Introdução
Os modelos educacionais, de modo geral, representam os interesses hegemônicos das sociedades em cada formação social específica, vinculados diretamente aos padrões ético-políticos e aos seus modos de produção econômica e social. Cumprem a função de reprodução daqueles valores e de fornecimento de mão de obra qualificada ao mercado de trabalho, normalmente a partir de uma formação técnica de caráter mais funcional. Em termos gerais, pode-se afirmar que é esse modelo de educação que persiste no País, reforçado pelas mais recentes reformas educacionais, como, por exemplo, a reforma do Ensino Médio, que será tratada nesta análise.
Será apresentado um conjunto de considerações sobre a natureza da educação em sociedades divididas em classes sociais a partir das análises históricas e teóricas do papel do sistema capitalista enquanto elemento organizador das instituições políticas, jurídicas e econômicas existentes. O referido modo de organização econômica separa artificialmente o ato intelectual da ação prática, que estão articulados à prática social e, por isso, são momentos de criação humana intrínsecos e inseparáveis. Os modelos de educação, ao materializarem as concepções úteis aos esquemas de dominação com base em um oferecimento de educação “adequado” às origens de classe, perpetuam e aprofundam as históricas e injustificáveis desigualdades sociais, elas próprias consequências do sistema de acumulação capitalista.
Há uma impressão, guardadas as devidas diferenças históricas e conjunturais, de que a reforma do Ensino Médio proposta recentemente pelo governo Michel Temer (2016-2018) visa recuperar as fórmulas de organização educacional típicas de períodos autoritários, como parte de uma concepção de educação conservadora associada a outras tantas mudanças gerais no sistema de educação do Brasil. Concordando com as observações preliminares de importantes teóricos, as alterações legais implementadas se revelam claramente regressivas e, ao cabo, irão penalizar sobretudo as classes sociais já excluídas dos bens produzidos socialmente.
Por outro lado, fica evidente o total desrespeito ao Plano Nacional de Educação (PNE) sancionado em 2014 pelo governo Dilma Rousseff (2011-2016). Resultado dos debates democráticos promovidos pela sociedade brasileira nas Conferências Nacionais de Educação de 2010 e 2014, o PNE expressou metas importantes que, acaso cumpridas, significariam a necessária melhoria da qualidade da educação nacional no decorrer da sua implantação, incluindo questões ligadas à formação e valorização profissional, à articulação entre as etapas e modalidades da educação e aos investimentos financeiros crescentes. De início, é importante frisar que os pressupostos teóricos e os objetivos da reforma do Ensino Médio são opostos aos valores ético-políticos que nortearam o conjunto do texto do PNE3.
De toda forma, essa dualidade educacional não é algo recente. Para comprovar essa afirmação, destaca-se a necessidade de fazer um breve apanhado histórico sobre a maneira pela qual a Educação Profissional vem sendo tratada em termos legais e práticos pelas gestões governamentais no decorrer da república brasileira. É possível confirmar, a partir dessa perspectiva, um direcionamento claro das políticas governamentais no sentido de afastar os segmentos mais populares de uma educação mais ampla e reflexiva, reservando a estes uma formação para o ingresso precoce no mercado de trabalho enquanto a continuação dos estudos fica reservada aos setores mais privilegiados.
Essas são, em linhas gerais, as considerações que serão desenvolvidas neste artigo. Conforme indicado acima, a fim de embasar consistentemente as argumentações sobre essas questões ao longo do texto, serão abordados autores com produções teóricas pertinentes aos temas tratados. Haverá, de início, uma discussão pertinente sobre as relações existentes entre sociedade, Estado e educação para a compreensão dos fatores mais gerais que influenciam a proposição dessas alternativas educacionais implantadas no País. Ademais, serão feitas considerações acerca dos motivos que levam à exclusão de opções educacionais distintas das que estão sendo implementadas.
Em termos teórico-metodológicos, este trabalho está situado no campo do materialismo histórico-dialético, visto que essa abordagem possibilita apreender as contradições e as relações de força subjacentes aos embates políticos, sociais e econômicos que orientaram a formulação do conjunto de leis que regulamentam a área educacional, bem como permite compreender as concepções educacionais em disputa. Nesse horizonte teórico, algumas categorias analíticas se tornaram fundamentais para conferir um embasamento consistente às análises desenvolvidas no decorrer do texto, notadamente de autores que se filiam aos pressupostos teóricos de matriz marxista. Recorre-se, assim, às categorias analíticas de “Estado” desenvolvidas por Mészáros (2002) e Engels (2012), da relação entre “trabalho” e “educação” com foco em Mészáros (2002) e Savianni (2007) e de “classe social” fundamentados em Marx (1996), Mészáros (2002) e Marx e Engels (2004). Esses conceitos subsidiam as argumentações feitas ao longo do texto, quando serão pertinentemente discutidas.
Concomitantemente, a análise cuidadosa das fontes documentais que encaminham as mudanças no âmbito legal, legitima e justifica, em certa medida, o contexto político e ideológico que será aludido ao longo do texto, bem como as interpretações teóricas advindas do cotejo entre elas. Além disso, essas fontes tornaram possível compreender a concretização, no plano legal e formal, dos interesses e conflitos implícitos aos projetos de sociedade e de educação que estão em disputa quando da discussão das propostas de Ensino Médio que serão implantadas no País.
Sintetizando e esclarecendo de maneira mais objetiva a linha de trabalho adotada, pretende--se, com base em fundamentações teóricas derivadas do materialismo histórico e dialético, analisar o eixo normativo educacional que configura o modelo de Ensino Médio proposto pela lei. Com isso, busca-se refletir o contexto social, econômico e político relativo aos conflitos de classe vigentes no modo de produção capitalista, considerando, ainda que brevemente, a complexidade desse sistema produtivo e as suas implicações nas propostas educacionais que representam, em grande medida, a síntese dessas contradições e os conflitos de classe existentes em dada formação social e econômica específica, no caso, a brasileira.
Considerações acerca das relações entre sociedade, Estado e educação
São muitas e variadas as interpretações sobre as consequências do modo de produção capitalista para as sociedades ao longo da sua criação e consolidação histórica. Destaca-se, como exemplo de consequências, a acumulação da riqueza por parte de uma minoria, o aumento da pobreza e da miséria da maioria, a devastação dos recursos ambientais, a concorrência predatória desmedida que promove guerras entre as nações, a desvalorização do trabalho e a coisificação das pessoas.
Como demonstrado em textos clássicos (Mészáros, 2002; Lenin, 2012), o capitalismo passou por profundas alterações em sua estrutura de funcionamento, afastando-se dos processos reais dos meios de produção rumo a uma autonomização financeira-especulativa, conquanto mantenha suas características crescentes que encontram na acumulação da riqueza produzida o elemento motriz da sua existência. Em outras palavras, sua sofisticação acumulativa guarda estreita relação com sua expansão global, subjugando nações, fronteiras geográficas e instituições internacionais. Mészáros (2002) demonstra, em suas análises, de que modo essa subjugação acontece, ressaltando que o capital controla todas as faces da organização social de uma maneira inédita na história humana. Segundo o autor:
Não se pode imaginar um sistema de controle mais inexoravelmente absorvente – e, neste importante sentido, ‘totalitário’ –, do que o sistema do capital globalmente dominante, que sujeita cegamente aos mesmos imperativos a questão da saúde e a do comércio, a educação e a agricultura, a arte e a indústria manufatureira, que implacavelmente sobrepõe a tudo seus próprios critérios de viabilidade, desde as menores unidades de seu ‘microcosmo’ até as mais gigantescas empresas transnacionais, desde as mais íntimas relações pessoais aos mais complexos processos de tomada de decisão dos vastos monopólios industriais, sempre a favor dos fortes e contra os fracos
(Mészáros, 2002, p.96).
Levando essa questão em conta, Mészáros avalia que o sistema do capital, com sua reprodução metabólica totalitária, entrou em uma crise contínua, decisiva e abrangente que envolve todos os setores da vida social, visto que sua expansão totalizante não encontra limites. Diferente das chamadas crises cíclicas do capital, ele reflete que o atual estágio é de aprofundamento absoluto das suas contradições, decorrentes das restrições inéditas à manutenção das suas taxas de lucro em todo o mundo, da geração de maiores pressões sobre o trabalho e dos gastos em áreas sociais. Para conseguir atender a essa necessidade reprodutiva de acumulação, o capital se descola da sua produção social e avança para a pura especulação financeira, em um processo artificial de valorização ou em um processo de autodestruição mediante os conflitos bélicos insolúveis.
Acrescentando um importante dado histórico sobre esse ponto, Saviani (2007) argumenta que a divisão da sociedade em classes acontece com o fim das sociedades comunais, que não conheceram essa distinção. Ainda que não seja possível falar na existência de sistemas educacionais, os tipos de educação que existiram irão refletir esse fato com mais clareza:
[...] ora, essa divisão dos homens em classes irá provocar uma divisão também na educação. Introduz-se, assim, uma cisão na unidade da educação, antes identificada plenamente com o próprio processo de trabalho. A partir do escravismo antigo passaremos a ter duas modalidades distintas e separadas de educação: uma para a classe proprietária, identificada como a educação dos homens livres, e outra para a classe não proprietária, identificada como a educação dos escravos e serviçais. A primeira, centrada nas atividades intelectuais, na arte da palavra e nos exercícios físicos de caráter lúdico ou militar. E a segunda, assimilada ao próprio processo de trabalho
(Saviani, 2007, p.155).
É este precisamente o ponto central que deve ser destacado. Com a divisão da sociedade em “classes antagônicas e inconciliáveis” (Marx; Engels, 2004), os grupos dominantes reservaram aos segmentos oprimidos um modelo de educação em que as atividades laborais ficaram dissociadas do trabalho intelectual, território destinado aos dominadores. A unidade entre teoria e prática e entre reflexão e ação perderam o sentido para a classe trabalhadora. Isso originou um processo de alienação das condições concretas de existência que se acentua permanentemente à medida que o capitalismo se interioriza nas práticas sociais e culturais, se apropria das riquezas materiais e ambientais, controla Estados e estabelece um modelo de sociedade apartado entre seus segmentos.
O trabalho, no dizer de Saviani (2007), perde suas características pedagógicas e de humanização da prática social; para a classe trabalhadora, não faz sentido falar em trabalho como ato de criação, muito menos como ato de realização humana, pois ele representa fonte de sofrimento, angústia e exploração. Não existindo relação direta entre o ato criativo e a idealização do fazer concreto, o trabalho se apresenta apenas como uma tarefa mecânica e desgastante, com propósitos imediatos, estranho e desconectado das vivências cotidianas. Esse fenômeno é reproduzido pelos sistemas educacionais.
Frigotto e Molina (2010), em sintonia com Saviani (2007), defendendo uma concepção de educação contra-hegemônica, fazem-no com a clara noção do modelo de organização educacional estruturado pelas classes dominantes que é preciso combater. Eles pontuam que:
Na realidade, instaura-se e se perpetua historicamente a escola dual. De um lado, a escola clássica, formativa, de ampla base científica e cultural para as classes dirigentes e, de outro, a escola pragmática, instrumental, adestradora e de formação profissional, restrita para os trabalhadores, na ótica das demandas do mercado. Trata-se de ensinar, treinar, adestrar, formar ou educar na função de produção, adequada a um determinado projeto de desenvolvimento pensado pelas classes dirigentes
Partindo, então, do pressuposto evidente de que as instituições políticas e jurídicas existentes cumprem o papel histórico de perpetuar as relações de subordinação, seguindo as indicações teóricas de Althusser (1985), interessa a este artigo relembrar o fato de que o Estado só tem condições de dar conta dessas tarefas mediante a utilização aberta das forças militares ou de mecanismos mais sutis e igualmente eficientes de conformação ideológica ao sistema de dominação existente. Nesse aspecto, a atuação das mídias, dos artefatos culturais e das instituições educacionais é reveladora dos recursos e das estratégias dos quais se valem os representantes do capital, que por meio do Estado, reproduzem os seus valores hegemônicos no decorrer dos séculos (Poulantzas, 1977, 1980).
Destaca-se, porém, que a visão aqui abordada sobre a complexidade dos esquemas de dominação operados mediante a ação estatal, ainda que tributária das formulações originais de Engels (2012), leva em consideração as significativas elaborações teóricas posteriores, sendo que algumas serão mencionadas neste texto. Dessa forma, convém explicitar que não será o foco deste trabalho aprofundar as distinções e sistematizar as semelhanças a respeito das interpretações sobre o Estado ao longo dos tempos históricos em função das limitações objetivas de um ensaio. Quanto a isso, apenas uma questão deverá ser enfatizada: a compreensão da existência da disputa do Estado enquanto instituição organizadora da vida social e de representação dos interesses hegemônicos por parte das classes e dos segmentos de classe, o que confere ao Estado, por definição, uma feição classista (Lenin, 2012). Para Lira (2016, p.61):
[...] enquanto produto histórico das relações sociais conflituosas, o Estado desenvolve um papel fundamental para a funcionalidade do sistema capitalista, conjugado a outros instrumentos mediadores centrais atuantes, incluídos no que Gramsci denominou de sociedade civil, conceito que destaca o papel da igreja, dos partidos políticos, da imprensa, dos intelectuais e do conjunto de agentes políticos, sociais e culturais.
Não obstante, a divisão da sociedade em classes é um fato negado pelos grupos hegemônicos, que declaram constantemente a absoluta imparcialidade do Estado. Trata-se de argumento central que justifica e mantém a dominação da maioria por parte de uma parcela diminuta de pessoas; estas, na condição de grupo privilegiado, representam os interesses do capital em crise enquanto as desigualdades sociais e econômicas são aprofundadas. Como explica Chauí (2000), a condição da continuidade dessa dominação do capital só se mantém em razão da construção ideológica burguesa, que nega as distinções de classe, ocultando sua existência aos dominados.
O Brasil, situado na periferia desse sistema, conquistado pelos europeus ainda na fase do mercantilismo comercial do século XVI, manteve esse esquema originado naquele momento histórico. O País assumiu uma posição de exportador de bens primários e importador de produtos industrializados e de maior valor agregado, ainda que tenha se transformado em uma nação urbana e moderna economicamente, mantendo suas características gerais de dominação e exploração. Seus surtos de industrialização e de adequação aos sistemas financeiros internacionais não modificaram suas condições fundamentais de dependência; ao contrário, essas condições se aprofundaram com a globalização econômica das últimas décadas.
Mesmo com essa secular e profunda desigualdade social e econômica, não existem sinais de ruptura substanciais. Nessa linha de entendimento, compreende-se que a educação desempenha papel central. Admitindo-se a centralidade do aparato estatal e dos demais aparelhos ideológicos para continuidade desse esquema de dominação, é possível entender porque os projetos educacionais em curso executados por grande parte dos governos contam com amplo e substancial apoio dos organismos multilaterais de financiamento, do mercado financeiro e dos representantes empresariais, que, via de regra, têm em comum a sustentação das suas taxas de riqueza originadas da produção social do trabalho.
No Brasil, as questionáveis relações entre o setor público e o privado foram estimuladas pelas gestões governamentais das últimas décadas, especialmente com o fortalecimento das teses neoliberais a partir da década de 1990. Mas foi especialmente no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998; 1999-2002), durante a gestão Paulo Renato de Sousa no Ministério da Educação, que os mecanismos de desregulamentação, as autorizações e os credenciamentos das instituições de Ensino Superior foram intensificados em detrimento do fortalecimento das instituições públicas. Tanto é assim que a expansão das matrículas nos setores privados se apresentou como uma tendência que apenas se consolidou desde então, haja vista que o setor privado concentra uma taxa de matrícula de cerca de 75% contra 25% do setor público (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2019). Isso gerou inúmeras consequências políticas, econômicas e sociais (Moreira, 2013; McCowan, 2018), não obstante o aumento das vagas ofertadas pelas instituições públicas com base na criação de novas Universidades e Institutos de Educação, realidade concretizada entre os anos de 2003 e 2015.
O fenômeno de expansão do setor privado não é um fenômeno endógeno, mas segue um movimento externo e complexo de ampliação dos investimentos do capital na área educacional, como observam Silva Júnior e Sguissardi (2005), Maciel (2008), Moreira (2013) e McCowan (2018). Essa expansão transforma também a educação em um serviço rentável, portanto, em uma nova mercadoria, em que são apenas interessantes os dividendos financeiros decorrentes da sua oferta àqueles que poderão pagar pelo serviço fornecido.
Na lógica perpetrada pelo sistema capitalista de tornar a educação uma mercadoria rentável, Oliveira (2005) aponta que o empresariado não considera a educação como um direito constituinte da cidadania moderna, mas um fator econômico essencial para a consolidação de um projeto de desenvolvimento econômico e social alinhado ao desenvolvimento das forças produtivas no novo ordenamento capitalista.
Considerada um serviço pela Organização Mundial do Comércio, a área da educação é uma frente de lucratividade promissora para as empresas transnacionais. A privatização da educação tem ocorrido de maneira indisfarçada, indireta ou indiretamente, como relatam Melo e Sousa (2017, p.29):
Como forma direta podemos citar a concessão gratuita de recursos financeiros: repasses, doações, bolsas, cessão de professores e demais trabalhadores da educação. Como forma indireta, temos os empréstimos, isenções fiscais, isenções de contribuições, editais públicos específicos, além de perdão regular de dívidas fiscais, financeiras e trabalhistas. Ainda como forma indireta de repasse de recursos públicos para empresas privadas de educação, temos os famosos convênios voltados às instituições listadas no artigo 213 da Constituição Federal (filantrópicas, comunitárias e confessionais), assim como às instituições de educação infantil privadas, possibilitando com que recebam recursos a partir principalmente do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB).
A educação pública, descapitalizada pelos seguidos contingenciamentos orçamentários ou pelas manobras contábeis permitidas pelos órgãos de fiscalização e controle, também padece da prioridade destinada às políticas privatistas em obediência ao lobby dos empresários e financistas com interesses no setor, a despeito do arcabouço legal construído desde a Constituição de 1988. Ela própria, a Constituição, interpretada ou alterada conforme esses mesmos interesses, tem se tornado um parâmetro de garantia do direito à educação bem menos eficaz em relação aos movimentos de mobilização e pressão da sociedade, que, reunindo instituições estudantis, acadêmicas, organização não-governamental, sindicatos e movimentos sociais ligados ao ensino público, disputam com os setores privados a destinação desses recursos orçamentários.
No caso do Ensino Médio, importa ressaltar que, em termos históricos, ele passou por uma série de reformas anteriores até chegar à configuração atual que está sendo analisada, no bojo das reformas implantadas no Ensino Secundário. A Educação Profissional também foi objeto de mudanças, incluída nas alterações ocorridas no Ensino Secundário. A título de reconstrução histórica, algumas dessas reformas serão mencionadas a seguir.
Educação Profissional no Brasil
A Educação Profissional no Brasil vem sendo foco de pesquisas, objeto de críticas de pesquisadores na área, bem como de proposição e implementação de políticas públicas. As principais questões recaem sobre o problema do acesso, da permanência e da qualidade dessa etapa de ensino, tidas como gargalos não superados pelas políticas educacionais no país (Adrião; Pinto, 2016).
Sobre o acesso, o percentual de jovens em idade escolar que ingressam no Ensino Médio, embora não seja baixo, está inferior aos percentuais de matrícula no Ensino Fundamental. Conforme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2018b), 97% dos jovens em idade escolar estão matriculados no Ensino Fundamental, ao passo que este número cai para 85% em relação ao Ensino Médio, o que confirma todas as insuficiências das políticas educacionais implementadas nas décadas precedentes.
No tocante à permanência, além das taxas elevadas de desistência e reprovação, praticamente não existem políticas complementares de transporte, saúde e bolsas de estudo que garantam a permanência dos estudantes mais carentes, principalmente nas redes estaduais de ensino, responsáveis diretas por essa oferta da educação. A maioria desses programas depende de convênios com outras secretarias e ministérios. As opções políticas e a recessão econômica dos últimos anos impossibilitaram a contratação ou o prosseguimento da maior parte dessas ações sociais, incluindo aqueles já existentes nos Institutos Federais de Educação e Escolas Técnicas Estaduais.
A questão da qualidade talvez seja o item mais complexo, levando em conta as expectativas da sociedade e dos próprios estudantes, refletidos em um currículo distante da realidade e nos objetivos pouco claros do Ensino Médio. Além da discussão sempre polêmica sobre os significados da qualidade na educação, subsistem os problemas a respeito do reconhecimento das necessidades e interesses próprios dos jovens na difícil fase de adaptação da adolescência. Reitera-se que as escolhas governamentais guardam relação direta com o contexto histórico e o tipo de sociedade que se pretende manter ou construir, dos quais decorrem as políticas públicas educacionais a serem implementadas ou modificadas.
No mais, é fato que na atualidade, o Ensino Médio tem se tornado cada vez mais uma modalidade de Ensino atrelada aos mecanismos de manutenção do sistema capitalista de produção, que se propõe a formar para o mercado uma força de trabalho ajustada aos novos padrões de dinamização exigidos pelas transformações produtivas e tecnológicas. Dessa forma, o Ensino Médio obedece aos conceitos de “flexibilidade”, “polivalência”, “qualidade total” e “empreendedorismo” que, sob a ótica do mercado, ganharam importância crucial nesses tempos de globalização econômica e acirramento da competitividade entre os países.
Fazendo um breve apanhado histórico, a modalidade Educação Profissional tem seu marco inicial em 1909 quando foram criadas as Escolas de Aprendizes Artífices que, em 1937, transformaram-se em Liceus Industriais. Com a Reforma de Capanema, em 1941, o Ensino Profissional passou a ser de nível Médio. Além disso, no ano de 1942, com o Decreto n°4.127/1942, os Liceus Industriais passaram a ser Escolas Industriais e Técnicas, oferecendo formação profissional equivalente ao Secundário da época (Andrade; Barbosa, 2017).
Em termos gerais, a constituição desse perfil de formação escolar estava ligada diretamente ao contexto social e econômico da época. O Brasil deixava lentamente de ser um país de tradição rural, embora continuasse permanecendo uma economia predominantemente agrário-exportadora, para se transformar em uma nação com perfil urbano. Essa tendência foi consolidada nas décadas seguintes pela expansão do setor industrial petroquímico, siderúrgico e energético, desenvolvido com base em significativos investimentos públicos durante a Era Vargas (1930-1945). Posteriormente, esse setor aproveitou-se do volumoso aporte de recursos externos concentrados na indústria automobilística do período Juscelino Kubitschek (1956-1961), no que ficou conhecida como “política de substituição de importações”. Esses dois momentos históricos têm em comum a necessidade de formação de mão de obra técnica e especializada para fazer frente ao crescimento das ofertas de trabalho de origem urbana.
Contudo, isso não significa que o Estado se encarregou de formar sistematicamente os profissionais que a indústria precisava naqueles anos, majoritariamente em Nível Secundário (correspondendo ao Nível Médio atual). Essa formação, quando ocorreu, foi feita muito precariamente pelos esforços tímidos e desarticulados do Estado, por algumas escolas profissionais e pelas empresas e indústrias durante as atividades de trabalho cotidiano, haja vista o histórico descompromisso do poder público com a formação educacional dos trabalhadores.
Já durante o Regime Militar (1964-1985), a tônica adotada foi a da profissionalização compulsória articulada com a Educação Básica por meio da Lei n° 5692/71, que estabelecia no antigo segundo grau a relação entre escola e mercado, em que os jovens poderiam dar prosseguimento aos estudos ou obterem uma formação técnica e profissional. Essa era uma demanda que surgiu em decorrência da exigência de uma formação para o mercado que permitisse o desenvolvimento econômico daquele contexto (Cury et al., 1982).
Ainda, é preciso considerar a ampliação dos cursos de pós-graduação estimulados pelo Ministério da Educação, justamente visando superar os indicadores educacionais pouco atrativos aos investidores estrangeiros, que era, naquele momento, um importante gargalo para a continuidade do processo de crescimento econômico. Essa prosperidade, como se pode notar, era dependente de arranjos tecnológicos de conteúdo nacional, que são importantes fatores de competitividade. Também estava em voga a “Teoria do Capital Humano”, constructo teórico liberal bastante difundido enquanto condição competitiva rapidamente valorizada entre as nações capitalistas em desenvolvimento naqueles anos.
Novamente, o descompromisso do Estado com a educação pública ficou evidente. As matrículas geradas foram realizadas em descompasso com os gastos orçamentários, sempre aquém do que seria minimamente necessário. A precarização das estruturas das escolas, dos recursos pedagógicos e a desvalorização profissional do magistério foram se agravando no decorrer daqueles anos, quando a expansão das vagas no setor público ocorreu descolada dos aportes financeiros imprescindíveis à garantia da qualidade da educação.
Na Educação Básica, a lei n°5.692/71 consolidou um tipo de educação que formava os profissionais aptos a ingressar no dinâmico mercado de trabalho gerado pelo crescimento industrial do período militar dos anos de 1970. Esse crescimento ocorreu em ritmo mais lento do que na década anterior, mas, mesmo assim, havia um ritmo capaz de atender à demanda das pessoas que procuravam ocupação remunerada, especialmente na base da sociedade, que tinha como expectativa rendimentos mais baixos em comparação com os estratos médios da sociedade, que nutriam empregos e funções que conferiam maiores rendimentos.
Na fase de redemocratização, a discussão sobre a natureza e qualidade da educação voltou a ser abordada com mais ênfase pelo conjunto da sociedade em meio aos agravamentos da crise econômica e social observada no fim do regime militar no início da década de 1980. Esse agravamento repercutiu diretamente no arranjo institucional de perfil empresarial-autoritário-político que dava sustentação ao modelo governamental até então. Quando a “Nova República” é iniciada em 1985, com os debates promovidos por ocasião da Constituinte em seguida, temas como democratização versus autoritarismo, formação crítica e reflexiva versus formação para o mercado, escola pública versus escola privada, dentre inúmeros outros, são amplamente debatidos até a consolidação da Carta Constitucional de 1988.
No que concerne ao assunto principal deste trabalho, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), n°9394/96, a modalidade Educação Profissional começa a ser tratada de forma separada da Educação Básica e Superior, enfatizando-se que essa modalidade de ensino deve destinar-se à formação para o mercado de trabalho. Apesar dessa separação proposta pela LDB, é importante mencionar a existência do Decreto n°5154/2004 publicado pelo governo Lula da Silva, que regulamenta a Educação Profissional, reorientando o tratamento da Educação Básica pelos anos seguintes. Em seu Art. 4°, § 1°, está expresso que essa modalidade de educação deve ser desenvolvida de forma articulada com o Ensino Médio em três aspectos:
integrada, oferecida somente a quem já tenha concluído o ensino fundamental, sendo o curso planejado de modo a conduzir o aluno à habilitação profissional técnica de nível médio, na mesma instituição de ensino [...];
concomitante, oferecida somente a quem já tenha concluído o ensino fundamental ou esteja cursando o ensino médio [...];
subsequente, oferecida somente a quem já tenha concluído o ensino médio (Brasil, 2004, p.2).
Existiu um claro avanço de concepção teórica e organizacional com a edição desse decreto em relação ao texto legal anterior. Para Santos (2017), contudo, a intensificação dos cursos fragmentados e aligeirados na Educação Profissionalizante foi iniciada logo nos anos de 1990, precarizando-se ainda mais no decorrer do tempo, principalmente com a participação maior dos segmentos privados, sempre com propósitos lucrativos. Ele avalia que, no corolário do neoliberalismo e de um Estado que tenta reduzir sua participação nas áreas sociais, mas que não se exime totalmente da sua função social, há a intensificação das parcerias entre as esferas pública e privada, justificada pelo fato de que a “contemporaneidade demanda, de imediato uma mão de obra flexivelmente ‘qualificada’ para atender às vicissitudes do mercado de trabalho capitalista” (Santos, 2017, p.209).
Não se considera, neste artigo, que a formação técnica e profissional não seja necessária para o desenvolvimento econômico do país. O que se discute é o caráter e objetivo dessa formação diante de um sistema que preza mais pela formação aligeirada, pontual, manual e acrítica dos indivíduos, utilizando o sistema de Educação Profissional e Técnica para esse fim, do que propriamente uma educação ampla e contínua.
A crítica a esse modelo é inevitável quando se nota que a valorização de uma educação para formar força de trabalho imediata para o mercado é mais valorizada do que aquela que permita aos indivíduos continuarem seus estudos, a exemplo do acesso ao Ensino Superior. Destaca-se ainda, que a oferta de Educação Profissional, no modelo neoliberal, torna-se um caminho que favorece a mercantilização da educação quando são as empresas privadas que oferecem essa modalidade como um produto a ser vendido. Nesse aspecto, o Estado, por meio do seu aparato legal, não só compra esse produto, mas legitima a atuação dos organismos empresariais na educação, transferindo sua responsabilidade para a iniciativa privada, a exemplo do “Sistema S” que compõe uma série de instituições voltadas para a formação profissional, entre elas, Senac, Sesi, Sebrae e Senai. Nesse sentido, a profissionalização se “configura como um subsistema que, no interior do sistema público de educação, abre, sobre o respaldo legal, suas portas aos empresários que vendem educação” (Santos, 2017, p.190).
Parte dessa formação acontece com a utilização de repasses de recursos públicos ou por meio de estímulos ou isenções fiscais. Percebe-se aqui uma situação peculiar: a formação técnica para o mercado de trabalho, que interessa diretamente às empresas para adequação das suas condições operacionais de competitividade e otimização das suas taxas de lucro, muitas vezes, é realizada mediante parcerias estatais, retirando das instituições privadas o ônus dos investimentos em qualificação profissional e transferindo-o diretamente para o contribuinte, consumidor desses produtos. Como fator agravante, a oferta de empregos sequer é realizada na proporção do crescimento vegetativo, ampliando o contingente de desempregados e atuando fortemente para o rebaixamento dos salários e direitos trabalhistas e sociais. Em outras palavras, o Estado, que deveria colaborar na proteção do emprego enquanto ente responsável pela correção das distorções do sistema, conforme defendem os sociais-democratas, opera de modo inverso ao interesse social.
Vale destacar que, no momento em que o sistema capitalista, por meio de seus representantes do mercado educacional (o “Sistema S” é um exemplo bastante pertinente), dá ênfase e difunde o discurso da necessidade da escolarização, ele não o faz à toa. Ao contrário, possui a primazia de escolarizar os trabalhadores para assim ter mais força de trabalho com um mínimo de formação. Observa-se que não é do interesse do capital o processo de escolarização das massas em decorrência de um princípio educativo que permita aos indivíduos uma formação plena, mas de uma formação estritamente ideológica e braçal atrelada aos interesses mercadológicos, que perpetuam o processo de dominação.
Na perspectiva de Deitos e Lara (2016, p.174), o setor privado pressiona o Estado para a formulação e difusão de políticas públicas que favoreçam baixos custos produtivos da força de trabalho em dois sentidos: o “custo da formação e qualificação dos trabalhadores e a ampliação do excedente de força de trabalho para baixar os salários médios na composição geral da massa salarial”. Assim, se coloca uma formação profissional aligeirada e cabível para o trabalhador, bem como rentável para as empresas privadas, permitindo que a força de trabalho aumente cada vez mais e a demanda pela procura de emprego seja mais acirrada. Isso permite às empresas definir quaisquer condições de trabalho, faixa salarial, jornada, direitos etc., o que é caracterizado por Marx (1996) como a formação de um exército industrial de reserva.
Observa-se, assim, que a educação na ótica do neoliberalismo busca manter uma função “compensatória exercida pela oferta da Educação Básica de baixa qualidade e de uma Educação Profissional fragmentada e aligeirada. Isto alimenta a ideologia de responsabilização do próprio trabalhador por seu êxito ou fracasso no mercado de trabalho” (Frigotto; Ciavatta; Ramos, 2014, p.73).
Para Krawczyk (2014), no contexto atual, a escola vem se tornando um nicho importante para o mercado implantar materiais didáticos, consultorias, formação de professores e modelo de gestão segundo seus interesses, além de difundir sua ideologia no processo de socialização dos jovens por meio das nefastas noções de empreendedorismo, qualidade total, competências, entre outras.
O papel da Educação Profissional nos documentos oficiais
Diante de tudo o que foi exposto sobre a Educação Profissional no Brasil, é necessário analisar como ela se coloca nos documentos oficiais que legitimam as políticas educacionais na atualidade. Para isso, serão utilizados o documento PNE (2014-2024) aprovado pela Lei n°13.005/2014 e a atual reforma do Ensino Médio instituída pela Lei n°13.415/2017.
Conforme consta no PNE, a meta 11 é a que irá pensar e discutir a Educação Profissional no Brasil nos dez anos de vigência do plano, porém vale destacar algumas metas e estratégias que aparecem antes da meta 11, pois abordam a perspectiva da formação profissional.
A estratégia 3.7 da meta 3, por exemplo, “busca fomentar a expansão das matrículas gratuitas de Ensino Médio integrado à Educação Profissional [...]” (Brasil, 2014, p.5, grifo nosso), destacando-se a relação entre Ensino Médio e Educação Profissional. A estratégia 8.4 da meta 8 aponta a expansão da oferta gratuita de Educação Profissional Técnica por parte das “entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical, de forma concomitante ao ensino ofertado na rede escolar pública, para os segmentos populacionais considerados” (Brasil, 2014, p.9, grifo nosso).
O Ensino Médio concentra o maior número de matrículas na Rede Pública de Ensino, principalmente na rede estadual, pois, de acordo com os dados do Censo Escolar de 2017, “a rede estadual é responsável pelo maior número de escolas de Ensino Médio. 68,2% delas pertencem a essa rede” e 84,8% das matrículas no Ensino Médio se encontram na rede estadual (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2018a, p.6). Esses dados também indicam que o público alvo da rede pública de ensino atende a juventude pertencente à classe trabalhadora. Assim, fica bastante evidenciado que a ampliação da oferta do Ensino Técnico e Profissionalizante, na forma disposta na estratégia 8.4 da meta 8, também se revela como uma estratégia clara de diminuição da presença do ensino público em proveito da maior inserção do setor privado, antes mesmo da reforma do ensino do governo Temer, o que confirma a disputa histórica pelo fundo público.
Em relação à meta 11, que trata especificamente da Educação Profissional, nota-se que o objetivo central é aumentar o número de matrículas nessa modalidade, chegando a 50% da oferta no segmento público. Nas 14 estratégias que se seguem, a expansão da Educação Profissional e Técnica se colocam como necessidade primordial para dar conta das necessidades nacionais de formação da juventude e dos adultos. Cabe observar, nesse item, que o contexto econômico que justificava a expansão prevista nessa meta foi substancialmente alterado, uma vez que os índices positivos de geração de empregos daquela conjuntura (especialmente na área da construção civil, da indústria química e do setor de serviços) deram lugar a um quadro econômico recessivo, sem perspectivas no atual momento histórico, de alteração significativa (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019).
Também no PNE, a necessidade de expandir o número de matrículas na Educação Profissional está ligada à necessidade de aumentar a formação de força de trabalho para o mercado diante dos arranjos produtivos que o sistema capitalista impulsiona, cooptando essa força de trabalho principalmente da juventude pobre que se encontra na Rede Pública de Ensino. Nesse ponto, o Plano de Educação não se diferencia das orientações gerais das políticas públicas que tradicionalmente excluem os segmentos populares do acesso aos níveis mais elevados do conhecimento. Essa lógica é explícita na estratégia 11.2, por exemplo, quando se propõe “fomentar a expansão da oferta de educação profissional técnica de nível médio nas redes públicas estaduais de ensino” (Brasil, 2014, p.10, grifo nosso).
Conforme o Relatório do 2° Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação – 2018, houve uma “expansão do número absoluto de matrículas de Educação Profissional técnica de nível médio no Brasil, de 1.361.827 em 2010 para 1.791.806 em 2017, perfazendo um crescimento de 31,6%”. Do período de 2013 a 2017, a expansão é de “11,8%, correspondendo a 188.860 matrículas. Essa expansão representa 5,9% da meta de 3.205.892 de matrículas a ser atingida até 2024” (Brasil, 2018, p.194), o que possivelmente não será atingido, pois o crescimento de matrículas foi de 47 mil por ano, nove vezes menos do que o necessário para o alcance da meta. Porém, destaca-se novamente que, diante da recessão econômica, é necessário proceder a uma revisão das metas de expansão previstas nesse item 11, que provavelmente estão superestimadas em razão do momento histórico promissor que lhe deu origem.
Na estratégia 11.3, também é proposta a expansão da oferta pela via da Educação a Distância. A estratégia 11.4, busca desenvolver o estágio na Educação Profissional e Técnica articulado com o Ensino Médio regular, de modo que a juventude possa ter experiências e desenvolvimento nesse campo. Novamente, o ingresso da juventude precocemente no mercado de trabalho parece ser o objetivo implícito, sempre em parceria com as instituições privadas, sob o pretexto de atividades de aquisição de experiência e preparação profissional.
A estratégia 11.5, propõe ampliar a oferta de programas de reconhecimento de saberes para fins de certificação profissional em nível técnico, o que pode ser articulado também com a estratégia 11.8, que visa “institucionalizar sistema de avaliação da qualidade da educação profissional técnica de nível médio das redes escolares públicas e privadas” (Brasil, 2014, p.10). Nesse item, existe evidentemente um sentido duplo. Se por um lado, busca-se valorizar a experiência prática adquirida pelos sujeitos históricos em processo de formação profissional, por outro o reconhecimento desses cursos de capacitação técnica acabam eliminando a possibilidade de que esses jovens e adultos tenham acesso a um Ensino Médio que vá além das disciplinas voltadas ao mundo do trabalho, valorizando, de fato, as habilidades que interessam diretamente ao mercado.
Há outra armadilha embutida nessa estratégia. Como os cursos de qualificação profissional são majoritariamente ofertados pelo “Sistema S”, de certo modo os sistemas públicos não se obrigam a ofertar mais vagas para o Ensino Médio. Dessa forma, os cursos disponibilizados pelo setor privado são reconhecidos, o que diminui significativamente a demanda por esse nível educacional, contradizendo, inclusive, o que está disposto na estratégia 11.2 de expansão da oferta via setor público.
Nota-se novamente no PNE (2014-2014) o direcionamento de recursos públicos para as instituições privadas na oferta de educação profissional quando se observa, na estratégia 11.7, a necessidade de “expandir a oferta de financiamento estudantil à educação profissional técnica de nível médio oferecida em instituições privadas de educação superior” (Brasil, 2014, p.10). Mesmo com as substanciais mudanças políticas e econômicas ocorridas ao longo das décadas, a participação do segmento empresarial na distribuição dos recursos públicos não diminui; ao contrário, amplia-se drasticamente, como os dados comprovam. É possível supor, se “essa tendência for mantida”, que o Ensino Médio passará por um processo semelhante ao verificado no Ensino Superior, em que houve uma forte expansão mediante a utilização de recursos públicos via parcerias com o setor privado, isenções tributárias e demais incentivos e benefícios públicos4.
De acordo com Ferreti (2018), os sistemas estaduais de ensino possuem limites na oferta de Educação Profissional, o que permite à iniciativa privada ganhar espaço de atuação, o que não ocorre na rede pública na possibilidade dessa oferta. Isso revela, por sua vez, um processo formativo conforme “os interesses empresariais e não com a visão mais ampla, crítica e autônoma a respeito do trabalho e seu exercício numa sociedade como a brasileira” (Ferreti, 2018, p.265).
Nessa mesma linha de entendimento, Frigotto, Ciavatta e Ramos (2014) apontam que a educação brasileira nega à juventude uma formação básica de qualidade que possibilite a participação dos jovens na vida política, social e produtiva. Assim, infere-se que o sistema público de ensino não permite aos jovens essa formação mais ampla possível, inviabilizando a qualidade do processo educativo, principalmente para a juventude pobre e trabalhadora que depende do serviço público, o que parece evidenciado nas disposições legais mencionadas até agora.
O tratamento concedido à Educação Profissional na Lei n°13.415/2017, que institui a atual reforma do Ensino Médio, reforça as tendências observadas acima. A esse propósito, uma novidade importante apresentada pela reforma do Ensino Médio decorre da introdução dos itinerários formativos e da composição da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no currículo dessa etapa do ensino, que está explícito no art. 36 da lei. O itinerário da formação técnica e profissional se destaca na nova estruturação do currículo do Ensino Médio em relação ao modelo existente até então. Se antes a Educação Profissional estava relacionada a uma formação complementar para os jovens que optasse pela inserção no mercado e essa modalidade não interferia no currículo do Ensino Médio regular, agora, com essa mudança, a Educação Profissional passa a fazer parte da perspectiva formativa dos jovens em todos os anos dessa etapa.
A entrada desse itinerário não é algo despretensioso e isento de interesses socioeconômicos, mas totalmente articulado à necessidade concreta do sistema capitalista na atualidade de investir ainda mais na formação da força de trabalho para o mercado, especialmente para os jovens da rede pública de ensino. A articulação entre o setor empresarial e os órgãos governamentais, tendo como privilégio as interlocuções com o Ministério da Educação, apenas reforçam essa hipótese (Bezerra; Araújo, 2017). Percebe-se que o sistema do capital busca a inserção recorrente do jovem da classe trabalhadora no setor produtivo. Isso representa uma perspectiva de formação que condiciona o jovem da classe trabalhadora, desde cedo, a ter uma educação que o qualifique para o mundo do trabalho, ao invés de se pensar em uma formação mais ampla e que possa criar condições para que esse segmento social tenha acesso e permanência no Ensino Superior.
A concepção que permeia o novo Ensino Médio relaciona-se com os interesses do mercado e abre caminhos para que as desigualdades educacionais se tornem mais profundas. Basta observar que, em decorrência da lei da reforma do Ensino Médio, instituiu-se a modalidade de Educação a Distância a partir da Resolução n°3/2018. Essa resolução legitima 20% para o turno diurno, 30% noturno e 80% para a educação de jovens e adultos, representando sérios problemas de ordem estrutural e pedagógica nesse tipo de modalidade para a educação básica, considerando a realidade das escolas públicas no Brasil e seu público majoritariamente de origem menos privilegiada.
Souza e Vazquez (2015), buscando compreender as expectativas profissionais e educacionais dos jovens na iminência da conclusão do Ensino Básico e entendendo as pretensões subjetivas e objetivas que os jovens buscam ao final do Ensino Médio, constatam que há uma centralidade do trabalho na vida dos jovens, isto é, a formação para o mercado de trabalho é fundamental para os jovens oriundos dos segmentos socialmente vulneráveis que necessitam aumentar a renda familiar. Contudo, os autores verificam que as expectativas de continuidade dos estudos também são existentes, principalmente a partir das políticas de acesso ao Ensino Superior e da expansão de vagas nas universidades públicas, apesar dos obstáculos existentes.
Bezerra e Araújo (2017), a partir do cotejo entre as proposições empresariais dos últimos anos a respeito dos gargalos do Ensino Médio frente aos seus objetivos de formação de mão de obra técnica e profissionalizante, demonstram as convergências entre as diretrizes desses reformadores empresariais e a Lei nº13.415/2017, em que se percebem os mesmos pressupostos teóricos, concepções educacionais, prioridades e metas formativas. A conexão entre os objetivos dos segmentos empresariais para essa etapa de ensino encontrou ampla aceitação por parte dos gestores do Ministério da Educação, muitos deles oriundos do próprio setor. Coube ao Ministério a materialização legal das propostas empresariais para o sistema educacional. Nesse sentido, foram desconsideradas as alternativas sugeridas historicamente pelos sujeitos educacionais do setor público, que sequer foram convidados, através das suas entidades organizadas, a participar ativamente da elaboração da lei que consolidou a reforma.
Observa-se, por exemplo, que no art. 36, § 6° é estabelecido que, a critério dos sistemas de ensino, a oferta de formação com ênfase técnica e profissional considerará:
a inclusão de ‘vivências práticas de trabalho no setor produtivo’ ou em ambientes de simulação, estabelecendo parcerias e fazendo uso, quando aplicável, de instrumentos estabelecidos pela legislação sobre aprendizagem profissional;
a possibilidade de concessão de certificados intermediários de qualificação para o trabalho, quando a formação for estruturada e organizada em etapas com terminalidade (Brasil, 2017, p.3, grifo nosso).
Há uma continuidade evidente do dualismo estrutural na educação dos jovens entre a formação propedêutica e a formação para o trabalho (Frigotto, 2007) à medida que o Ensino Médio acaba se constituindo numa “ausência socialmente construída, [...] e como o indicador mais claro da opção da formação para o trabalho simples e da não preocupação com as bases da ampliação da produção científica, técnica e tecnológica e o direito de cidadania efetiva em nosso país” (Frigotto, 2007, p.1139).
Com base na interpretação dessas legislações, Ferreti (2018) reforça a continuidade no sistema educacional brasileiro dessa dualidade histórica entre a formação geral ou propedêutica e a formação para o mercado, que poderiam ser percebidas tanto pelo Decreto n°2208/97 do governo FHC, em que os jovens do Ensino Médio poderiam, a partir da segunda série, matricular-se em cursos de formação profissional, como na Lei n°5692/71, que estabelecia a profissionalização compulsória do antigo segundo grau, por exemplo.
Ainda no art. 36, § 12° da atual reforma do Ensino Médio, “as escolas deverão orientar os alunos no processo de escolha das áreas de conhecimento ou de atuação profissional previstas no caput (NR)” (Brasil, 2017, p.3, grifo nosso). Enfatiza-se que ao aluno será concedido o poder de escolha em estudar as áreas do conhecimento ou caminhar no sentido da formação profissional e técnica, considerando que há maturidade suficiente para a escolha dos estudantes. É importante destacar, com essas observações, que as capacidades individuais desse segmento estudantil não são subestimadas; é importante apenas atentar para o fato de que provavelmente eles não tenham maturidade ou conhecimento suficiente sobre que alternativas formativas teriam, dadas as próprias fragilidades estruturais das escolas públicas. Da maneira como a lei foi publicada, entende-se que apenas as escolas privadas para a classe média preencheriam as condições suficientes para que os estudantes tivessem opções claras e reais de escolha profissional, enquanto as escolas públicas teriam como alternativa mais realista a oferta de cursos que visassem “a preparação” aligeirada para o mercado de trabalho.
Mais do que isso, coloca-se nessa perspectiva de escolha a real negação aos estudantes dos segmentos menos privilegiados de terem acesso às diversas áreas do conhecimento. Nas condições reais de vida e do crescente desemprego, é mais oportuno para esses jovens escolherem o caminho que torna a vida rentável em curto tempo, mais acessível e com uma aprendizagem minimalista, a qual o modelo de Educação Profissional e Técnica posto na atual reforma permitem. É o que mostra uma recente comparação feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de dados coletados no Brasil em relação às nações integrantes da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que revela a disparidade de renda entre trabalhadores formados em Nível Médio e aqueles com formação superior, podendo chegar a mais que o dobro dos vencimentos salariais5.
Outro elemento importante, que foi mencionado brevemente, é o quantitativo de adultos trabalhadores que frequentam ou deveriam frequentar o curso noturno, que exigem estratégias diferentes de garantia do acesso, da permanência e do êxito escolar, uma vez que esse público tem características particulares em relação ao público adolescente. Parece claro que as políticas educacionais implantadas recentemente não terão condições de abarcar as expectativas tanto de um público quanto do outro. A fim de corroborar essa argumentação, Frigotto (2007), na contramão desse modelo de educação dualista, defende que a proposição de um:
Vínculo mais orgânico entre a universalização da educação básica e a formação técnico-profissional, implica resgatar a educação básica (fundamental e média) pública, gratuita, laica e universal na sua concepção unitária e politécnica, ou tecnológica. Portanto, uma educação não-dualista, que articule cultura, conhecimento, tecnologia e trabalho como direito de todos e condição da cidadania e democracia efetivas
(Frigotto, 2007, p.1144).
Pelo exposto, nota-se que o País está muito distante do modelo de educação sugerido, principalmente em decorrência das modificações legais mais recentes que foram analisadas. Acredita-se que essas políticas educacionais trarão outras implicações irão gerar consequências para o conjunto da classe trabalhadora, ampliando a desigualdade do acesso das oportunidades educacionais por parte da parcela excluída da sociedade.
Considerações Finais
Caso as mudanças impostas pela Lei n°13.415/2017 para o Ensino Médio se concretizem a médio e longo prazo, a classe trabalhadora novamente terá negada a possibilidade de um modelo de educação abrangente, crítico e que possa formá-la para o prosseguimento exitoso dos estudos, “privilégio” concedido aos setores mais favorecidos da sociedade. A falsa escolha dos itinerários educativos indicada pela lei apenas aprofunda um sistema de educação já secularmente excludente.
Apenas uma discussão democrática e plural, com a devida participação dos sujeitos históricos, tem a condição de elaborar uma legislação ampla e possível de implantação para reverter as consequências negativas prováveis. No mais, ainda que essa discussão não ocorra nos próximos anos em razão da correlação desfavorável de forças que se modificou radicalmente em um período extremamente curto de tempo, é mister reforçar que o cumprimento das metas do PNE, nos itens relativos à Educação Profissional, teria plena possibilidade de alteração positiva dos indicadores educacionais, atendendo à parcela significativa da sociedade que anseia por mudanças.
Essa problemática ocorreu, principalmente, em função da reorientação política e ideológica do Estado brasileiro após o fim do governo Rousseff, que excluiu previsões de arrecadação de receitas oriundas do fundo social do pré-sal. Além disso, durante a gestão Temer, com a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016 que congelou os investimentos nas áreas sociais pelos próximos vinte anos, sufocou as instituições educacionais com a redução dos seus orçamentos e a instituição de uma Base Nacional Comum Curricular com retrocessos visíveis, os fundamentos sobre os quais essa reorganização política, social e ideológica precisará ser retomada se dará a partir de um contexto bem mais adverso, o que faz aumentar imensamente os desafios em defesa de uma educação mais crítica e democrática.
O processo eleitoral de 2018 não deixa margens de dúvidas quanto a isso. Foi possível acompanhar com perplexidade que uma filosofia política neoliberal mais rigorosa e desumana como eixo norteador das ações do novo governo domina todas as suas ações, amparado por uma estrutura midiática, jurídica, política e militar que, além de assegurar a vitória nas eleições, sustenta sua governabilidade. O governo Jair Bolsonaro já não faz questão de conferir à sua gestão uma aparência de respeito à institucionalidade democrática como até então tentava (sem sucesso, é verdade) a gestão Temer; pois, expressa ainda mais as políticas econômicas antissociais recorrendo a um aprofundamento claro de mecanismos autoritários sob a complacência e, até mesmo, a colaboração dos demais poderes constituídos.
Mercado e segmentos progressistas travam uma disputa contínua e desigual pelo orçamento público; o primeiro, com o objetivo de aumentar os lucros e a taxa de exploração da força de trabalho da maioria da população; e o segundo, com o propósito de estruturar um sistema público de educação que atenda às expectativas dessa parcela social e historicamente excluída dos bens produzidos coletivamente. Ainda que estejam atuando em uma correlação de forças extremamente desvantajosa, os setores progressistas não podem se render; afinal, as conquistas sociais são sempre consequências da pressão e da organização da sociedade em defesa da melhoria das suas condições gerais de trabalho e de vida e, esse conflito é precisamente o que move a história, sem o qual as modificações não aconteceriam.