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Revista de Educação PUC-Campinas

versión impresa ISSN 1519-3993versión On-line ISSN 2318-0870

Educ. Puc. vol.25  Campinas  2020  Epub 09-Ene-2020

https://doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4541 

Seção Temática: O Ensino Médio no Brasil: quais possíveis rumos?

Ciência do espaço sem espaço: disciplina Geografia e reforma do Ensino Médio no Brasil1

Science of Space without Space: Geography discipline and High School reform in Brazil

Larissa Oliveira Mesquita Ribeiro2 
http://orcid.org/0000-0002-9434-4730

Willame de Oliveira Ribeiro3 
http://orcid.org/0000-0003-3692-4224

2Universidade do Estado do Pará, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Núcleo Técnico-Científico de Telessaúde. Belém, PA, Brasil.

3Universidade do Estado do Pará, Departamento de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Geografia. Tv. Djalma Dutra, s/n., 66050-540, Telégrafo, Belém, PA, Brasil.


Resumo

O objetivo deste artigo é analisar as implicações da reforma do Ensino Médio sobre a disciplina Geografia e os seus desdobramentos para a sociedade brasileira. Os procedimentos metodológicos utilizados são de natureza bibliográfica e documental, com destaque para as análises da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n°9.394/1996) e da Lei n°13.415/2017, que disciplinou a reforma do Ensino Médio. Os resultados da pesquisa ressaltam que a disciplina Geografia compunha a estrutura curricular da Educação Básica brasileira mesmo antes da conformação da Geografia científica, com forte articulação com interesses estatais e elitistas, o que não se repete na atualidade, no âmbito da reforma do Ensino Médio, que promove a fragilização dessa disciplina na Educação Básica, representando um claro desacordo entre os poderes elitistas e os caminhos seguidos pela disciplina Geografia nos últimos anos. As implicações dessa reforma em relação à disciplina Geografia devem ocasionar, entre outras consequências, perdas na formação voltada à construção de um sujeito social complexo atuante no âmbito profissional e também em outras esferas da vida social.

Palavras-chave:  Currículo escolar; Ensino de Geografia; Reforma do Ensino Médio

Abstract

The objective of this article is to analyze the impact of High School reform on the geography discipline and its reach in the Brazilian society. The methodological procedures used are based on bibliography and documents, highlighting a review of the Education Guidelines and Base law (Law n.9.394, dated December 20, 1996 and Law n.13.415, dated February 16, 2017) that ruled on the High School reform. The outcome of this investigation emphasizes that the geography discipline composed the curricular structure of basic education in Brazil, even before the development of scientific geography, with strong articulation with elitist and government interests, which will not occur any more in the framework of the High School reform. The reform fosters a disruption of this subject in basic education, representing a clear disagreement between elitist power and the pathways taken by this discipline in recent years. The implications of this reform in relation to the geography discipline include, among other consequences, losses in education aimed at the construction of a complex social subject active in the professional set up and also in other spheres of social life.

Keywords:  School curriculum; Geography teaching; High School reform

Introdução

A disciplina Geografia atualmente é objeto de um relevante debate no Brasil, relativo à sua permanência ou exclusão no novo modelo curricular flexível determinado pela reforma do Ensino Médio, pelo qual o currículo passa a ser organizado a partir de áreas do conhecimento.

Antes de dar início a uma discussão acerca da Geografia no contexto dessa reforma, cabe fazer uma breve análise sobre a história dessa disciplina no Brasil, assim como da sua inserção geopolítica, buscando refletir sobre o papel cumprido por ela, bem como sobre sua finalidade enquanto ciência.

Nessa perspectiva, foram estabelecidos os seguintes questionamentos: quais as características da reforma do Ensino Médio e seu fundamento teórico-político? Como a reforma do Ensino Médio se relaciona com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB)? O que explica o desprestígio da Geografia no atual contexto em relação a períodos anteriores marcados por sua valorização? Qual o papel cumprido, ou possível de ser cumprido, pela disciplina Geografia na Educação Básica e como isso é afetado pela reforma do Ensino Médio? Desse modo, o objetivo geral da pesquisa é analisar as implicações da reforma do Ensino Médio sobre a disciplina Geografia e os seus desdobramentos para a sociedade brasileira.

Este artigo está estruturado em quatro seções principais: Introdução, Procedimentos Metodológicos, Resultados e Discussão, e Considerações Finais. Por sua vez, os resultados e discussão também se organizam em quatro subseções: o primeiro tópico faz um breve apanhado teórico relativo à concepção e à importância do currículo escolar; logo em seguida, faz-se um histórico da disciplina Geografia no Brasil e dos períodos que marcaram o seu desenvolvimento; a terceira seção ocupa-se da caracterização da reforma do Ensino Médio no Brasil, buscando demonstrar sua inserção teórico-política e suas implicações sobre a LDB; o quarto tópico privilegia o exame da disciplina Geografia no contexto da reforma do Ensino Médio, sendo tal discussão complementada pelas considerações finais, que enfatizam as repercussões sociais da perda de espaço da Geografia na Educação Básica.

Procedimentos Metodológicos

Os procedimentos metodológicos do estudo são de natureza bibliográfica e documental, mediante a análise de leis, teses, livros e periódicos. Quanto aos procedimentos de natureza bibliográfica, Oliveira (2010) destaca que possuem a finalidade de proporcionar ao pesquisador o contato direto com obras, artigos ou documentos que tratem do tema em estudo, permitindo, por conseguinte, o aprofundamento teórico da pesquisa. Severino (2007), por sua vez, enfatiza que os registros decorrentes de pesquisas anteriores, como documentos impressos, livros, teses e artigos, tornam-se fontes importantes de categorias teóricas já trabalhadas. Para Lakatos e Markoni (2011, p.142), “a pesquisa bibliográfica é um apanhado geral sobre os principais trabalhos já realizados, revestidos de importância, por serem capazes de fornecer dados atuais e relevantes relacionados com o tema”. Já Cervo, Bervian e Da Silva (2007) identificam a pesquisa bibliográfica por sua condição de explicar um problema a partir de referências teóricas.

Nesses termos, o artigo reúne debates teóricos em três segmentos: (1) A concepção de currículo, com destaque para Saviani (2006, 2016) e Macedo (2011); (2) A história da disciplina Geografia no Brasil, cujas bases principais foram Rocha (1994) e Souza e Pezzato (2010); (3) A relevância da disciplina Geografia na Educação Básica, na qual, entre outros, tiverem relevância Brasil (2006), Callai (2010) e Cavalcanti (2011).

Já em relação aos procedimentos de natureza documental, Cervo, Bervian e Silva (2007, p.63) demonstram que eles se voltam à análise de documentos “com o propósito de descrever e comparar usos e costumes, tendências, diferenças e outras características. As bases documentais permitem estudar tanto a realidade presente como o passado”. Fonseca (2002, p.32), por sua vez, destaca que a pesquisa documental recorre a fontes mais diversificadas, “tais como: tabelas estatísticas, jornais, revistas, relatórios, documentos oficiais, cartas, filmes, fotografias, pinturas, tapeçarias, relatórios de empresas, vídeos de programas de televisão, etc.”.

Neste estudo, o enfoque central recaiu sobre a pesquisa documental, perpassando pela análise de dois documentos importantes na regulamentação e orientação da educação nacional: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n°9.394, de 20 de dezembro de 1996) e a Lei n°13.415, de 16 de fevereiro de 2017, que disciplinou a reforma do Ensino Médio. Outros documentos e normas legais eventualmente também são mencionados e/ou analisados ao longo do texto, mas apenas em relação a esses dois documentos principais, como a Lei n° 11.684, de 2 de junho de 2008, e a Lei n° 12.014, de 6 de agosto de 2009.

Resultados e Discussão

Concepção e importância do currículo escolar

A tarefa de discutir a inserção da disciplina Geografia na Educação Básica brasileira contemporânea e as repercussões sociais acerca da maior ou menor valorização dessa área do conhecimento envolve alguns pré-requisitos, dentre os quais se evidencia a necessidade de discutir a concepção de currículo escolar.

Nesse sentido, Saviani (2016) oferece uma definição bastante simples e precisa. Segundo ele, o currículo “é entendido comumente como a relação das disciplinas que compõem um curso ou a relação dos assuntos que constituem uma disciplina, no que ele coincide com o termo programa” (Saviani, 2016, p.55). No entanto, adverte o autor que muitos pesquisadores caracterizam o currículo como um conjunto de atividades a serem cumpridas, o que equivale a uma compreensão mais ampla de currículo. Saviani (2006) considera que o currículo é base de um bom funcionamento escolar, pois mobiliza todos os envolvidos (e tudo, referindo a aspectos materiais ou a outros determinantes não condizentes com as pessoas) na tarefa de alcançar objetivos em relação à educação de crianças e jovens. Dessa forma, o currículo condiz com uma escola funcionando, realizando suas atividades, desempenhado diversas funções e desenvolvendo conhecimentos também nas relações sociais e culturais.

Macedo (2011, p.17), por sua vez, afirma que nunca na história da educação foi atribuída tanta importância às políticas e às propostas curriculares, chegando a reconhecer um “[...] empoderamento do currículo enquanto definidor dos processos formativos e educacionais [...]”. Com isso, Macedo (2011, p.18) analisa o currículo “como o conjunto de conhecimentos escolhidos como formativos. A centralidade está, portanto, no conhecimento legitimado como formativo. Aqui começa sua importância e complexidade política e pedagógica”. O autor destaca ainda que o currículo é “predominantemente uma das mais autoritárias invenções da história da pedagogia, em face da sua concepção e implementação até hoje pouco ou nada democrática” (Macedo, 2011, p.19).

Um aspecto muito importante discutido por Macedo (2011) consiste na concepção do “currículo educativo”, no qual as intenções devem revelar, de fato, o compromisso com a educação de crianças e jovens, e não apenas com a arquitetura curricular a ser cumprida. O autor afirma que é preciso que a sociedade e seus grupos tenham a oportunidade de discutir e compreender o currículo num processo que seja democrático perante todos e não apenas perante a escola.

A partir dessas compreensões basilares sobre o currículo escolar, dá-se início às reflexões sobre a disciplina Geografia no âmbito do currículo da Educação Básica brasileira, iniciando, no tópico que se segue, com o histórico da disciplina Geografia no Brasil, para, mais adiante, analisar as problemáticas recentes associadas à reforma do Ensino Médio.

Um breve histórico da disciplina Geografia no Brasil e sua inserção geopolítica

O conhecimento geográfico compõe o currículo escolar praticado no Brasil mesmo antes da própria consolidação da Geografia como ciência, ocorrida em meados do século XIX, na Europa, a partir das obras de autores como Alexander Von Humboldt, Karl Ritter e, principalmente, Friedrich Ratzel, todos eles envolvidos no contexto da construção do Estado Nacional Alemão.

Apesar desse status de ciência alcançado pela Geografia já no século XIX, a Geografia presente no currículo escolar brasileiro durante aquele período tem pouca relação com a condição científica dessa área do conhecimento, estando mais atrelada a práticas docentes anteriores, que expressam uma concepção de Geografia que remonta à antiguidade (Rocha, 1994, 1997). Somente no século XX tem-se influência direta da ciência geográfica nas escolas, com modificações no currículo e na prática de sala de aula.

A partir desse breve panorama já é possível perceber que a história da disciplina Geografia no currículo escolar brasileiro é composta por vários períodos distintos, cada qual expressando uma realidade da disciplina e um contexto geopolítico dado. O Quadro 1 expõe mais detalhadamente esses períodos e suas características.

Quadro 1 Periodização da trajetória da Geografia escolar no Brasil (2018). 

Período Características
1549–1920 O período tem início com a chegada dos jesuítas no Brasil para desenvolver a educação de colonos e indígenas. Os conhecimentos geográficos chegavam aos colégios a partir de obras de cronistas e viajantes, tinham forma esparsa e integravam os estudos de literatura.
Em 1832, a Geografia passou a compor o currículo escolar brasileiro e, em 1837, com a criação do Imperial Colégio de Pedro II, passou a ser disciplina autônoma no currículo escolar. Entretanto, ainda não era ministrada por profissionais da área, já que a própria ciência geográfica ainda estava em processo de sistematização, mesmo na Europa.
1920–1960 Esse período compreende a fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo, em 1934, e do Departamento de Geografia, em 1946, assim como a criação da Associação de Geógrafos Brasileiros. Com isso, a Geografia do livro didático dá lugar a uma produção científica baseada em trabalhos de campo e com forte influência francesa. Tem início um processo de profissionalização da docência.
Também é marcado pelo movimento escolanovista, com forte influência no ensino da Geografia, mas sem romper com a prática da memorização e do excesso de informações nas escolas.
1960 – até a atualidade Durante o Regime Militar, especialmente, na década de 1970, a Geografia escolar sofre forte ameaça de supressão do currículo escolar a partir do advento dos estudos sociais. Ao mesmo tempo, seguindo o contexto de reação ao autoritarismo, a Geografia científica e a Geografia escolar passam por um processo de renovação, adotando uma ênfase crítica e tendo, principalmente, o materialismo histórico e dialético como base teórico-metodológica.
Com o advento do século XXI, trazendo consigo o fortalecimento das políticas neoliberais e o avanço da iniciativa privada na educação, a Geografia passa a sofrer novos questionamentos sobre sua condição de componente curricular da Educação Básica, como expresso na recente proposta de reforma do Ensino Médio.

Fonte: Elaborado pelos autores (2019), com base em Rocha (1994), Pontuschka (2005) e Souza e Pezzato (2010).

Como pode ser observado no Quadro 1, no Brasil, as primeiras escolas foram criadas pelos padres jesuítas que chegaram em 1549, com o objetivo de catequizar os índios do território colonial. Segundo Rocha (1994) e Souza e Pezzato (2010), o primeiro período da Geografia no Brasil corresponde aos primórdios da educação jesuítica no país, indo até a institucionalização de uma Geografia científica de fato.

Somente no ano de 1837 a Geografia é incluída como disciplina no currículo do Colégio Pedro II. Este, de acordo com Rocha (1994), adotou um currículo destinado a oferecer uma formação mais geral, caracterizada como clássica, humanística e enciclopédica, sem contemplar os estudos científicos, posicionando a Geografia apenas como disciplina autônoma dentro do currículo escolar. Rocha (1994, p.84) destaca que:

Em nível de legislação, propriamente dita, durante todo o período imperial, o ensino de Geografia manteve-se quase que totalmente inalterado. Tanto metodologias quanto conteúdos programáticos permaneceram imutáveis no currículo prescrito oficialmente por décadas seguidas. No máximo, as diferentes legislações voltadas para dar organização ao ensino do Imperial Colégio de Pedro II promoveram algumas mudanças superficiais a fim de melhor reordenar o programa de ensino dando-lhe uma feição mais coerente.

Nas primeiras décadas do século XX, a Geografia escolar brasileira passa por muitas transformações, especialmente advindas do processo de profissionalização da docência, a partir da formação superior em Geografia e do surgimento de instituições como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB). Entretanto, não se observa ruptura com muitas das práticas e metodologias tradicionais nas salas de aula da Educação Básica (Pontuschka, 2005).

Já no final do século XX, a Geografia escolar e a produção acadêmica em Geografia passam por importante processo de renovação, reagindo às ofensivas do regime ditatorial brasileiro em retirar o espaço da disciplina na Educação Básica e, também, participando do contexto de redemocratização. O materialismo histórico e dialético exerceu forte influência sobre a área.

Posteriormente, no início do século XXI, num contexto de expansão do neoliberalismo e de influência da iniciativa privada sobre as políticas públicas educacionais, a disciplina Geografia passa por novos questionamentos, como os representados pela reforma do Ensino Médio, discutida nos próximos tópicos. Isso ocorre, especialmente, porque o papel desempenhado por essa disciplina junto ao Estado e aos demais agentes hegemônicos passa por mudanças significativas.

Tratando da disciplina Geografia na Educação Escolar entre os séculos XIX e XX, Rocha (1997, p.63, grifo do autor) destaca que:

[...] as disciplinas escolares foram concebidas mais como sendo instrumentos de divulgação de uma cultura universal, a qual os filhos de nossas elites deveriam ter acesso para estarem paripassus com o ‘mundo civilizado’, o mundo branco europeu, do que como recurso de inculcação de uma ideologia nacionalista, como teimam em afirmar alguns. Somente mais tarde, à medida que o projeto nacional de nossas elites começa a se consolidar, a finalidade do currículo escolar e da disciplina Geografia, mais especificamente, passa a ser a construção do nacionalismo e do patriotismo.

De todo modo, a Geografia escolar, ou Geografia dos professores, como prefere Rocha (1994), desde os seus primórdios no Brasil até meados dos anos 1960, teve significativo papel para as elites e para o Estado brasileiro. Nesse quadro, as tentativas recentes de redução ou eliminação da disciplina Geografia do currículo escolar brasileiro estão muito associadas ao perfil crítico-reflexivo desenvolvido pela disciplina nas últimas décadas. Visando subsidiar uma melhor reflexão sobre essa questão, o próximo tópico contextualiza a atual reforma do Ensino Médio.

A reforma do Ensino Médio no Brasil e sua inserção teórico-política

Iniciando a discussão a respeito da reforma do Ensino Médio no Brasil atual, é importante primeiro estudar os elementos que ela apresenta, bem como sua inserção na LDB, Lei nº9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Em meio a um cenário de crise política, econômica, cultural e social do país, essa reforma se harmoniza com a política neoliberal e com os subjacentes interesses relativos à acumulação de capital, trazendo consigo inúmeros questionamentos e incertezas sobre o futuro da educação nacional.

A reforma do Ensino Médio inicialmente foi criada por meio da Medida Provisória 746/2016 (Brasil, 2016) e, após modificações na Câmara e Senado, foi sancionada por meio da Lei n°13.415, de 16 de fevereiro de 2017, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e provocando um conjunto de mudanças na estrutura do Ensino Médio brasileiro, com destaque para a flexibilização do currículo escolar, por meio da qual parte do currículo passa a ser obrigatória e outra parte optativa.

Muitos debates estão sendo feitos a respeito da nova reforma, e diversos professores e pesquisadores consideram preocupante a forma como ela foi e tem sido conduzida, especialmente pela ausência da participação dos setores envolvidos. Essas preocupações e contraposições podem ser exemplificadas pelo posicionamento da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que encaminhou moção ao Governo Federal pedindo a revisão da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) do Ensino Médio, com a revogação da Lei de reforma do Ensino Médio e o cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação – PNE 2014-2024, conforme exposto a seguir.

A Assembleia Geral dos Sócios da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), considerando que a Reforma de Ensino Médio e a BNCC a ela articulada têm características excludentes e que podem levar a um aprofundamento das desigualdades sociais, ao contrário do exposto em propagandas oficiais;

que a Educação Pública Brasileira necessita de significativos aportes financeiros advindos do setor público;

que o Plano Nacional de Educação (PNE - 2014-2024), ainda que tenha excluído pontos importantes para o progresso da educação no país, como as questões étnico-raciais e de gênero, constitui um importante aporte à Educação Pública Brasileira. Ele equaciona os principais problemas enfrentados pelo sistema público brasileiro de educação básica e propõe soluções por meio de metas ligadas à universalização do atendimento em todos os níveis, à educação em tempo integral, à valorização, carreira e formação dos professores e ao financiamento público da Educação, entre outros;

que o PNE 2014-2024 tem tido suas metas sistematicamente descumpridas pelo governo,

propõe:

– A revogação da Lei no 13.415, da Reforma do Ensino Médio, e um debate amplo e necessário sobre a reestruturação do Ensino Médio, com a participação de todos os setores envolvidos;

– A devolução da BNCC do Ensino Médio ao MEC para uma reavaliação de sua estrutura e conteúdo, que deve ser feita com a participação dos setores envolvidos, aí incluídas as entidades científicas;

– O posicionamento claro do governo em relação ao PNE 2014-2024, no sentido de garantir o atendimento de suas 20 metas e buscando a incorporação das questões étnico-raciais e de gênero (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, 2018, p.1).

De acordo com Frigotto (2016, p.331), “[…] o argumento de que há excesso de disciplinas esconde o que querem tirar do currículo – filosofia, sociologia e diminuir a carga de história, Geografia, etc. [...]”. O autor afirma ainda ser medíocre e fetichista o argumento utilizado de que o aluno não apoia uma escola conteudista, mascarando o que realmente está acontecendo com a Educação Pública do país.

Muitas escolas estão esvaziadas e degradadas e professores insatisfeitos, tendo que trabalhar muitas vezes em três turnos para garantir um salário razoável. O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) também se manifestou a respeito da forma como se deu a reforma do Ensino Médio, afirmando que a adoção de medida provisória colheu a todos de surpresa e “[...] impediu de haver um debate mais amplo da sociedade sobre o assunto, cerceando o direito de associações científicas e acadêmicas, sindicatos, estudantes e a população de se manifestarem livremente sobre um assunto do maior interesse de todos(as)” (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior, 2017, p.8).

Conforme o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (2017, p.8), é importante destacar que, com exceção de Língua Portuguesa e Matemática, nenhuma outra disciplina é obrigatória de acordo com a reforma do Ensino Médio: “Isso pode significar um enorme aligeiramento desse nível de ensino e um grande empobrecimento da educação formal dos(as) jovens [...]”, especialmente por ser o Ensino Médio a etapa final da Educação Básica, assim desempenhando um papel fundamental na formação moral, ética e social dos educandos.

Visando deixar mais clara a questão, o Quadro 2 expõe as principais alterações na LDB, demonstrando como era e como ficou após a lei que reformulou o Ensino Médio – Lei n° 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (Brasil, 2017a).

Quadro 2 Alterações promovidas pela Lei n° 13.415/2017 

Principais alterações LDB – Antes da lei n°13.475/2017 LDB – Após a lei °13.475/2017
Carga horária “Art. 24 – [...] I – A carga horária mínima anual será de oitocentas horas, distribuídas por um mínimo de duzentos dias de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo reservado aos exames finais, quando houver. [...]”. “Art. 24 – [...] I - a carga horária mínima anual será de oitocentas horas para o ensino fundamental e para o ensino médio, distribuídas por um mínimo de duzentos dias de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo reservado aos exames finais, quando houver [...].
§ 1º A carga horária mínima anual de que trata o inciso I do caput deverá ser ampliada de forma progressiva, no ensino médio, para mil e quatrocentas horas, devendo os sistemas de ensino oferecer, no prazo máximo de cinco anos, pelo menos mil horas anuais de carga horária, a partir de 2 de março de 2017”.
Currículo do Ensino Médio “Art. 36 – O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e as seguintes diretrizes:
I – destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania;
II – adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a iniciativa dos estudantes;
III – será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das disponibilidades da instituição;
IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio (Incluído pela Lei nº 11.684, de 2008)”.*
“Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, a saber:
I - linguagens e suas tecnologias;
II - matemática e suas tecnologias;
III - ciências da natureza e suas tecnologias;
IV - ciências humanas e sociais aplicadas;
V - formação técnica e profissional”.
Professores “Art. 61. Consideram-se profissionais da educação escolar básica os que, nela estando em efetivo exercício e tendo sido formados em cursos reconhecidos, são:
[...]
IV - profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação para atender o disposto no inciso V do caput do art. 36. (Incluído pela Medida Provisória nº 746, de 2016)”.
“Art. 61. Consideram-se profissionais da educação escolar básica os que, nela estando em efetivo exercício e tendo sido formados em cursos reconhecidos, são:
[...]
IV - profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino, para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional, atestados por titulação específica ou prática de ensino em unidades educacionais da rede pública ou privada ou das corporações privadas em que tenham atuado, exclusivamente para atender ao inciso V do caput do art. 36;
V - profissionais graduados que tenham feito complementação pedagógica, conforme disposto pelo Conselho Nacional de Educação”.

Notas:* Dotada de grande relevância e trazendo grandes benefícios à formação crítico-reflexiva do educando, a Lei n° 11.684, de 2 dejunho de 2008, alterou o artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, incluindo a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do Ensino Médio brasileiro.

Fonte: Elaborado pelos autores (2019) com base em Brasil (1996, 2008, 2016, 2017a).

Como é possível perceber ao se examinar o Quadro 2, a grande alteração proposta pela reforma do Ensino diz respeito à constituição dos itinerários formativos específicos, viabilizada pela alteração do Art. 36 da LDB. A mudança tem impactos significativos sobre algumas disciplinas, como a Geografia, com prováveis consequências negativas na formação dos educandos.

A definição dos itinerários formativos (linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional) cabe a cada sistema de ensino, de modo que nada garante a materialização de todos os itinerários ou o quantitativo de oferta de cada um deles. Segundo a nova BNCC (Brasil, 2017b), homologada pela Portaria n°1.570, publicada no D.O.U. de 21/12/2017, Seção 1, página146, apenas as áreas de linguagens e matemática deverão ser oferecidas de forma obrigatória nos três anos do Ensino Médio, enquanto as demais áreas podem ser distribuídas ao longo dos três anos de acordo com o estabelecido pelas respectivas redes de ensino. No mesmo documento também fica definido que o currículo básico, delineado pela BNCC deverá somar 1.800 horas, enquanto a parte flexível, os itinerários, terá 1.200 horas.

Portanto, a reforma do Ensino Médio, normatizada pela Lei n° 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, está em consonância com políticas, regulamentações e práticas que já há algum tempo no Brasil atuam no sentido da valorização de algumas áreas do conhecimento em detrimento de outras – mais particularmente, uma valorização de Língua Portuguesa e Matemática, acompanhada da desvalorização das disciplinas da área de Ciências Humanas. Tal fenômeno pode ser observado nas discrepâncias de carga horária, bem como na inserção ou não em avaliações de qualidade do ensino e, agora, na obrigatoriedade de algumas disciplinas em contraposição ao caráter facultativo de outras.

A disciplina Geografia no contexto da reforma do Ensino Médio

Sobre a disciplina Geografia, assim como sobre os demais componentes da área de Ciências Sociais, recaem as maiores incertezas trazidas pela reforma do Ensino Médio, uma vez que essa disciplina passaria a compor os itinerários formativos e, desse modo, não tem a sua permanência garantida nos currículos a serem implementados nas escolas. Entretanto, não é novidade na história recente das políticas educacionais brasileiras a desvalorização dessa área do conhecimento, como bem exemplificam a pequena carga horária dispensada à disciplina na Educação Básica e a sua ausência em avaliações nacionais, como na Prova Brasil.

Torna-se fundamental a reflexão sobre as razões desse quadro, bem como sobre os porquês da disciplina Geografia não gozar na atualidade do mesmo status de outrora nas políticas governamentais. Para tanto, faz-se necessária uma reflexão sobre a prática dessa disciplina na Educação Básica.

Como já discutido anteriormente, durante os séculos XIX e XX, a disciplina Geografia desempenhou, como constatado por Rocha (1994, 1997), importante papel em relação ao poder hegemônico no país: primeiramente, como estratégia de formação geral das elites; e, depois, como divulgadora dos ideais de soberania nacional e integração do território.

Contudo, tanto as necessidades dos agentes hegemônicos se modificaram, implicando demandas de outras ordens em relação à ciência, quanto a Geografia, como ciência e como disciplina escolar, adquiriu outros formatos e objetivos, com uma maior aproximação das reivindicações de grupos subalternos e em busca de melhorias para a sociedade em geral.

Como já explicado com base em Rocha (1997), a Geografia escolar no Brasil cumpriu durante muito tempo um papel de divulgação de uma cultura universal às elites locais e regionais, especialmente a seus filhos. Posteriormente, também foi utilizada na defesa de ideais nacionalistas, função essa que permeia a institucionalização e a consolidação da disciplina como ciência na Europa, especialmente nas escolas alemã e francesa de Geografia (Capel, 1981; Gomes, 2002). Entretanto, essas demandas em relação à Geografia reduziram-se significativamente, uma vez que esses grupos hegemônicos, também em constante mutação, tanto não possuem exatamente as mesmas necessidades quanto também encontraram outros meios de satisfazê-las.

Ao mesmo tempo, a própria Geografia passou por grandes mudanças. Conforme ocorrido em outras Ciências Sociais, a forte influência de enfoques teórico-metodológicos comprometidos com a transformação social, a exemplo da dialética materialista desenvolvida no âmbito do marxismo, além de orientar os estudos e práticas docentes, também passou a influenciar mesmo aquelas abordagens sustentadas em outras tradições teóricas, de forma que a ideia de busca de melhorias e/ou transformações sociais positivas passou a ser algo possível de se reconhecer nos mais diversos estudos em Geografia.

Nesse sentido, Capel (1981) aponta, no âmbito do pensamento geográfico contemporâneo, certas aproximações entre a perspectiva marxista e a libertária, bem como percebe certo uso do marxismo enquanto uma ferramenta flexível de análise crítica da realidade.

Al igual que otras ciencias sociales, el descubrimiento del marxismo ha coincidido frecuentemente con el de la tradición libertaria. Como en otras disciplinas, también en geografía se han realizado esfuerzos por integrar las dos tradiciones en una síntesis anarco-marxista. Estos intentos son posibles porque, en el movimiento radical está totalmente ausente, en general, una actitud dogmática ante el marxismo, dominando la tendencia a utilizar a éste como una herramienta flexible de análisis crítico de la realidad (Capel, 1981, p.438).

Na atualidade, tendo hegemonicamente o espaço como categoria geral (Haesbaert, 2014) ou como instância social definidora de seu objeto (Santos, 1996), a disciplina Geografia tem se lançado, principalmente, ao papel de instigar o aluno a pensar esse espaço. De acordo com Brasil (2006, p.43), a Geografia deve preparar o aluno para “[...] localizar, compreender e atuar no mundo complexo, problematizar a realidade, formular proposições, reconhecer as dinâmicas existentes no espaço geográfico [...]”. Ela estuda o espaço e suas diversas relações com o homem, possuindo características e conceitos próprios que a escola deve explorar com os educandos, possibilitando a eles descortinar a realidade na qual estão inseridos. Conforme salienta Callai (2010, p.17),

A Geografia escolar, assim como a ciência geográfica, tem a função de estudar, analisar e buscar explicações para o espaço produzido pela humanidade. Enquanto a matéria de ensino cria as condições para que o aluno se reconheça como sujeito que participa do espaço em que vive e estuda, compreendendo que os fenômenos que ali acontecem são resultado da vida e do trabalho dos homens em sua trajetória de construção da própria sociedade demarcada em seus espaços e tempos.

Nesse sentido, a Geografia busca promover nos educandos a formação de uma visão crítica e reflexiva sobre o mundo e a realidade, pois diante de tantas transformações ocorridas nas diversas esferas sociais, inclusive na educação, os estudantes devem ser sujeitos ativos no processo de tomada de decisões.

Esse papel da disciplina é reforçado pelo fato de um dos grandes desafios vivenciados pela sociedade atual ser a necessidade de se compreenderem as transformações socioespaciais, os agentes a elas associados e seus interesses, bem como os instrumentos a serem utilizados no atendimento de suas demandas. É nesse cenário que o ensino da Geografia pode ter grande importância – não sob qualquer perspectiva -, mas sim mediante práticas crítico-reflexivas (Pimenta, 2002) assentadas no espaço vivido dos alunos da Educação Básica, visando uma aprendizagem dotada de significado, que seja instrumento de vivência e de contraposição às contradições socioespaciais.

O espaço vivido (ou lugar), de acordo com Ribeiro e Ribeiro (2018, p.69), abrange, no que se refere ao indivíduo,

[...] o seu quotidiano, suas atividades e práticas com naturezas diversas: trabalho, lazer, estudo etc. Abrange espaços como a residência e a forma como ela é vivenciada, os espaços de lazer frequentados e toda a variabilidade inerente às preferências individuais, entre outros espaços. Porém, isso ainda não encerra a complexidade do espaço vivido, já que às questões do indivíduo atrelam-se condicionantes da esfera social mais ampla, como desigualdades sociais relativas à renda e ao acesso a serviços, desigualdades espaciais [...].

O trabalho com o espaço vivido favorece a aprendizagem significativa, nos moldes apresentados por Ausubel, Novak e Hanesian (1980) e Ausubel (2000) ou seja, enquanto uma aprendizagem que se estabelece a partir da conexão entre antigos e novos conhecimentos. Essa forma de aprendizagem, por sua vez, possui estreitos laços com a criticidade e a reflexão, pois se evidencia a partir da contextualização na realidade do educando, estimulando sua compreensão e, por conseguinte, posturas críticas, reivindicadoras e transformadoras, ao compreender sua posição na complexidade das relações socioespaciais.

Brasil (2006, p.43) afirma que o objetivo da Geografia é “compreender a dinâmica social e espacial, que produz, reproduz e transforma o espaço geográfico nas diversas escalas (local, regional, nacional e mundial)”. Além disso, orienta o educando em sua formação enquanto cidadão, “no sentido de aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser, reconhecendo as contradições e os conflitos existentes no mundo” (Brasil, 2006, p.44).

Cavalcanti (2011, p.5) acrescenta ainda a necessidade de se “levar em consideração […] o local, visando propiciar a construção pelo aluno de um quadro de referências mais geral que lhe permita fazer análises críticas”. De acordo com Cavalcanti e Araújo (2017, p.142):

Ao contemplar em seus conteúdos temáticas como a segregação socioespacial, a Geografia escolar permite de maneira problematizadora que os alunos compreendam o espaço em que vivem e, mais ainda, possibilita perceber relações entre seu posicionamento espacial e seu lugar na sociedade frente às problemáticas em que vive, buscando, assim, elementos para uma intervenção crítica no espaço com o qual interage.

Desse modo, a cidade, o campo e os processos que lhes dão vida são fundamentais a um ensino da Geografia preocupado com uma formação crítico-reflexiva, nos moldes defendidos por Pimenta (2002). Entretanto, esse tipo de papel desempenhado cada vez mais pela Geografia escolar brasileira, bem como pelos demais componentes da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – Filosofia, História e Sociologia –, como define a nova BNCC (Brasil, 2017b), não se articula às demandas hegemônicas colocadas para a Educação Básica e, muitas vezes, opõe-se a elas, resultando em proposições curriculares como as que orientam a reforma do Ensino Médio. Segundo o “Novo Ensino Médio”, a disciplina Geografia será obrigatória apenas na primeira metade do Ensino Médio, permanecendo na segunda metade como integrante de um itinerário formativo específico, o que, certamente, resultará numa diminuição maior ainda do espaço dessa disciplina no currículo escolar, apontando, inclusive, para desaparecimento como componente do currículo do Ensino Médio das escolas.

Tal possibilidade acarretaria sérios problemas para formação dos educandos, considerando que a Geografia é uma disciplina fundamental, pois é por meio dela que o estudante compreende a realidade do mundo em que vive e interpreta as relações da sociedade com o meio natural, estudando não somente as características da superfície do planeta, mas também aspectos naturais, sociais, políticos, econômicos e culturais.

Mesmo que, oficialmente, o currículo do Ensino Médio preveja a disciplina Geografia em um dos itinerários, nada garante que a escola terá condições de manter o funcionamento desse itinerário, o que não seria nenhuma surpresa diante do quadro precário vivenciado pelas escolas públicas brasileiras. Além disso, com toda a força da propaganda de uma formação básica aplicada ao mundo do trabalho e a consequente desvalorização das Ciências Sociais e da reflexão crítica, a própria comunidade escolar pode se encarregar de prosseguir com o processo de redução da presença da Geografia na sala de aula.

Considerações Finais

Como demonstrado ao longo do texto, a disciplina Geografia, assim como outras igualmente importantes, vê-se ameaçada, no currículo escolar do Ensino Médio, de uma desvalorização maior que a já registrada, o que pode conduzir ao seu posterior desaparecimento do currículo da Educação Básica.

Essa possibilidade existe porque o currículo, como já visto, não tem sua composição estabelecida “naturalmente”, mas é socialmente produzido, dotado de história e, desse modo, sujeito a mudanças. Assim, um determinado conhecimento ensinado nas escolas pode ser mantido, excluído ou modificado ao longo do tempo como resposta a uma série de fatores, como aqueles ligados à própria área, suas condições e características internas, ou aqueles relativos à conjuntura social, política e econômica expressa nas políticas educacionais.

Inserida nessa dinâmica, a disciplina Geografia, cuja história é mais antiga no Brasil que a própria ciência geográfica, atualmente, assim como já ocorrido em outros momentos, como o da ditadura militar, vivencia um forte questionamento com relação à sua inserção na Educação Básica. Embora tal questionamento se materialize mais claramente na reforma do Ensino Médio, ele não se reduz a tanto, já que a disciplina vem perdendo espaço com o passar dos anos, tendo sua carga horária diminuída e estando cada vez menos presente nas avaliações oficiais da Educação Básica.

Essa realidade deve-se, de um lado, às transformações ocorridas no interior da própria disciplina, que teve diminuído o seu papel de conhecimento a serviço de ideais nacionalistas e viu aumentada sua carga crítico-reflexiva e sua função de possibilitar ao educando uma leitura autônoma acerca do mundo em seu entorno. De outro lado, o desprestígio da disciplina resulta do choque entre o enfoque acima e as políticas educacionais neoliberais, voltadas principalmente à formação para o mercado (e não para a vida), na qual a Geografia cumpriria um papel menor e, muitas vezes, contraditório.

É importante destacar que essa perda de espaço da Geografia não ocorre sem implicações trágicas para a sociedade brasileira, pois, essa ciência assume importantes tarefas relativas ao conhecimento do mundo em que se vive, desenvolvendo habilidades essenciais para a vida cotidiana e para o entendimento do mundo. Com isso, a Geografia é não só essencial no processo de aprendizagem em toda a Educação Básica, como também indispensável à formação cidadã.

Desse modo, o desprestígio ou uma possível supressão da Geografia do currículo do Ensino Médio significa uma perda na formação de um sujeito social complexo, atuante tanto na área profissional quanto nas diversas outras esferas da vida social – um sujeito preparado para lidar com a velocidade das transformações contemporâneas, capaz de entender sua posição no quadro político, econômico e social, instrumentalizado para tomadas de decisão e ativo na construção de uma sociedade mais justa.

Desse modo, a disciplina Geografia, com sua multiplicidade de temas e de escalas de interpretação e ação, constitui um saber estratégico – talvez não mais para o Estado ou os grandes grupos econômicos, mas para a sociedade em geral, por estar interessada em seu bem-estar, na melhoria de qualidade de vida e na ampliação da justiça social.

Partindo do diagnóstico da precariedade da Educação Básica, o que é de amplo conhecimento, as políticas educacionais propõem soluções curriculares para enfrentar problemas de outras ordens, relativos à precária infraestrutura das escolas, à falta, insuficiência ou defasagem de equipamentos escolares e recursos didáticos, à baixa remuneração e desvalorização da carreira docente. E, assim, sob o pretexto de solucionar problemas, dá-se seguimento à sua multiplicação.

1Artigo elaborado a partir do Projeto de Pesquisa “Espaço vivido, aprendizagem significativa e ensino de Geografia na Educação Básica”. Universidade do Estado do Pará, Grupo de Pesquisa Geografia do Pará Urbano, 2014-2018.

Como citar este artigo/How to cite this articleRibeiro, L.O.M.; Ribeiro, W.O. Ciência do espaço sem espaço: disciplina Geografia e reforma do Ensino Médio no Brasil. Revista de Educação PUC-Campinas, v.25, e204541, 2020. http://dx.doi.org/10.24220/2318-0870v25e2020a4541

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Recebido: 01 de Abril de 2019; Revisado: 04 de Setembro de 2019; Aceito: 02 de Outubro de 2019

Correspondência para/Correspondence to: W.O. RIBEIRO. E-mail: <willame@uepa.br>.

Colaboradores Ambos os autores contribuíram em todas as etapas de elaboração e escrita do artigo.

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