A Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), é a Universidade que frequentei em meus cursos de graduação, por isso é com muita felicidade que participo desse esforço editorial na organização desta sessão temática denominada Educação e Civilização, na qual são apresentados textos focando diferentes realidades empíricas e abordagens teóricas, em torno do tema proposto.
“Civilização e habitus fronteiriço na obra de José Melo e Silva”, do Dr. André Soares Ferreira é um artigo oriundo de seu recente doutorado na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Grande Dourados. Nesse artigo observamos que na historiografia sobre a região fronteiriça estudada, os conceitos de Educação e Civilização estão imbricados, indicando um processo civilizador com profundas marcas regionais, no caso, marcado pela região da fronteira seca do Brasil com o Paraguai.
O artigo “Educação em comunidades amazônicas”, elaborado a partir da tese de doutorado do Dr. Gláucio Campos Gomes de Matos, da Universidade Federal do Amazonas, defendida na Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas, sob orientação da Dra. Maria Beatriz Rocha Ferreira, ambos os autores desse artigo, foca a educação de ribeirinhos amazônicos, através de uma pesquisa etnográfica apoiada na Teoria dos Processos Civilizadores, de Norbert Elias.
Já o Dr. Norman Gabriel, da Universidade de Plymouth, ressalva que Elias não tratou explicitamente das práticas educacionais, mas sempre se interessou pelos processos de aprendizagem social, especialmente na relação entre crianças e adultos, aprendizagem esta fundada em algo tipicamente humano: o gostar de aprender. A partir de John Macmurray e John Deway, agregando uma abordagem psicanalítica, seu artigo avança na superação da dicotomia entre educação tradicional e educação progressiva.
Para melhor integrar os textos acima mencionados, farei uma rápida introdução às teorias de Elias; esta colocação no plural, neste caso, é um importante alerta para duas questões fundamentais. A primeira é que estamos tratando de um autor que, na maturidade dos seus oitenta anos, explicitamente assume a construção de duas teorias. No primeiro caso, com a “Teoria dos processos civilizadores” (Elias, 1993, 1994a) e, em seus últimos anos, já cego, avança na construção da “Teoria simbólica” (Elias, 1994b). Vale a pena ao leitor curioso e interessado em Elias, ler seu depoimento, traduzido em português pela Zahar em 2000 sob o título “Elias por ele mesmo” (Elias, 2000).
Vejamos então algo sobre Elias e a “Teoria dos processos civilizadores”. Norbert Elias nasceu em Breslau (Polônia), hoje Breslau (Alemanha), em 1897, e faleceu em Amsterdam (Holanda) em 1990. Filho de família judia, seu pai, Hermann Elias, faleceu em 1940 em Breslau, e sua mãe, Sophie Elias, faleceu em torno de 1940 em Auschwitz. Tendo servido na Primeira Guerra Mundial como soldado, mudou-se da Alemanha quando da ascensão do nazismo, em 1933.
Sua trajetória acadêmica em Medicina, anteriormente à sua participação na Guerra de 1914, e em Sociologia, posteriormente, ambas completadas na Alemanha, marcam sua formação intelectual, na medida em que um dos aspectos importantes de seu pensamento é a articulação entre os comportamentos apreendidos e os geneticamente adquiridos.
Para Elias, a Sociologia refere-se a pessoas – pessoas vivendo em “interdependências” nas mais variadas formas, justamente estas figurações sociais, nas quais se estabelecem múltiplas interdependências que modelam e envolvem o viver em sociedade. Estabelecem-se “configurações” sociais móveis, tanto interna quanto externamente a um determinado grupo. Estão sempre em fluxo, em processo vivencial, e as transformações decorrentes, algumas rápidas e efêmeras, outras de longo curso e mais duradouras, definem e redefinem a balança de poder entre pessoas e grupos. Essas configurações sociais são, dessa maneira, consequências inesperadas das inúmeras possibilidades de interações sociais vividas, estando o “poder” situado sempre como elemento fundamental de qualquer configuração. Nesse caso, não devemos pensar o poder no sentido marxista de controle do aparelho de estado ou das relações de produção, mas sim como algo que percorre todas as relações humanas de forma multidimensional. O poder não pode ser pensado enquanto componente de uma sociedade fragmentada (esferas, variáveis, níveis); não existem proeminências ou generalizações universais, ou seja, o Estado, enquanto síntese de uma determinada concepção de poder, é estratégico nas sociedades industriais. Não obstante, tendo em vista o longo e diferenciado processo de constituição e instauração de formas de poder, outras formas de organização de poder institucional também se verificaram, interagindo com as configurações não planejadas, “cegas”, vividas no cotidiano.
Nessa direção, encontramos um dos elementos básicos de um processo de longa duração entrelaçando ações não intencionais tanto de grupos quanto de indivíduos. Esse processo denomina-se “processo de civilização”. É um processo necessariamente não planejado e imprevisível, em especial no que diz respeito às alterações de longo prazo que têm ocorrido nas figurações humanas2. Encontrar evidências empíricas dessa afirmação é, como o próprio Elias alerta, um dos objetivos centrais que o levaram a escrever “O processo civilizador” (Elias, 1993, 1994a)
O ponto central no qual se apoia a teoria do processo de civilização é a existência desse processo “cego” (não planejado) e empiricamente evidente. Trata-se do processo de “cortenização” e/ou “parlamentarização” dos guerreiros medievais; isso equivale a dizer em termos práticos: a violência imbricada no cotidiano dos guerreiros cede lugar ao debate e ao refinamento das atitudes dos cortesãos. A solução dos conflitos e o controle da violência passam a ser encaminhados de forma distintiva em relação ao uso imediato e explícito da força/violência. Longe de constituírem uma antítese, violência e civilização são processos complementares, são formas específicas de interdependência. A civilização dependerá do estágio de controle da violência, do monopólio dos impostos que permitem constituir uma força suficientemente efetiva para impor a pacificação interna. Ou seja, o crescimento da economia e o estabelecimento do Estado jogam um papel fundamental nesse processo. Elias termina sua “Introdução à Sociologia” colocando esta questão de maneira muito clara:
A ascensão e queda de grupos dentro das configurações e as tensões e conflitos estruturais concomitantes, são centrais em todos os processos evolutivos. Têm que ser colocados no centro de qualquer teoria sociológica da evolução. De outra forma, torna-se impossível chegar ao problema (teórico e prático) central com o qual os sociólogos constantemente se defrontam. Este problema é se e até que ponto as tensões e os conflitos não controlados, entre diferentes grupos de pessoas, podem ser sujeitos a um controle e a uma orientação conscientes por parte daqueles que neles estão envolvidos, ou se tais tensões e conflitos apenas podem ser resolvidos pela violência, quer como revoluções dentro dos estados, quer como guerras entre eles
(Elias, 1980, p.191).
Como então compreender esse processo de civilização, de tal maneira a caracterizá-lo? Constitui seu principal elemento, especialmente considerando os casos da França, Alemanha e Inglaterra, ainda que em diferentes momentos, além da cortenização dos guerreiros medievais, uma mudança na natureza privada do poder, implicando um processo de democratização e representatividade na condução da coisa pública. A par disso, trata-se de um processo de ampliação das relações de interdependência, no que se refere tanto à divisão do trabalho, quanto ao surgimento de um mercado internacional. Do ponto de vista da democratização dos processos decisórios, é importante considerar a mudança das relações de dependência entre a elite e a população. É bom lembrar a nova configuração das classes sociais, os grupos minoritários, a emergência da mulher enquanto força política; esses exemplos tornam bastante nítida a nova configuração dos processos de interdependência.
Em resumo, a teoria de Elias torna-se mais clara na medida em que observamos como são sistematizados os controles, através dos quais se torna possível balizar o estágio de desenvolvimento da sociedade. Esse estágio pode ser determinado por: (1) um processo de centralização política, administrativa e controle da paz interna (surgimento dos Estados); (2) um processo de democratização, devido ao aumento das cadeias de interdependência, especialmente pelo nivelamento e democratização funcional do exercício do poder; (3) o refinamento das condutas e o crescente autocontrole nas relações sociais e pessoais; nesse sentido há um evidente aumento da consciência (super ego) na regulação do comportamento.
Pode-se afirmar que a questão central dos “estudos configuracionais” volta-se para as conexões entre o poder, o comportamento e as emoções, isso em uma visão de longa duração, significando que os problemas de pesquisa são tomados na perspectiva de processos. Há uma rede de relações entre seres humanos, na qual a balança de poder muda constantemente, de forma assimétrica, sem dicotomizar autores e atores, indivíduo e sociedade. Não se trata de resolver o real através de novos conceitos teóricos, os processos não podem transformar-se em estados.
É importante ter presente que o processo também pode ser de de-civilização (nazismo, por exemplo). É também necessário enfatizar que esse modelo de análise é centrado na história da Europa, mais especificamente na história da Inglaterra, França e Alemanha. Seria um processo centrado na Europa, não necessariamente eurocêntrico, estando nesse aspecto uma das questões mais interessantes da Teoria do Processo Civilizador: em que medida sociedades colonizadas constroem sua autoimagem pautadas pela “consciência de civilização” europeia?
De acordo com os elementos essenciais identificados para caracterizar o processo civilizador, Elias formula uma “tríade de controles básicos”, que demonstrariam o estágio de desenvolvimento de uma civilização:
Controle dos acontecimentos naturais: poderíamos dizer então que as ciências da natureza se desenvolveram muito mais, dado que o controle dos acontecimentos não humanos verifica-se prioritariamente. O desenvolvimento científico e tecnológico corresponde ao nível de controle atingido pelo homem em relação ao natural. Nesse processo, o papel da educação é bastante evidente. De maneira geral podemos afirmar que o ensino das ciências naturais e da tecnologia tem sido um dos pilares que tipificam o sistema educacional, pelo menos em termos de conteúdo curricular escolar e processos avaliatórios.
Controle das relações entre os humanos, ou seja, das relações sociais: é evidente, e Elias reafirma isso em várias passagens, que é bastante característico das sociedades modernas o fato de a dimensão das hipóteses de controle sobre as relações naturais ser superior e crescer com maior rapidez do que a dimensão relativa às hipóteses de controle das relações sociais. Ou, ainda, as ciências naturais desenvolveram-se muito mais do que as ciências sociais, em consequência da dificuldade maior de controlar as relações sociais.
Daquilo que o indivíduo apreendeu durante sua vida no sentido de exercer o autocontrole: sem correr muito risco em relação à fidelidade ao pensamento de Elias, julgo poder afirmar aqui o papel central da educação em sua teoria, especialmente se observada a articulação com o domínio da ciência e da tecnologia. O desenvolvimento do conhecimento humano ocorre sempre no interior de configurações vividas, sendo um aspecto fundamental do desenvolvimento dessas pessoas em sociedade.
Como todo modelo teórico de análise, a proposta de Elias tem alguns críticos. Segundo Van Krieken (1998), essas críticas podem ser concentradas em quatro aspectos fundamentais: (1) considerando-se a questão da continuidade e da mudança, teria havido o grau e o tipo de transformação na conduta humana, tal como Elias argumenta? (2) seriam a civilização e o barbarismo definições suficientemente abrangentes, para dar conta das contradições e dos conflitos dos processos civilizadores? (3) a ênfase na natureza cega, não planejada, dos processos civilizadores, não obscurece a intervenção humana? Estamos falando de processos ou de momentos civilizadores? (4) está suficientemente clara a relação que Elias estabelece entre a vida psíquica e as relações sociais?
Em resumo, sem uma adesão a priori ao pensamento de Norbert Elias, e reconhecendo a necessidade de uma aproximação crítica de suas colocações, é indiscutível a contribuição desse autor para reorientar a teoria sociológica, no sentido de romper com a polarização, em alguns momentos maniqueísta entre “bipolares clássicos” (micro e macroanálises, estrutura e conjuntura, determinação e indeterminação, histórico e sociológico). É importante marcar sua contribuição ao enfatizar as relações sociais em processos de longa duração, vividos por seres humanos interdependentes em sociedade, agindo segundo seus “habitus”. Não se trata de aceitar acriticamente a perspectiva de longa duração na abordagem histórica; trata-se, sim, de chamar a atenção para essa problemática colocada por Elias, no sentido de visualizar novas possibilidades de abordagem, novos problemas e novas perspectivas para focalizar a História da Educação.