Introdução
O presente artigo tem como objetivo esboçar uma introdução ao diálogo possível e necessário entre a Geografia Anticolonial e a Pedagogia do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Tratar-se-á de estabelecer uma relação entre os elementos que constituem o emergente debate do anticolonialismo no ensino de Geografia e a pedagogia forjada no movimento da/na luta pela/na terra do MST.
O fundamento que sustenta as duas abordagens pedagógicas nas quais este artigo está embasado consiste na educação promotora de uma formação humana para a vida na sua integralidade – formação humana omnilateral –, tomando os sujeitos e suas vivências como centrais no processo de ensino e aprendizagem e compreendendo o trabalho enquanto meio – e não fim – e para além dos limites do capital.
O anticolonialismo se insere no ensino de Geografia como pressuposto teórico-reflexivo sobre os (des)caminhos que o ensino dessa ciência tem percorrido no movimento da história. Mais que apontar respostas, o anticolonialismo encaminha uma série de questionamentos sobre que tipo de geografia está sendo (re)reproduzida – situada no espaço e no tempo –, para qual finalidade e para quem. Nesse bojo, indaga-se se está avançando na construção de uma Geografia com elementos para conscientização e emancipação dos sujeitos em formação.
Nesse sentido, o debate a respeito de uma Geografia Anticolonial no ensino ainda está em construção, mas apresenta profundidade e possibilidades aos geógrafos e geógrafas inseridos na luta contra todas as formas de opressão (social, política, econômica, cultural, intelectual e mesmo epistemológica) e exploração do capitalismo-liberal, eurocêntrico, que atravessa a totalidade das formações sociais e geográficas pós-colonialismo/escravismo.
Sendo assim, o debate decolonial ou descolonial tem robustecido a reflexão-produção latino--americana a partir da teoria da Modernidade/Colonialidade (M/C) há mais de duas décadas, numa produção transdisciplinar dedicada a (re)pensar a construção de um novo aporte teórico-epistêmico latino-americano, movimento contestatório das múltiplas escalas e dimensões da colonialidade do poder, do saber, do ser e da natureza (Cruz, 2017; Mignolo, 2005).
Entre os autores e as autoras que fazem parte do grupo da Modernidade/Colonialidade (M/C) estão as pedagogas Catherine Walsh e Vera Maria Candau e o sociólogo Luiz Fernandes de Oliveira, que corroboram o debate afirmando que uma pedagogia decolonial não deve partir de currículos fechados, pré-estabelecidos, de gabinete; ou seja, estranho às vivências e à realidade socioespacial dos sujeitos em formação (Walsh; Oliveira; Candau, 2018). Portanto, a pedagogia decolonial é uma ação de politização pedagógica que eleva os movimentos sociais e suas lutas ao papel de sujeito pedagógico.
Essas premissas iniciam o diálogo aqui proposto, visto que essas também são estruturantes das reflexões sobre a concepção de educação do MST, organizadas pela professora Roseli Salete Caldart2 no livro Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais que escola3, obra que também servirá de fundamento para o diálogo entre a Pedagogia do Movimento, o debate da M/C e a geografia anticolonial.
O contexto reivindicatório do MST por uma educação do/no campo data das décadas finais do século XX, quando passaram a reivindicar o direito constitucional de acesso à educação, afirmando suas posições políticas e ideológicas. Em pouco tempo, a reivindicação por uma escola no e do campo se ampliou e passou-se a requerer também que essa escola contemplasse e dialogasse com as especificidades do modo de vida camponês e do Movimento.
Apesar da institucionalização da educação do campo pelo Estado no primeiro decênio do século XXI, é no seio do Movimento que é gestada a escola do MST e seus princípios pedagógicos, forjados na experiência camponesa em luta enquanto elemento central de educação e formação humana. Sendo assim, como defendem os pensadores da M/C, é necessário (re)pensar a formação social e seus atravessamentos culturais, políticos, econômicos, sociais e educacionais para além dos limites teóricos-epistemológicos da colonialidade eurocêntrica, estabelecendo novos paradigmas do conhecimento a partir dos saberes e modos de vida dos povos subalternizados, de suas histórias e experiências nas lutas como elemento central desse (re)pensar o outro em formulação próprias, de(s)colonais (Haesbaert, 2021).
Visando contribuir com os debates citados até aqui, este artigo está estruturado em duas partes. Na primeira, busca-se contextualizar a discussão em torno da colonialidade e, ainda nesse momento, far-se-á uma breve explicação a respeito da opção pelo conceito anticolonial. Na segunda parte, são expostos os princípios e as matrizes pedagógicas da concepção da Pedagogia do Movimento e o seu diálogo enquanto proposta educacional anticolonial. Por fim, são tecidas algumas considerações não conclusivas, mas que ampliam o debate sobre as hipóteses constitutivas de uma perspectiva educacional anticolonialista.
Colonialidade e anticolonialismo
Inicialmente, é preciso destacar as características fundamentais da colonialidade a partir dos autores e das autoras que têm aberto caminhos não só para a pesquisa, mas, sobretudo, para a construção de possibilidades epistêmicas anticoloniais, advindas das próprias experiências na luta contra a modernidade colonizada. Por conseguinte, é necessário realizar também uma breve exposição a respeito da opção pelo conceitual anticolonial.
Um aspecto mais abrangente e inicial é a compreensão de que a colonialidade é constitutiva da modernidade (Mignolo, 2005) capitalista-liberal. O colonialismo é a expressão máxima da violência direta contra o outro não-europeu enquanto ferramenta capitalista de expansão e mundialização da dominação de territórios e riquezas pelo mundo, com destaque para o papel da América Latina enquanto território de espoliação e expropriação para concentração e expansão do capital. Nesse sentido, é importante destacar também que o fim do sistema colonial direto (colonialismo) não significou o fim da colonialidade, que é a estrutura fundante da modernidade capitalista-liberal-burguesa eurocêntrica e, portanto, “um resíduo irredutível de nossa formação social e está arraigada em nossa sociedade” (Cruz, 2017, p. 16). Sendo assim, pensar na colonialidade é refletir sobre o modo como a burguesia europeia organizou o mundo dominado-colonial e operou seu projeto civilizacional obscurecido pela modernidade (Dussel, 2005).
Mignolo (2005) faz uma contribuição fundamental para repensar a história da América Latina por uma ótica contra-hegemônica. Ele argumenta que é preciso descartar a historiografia hegemônica pretensamente universalizada e unidimensional, considerando que a invasão da “América Latina” tem uma série de especificidades não abarcadas totalmente nas explicações pré-capitalistas e capitalistas de produção e que tão pouco se forjam sob a égide dessa problemática moderna. É preciso refletir pela ótica daqueles e daquelas que resistiram a imposições mais antigas do que a suposta “modernidade”.
Repensar a colonialidade é considerar as múltiplas formas de atravessamento da formação social a partir das experiências e lutas concretas das sociedades subjugada. Desse modo, a colonialidade é constitutiva dos traços sociais que organizam nossa sociabilidade moderno-burguesa e, portanto, os aportes ético-moral e político-econômico que forjaram a lógica Estado-nação (Mignolo, 2005), a cultura e a intelectualidade estranhas às tradições do mundo colonizado.
Suess e Silva (2019, p. 6), pensando em uma perspectiva para avançar no debate acerca do ensino de Geografia, apresentam as principais concepções teóricas da colonialidade que abrem alguns caminhos iniciais e potencialidades transformadoras ao debate sobre a colonialidade a partir de uma história-outra,
A decolonialidade e modernidade; o posicionamento da América no sistema mundo; eurocentrismo; a ideia de raça; colonialismo do poder, colonialismo do ser e colonialismo do saber; a constituição do Estado-nação moderno; o desenvolvimento e o novo marco civilizatório e a interculturalidade e transculturalidade crítica como ferramentas de transformação da realidade.
Fica evidente que o debate sobre essas concepções teóricas é fundamental para que a colonialidade, em sua profundidade e pelo olhar do outro não-europeu, seja repensada.
Primeiramente, a colonialidade foi colocada como a força propulsora da modernidade, na qual a colonialidade do saber promulgou uma história unidimensional que universalizou o eurocentrismo como forma-fim das sociedades ocidentais. A posição geopolítica da América Latina foi amplamente elaborada pelos pensadores e pelas pensadoras da Teoria da Dependência, demonstrando os aspectos político-econômicos que colocaram os territórios latino-americanos nos marcos da exploração agromineradora de exportação e suas consequências, cristalizadas atualmente.
Portanto, a partir do colonialismo do poder, Mignolo (2005) faz contundentes críticas à ideia de raça e da racialização dos povos como instrumental teórico – e violento! – para (re)identificar, classificar, estigmatizar e hierarquizar o não-europeu-branco.
A imposição da lógica do Estado-nação e de suas estruturas político-jurídicas de organização e dominação de classe como forma e conteúdo para a organização das sociedades colonizadas foi fundamental para a operacionalização da contínua exploração e manutenção do domínio geopolítico pós-período escravagista. Nesse sentido, a proposição de uma pluriversalidade como instrumental teórico-crítico à homogeneização do pensamento outro (Walsh, 2007) na diferença colonial é fundamental para (re)pensar o “desenvolvimento” dos territórios latino-americanos. Portanto,
As teorias, os conceitos e as interpretações do pensamento descolonial precisam dialogar com a diversidade de experiências de lutas sociais concretas. Bem como os conhecimentos e as epistemologias construídas nas lutas sociais concretas podem oferecer novos horizontes de sentidos para a construção de um pensamento descolonial
(Cruz, 2017, p. 31).
Além da análise do professor Valter do Carmo Cruz sintetizar os breves aspectos que tangem o debate sobre a colonialidade, ela também aponta duas questões que serão tratadas aqui. A primeira delas é a escolha da terminologia anticolonial/anticolonialista, que será abordada de maneira geral por se tratar de uma discussão que demanda outro espaço e tempo, e a segunda faz referências à necessidade de dialogar com a diversidade de experiências de lutas sociais concretas e, por isso mesmo, à possibilidade de conversar com a Pedagogia do Movimento.
A opção por anticolonial/anticolonialismo se deu, inicialmente, através de leituras de autores conhecidos como pós-coloniais4, porque evidenciaram as relações de poder, subordinação e dependência intrínsecas e enviesadas na formação socioespacial e geopolítica do mundo colonial. Em segundo lugar, pela defesa de rupturas revolucionárias com a hegemonia do capitalismo-liberal como condição para o surgimento de outros projetos civilizacionais, e, por fim, porque a proposta anticolonialista tem como base teórico-metodológica o materialismo histórico e dialético5.
Compreende-se a ontologia das bases teórico-epistemológicas do método e alguns de seus limites a partir da transposição acrítica – ou ortodoxa – a outras realidades concretas. No entanto, admite-se, como Walsh, Oliveira e Candau (2018, p. 2), que o pensamento marxiano se configurou como uma “virada epistemológica no pensamento ocidental” do século XIX e influenciou o debate intelectual e experiências anticapitalistas, anti-imperialistas e anticoloniais em diferentes regiões do mundo. Por isso, desconsiderar suas contribuições e possibilidades múltiplas na construção do devir da virada epistemológica do século XXI nos estudos anticoloniais é um erro.
Nesse sentido, Suess e Silva (2019) corroboram a afirmação ao defenderem que o materialismo histórico e a fenomenologia têm grande contribuição para pensar uma Geografia mais humanista e crítica na escola. Essa assertiva ficará mais evidente no tópico seguinte, com a aproximação teórica do anticolonialismo com a pedagogia do Movimento de Sem-Terra.
Pedagogia do Movimento: uma aproximação teórica
É preciso construir uma aproximação teórica entre os aspectos que envolvem o debate sobre o anticolonialismo e a proposta da educação do campo6, conquistada e forjada na luta concreta dos camponeses sem-terra organizados no MST7. Porém, antes de partir para os elementos que estruturam ambas as teorias e possibilitam esse diálogo, é interessante contextualizar o processo de formação do Movimento.
O surgimento do MST enquanto movimento organizado de luta pela reforma agrária data de 1984, no município de Cascavel/PR, mas as lutas de resistência aos processos de expropriação dos camponeses e das camponesas no Brasil têm origem nas associações de trabalhadores rurais, com primeiro nível organizacional situado em Pernambuco: as Ligas Camponesas. As Ligas exerceram intensa atividade de luta pela terra e por direitos entre 1955 e 1964, quando seus militantes passaram a ser perseguidos e assassinados pela ditadura militar-empresarial.
A partir das diversas frentes de resistência aos anos de chumbo no campo e nas cidades e da derrocada do regime na década de 1980, o MST congrega e organiza as reivindicações das lutas no campo e recoloca a pauta da reforma agrária como questão imperativa para a superação do subdesenvolvimento, da dependência e pela soberania nacional. Destarte a centralidade da questão da reforma agrária nacional, o MST ganha organicidade na luta do campo e passa, também, a readequar suas pautas no movimento das transformações capitalista e neoliberais.
Essas transformações e/ou adequações das pautas do Movimento é o que dá sentido ao diálogo aqui defendido. Nunca perdendo o objetivo central da reforma agrária, o Movimento vai adequando sua organização para superar as opressões sociais que refletem a sociabilidade capitalista-liberal-colonizadora que, evidentemente, atravessam também as relações sociais no interior do Movimento.
Nesse sentido, o MST pauta e passa a enfrentar o sexismo/patriarcalismo no campo, alçando as mulheres como fundamentais protagonistas da organização na luta; a violência de gênero no seio da família camponesa, com diversos casos de expulsão de jovens não-binários, promovendo, para isso, a Frente LGBTQIA+ Sem Terra, e, entre outras pautas, a defesa intransigente e constitucional do direito à educação dos jovens e adultos no campo. Ainda que este trabalho não tenha como objetivo esmiuçar todas essas questões, detendo-se particularmente à última, elas sem dúvida configuram os elementos estruturantes do debate possível aqui proposto.
As elaborações dos autores e das autoras da M/C, como destacado por Cruz (2017), evidenciam a necessidade de (re)pensar teorias e conceitos atravessados pela colonialidade do saber (Lander, 2005). Inclui-se ainda a práxis pedagógica inerente às lutas contra-hegemônicas dos movimentos sociais e da resistência dos povos originários, dos quilombolas, dos camponeses e dos movimentos negros e feministas; ou seja, à luta dos grupos historicamente subalternizados.
Aqui se destaca o campesinato enquanto uma classe social originária do modo de produção feudal, mas que foi incorporada à dinâmica do capitalismo de maneira subordinada (principalmente aos interesses da indústria). É importante ressaltar, no entanto, que não se pode achar que os camponeses de hoje são iguais aos feudais, tendo em vista que a dinâmica social e econômica do capitalismo também conforma o modo de vida camponês – o que é corroborado pela professora Marta Inês Medeiros Marques, que argumenta que essa classe tem seu modo de vida associado a:
[...] um conjunto de práticas e valores que remetem a uma ordem moral que tem como valores nucleantes a família, o trabalho e a terra. Trata-se de um modo de vida tradicional constituído a partir de relações pessoais e imediatas, estruturadas em torno da família e de vínculos de solidariedade, informados pela linguagem de parentesco, tendo como unidade social básica a comunidade
(Marques, 2004, p. 145).
O campesinato é uma classe social que se insere na sociedade capitalista de forma subalterna. Ela é caracterizada por uma organização social específica que ora serve aos interesses capitalistas, ora lhes é contraditória. O modo de vida camponês apresenta simultaneamente uma relação de subordinação e estranhamento com a sociedade capitalista
(Marques, 2004, p. 152).
As análises de Marques (2004) evidenciam que o modo de vida camponês tradicional se insere e se (re)produz numa lógica de subalternização e estranhamento ao modelo capitalista de sociabilidade e permite vislumbrar um primeiro destacamento da possibilidade desse diálogo. É, portanto, nesse sentido que a Pedagogia do Movimento, forjada no bojo das experiências de luta do movimento socioterritorial camponês (Camacho; Vieira, 2019; Fernandes, 1998), o MST, oferece um profícuo debate para pensar a perspectiva de uma geografia anticolonial.
A centralidade da sistematização da Pedagogia do Movimento está nas experiências do movimento social em luta enquanto práxis pedagógica. Trata-se de:
[...] compreender uma pedagogia do Movimento e não para o Movimento, no duplo sentido de ter o Movimento como sujeito educativo e como sujeito da reflexão (intencionalidade pedagógica) [...] como materialização de um determinado modo de produção da formação humana
(Caldart, 2000, p. 198).
Nesse sentido, quando são analisados o movimento social e as relações sociais em seu caráter educativo e formador, é preciso pensar também na particularidade do trabalho no modo de vida camponês como prática educativa. Entende-se aqui, como menciona Caldart (2000), a falência da educação/escola burguesa e de seu princípio “educativo” na formatação de mão de obra para o trabalho alienado.
Nota-se que, indissociável à falência do modelo pedagógico burguês, insere-se a crise do paradigma científico moderno como necessidade histórica de (re)pensar as bases epistemológicas das ciências e suas pedagogias muitas vezes diacrônicas e engessadas.
No bojo dessa contestação paradigmática, própria da contemporaneidade, considerar o trabalho enquanto princípio educativo como uma pedagogia da prática social impõe dois debates: 1) pensar o movimento social e suas práticas sociais como sujeito pedagógico entrelaçado com o trabalho8 enquanto princípio educativo coloca em xeque a necessidade da figura do educador ou da educadora formal e, concomitantemente, 2) a educação formal enquanto única matriz de formação intelectual e humana.
Mais que aprofundar esses debates, que suscitariam abordar uma série de outros elementos, autores e autoras, essa colocação é lançada para ajudar na reflexão sobre a questão da formação humana omnilateral; ou seja, na sua integralidade.
[...] as práticas sociais, são as que formam o ser humano, então a escola, enquanto um dos lugares desta formação, não pode estar desvinculada delas. Uma reflexão que também nos permite compreender que são as relações sociais que a escola propõe através do seu cotidiano e jeito de ser que condiciona o seu caráter formador, muito mais que os conteúdos discursivos que seleciona para seu tempo específico de ensino
(Caldart, 2000, p. 201).
Essas reflexões se inserem no pensar a pedagogia para além dos limites semânticos e característicos dados pelos instrumentais próprios da institucionalidade e seus objetivos na escola tradicional burguesa. É preciso pensar a pedagogia como um fazer social em movimento – de classe e de sujeitos históricos ativos na construção de sua identidade e formatação sociocultural a partir de seus lugares, territórios e tempos. Portanto, a reflexão, aqui, é (re)pensar o princípio educativo por meio do trabalho coletivo e útil, com sentido à coletividade na qual se insere (Pistrak, 2009, 2018). Portanto, como afirma Caldart (2000, p. 206) “[...] é possível enxergar que o princípio educativo por excelência está no movimento mesmo, no transformar-se transformando, a terra [trabalho e vida], as pessoas, a história, a própria pedagogia, sendo esta a raiz e o formato fundamental de sua identidade pedagógica”.
Ao pensar o trabalho enquanto elemento socioeducacional (Pistrak, 2009, 2018) e em seus múltiplos espaços de articulação como potencialidades educativas, é preciso atentar-se ao apontamento de Caldart (2000), construído quando a autora adverte que a Pedagogia do Movimento não é passível de enquadramento em uma ou outra concepção pedagógica. Pelo contrário, o sentido de processo se estabelece e fundamenta o próprio fazer-se na terra, a partir do qual o movimento social misturou componentes educativos diversos na/da realidade fazendo uma síntese própria, constituindo-se como sujeito pedagógico por meio de muitas pedagogias, “exatamente porque a sua referência de sentido está no Movimento” (Caldart, 2000, p. 207). Em suma:
O Movimento se constitui como matriz pedagógico das práticas concretas de formação dos sem-terra, não criando uma nova pedagogia, mas sim inventando um novo jeito de lidar com as pedagogias já construídas na história da formação humana. Em outras palavras, a Pedagogia do Movimento põe em movimento a própria pedagogia, mobilizando e incorporando em sua dinâmica (organicidade) diversas e combinadas matrizes pedagógicas
(Caldart, 2000, p. 207).
Por fim, no processo de formação dos sem-terra, Roseli Salete Caldart enuncia o que chama de principais matrizes pedagógicas do Movimento, “[...] no sentido de processos educativos básicos ou (con)formadores do ser humano: luta, organização, coletividade, terra, trabalho e produção, cultura e história” (Caldart, 2000, p. 207).
Primeira matriz: Pedagogia da luta social. Essa matriz é um dos princípios educativos mais intrínsecos à formação e à prática histórica do MST. É também um dos elementos capazes de transformar e manter a pedagogia em movimento. Essa perspectiva não se limita ao sentido stricto de colocar o sem-terra na luta pela terra no Brasil, mas de reconhecer que as ações cotidianas da luta pela/na terra podem redimensionar as circunstâncias da realidade.
Caldart (2000, p. 207) afirma ainda que, no Movimento, essa matriz pode ser reconhecida na fala dos sem-terra sobre “[...] virar o mundo de ponta-cabeça”. Ora, essa expressão afirma uma perspectiva anticolonial necessária de ser pensada para o ensino de Geografia, não só por ser forjada na luta social concreta, mas sobretudo no sentido de propor uma nova forma social, uma socialização que não é a da ordem, mas da contraordem. Portanto, a ação de transformar-se e de transformar o mundo é o que promove o movimento permanente, uma exigência àqueles que reafirmam organicamente que mudar o mundo é possível e necessário.
Uma condição para a formação de contestadores ou lutadores sociais é a sensibilização social [...]. O que move uma pessoa é a necessidade, mas o que a mantém em movimento são objetivos, princípios, valores, que são formados desde determinadas ações que tenham a força pedagógica para isto
(Caldart, 2000, p. 213).
A ideia de “virar o mundo de ponta-cabeça”, e já dialogando com a matriz seguinte, remete à experiência concreta vivenciada no assentamento Eli Vive I, localizado no distrito de Lerroville, zona rural do munício de Londrina/PR. Quando o Movimento reivindicou sua escola no assentamento, o projeto estrutural encaminhado pelo poder público era caracterizado pelo padrão predial industrial-urbano. Tendo sido negado o projeto, o processo foi morosamente tratado pelo poder público, de forma que o Movimento se propôs a construir a escola e o poder público se incumbiria de fornecer o professorado necessário.
O que interessa aqui é como a forma – e claro, o conteúdo – da escola do assentamento contrasta com as escolas tradicionais. As construções são todas térreas, com as salas, secretaria, direção, biblioteca e refeitório horizontalmente organizados lado a lado, formando um grande círculo onde todo o espaço escolar converge para um centro coletivo de forma que nenhuma estrutura se coloca à frente das outras, muito menos atrás. O mesmo princípio estrutura a organização interna das salas, onde os alunos e as alunas jamais se posicionam em fileiras, mas sempre lado a lado, circularmente, onde a horizontalidade de todos para todos é inextricável. Esse conteúdo não só antagoniza o “tradicional”, mas, também, assenta a possibilidade de efetivação de todas as matrizes destacadas pela professora Caldart (2000) (Figura 1).
Nota: Foto panorâmica da Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber (Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental) e Colégio Estadual Maria Aparecida Rosignol Franciosi (anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio). As escolas compartilham o mesmo espaço e estrutura física no assentamento e a distribuição das salas de aula, refeitório, secretaria e biblioteca se dá no formato circular. Fonte: Foto de Sergio Aparecido Nabarro (2022).
Segunda matriz: Pedagogia da organização coletiva; ou seja, a prática na qual “[...] os sem-terra do MST se educam enraizando-se e fazendo-se em uma coletividade em movimento” (Caldart, 2000, p. 214).
Os sujeitos assim se reconhecem quando participam de uma coletividade. Portanto, é possível pensar o coletivismo como um princípio educativo. No entanto, Caldart (2000) acrescenta à perspectiva do Movimento o enraizar-se como elemento da reflexão sobre o coletivo ao afirmar que esse se consolida no processo histórico da constituição da identidade do Movimento, do reconhecer-se como um Sem-Terra do MST. A organização não apaga a dimensão individual, de modo que pensar essa coletividade em/no Movimento é também pensar nas escalas da organização – como, por exemplo, a família.
A família sem-terra que integra o MST traz a dimensão da participação de diferentes gerações simultaneamente. Assim, a não diferenciação dos sujeitos por faixa etária é um princípio educativo materializado nas diferentes tarefas e ações do Movimento, desde a participação na estruturação das ocupações, dos grupos de trabalhos, até na organização nos festejos promovidos e organizados no espaço das escolas. Inverte-se o aparato de sociabilidade tradicional capitalista baseado no individualismo que não dialoga com a lógica da “[...] pedagogia do enraizamento em uma coletividade, presente na experiência de formação humana do MST” trazendo de volta a reflexão da “potencialidade educativa das relações sociais” (Caldart, 2000, p. 219).
Terceira matriz: Pedagogia da terra. Esse princípio educativo pode estender-se para terra, trabalho e produção. Essa é outra matriz indissociável do MST e da luta pela/na terra porque, para os sem-terra do Movimento, isso marca não só um retorno às suas origens, mas à terra de trabalho que confere sentido à vida e à reprodução, material e imaterial, de sua existência.
Por conseguinte, nota-se que a Pedagogia do Movimento se aproxima muito de uma perspectiva anticolonial. Primeiramente pelos sentidos da luta pela/na terra, comuns à resistência dos povos originários, quilombolas, ribeirinhos e outras formações sociais expropriadas e que têm sua (re)existência ontologicamente conectada à terra e ao território (Haesbaert, 2021). Por outro lado, os povos elencados partem de uma lógica social “virada de ponta cabeça” (Caldart, 2000, p. 198) com relação ao modelo capitalista-colonial. Têm com a terra um projeto de sociedade que não é utópica:
[...] se existe esta identificação de origem entre a produção agrícola, a cultura e a educação, todos vinculados à ideia de movimento, ou de processo de transformação, não parece difícil compreender que também existe uma relação educativa entre os Sem-terra e a terra, terra de luta e de produção, terra de movimento, terra de sentimento, e uma das dimensões básicas de sua raiz [...]. Lutar pela terra é lutar pela vida em sentido direto, sem mediações
(Caldart, 2000, p. 220).
O trabalho da e na terra tem uma potencialidade pedagógica especial porque retoma debates sobre importantes possibilidades, como o caso do trabalho enquanto princípio educativo. Vale destacar, mais uma vez, que não se trata de uma noção tecnicista do trabalho, tradicionalmente orientada à formação de mão de obra alienada, mas sim sob a premissa da formação omnilateral.
A riqueza dessa premissa está em evidenciar a indissociabilidade entre as matrizes do fazer-se educar sem-terra e na formação social e humana. Fica claro que são muitos os elementos da particularidade da luta camponesa sem-terra que extravasam “as cercas” da modernidade-colonial capitalista-burguesa com outro projeto civilizacional.
Quarta matriz: Pedagogia da cultura. Quando se menciona que a experiência de formação humana no Movimento é contraordem e se apresenta como uma premissa para outra sociabilidade, anticapitalista e anticolonial, sem dúvida a cultura se edifica como pilar transformador e princípio educativo. Cabe então destacar que a base da cultura capitalista-burguesa é o individualismo, oposta à base cultural e moral dos camponeses e das camponesas, que é coletivista, pensada por e para todos. Além disso, Caldart (2000, p. 227) aprofunda o caminho para uma análise ao afirmar que “[...] a distinção crucial está em formas alternativas de se conceber a natureza da relação social”. Por isso, a cultura do Movimento acontece em todas as práticas e experiências do desenvolvimento da luta e do transformar transformando-se na luta.
Percebe-se que a práxis no Movimento não acontece em momentos específicos ou com sujeitos isolados na sua tomada de consciência como se apresenta quando trata-se do aparato intelectual-reflexivo, mas num “[...] processo que vai atravessando o conjunto de vivências dos sem-terra e as constituindo como um movimento que também é cultural, neste sentido de ir produzindo um modo de vida” (Caldart, 2000, p. 228).
Existe, portanto, uma lógica dentro do MST que vai transformando as ações do Movimento em saberes, comportamentos, valores, posturas, simbologias e objetos. Esses aspectos estão relacionados ao processo de reconhecer-se e afirmar-se enquanto sem-terra, indissociável do movimento de enraizamento desses sujeitos, no qual a história e a mística incorporam-se ao modo de vida. Por exemplo, ao participar de um encontro do Movimento (um festejo específico, a construção de um espaço de luta etc.), “[...] não fica difícil ver entre suas estratégias pedagógicas esta intenção de, aos poucos, ir transformando a experiência de luta e a pertença ao Movimento em modo de vida, em cultura” (Caldart, 2000, p. 229).
Nesse sentido, o ambiente escolar passa a ser um elo entre as atividades e ações do Movimento, sejam de luta ou culturais, com a formação dos jovens se constituindo no movimento. Portanto, a escola é um locus de afirmação da cultura e do modo de vida.
Quinta matriz: Pedagogia da história. Segundo Caldart (2000), apesar dessa proposição da história parecer imbricada à cultura, os sem-terra do MST se educam cultivando sua memória e compreendendo a história, e, portanto, para a Pedagogia do Movimento há uma intencionalidade própria na valorização da história, bem como a apresentação de uma potencialidade pedagógica importante, inclusive como elemento central para uma geografia anticolonial.
O estudo da história é importante não apenas por situá-los como sujeitos num determinado espaço e tempo, mas também porque é a história que faz a mediação de todas as outras matrizes e potencialidades educativas do Movimento, e estudar o passado é uma condição estrutural para compreender o presente, agir sobre ele e transformá-lo. Ainda, mais que apontar saídas, a história coloca o MST em movimento por meio de reflexões e de questionamentos que avançam na construção sociopolítica da organização e que são organicamente um potencial formativo.
Ressalta-se, mais uma vez, que o sentido dado pelo Movimento parte de premissas de/por um ensino anticolonialista e contra-hegemônico, dado o fato de que o ensino/escola da sociedade capitalista moderna/colonial (Mignolo, 2005) se propõe exatamente ao contrário; ou seja, a apagar a história como condição para a homogeneização social e dominação de classe a partir de uma postura presenteísta, ahistórica e, inevitavelmente, acrítica. Caldart (2000) exemplifica categoricamente essa condição com a fala de Seretse Khama, primeiro presidente de Botsuana, referindo-se aos intelectuais que participaram das lutas anticoloniais pela independência, conquistada em 1962:
Ensinaram-nos, às vezes de forma muito positiva, a nos desprezarmos a nós mesmos e ao nosso modo de vida. Levaram-nos a acreditar que não tínhamos passado do qual pudéssemos falar, nem história da qual nos orgulharmos. O passado, no que nos dizia respeito, era apenas uma página em branco e nada mais. Somente o presente nos interessava e sobre ele tínhamos muito pouco controle. Nossa intenção deveria ser agora tentar recuperar o que pudermos do nosso passado. Deveríamos escrever os nossos próprios livros de história, a fim de provar que tivemos de fato um passado; e que este passado merece ser conhecido e estudado como qualquer outro. Precisamos fazer isso pela simples razão de que uma nação sem passado é uma nação que se perdeu e um povo sem passado é um povo sem alma
(Khama, 1970 apudCaldart, 2000, p. 233).
É preciso, portanto, reconhecer o papel fundamental do estudo da história e sua potencialidade pedagógica indispensável no fazer do ensino de Geografia e das ciências humanas – e não só – de maneira geral. Como a identidade dos sem-terra se dá no enraizamento a partir do cultivo da memória do Movimento, aportar-se da sua história é condição fundamental para inserir os sujeitos na experiência de (re)existência do Movimento no contexto sociopolítico mais amplo e, assim, estabelecer condições para transformá-lo, e uma das premissas básicas do anticolonialismo é reescrever a história pela ótica dos povos expropriados, explorados, espoliados e subalternizados pelo colonialismo e sua permanência na colonialidade.
Considerações Finais
Esboçou-se um diálogo possível entre as potencialidades pedagógicas intrínsecas ao próprio movimento da luta pela/na terra protagonizada pelo MST, sistematizados na Pedagogia do Movimento e na perspectiva anticolonial. Partiu-se da apresentação das particularidades da Pedagogia do Movimento, enquanto possibilidades e intencionalidades pedagógicas, que emergem do próprio Movimento na sua luta contra-hegemônica pela produção de uma sociedade-outra.
Para as premissas do grupo Modernidade/Colonialidade, o diálogo se estabelece pela valorização dos saberes e das práticas sociais das populações historicamente subalternizadas pelo colonialismo, tomando-as como novas potencialidades epistemológicas. Portanto, é na história de luta pela (re)existência dessas múltiplas epistemologias que engendram outros modos de vida antagônicos às premissas capitalista-liberal e moderno-colonial burguesa.
Nesse sentido, a teoria anticolonial em construção tem corroborado com a perspectiva do grupo M/C e os decoloniais no sentido de valorizar epistemologias próprias dos povos colonizados. No entanto, na perspectiva do anticolonialismo, a potencialidade anti-imperialista e a anticapitalista são inextricáveis das matrizes que orientam a educação no Movimento que exprime condições para superação das múltiplas formas e escalas de poder e da violência, indissociáveis da colonialidade. Portanto, pautar a intencionalidade pedagógica a partir de matrizes contra-hegemônicas, forjadas na luta e estruturadas numa organização coletivista em detrimento de uma formação segregadora e individualista, onde trabalho e produção sejam a realização das necessidades humanas e não o resultado da exploração, da expropriação de todos para alguns, que estabeleça uma cultura autóctone dos povos colonizados e tenha a história escrita a partir desses seus fundamentos de produção e reprodução da vida.
Destaca-se também a readequação político-ideológica das pautas do Movimento no seu desenvolvimento na luta. A busca por refletir para superar os atravessamentos individualistas, sexista/machista, o patriarcalismo e a “LGBTQIA+fobia”, inerentes às lógicas segregacionistas e classificatórias do capitalismo-liberal colonialista, não só admite uma prática anti-opressora como também uma práxis anticolonial.
Partindo do princípio de que o campesinato brasileiro é uma classe social que já nasceu expropriada na história de invasão e espoliação do território que viria a se chamar Brasil, o diálogo com a experiência do maior movimento social de trabalhadores e trabalhadoras do campo da América Latina e suas intencionalidades pedagógicas próprias do fazer-se na luta deve assumir o ensino enquanto condição de formação social e humana, e essa premissa se apresenta muito profícua, com amplas possibilidades de avanço nas pesquisas, estudos e (re)existências, sobretudo para os geógrafos e as geógrafas que adensam as fileiras por uma práxis anticolonial, transformadora e anti-opressões no ensino de Geografia.
Para isso, utilizar-se dessas matrizes como categorias indispensáveis ao fazer geográfico coloca importantes elementos para a reflexão e, o mais importante, muitas nuances que possibilitam avanços necessários e concretos no debate pela renovação da geografia crítica e anticolonial.