deleuze-guattariano de literatura menor, o autor propôs uma “educação menor”, a qual mereceu integrar o diálogo com o acervo, posto que esse raciocínio é atravessado pelo conceito de rostidades, ainda que de maneira implícita.
Deleuze e Guattari ( 1977) reconfiguraram o vocábulo menor e lhe conferiram posição diferente na abstrata máquina linguística. Na cartografia, o item lexical menor ganhou sentido de espaço político de resistência ou linha de fuga de determinismos quando os filósofos analisaram as obras do escritor Kafka, judeu polonês que escreveu na língua dominante de seu país – o alemão – para criar histórias sobre seu próprio povo. Nesse estudo, os autores observaram que uma narrativa em primeira pessoa será sempre coletiva, pois a vida sob dominação nunca é singular, assim como a ação de resistência registrada nesse tipo de obra também ressoará no coletivo. Por conseguinte, a ação engajada e desenvolvida em pequenos espaços de poder é uma ação menor.
A educação menor é, pois, a da prática na escola, a que acontece nesse microespaço político, enquanto a educação maior ocupa principalmente o nicho da regulação nacional. Porém, como pondera Gallo ( 2002), embora ordenadora e vigilante, a máquina reguladora brasileira também almeja a aprendizagem e, mesmo que seus legisladores promulguem seu desenvolvimento no nível de adaptação às significâncias, há abertura à criação de outros sentidos para a aprendizagem rostificada quando essa se agencia com a ação educativa cotidiana, ou seja, quando a proposta de aprendizagem padronizada sai do mundo regulado e se desterritorializa durante o encontro com a inesperada cultura pedagógica de uma ou muitas escolas.
Para Gallo ( 2002), a desterritorialização é a primeira das três características da educação menor, mas seu devir depende do quanto a intensidade dos encontros conseguirá incomodar e desacomodar os envolvidos a ponto de minarem determinações inibidoras de diferentes aprendizagens. A segunda característica é a ramificação política, compreendida como as ações planejadas para conceder força de desterritorialização, ou seja, são as ações de resistência; e a terceira é o valor coletivo, conforme o argumento de que nada se faz sozinho: “Na educação menor, não há a possibilidade de atos solitários, isolados; toda ação implicará em muitos indivíduos. Toda singularização será, ao mesmo tempo, singularização coletiva.” (p. 176).
De posse dos dois conceitos-chave deste trabalho, transitamos entre as marcas de rostidades reveladas pelos artigos revisados e, sem ordem de passagem, elaboramos um mapa, de muitos possíveis, que mostra caminhos de resistência criados pelos autores acadêmicos, apoiando-nos nas três características mencionadas da educação menor. Isso posto, eis o que propiciaram as produções capturadas na base de dados Google Acadêmico.
Cartografando a literatura crítica
Segundo nosso recorte de investigação, os artigos selecionados se restringiram à crítica acadêmica da educação básica brasileira. Mesmo que alguns textos foquem suas análises em atividades desenvolvidas na graduação em licenciatura, consideramos que essas produções antecipam a escola básica.
Diante de textos duplamente expositores e propositivos, pudemos criar blocos de mapas por temas de pesquisa, os quais intitulamos genericamente de rostidades e resistências, seguidos do foco de análise, condição que facilitou esta revisão crítica, cujo desenvolvimento possui a seguinte organização: rostidades e resistências na formação de professores, na prática docente, no currículo, na educação especial, nas relações de gênero, nas relações de raça e etnia e na gestão dos sistemas de ensino.
Rostidades e resistências na formação de professores
Três artigos se debruçaram sobre a formação de professores, apontando movimentos para a padronização do docente brasileiro que se iniciam pelas normas nacionais, influenciam pesquisas, deslizam pelos cursos de licenciatura e se traduzem em práticas. Como os primeiros autores, Amaris-Ruidiaz e Silva ( 2019), teceram crítica ao processo de rostidades operando no macroespaço das políticas públicas, extraímos de sua obra um trecho que consideramos uma síntese, ainda que preliminar, jamais completa e fechada, de um projeto amplo para configuração impessoal do profissional ideal:
Os discursos da qualidade, da eficiência e do sucesso profissional atravessam o mundo educacional, por intermédio de receitas, técnicas e práticas [...] A objetividade é valorizada, não levando em conta a multiplicidade existente nos processos de subjetivação. ( AMARIS-RUIDIAZ; SILVA, 2019, p. 584).
Traços da educação menor de Gallo ( 2002) estão espalhados por todo esse texto, que analisou os objetivos de pesquisas da área de formação para a educação matemática. Quando, por exemplo, Amaris-Ruidiaz e Silva ( 2019, p. 593) defendem a produção de pesquisas intervencionistas, “em que conhecer a realidade é acompanhar seu processo de constituição”, verificamos a característica da ramificação política na proposta de uma investigação não codificada, tendo em vista que a realidade ainda está em construção, sendo propícia a construir seus códigos por sentidos a-significantes.
As segundas autoras desse bloco, Moreira e Carvalho ( 2019), analisaram licenciandos participantes de estágio supervisionado, avaliando o quanto esses futuros docentes do ensino médio já são seguidores de ordenativos enunciados, presentes especialmente nos currículos do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) ou em programas locais de avaliação de desempenho estudantil, “processos formativos pela predominância de uma lógica neotecnicista, atrelada à recognição, ao par perguntas-respostas prontas e aos afetos tristes que enrijecem esse desenho curricular” (p. 342, grifo do autor).
Diante do desejo das autoras de possibilitar o confronto crítico dos estagiários com determinações normativas para a profissão docente, observamos tentativas de construção da educação menor, sendo o confronto a ação de resistência que caracteriza a ramificação política, cuja desterritorialização para outros caminhos dependerá da força dessas críticas, enquanto os encontros e o diálogo entre pares se caracterizam como o valor coletivo do saber e criar em conjunto singularidades externas ao binarismo dentro-fora do currículo oficial.
Johann ( 2012) investigou como os códigos da internet e suas implicações na relação educação e tecnologia se agenciaram aos enunciados de licenciados em Letras e reverberaram em suas práticas, pois esses códigos, segundo ela: “isentos de questionamento, ecoam como verdades absolutas; auto satisfeitas, pretendem se sobrepor às demais, com as quais convivem [...]” (p. 72). Observamos, pelo posicionamento da autora, que a linguagem advinda da comunicação em rede se mostrava ainda embrionária nas escolas em 2012 e, por ser recente, era pouco doutrinada, com possibilidade de se distanciar de convenções e, assim, de produzir outros caminhos para a vida em sociedade. Todavia, a entrevista com três licenciados revelou que o devir-criativo dessa linguagem foi reprimido pelas significâncias binárias de certo e errado presentes nos cânones da disciplina de Língua Portuguesa (LP). Conforme os entrevistados, a linguagem da internet não tinha autorização para ser aceita dentro dos textos de suas aulas.
Com relação ao internetês, E1 afirma que proibiu “esse tipo de linguagem nas redações”; E2 diz que ele “deve ser usado apenas nos meios eletrônicos”, apontando, contraditoriamente, como sugestão - quando questionado a respeito das práticas a ele relacionadas, no âmbito da LP -, a transcrição de textos no referido código para a norma culta. E3 afirma que “é maléfico”, uma vez que “descaracteriza a LP”, reforçando, novamente, a importância da escrita correta.
( JOHANN, 2012, p. 97, grifo do autor).
Diante do desfecho, avaliamos que a pesquisadora se posicionou como uma educadora menor, já que se implicou com a possibilidade de enunciações não consolidadas na escola pela via da linguagem da internet. Contudo, aqueles que estavam no microterritório da sala de aula rejeitaram essa potência e, inclusive, fortaleceram a crença de que esse tipo de linguagem causa prejuízo ao saber-escrita.
A leitura dos artigos sobre formação de professores nos levou a continuar a revisão pelos cinco textos analíticos que compuseram o bloco de análise da prática docente.
Rostidades e resistências na prática docente
Refletindo sobre a necessidade da ética nos processos de avaliação da aprendizagem escolar e sobre as relações de poder subjacentes a essa atividade, Santos ( 2012) apontou algumas marcas de rostidade: a regulação e o controle da aprendizagem para classificação e seleção social, práticas ancoradas na justificativa da justiça e da imparcialidade, correspondentes, no entanto, à meritocracia, que exclui e transfere a responsabilidade do êxito ou fracasso aos estudantes.
Propondo outros caminhos, a autora se apoiou em teóricos defensores de práticas orientadas para a inclusão e a democratização, sendo a avaliação formativa o modelo mais apropriado para a inserção da ética nesse processo pedagógico, já que “o professor não avalia com a intenção de medir ou classificar, mas sim dar continuidade ao percurso da aprendizagem tomando como referência o próprio aluno” ( SANTOS, 2012, p. 66). Assim, por sua característica de resistência a práticas seletivas, percebemos que a proposta pode se caracterizar como a ramificação política da educação menor de Gallo ( 2002), ação com possibilidade de desterritorialização suficiente para a mudança da cultura avaliativa referenciada no binarismo aprovado-reprovado e integrado-excluído.
A regulação do ato docente para a avaliação também integrou a crítica de Axt ( 2006), que questionou a legislação da educação a distância (EAD) no Brasil no que se refere à obrigatoriedade de determinadas atividades presenciais, principalmente a avaliação, “em nome da manutenção de uma certa qualidade formativa” (p. 256). A autora traz argumentos distintos entre os termos presencial (estar em algum espaço e tempo) e presencialidade (ato de atenção, de consciência do ser), sendo que esse último independe da presença “do corpo, do rosto, do olhar” (p. 256). Conforme registrado em seu texto, a autora se apoiou nos conceitos de interação dialógica, de Bakhtin, e de potência dos sentidos, de Deleuze, que não precisam do corpo presente para ter força.
Diante da crítica à exigência da presença dos corpos na EAD em detrimento da liberdade para outros métodos e práticas docentes, Axt ( 2006, p. 266) concluiu: “Sem espaço de criação, o si fica sem o seu próprio rosto [...] perde a possibilidade de autoria.” Retomando as características da educação menor de Gallo ( 2002), observamos a inibição da possibilidade de desterritorialização, que, sem força, mantém discentes e docentes em processo de reprodução, dificultando a inserção de outros códigos de aprendizagem.
Andrade e Bastos ( 2017) apostaram em inventivos códigos de aprendizagem ao cartografarem grafites e fotografias elaborados por estudantes habitantes da cidade de Ichu e de um território quilombola em Feira de Santana, ambos no Estado da Bahia, apoiando-se pedagogicamente nas seguintes questões: “o que podem as imagens quando não pretendem explicar, ilustrar, registrar as cidades? Ocupações (im)prováveis? Desterritorializações (im)possíveis?” (p. 38-39).
Por todo o texto, vemos ações de ramificação política em busca de inusitadas desterritorializações, de outros olhares, propiciados pela ação didática voltada para a lente e o spray dos estudantes e de costas para o regramento do que se deve ver, sentir, agir e do quanto se pode escapar da tentativa de captura do currículo prescrito.
Já Bellavinha ( 2020, p. 84-85) expôs rostidades presentes em atividades de leitura escolar limitadas à reprodução mecânica do dito e do lido, dificultando experiências de tradução possibilitadoras da formação do legente (agente ativo da leitura), pois, segundo os argumentos da autora, a tradução ativa envolve o mundo do leitor com a história lida, situação que “oportuniza a articulação de novas realidades, outras vias de existência: arrasta consigo mundos”, e a chance de criação de códigos ainda não subjugados. Assim, mesmo ciente de que a máquina de rostidades sempre buscará a captura de desvios para moldá-los ao rosto desejado, a autora afirma ser “essencial insistir nessa rebeldia”. Com isso, analisamos o quanto a formação do legente também é ação de ramificação política e tem potência de desterritorialização.
Por sua vez, analisamos que o artigo de Prudente e Souza ( 2021, p. 1) trouxe especialmente a característica do valor coletivo da educação menor de Gallo ( 2002), quando aponta que a união faz a força, ao criticar o poder do centro, delineado pelo rosto do “euro-hétero-macho-autoritário”, que despreza a periferia e a potência de ações menores e insistentes. Implicado com elementos excluídos do rosto dominante, o texto sugeriu a professores que olhassem pedagogicamente para as possibilidades cognitivas do filme brasileiro Bacurau, posto que seu enredo se desenvolve por relações horizontais em uma fictícia comunidade, independentemente de classe econômica, idade, raça e etnia. Para as autoras, “esta interlocução [...] propõe uma quebra com o raciocínio cartesiano que se baseia em uma construção imperialista, colonial”.
A exploração pedagógica da estética do cinema, da literatura e de outras expressões artísticas também foi proposta como possibilidade de invenção de outros caminhos para a aprendizagem, conforme detectamos em um dos artigos que expuseram a operação da máquina de rostidades no currículo escolar.
Rostidades e resistências no currículo
Amorim ( 2013) centrou sua crítica em rostidades presentes em currículos fundamentados na separação comparativa de inferioridade entre ciência e arte. Apoiado em conceitos da Filosofia da Diferença, de Deleuze e Guattari, cuja teoria defende a interrelação assimétrica entre filosofia, arte e ciência, o pesquisador selecionou três obras ficcionais focadas em crianças protagonistas de suas próprias histórias de vida inseridas em contextos de pobreza, exclusão e distanciamento.
Pelo resumo das ficções, observamos que as três crianças imergiram em experiências de desterritorialização durante encontros com pessoas, terra, coisas e até mesmo com solidão, mostrando que o percurso da individuação é indeterminado e aberto ao inusitado e o quanto o currículo pode se basear também em ações de força e não apenas de forma/modelo. Com isso, na concepção da educação menor, vemos que, para o currículo ser desterritorializante, atividades pedagógicas possibilitadoras de inventivas práticas artísticas são oportunidades para se investir em movimentos de ramificação política.
Questionando também o currículo determinante, Carvalho, Silva e Delboni ( 2017) exploraram a então proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Considerando-a produto da máquina abstrata de rostidades, as autoras expuseram seu modelo e objetivo e defenderam por todo texto a necessidade de a comunidade escolar “minimizar os fatores que induzem à passividade ou à potência mínima grupal e estabelecer conexões e/ou modos de associação que possibilitem, na grupalidade, o compartilhamento de ideias e experiências.” (p. 481).
Assim, consideramos que as autoras propuseram atividades que se caracterizam especialmente como o valor coletivo de Gallo ( 2002), posto que incentivaram ações proativas baseadas na interlocução de diferentes pensamentos.
Analisamos que a potência do valor coletivo também foi invocada por Silva e Moreira ( 2018), pois, ao elaborarem revisão da literatura de cinquenta artigos publicados nos dossiês da Associação Brasileira de Currículo (ABdC) pela Revista e-Curriculum, no período de 2012 a 2016, detectaram a predominância de trabalhos sob autoria de pesquisadores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a ausência de artigos de instituições localizadas nas regiões Centro-Oeste e Norte. Além disso, as autoras apontaram que, entre as oito referências mais citadas, metade era de teóricos vinculados à UERJ, levando-as a questionarem a partir de ausências e de aglomerações unívocas: “como fazer ressoar o pensamento-diferença para movimentar ainda mais o campo curricular entre currículos e formação de professores como micromacro de políticas educacionais?” (p. 1378).
O raciocínio das pesquisadoras nos lembrou a reflexão de Gallo ( 2002, p. 176): “a educação menor é um exercício de produção de multiplicidades”, e a conjugação de forças advindas da coletividade em multiplicidade exige a presença dos diferentes, de outros olhares, de outros sentidos, conforme nos mostrou também o artigo integrante do bloco temático a seguir.
Rostidades e resistências na educação especial
Cabral ( 2021) conduziu sua crítica para significados dos termos inclusão e acessibilidade que se distanciam da legitimação dos direitos de cidadãos portadores de algum tipo de deficiência. Buscando outros sentidos para essas palavras, o autor destacou a necessidade da polifonia, do cooperativismo profissional e do engajamento das próprias pessoas com direitos específicos no planejamento e desenvolvimento de ações afirmativas, especialmente as educacionais. Como proposta, trouxe o Índice de Funcionalidade Brasileiro Modificado(IF-BrM), instituído pelo Decreto n. 6.215, de 2007, revisado em 2020, que, segundo ele, supera concepções “biomédicas e capacitistas” ao adotar “critérios biopsicossociais” (p. 159) para a Diferenciação e Acessibilidade Curricular (DAC).
Esse autor usou o conceito de rostidades para amparar seus argumentos finais, alertando para a presença de culturas e posicionamentos pessoais em diferentes contextos da gestão pública brasileira, influenciadoras, portanto, da leitura do IF-BrM e do planejamento da DAC. Para tanto, Cabral ( 2021) propôs leitura plural e reflexões conjugadas pelos aspectos políticos, sociais, antropológicos e psicológicos que fundamentam a educação especial.
Entre as propostas contidas nesse texto, sentimos a potência do valor coletivo, uma das características da educação menor, pois o artigo é marcado pela defesa do agenciamento de diferentes vozes no diálogo para o planejamento do currículo acessível, especialmente as de pessoas necessitadas da educação especial, pois elas comumente são excluídas desse processo. E, na perspectiva cartográfica, percebemos o quanto a desterritorialização de ações afirmativas para essa população ainda se dá em territórios fortemente governados para “a seleção da linhagem” ( DELEUZE, 1974, p. 263).
Os textos a seguir também apontam insistentes rostidades, mas, dessa vez, tentando minar corpos que escaparam do gênero e da cor selecionados para a estética da liderança.
Rostidades e resistências nas relações de gênero
Silva e Paraíso ( 2021) se apoiaram na imprevisibilidade dos sentidos de que o cinema é capaz para instigar professoras participantes de um encontro pedagógico a conversarem sobre corpos, atitudes e diferenças diante de imagens que dialogam com discursos feministas e queer e a cruzarem suas reflexões com o cotidiano dos discursos que moldam currículos fechados e excludentes.
Por sua vez, Vieira e Nolasco-Silva ( 2020, p. 172) desenvolveram seu texto a partir da imagem do corpo, “corpo-tela que informa possibilidades e limites, que expande e atrofia a existência em constantes processos de negociação”. Especificamente, trataram do corpo trans no espaço escolar e o que ele produz ao resistir ante o domínio do corpo-imagem tido como natural. Os autores se aportaram em conceitos como gênero e sexualidade para argumentar sobre o quanto o corpo trans na escola convida educadores e estudantes a (re)pensarem o direito à diferença e a outros modos de vida, reflexão que se movimenta em direção a (re)pensar currículos e práticas tidas como absolutas.
Por falar em diferença, optamos, nesse bloco, por despadronizar nossa lógica textual de tratar dos artigos individualmente para refletir sobre a potência das imagens projetadas nesses dois estudos, analisando o quanto cenas e corpos trans desterritorializam o pensamento e concebem, mesmo por um breve instante, um pensamento sem imagem ( DELEUZE, 2003, 2006), possível quando o desconhecido nos invade e quebra o raciocínio premeditado (imagem do pensamento), moldado por verdades materializadas e cristalizadas no nosso ser, o que nos força a pensar e a criar outras verdades, outros signos.
A imagem do pensamento coletivo é ainda mais potente, pois o consenso cria persistentes verdades, como é o caso dos preconceitos raciais e étnicos, invasores de sociedades, portanto, invasores de currículos escolares. No entanto, ações de resistência conquistaram espaços jurídicos, e, hoje, a educação para as relações étnico-raciais possui regras inibidoras de condutas excludentes, estimulando estudos e comportamentos implicados em transformá-las em imagem do pensamento, de modo a premeditar o raciocínio coletivo até a justa naturalização dessa luta. Destarte, eis o que encontramos entre o acervo sob análise.
Rostidades e resistências nas relações de raça e etnia
Zamora ( 2012) integrou o conceito de rostidades entre seus argumentos sobre a operação do racismo nas sociedades. Segundo a autora, enquanto o racismo europeu se dá pela ausência da alteridade, ou seja, pela inexistência de qualquer outro que não seja o homem branco ( DELEUZE; GUATTARI, 1996c), no Brasil, o racismo esbarra principalmente na negação da existência de pessoas racistas, mascarando relações excludentes e inibindo políticas públicas afirmativas.
Como a cor é o fundamento da justificação do racismo, a autora reservou espaço textual sobre esse assunto e ampliou o escopo cromático do corpo para a estética anatômica, mostrando que, no caso de aprisionamento pelo discurso significante da beleza branca, surge o desejo do disfarce, “de fazer-se ‘passar por branco’. Mas ao desejar embranquecer, o negro não se permite existir; ele instaura o projeto de sua própria extinção.”
( ZAMORA, 2012, p. 567).
O artigo em questão nos permitiu analisar mecanismos silenciosos de captura do corpo negro para a modelação do rosto branco dominante. Contudo, a autora, por ser psicóloga, propôs o engajamento de profissionais dessa área científica em ações de ramificação política pela formação e pela pesquisa, já que, no ano de seu texto, havia mais que o triplo de publicações de outros campos da área da saúde, apontando para a insipiência da psicologia no enfrentamento desse problema.
A força coletiva do engajamento, ou o valor coletivo da educação menor de Gallo ( 2002), está presente como proposta de ação em metade dos artigos sob análise, porém, o próximo e último texto do acervo investigou do que essa força é capaz, ao analisar os efeitos da mobilização estudantil ocorrida no sistema público de educação do Estado de São Paulo no ano 2015.
Rostidades e resistências na gestão dos sistemas de ensino
No segundo semestre de 2015, frente ao anúncio pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo de um processo de reorganização da rede de ensino, que implicaria no fechamento de escolas, grupos de estudantes que tentaram negociar com o governo e não foram ouvidos ocuparam diversas escolas públicas, o que levou ao recuo político do governo.
( GALLO; CARVALHO, 2016, p. 154).
Sob o contexto da mobilização em destaque, Gallo e Carvalho ( 2016) investigaram a transformação do posicionamento de estudantes de assujeitados a sujeitos de seus desejos. Com esse objetivo, os autores elaboraram perguntas orientadoras para entender desde o modo como diferentes grupos discentes reagiram ao anúncio do poder estadual sobre o fechamento de 93 escolas; como se mobilizaram e criaram força coletiva, apesar de suas diferenças; como se deu a perda de confiança nos designados para a governança da ordem social e suas possíveis consequências; até como o agenciamento entre estudantes, professores e sociedade causou aquilo que compreendemos por desterritorialização dos sentidos e levou à construção de outro discurso, outro caminho político e outro tipo de confiança, criada entre e por eles mesmos.
À vista do que analisamos e de tudo com que nos deparamos, ponderamos sobre o quanto a leitura conjugada das obras, propiciada por esta cartografia revisional, expôs a potência criativa de atitudes “menores”, que buscaram a verbalização de enunciados inconclusos e não pré-determinados, possíveis de transgredir verdades unilaterais e de enunciar outros símbolos, já que a vida se perfaz por signos, independentemente de seus efeitos.
Apostando em marcas que valorizam o direito à pluralidade da vida, os artigos propuseram, a seu modo, a fruição dos sentidos como estratégia para minar signos padronizadores da vida, nos termos do apelo de Deleuze ( 2003, p. 95): “É preciso ser dotado para os signos, predispor-se ao seu encontro, expor-se à sua violência. A inteligência vem sempre depois; ela é boa quando vem depois [...]“. Isso, porque, enquanto o pensamento constrói imagens de pessoas, coisas e verdades, a criatividade dos sentidos estimula a inteligência a questionar tudo isso, tal como ocorreu conosco ao nos entregarmos a esta pesquisa, ao nos agenciarmos com produções críticas que nos trouxeram múltiplos olhares, alguns ainda sem imagem, portanto, ainda indizíveis; e outros possíveis de composição, conforme nossas ponderações finais.
E foi assim que aconteceu...
Movidas pelo desassossego ante o anúncio de fragmentos do projeto de padronização humana proclamado pelos ex-ministros da educação citados nesta revisão, realizamos pesquisa digital da literatura acadêmica em busca de críticas a esse tipo de projeto que se apoiaram no conceito de máquina de rostidades teorizado por Deleuze e Guattari ( 1996a, 1996b, 1996c). Dezesseis artigos estudaram a presença de rostidades na educação básica brasileira nos territórios da formação de professores, da prática docente, do currículo, da educação especial, das relações de gênero, das relações de raça e etnia e da gestão dos sistemas de ensino, permitindo-nos organizá-los por blocos temáticos e denominá-los de rostidades e resistências, já que, durante nossa análise, observamos proposições para o desbravamento de outros caminhos.
Embora a organização por temas tenha facilitado nossa pesquisa, sabemos que os campos de conhecimento não se isolam. Aliás, como destacamos ao longo deste trabalho, nada se constrói ou se mantém sozinho, valendo o mesmo raciocínio para a operação da máquina de rostidades, pois, de acordo com o que vimos no acervo analisado, o projeto de homogeneização humana para a educação funde territórios e flui comodamente entre eles.
O território é o mesmo, o raciocínio é equivalente, até o objeto é o mesmo, embora com sentido diferente, já que o padrão busca a forma (signo-matéria); e a diferença, o ser (signo-essência). Por isso, rostidades e resistências estão sempre à procura de desvios, mas com objetivos diferentes, pois, enquanto os movimentos de fuga desejam desvios para a criação e o direito de existência do outro, a rostidade deseja capturar desvios para o delineamento de uma só face da moeda. Caso não consiga, ela lança projetos de negociação que simulam direitos de existência e de convivência, desde que os resistentes tenham seus rostos sempre voltados para a face dominante, conforme detectaram os artigos analisados.
Por fim, reportando-nos novamente à educação menor de Gallo ( 2002), concluímos que o encontro com os textos selecionados nos propiciou desterritorialização suficiente para sacudir e ampliar nossa percepção sobre as estratégias do projeto capitalista de subjugo social. Assim, diante de nossa experiência, esperamos que revisões de literatura ganhem mais espaço nos periódicos brasileiros e que seu valor coletivo, pela conjugação de produções em um único texto, facilite a pesquisa de estudantes e seja um convite à leitura científica, especialmente a de autoria nacional, no intuito de abrir caminhos de resistência para nossa estética brasileira de olhar, de sentir e de refletir sobre a educação como signo-essência.