1 INTRODUÇÃO
A noção de formação humana sofreu profunda reviravolta no século XX, cujas transformações ainda continuam influenciando as teorias educacionais atuais. Com o movimento de crítica à tradição metafísica ocidental, a ideia do sujeito imóvel, como substância fixa, deixou de fazer sentido. Não é mais possível sustentar filosoficamente a noção de essência pronta, como princípio de fundamentação última, e derivar dela a ideia de educação. Essa reviravolta em relação à noção de ser humano possui vários capítulos; começou a ser preparada, na Modernidade, ainda no século XVIII, pela noção de perfectibilidade de Rousseau; assume em Nietzsche, no século XIX, figura de proa, tanto pela sua crítica à tradição platônico-cristã como pelo anúncio do além-homem. No século XX, a reviravolta ganha contornos definidos com o pragmatismo de John Dewey e sua noção de plasticidade humana.
Esse amplo movimento filosófico e pedagógico, cobrindo mais de três séculos, possui desdobramentos políticos importantes, que nos deixam em melhores condições de aprofundar a noção de democracia como forma de vida e organização social. No âmago da viravolta acima anunciada, encontra-se a passagem da ideia de natureza humana fixa para a compreensão do ser humano como condição precária e vulnerável, que se forma em seu acontecer histórico, cujos resultados são imprevisíveis, escapando da própria capacidade humana de determiná-los. Desse modo, a vulnerabilidade da condição humana conduz à ruptura com os modelos teleológicos pré-determinados das modernas filosofias da história e com a noção de sujeito onipotente a elas subjacentes. Isso põe de maneira inteiramente nova e dramática o modo humano de viver o presente, relacionando-se com seu passado e prospectando seu futuro. A dimensão precária e sofrida da existência humana põe em evidência a crença de que não há mais verdades absolutas e nem mais finalidade boa inerente à história. Somos jogados no palco dos acontecimentos, na mais pura contingência, sem ter o poder absoluto sobre os fatos e nem contar mais com a proteção de forças poderosas externas.
A vulnerabilidade da condição humana torna-se mais adequada, desse modo, para pensar o problema da pluralidade de formas de vida próprias às sociedades complexas contemporâneas, movidas pela urbanização globalizada e pela tecnologia digital. A ideia de sujeito como substância imóvel, que extrai seu modo de ser de uma essência pronta, torna-se inteiramente incompatível com a precariedade da condição humana. A noção de substância imóvel não contempla o risco permanente que o próprio viver humano contingente assume frente aos diferentes perigos da sociedade contemporânea. Também não comporta a inventividade e inovação humanas necessárias para dar conta da vida que corre em um mundo cada vez mais descarrilhado.
Democracia como modo cultural de vida exige, portanto, outra problematização do ser humano, capaz de efetuar a passagem da noção metafísica de natureza humana para a noção de condição humana, carregada pela contingência, precariedade e vulnerabilidade de seu acontecer histórico. Nesse sentido, a pergunta “Quem é o ser humano?” permanece mais atual do que nunca, mas precisa ser tratada de outra maneira. Além da tradição do pragmatismo americano, que, por meio de John Dewey, formula a teoria da plasticidade da condição humana, o século XX conhece também duas outras teorias robustas do ser humano, que se inserem diretamente nas trilhas abertas por Nietzsche. Referimo-nos à ontologia fundamental de Martin Heidegger e à ontologia do presente de Michel Foucault. Encontramos no primeiro, sobretudo em sua obra principal Ser e tempo (Sein und Zeit), força conceitual para pensar a ontologia da formação humana na perspectiva pós-humanista. Foucault, por sua vez, seguindo as pegadas de Heidegger, abre caminhos para problematizar de maneira criativa a articulação entre interpretação crítica da atualidade e compreensão de si mesmo, enquanto sujeito que compreende o momento em que vive.
No presente ensaio, pretendemos investigar alguns traços gerais tanto da ontologia fundamental como da ontologia do presente. Ancoramo-nos na hipótese de que a noção de formação pós-humanista é indispensável para pensar a democracia como modo cultural de vida porque pressupõe a noção de autogoverno baseada no cultivo permanente que o sujeito precisa fazer sobre si mesmo. A historicidade do Dasein (ser-aí)3 e a condição de maioridade, conquistada pela liberdade pública, que encoraja o sujeito a pensar por si mesmo são dois traços distintivos desse movimento intelectual empreendido, respectivamente, por Heidegger e Foucault, para atribuir conteúdo pós-humanista ao problema da educabilidade humana.
Dividimos o ensaio em três momentos: no primeiro, reconstruímos brevemente alguns traços da historicidade do Dasein; no segundo, recorremos à ontologia do presente e; por fim, no terceiro e último momento, procuramos reter aspectos que são nucleares para pensar a formação na perspectiva pós-humanista.
2 DA METAFÍSICA À ONTOLOGIA FUNDAMENTAL: A CRÍTICA HEIDEGGERIANA AO HUMANISMO
A Carta sobre o humanismo (Brief über den Humanismus), doravante abreviada como Carta, enquanto crítica à concepção metafísica de ser humano, prepara as bases para pensá-lo em um horizonte pós-humanista. Tal crítica insere-se no caminho de pensamento iniciado por Heidegger em anos anteriores, cuja obra principal é Ser e tempo. Trata-se de uma das principais obras da filosofia contemporânea, que projeta o pensador definitivamente no cenário filosófico internacional. Dadas sua densidade e profundidade, querer resumi-la em poucos parágrafos é ousadia irrealizável e mesmo desaconselhável. Por isso, vamos nos reportar somente a dois aspectos de Ser e tempo que nos auxiliam a compreender o núcleo da Carta e que também são indispensáveis para pensar a ontologia da formação humana. O primeiro aspecto refere-se ao trabalho de destruição da história da ontologia; o segundo aspecto, decorrente diretamente do primeiro, à historicidade do Dasein. O comentário resumido desses dois aspectos prepara a reconstrução, a ser feita na parte final do ensaio, da dimensão formativa que cruza Ser e tempo e que é articulada especialmente pelas noções de disposição (Befindlichkeit), cuidado (Sorge) e angústia (Angst).4
No que se refere à destruição (Destruktion) da história da ontologia, ela é tratada expressamente no parágrafo 6 de Ser e tempo. Mas por que é necessário que a ontologia fundamental promova a destruição da história da ontologia? A resposta pode ser resumida do seguinte modo: porque tal história foi responsável pelo esquecimento da pergunta pelo sentido do ser. Por reduzir a questão do ser à abordagem dos entes, a ontologia terminou por provocar a enticização do ser. Mas como o sentido do ser se mostra na historicidade do Dasein, a própria tradição ontológica encobriu esse aspecto originário de pensar o ser. Ou seja, como afirma Heidegger, o Dasein não só decai no mundo em que é e está, mas também em sua própria tradição (HEIDEGGER, 1967, p. 21). Desse modo, a tradição ontológica é responsável por desenraizar o Dasein de sua própria historicidade. Desde a ontologia grega até a moderna, passando pela medieval, houve aprofundamento no esquecimento do sentido do ser, pondo-se em seu lugar várias outras noções, como ideia, substância, Deus, ego cogito, sujeito e razão. O que se tornou inaceitável, na história da ontologia, é que ela, ao escolher o princípio último, procurou deduzir tudo o mais desse princípio e, ao fazê-lo, ignorou a origem e o solo de onde brota o sentido do ser.
Contudo, como alerta o próprio Heidegger, destruição da ontologia não tem somente tarefa negativa, significando menos ainda o fim da ontologia. Destruição é parte do amplo projeto filosófico de Heidegger, que não se esgota obviamente em Ser e tempo, ocupando-o intensamente nos trabalhos posteriores. Trata-se da investigação crítica da história da ontologia para compreender os motivos do esquecimento da questão do sentido do ser, mas também, sobretudo, para reter os aspectos originários e inovadores que se encontram na própria história da ontologia. Do amplo diálogo que Heidegger fará com vários autores, destaca-se sua apreciação sobre a Física de Aristóteles, a Meditações de Descartes e a Crítica da Razão Pura de Kant. Ele toma esses três autores como referência principal, porque encontra em suas obras o momento decisivo do desdobramento da ontologia tradicional no que tange à relação originária entre ser e tempo, mesmo considerando nelas limites metafísicos. Em síntese, Heidegger está convicto, em Ser e tempo, que a questão do sentido do ser somente receberá tratamento adequado “quando se fizer a destruição da tradição ontológica” (1967, p. 26).5
Portanto, a destruição da história da ontologia é decisiva para que se possa retomar a questão do sentido do ser. Tanto a crítica à tradição ontológica como a justificação do projeto da ontologia fundamental mostram que o sentido do ser revela-se primeiramente como Dasein, pois é nele que reside o ser do próprio ser humano. Nesse contexto, a existência é noção-chave para compreender o Dasein como modo privilegiado de investigar o sentido do ser. Ela define sua condição de ser-jogado-aí e, ao mesmo tempo, sua possibilidade de ir adiante, mesmo frente ao fato da morte como algo iminente ou exatamente por causa dela. Desse modo, o Dasein toma consciência da morte como marca que assinala, enquanto fato irresoluto, sua própria condição finita. Assim, afirma Heidegger: “A morte é a possibilidade da impossibilidade absoluta do Dasein. Sendo assim, ela revela-se como possibilidade mais genuína, irremissível e insuperável” (1967, p. 250). Ao assinalar a condição finita da existência, ela mostra simultaneamente a precariedade da condição humana e sua possibilidade de ser mais, justamente por causa desta precariedade.
Como ser-jogado-aí, o Dasein é ser-no-mundo, o qual, desdobrado em vários momentos, possui a disposição como abertura mais originária do mundo. Também possui a angústia como sentimento privilegiado de acesso à própria condição de ser-no-mundo, cuja estrutura é o cuidado. Enquanto existência, o Dasein conta com dois modos fundamentais de ser-no-mundo: um que é constituído pela ocupação, ou seja, pelo modo como ele se relaciona com as coisas que vêm ao seu encontro em seu mundo cotidiano. O outro modo é constituído pela preocupação consigo mesmo e com os outros. Ocupação e preocupação marcam então os dois modos de o Dasein ser no mundo: enquanto o primeiro caracteriza a perspectiva ôntica, o segundo define sua perspectiva ontológica. Na verdade, embora o Dasein só exista também por causa de sua perspectiva ôntica, é de sua perspectiva ontológica que brota a consciência de sua existência. É ela que lhe permite, enquanto ente no mundo, dar sentido a todos os outros entes e a si mesmo. Mundo é, como dirá Heidegger quase duas décadas depois, na Carta, “a clareira do ser”, da qual brota a condição humana finita como “cuidado de si” (HEIDEGGER, 1947, p. 35). Outro aspecto importante, do ponto de vista ontológico, é que o Dasein não está apenas entre os entes, oferecendo-lhes sentido, mas está também junto a outros seres que são assim como ele. O ser-com (Mitsein) marca a reciprocidade humana, pois indica que o sentido do Dasein é formado na coexistência com o sentido de outros Dasein. Por isso, Heidegger conclui de maneira decidida que Dasein é sempre Mitsein (ser-com). Esse é um resultado importante da ontologia fundamental que permite pensar o aspecto ético e político que lhe é inerente: se é na postura do cuidado que repousa a possibilidade ontológica do ser humano, tal postura se efetiva na medida em que o cuidado de si só pode ocorrer na presença de outros seres humanos. Desse modo, a capacidade de cuidar dos outros exige a capacidade de cuidar de si, mas na mesma proporção que o cuidado de si só pode acontecer na presença dos outros. Temos aqui então a “boa circularidade hermenêutica” que se torna importante para pensar a formação humana como autoformação que só pode acontecer na contingência da vida marcada pela presença do outro.
Retemos o mais importante do que foi dito até agora: é no modo de estar jogado que o Dasein constitui sua existência. Ela acontece na medida em que o Dasein se encontra (sich befinden) no mundo, sendo como acontecência que articula seu projeto e busca dar sentido à sua condição, na medida em que se compreende como um ser que caminha para a morte. Ora, essa condição finita marca sua própria historicidade, que passa a ser o pano de fundo no qual se põe o sentido do próprio Dasein. Como estatuto ontológico e antropológico do Dasein, a historicidade assinala a precariedade e vulnerabilidade da condição humana. A guinada em relação à história da ontologia parece ficar clara: não é mais uma investigação que busca o princípio último e, localizando-o fora da história (perspectiva ontoteológica),6 deduz, desse princípio, o mundo e a natureza humana. Trata-se agora, na perspectiva ontológica fundamental, da imersão no mundo, no qual se encontra jogado o Dasein, que, caminhando ininterruptamente para a morte e se deixando angustiar diante dela, busca ser em sua mais autêntica finitude. A historicidade marca, portanto, não só a negatividade do fim, mas principalmente a positividade do ser-projeto que busca realizar sua acontecência no âmbito da existência, que se mostra desde o início como finita. Como existe no modo da disposição, o Dasein deixa-se angustiar, abrindo-se à possibilidade autêntica de cuidar de si mesmo, na medida em que cuida dos outros e do mundo. Contudo, como é historicidade, o Dasein vive o risco permanente de não alcançar sua autenticidade. Daí que a vulnerabilidade e a precariedade, e não a onipotência, sejam o que marca sua condição.
Cabe destacar que, na insistência de Heidegger em reafirmar a existência como condição do ser humano, repetida tantas vezes em Ser e tempo e também na Carta, mostra-se sua reação clara ao movimento típico da história da ontologia de buscar o ser e a verdade em níveis superiores de fundamentação. Platão, pelo menos aquele dos diálogos da maturidade, foi o precursor desse modo tradicional de pensar que Heidegger identifica como metafísico. Ele buscou a verdade das coisas sensíveis nas ideias e, depois, fundou estas numa ideia superior. Ao falar de existência, Heidegger quebra esse modelo metafísico de determinação das essências pela remissão a um nível superior, remetendo a condição humana para a facticidade do mundo histórico, no qual o ser humano se constitui a cada vez como fundamento sem fundo de toda verdade. Faktizität (facticidade) torna-se, então, a partir de Ser e tempo, o conceito central da “nova ontologia” que está na base do Dasein como existência e historicidade. Essa guinada ontológica, que joga o ser humano para a sua própria temporalidade, torna-se decisiva para pensar a formação humana de outra maneira, fora do mundo inteligível platônico, do motor imóvel aristotélico e até mesmo dos transcendentais kantianos.
A existência que carrega o peso da Faktizität, desdobrando-se em temporalidade, na obra Ser e tempo, culmina, na Carta, na noção de ec-sistência. Por isso, faz-se necessário interpretar com mais cuidado essa passagem possibilitada pela Carta, pois daí brota também o novo sentido de formação humana. Em Ser e tempo, o Dasein é compreendido, como vimos, enquanto ser-jogado-aí que caminha para a morte, sendo precisamente nesse espaço de nascimento e morte que ele tem-que-ser (LOPARIC, 2003, p. 19ss). Ou seja, é em sua contingência e indeterminação que precisa encontrar o sentido de sua existência e, por isso, é o lugar onde ocorre propriamente sua formação. Heidegger oferece várias definições de ec-sistência na Carta, e nem todas elas são compatíveis entre si. Para o que nos interessa, basta citar a seguinte definição:
O permanecer na clareira do ser eu denomino a ec-sistência do homem. Somente ao ser humano é próprio este modo de ser. A ec-sistência assim compreendida não é somente o fundamento da possibilidade da razão, ratio, senão a ec-sistência é aquilo em que a “essência do homem” mantém a origem de sua determinação. (HEIDEGGER, 1947, p. 13-14)
Essa passagem contém ao menos dois aspectos que precisam ser destacados. O primeiro refere-se à disposição humana na clareira do ser. Se o sentido do ser não é mais derivado de algo que reside fora da história, aquilo que irradia o sentido tem de estar na história e, portanto, na própria historicidade do ser humano. A clareira do ser significa, então, ter de buscar o sentido do existir e da história na própria historicidade humana. A ec-sistência como marca distintiva da historicidade - e esse é o segundo aspecto importante da passagem - é a condição de possibilidade não apenas da razão, mas principalmente da origem de determinação da própria condição humana. Sendo assim, põe-se imediatamente a seguinte pergunta: que origem é essa que determina a condição humana?
Encontramos aqui um daqueles vários círculos virtuosos que constituem o modo heideggeriano próprio de pensar: a ec-sistência constitui a condição humana na mesma proporção em que por ela é constituída. Mas talvez o mais importante para o sentido pós-humanista de formação é que a ec-sistência só se deixa dizer adequadamente pelo modo humano de ser. Ora, esse modo humano específico de ser refere-se precisamente àquilo que Heidegger afirmou acima como origem de determinação da condição humana. Na Carta, tal determinação é definida, em comum acordo com a linguagem filosófica inaugurada por Ser e tempo, como “Dürftigkeit seines Lebens”, ou seja, como “precariedade7 de sua vida” (HEIDEGGER, 1947, p. 40). Heidegger chega a essa terminologia, na Carta, concomitantemente à bela interpretação que oferece da sentença de Heráclito (Fragmento 119), segundo a qual o pensar e o sentido profundo da existência brotam das “coisas menores”, misturando-se com a aparente trivialidade do cotidiano. Heráclito recebe os visitantes junto ao forno, onde está se aquecendo, e diz que ali também habitam os deuses. Os visitantes ficam espantados porque esperavam encontrar o grande pensador em um lugar luxuoso, fazendo coisas sublimes. Contudo, ele é encontrado se aquecendo junto ao forno e dali retira o sentido de sua existência. Estar junto ao forno revela a mais pura precariedade humana de um corpo que sente frio e precisa se aquecer e, enquanto se aquece, pensando, retira o sentido de sua existência precária e vulnerável. Ora, o pensar profundo sobre o sentido da existência mistura-se, então, irremediavelmente com a precariedade da condição humana: o pensador também possui um corpo que sente frio. O fato de ser afetado pelo frio, como também de ser afetado pela presença do outro, solapa a vontade de onipotência que o ser humano almeja.
Essa linguagem metafórica heraclitiana reinterpretada por Heidegger possui significado elucidativo para compreender a condição humana e sua capacidade de pensamento na acontecência da vida. É no mundo, onde tudo acontece, onde o ser humano vive junto às coisas e aos outros seres humanos que brota o sentido de sua existência. Ou seja, é do âmbito aberto pelo lugar onde o ser humano habita, de seu modo prático de ser no mundo, e não na “grandeza” e “amplitude” dos princípios últimos, que se dá o sentido de sua ec-sistência. É dessa habitação, daquilo que é muito familiar ao ser humano, que brota o que não lhe é familiar, isto é, o estranho: “os deuses também habitam aqui”, tal é a sentença de Heráclito junto ao forno. É a atividade de pensar, como singularidade humana, que provoca o estranhamento, sem o qual o ser humano não experimenta sua ec-sistência. Nesse contexto, como veremos, a formação humana precisa se concentrar na atividade de pensar, caso possua como propósito retomar o sentido da condição humana esquecido pela tradição.
Por fim, antes de concluir este tópico, cabe reconstruir ainda outro aspecto que está inerente, na Carta, ao sentido de ec-sistência e que possui significado de longo alcance para pensar a formação no horizonte pós-humanista. Diferentemente do sentido metafísico de ser humano, que o concebe sempre de uma forma ou outra como essência fechada e, por isso, como substância imóvel, pronta a ser desabrochada pela ação externa, a ec-sistência diz respeito à preocupação, mais precisamente, ao permanente cuidado que constitui a condição humana. O cuidado não está mais ancorado no princípio último, como substância imóvel, ego cogito ou subjetividade transcendental, mas sim na historicidade do ser humano. Enquanto ec-sistente, o ser humano é jogado, como num lance de dados, pela abertura advinda da clareira do ser, na responsabilidade do “cuidado de si” (HEIDEGGER, 1947, p. 35). Clareira do ser não possui o sentido místico, como se poderia pensar à primeira vista, pois, no contexto da ontologia fundamental, significa “mundo”, isto é, o horizonte de sentido no qual acontece o cuidado da ec-sistência humana. Do ponto de vista educacional, é a estrutura aberta do cuidado de si que, caracterizando a ec-sistência, faz brotar toda a problemática da formação humana. Trata-se da formação que, na precariedade da condição humana, busca seu inesgotável aperfeiçoamento.
Em síntese, a ontologia fundamental lança as bases do pensamento pós-humanista, na medida em que justifica a historicidade do ser humano. Essa nova maneira de pensar a condição humana impacta decisivamente os projetos ontológicos posteriores, influenciando a própria formulação da ontologia do presente de Michel Foucault. No próximo tópico, vamos reconstruir alguns traços dessa influência, investigando a maneira como o pensador francês se apropria criativamente da ontologia fundamental heideggeriana para pensar a filosofia como crítica da atualidade e como forma de vida preocupada com a pergunta pela condição do sujeito que busca o sentido da própria atualidade.
3 ONTOLOGIA DO PRESENTE: FOUCAULT E A PERGUNTA PELA CONDIÇÃO HUMANA
O caminho aberto pela ontologia fundamental de Ser e tempo e aprofundado na Carta já contém boas ferramentas conceituais para pensar o problema da formação em um horizonte pós-humanista. A educabilidade se dá na própria acontecência humana, em seu modo prático de ser no mundo e não pode mais ser deduzida do princípio último, externo à própria historicidade humana. Contudo, do ponto de vista formativo, as ferramentas conceituais heideggerianas tornam-se ainda mais lapidadas quando dinamizadas pela ontologia do presente. Reconstruir alguns aspectos dessa ontologia, mostrando em que termos ela própria é tributária da ontologia fundamental, é o objetivo deste tópico.
É preciso considerar, antes disso, que Foucault não pode ser tomado simplesmente como mero seguidor de Heidegger. Além de viverem em países diferentes e em momentos históricos distintos, embora próximos, eles não possuem a mesma procedência intelectual e, por conseguinte, também não assumem a mesma postura intelectual: enquanto Heidegger dialoga diretamente com a história da ontologia (com a tradição metafísica ocidental), buscando desconstruí-la em suas bases, Foucault, sem deixar também de fazer trabalho filosófico desconstrutivo, ocupando-se com três grandes eixos - saber, poder e sujeito -, remete-os para outros campos do conhecimento humano. De qualquer modo, o aprofundamento do possível diálogo entre os dois autores implica investigar como a ontologia fundamental auxilia na compreensão da ontologia do presente e, de outra parte, como a preocupação foucaultiana com a formação ética do si mesmo ajuda a esclarecer a dimensão ética e política subjacente ao projeto heideggeriano da ontologia fundamental. André Duarte (2010, p. 428), sem desconsiderar as inúmeras diferenças entre ambos, postula sua afinidade eletiva nos seguintes termos:
Em uma palavra, tanto para Heidegger como para Foucault, o cuidado ético de si é também sempre cuidado político do outro, de modo que a ética é para ambos intrinsecamente política, motivo pelo qual tem de ser pensada como forma de resistência aos poderes de normalização da subjetividade, os quais aprisionam o sujeito nos rótulos pré-fabricados das identidades sociais (si mesmo impessoal).
O próprio Foucault reconhece que, embora não tenha escrito nada sobre Heidegger, deixou-se influenciar profundamente pelo seu pensamento. Assim afirma ele: “Certamente, Heidegger sempre foi para mim o filósofo essencial. [...] Todo meu futuro filosófico foi determinado por minha leitura de Heidegger” (FOUCAULT, 2004b, p. 259).8 A presença heideggeriana na formulação da ontologia do presente surge expressamente no pensamento do Foucault tardio. Sua preocupação principal aí é com a formação ética do si mesmo (soi même), diante do crescente processo de normalização que o sujeito sofre na sociedade contemporânea. A hermenêutica do sujeito (L’Herméneutique du Sujet) pode ser tomada como movimento teórico consistente empreendido pelo autor para tratar da formação ética do si mesmo. Nessa obra, Foucault possui diante dos olhos, como pano de fundo crítico, o encurtamento epistemológico do si mesmo provocado pela episteme de origem cartesiana, na medida em que ela reduz o problema da verdade ao saber de conhecimento. Em espírito bem heideggeriano, Foucault objeta à tradição cartesiana o fato de ela ter provocado o esquecimento do saber espiritual e, com ele, os diferentes modos de formação do si mesmo, que aconteceram na antiguidade grega e romana, compreendidos como cuidado de si e como exercício de si.
A ontologia heideggeriana e sua crítica à verdade como correspondência auxiliam Foucault a continuar tomando a verdade como problema nuclear da filosofia, mas buscando compreendê-la agora de outra maneira, como problema espiritual mais amplo, como um problema de veridição do sujeito, e não somente epistemológico. Portanto, não se trata mais de compreendê-la em sentido eminentemente moderno, enquanto verdade analítica, como ocorria em Descartes ou Kant. O limite dessa compreensão de verdade é que, segundo Foucault, o sujeito precisa se colocar de fora para poder ter acesso à verdade. Ela é algo que acontece do sujeito para o objeto, repousando, em última instância, na capacidade de representação mental que o sujeito epistêmico possui de constituir a experiência de um mundo possível. Ao focar nos critérios que dão objetividade para tal representação, a verdade analítica esquece-se da subjetivação que está na base de qualquer processo de objetivação e, mais ainda, que constitui o pano de fundo de formação do sujeito que conhece. Na episteme cartesiana, os critérios de evidência e certeza provocam a substancialização objetivadora do sujeito pensante em detrimento de suas outras capacidades. É contra esse cognitivismo exagerado, que torna o sujeito capenga em suas outras capacidades, que o autor de A hermenêutica do sujeito procura pensar de outra maneira o vínculo entre formação da subjetividade e o problema da verdade.
Heidegger, como vimos acima, destronou a suposta soberania inteligível ou transcendental do sujeito cognoscente, chamando-o para sua mais pura contingência histórica, ou seja, para a precariedade de sua condição finita. Foucault, deixando-se influenciar nitidamente pela historicidade e indeterminabilidade da condição humana, compreende a verdade no sentido espiritual, como trabalho intenso que o sujeito precisa fazer sobre si mesmo, e não mais como correspondência entre o que o sujeito diz e aquilo que a coisa é. Assim afirma Foucault: “A verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito. Pois tal como ele é, não é capaz de verdade. Acho que esta é uma forma mais simples, porém, mais fundamental para definir espiritualidade” (FOUCAULT, 2004a, p. 20). Nesse sentido, a verdade exige o trabalho formativo prévio que se traduz nas mais diferentes formas de exercício que o sujeito faz consigo mesmo.9 Verdade é, nesse contexto, processo permanente de educação do pensamento, que ocorre não só no sentido lógico proposicional, mas nas mais diferentes práticas de si empreendidas pelo próprio sujeito. É por isso que a verdade vem profundamente associada às diferentes formas de vida, adquirindo sentido cultural mais amplo, antes de se estreitar em procedimento lógico-semântico. Por isso, é constituída por uma anterioridade ética que define a anterioridade da filosofia prática em relação à filosofia teórica.
Em síntese, A hermenêutica do sujeito antecipa previamente o esboço da ontologia do presente, uma vez que põe ao sujeito a exigência do trabalho de si sobre si mesmo como condição para poder ter acesso à verdade. Tal ontologia traz consigo, então, uma exigência nitidamente formativa, porque, sem esse trabalho consigo mesmo, o sujeito nem pode formular adequadamente o problema da verdade. É na descoberta do problema da verdade que o sujeito, trabalhando sobre si mesmo, semelhante ao incansável escultor que lapida pacientemente sua obra, termina por perguntar quem é o si mesmo, ou seja, quem é o próprio sujeito que busca incansavelmente a verdade. Esse aspecto nuclear da ontologia do presente - a pergunta por quem é o sujeito que questiona a verdade - será levado adiante e aprofundado no próximo curso, ministrado por Foucault no Collège de France, em 1983, ano seguinte ao curso A hermenêutica do sujeito.
No curso O governo de si e o dos outros (Le gouvernement de soi et des autres), Foucault expõe sua ontologia do presente, sobretudo nas duas aulas iniciais, dialogando com o pensamento de Kant, especificamente com seu ensaio “Was ist Aufklärung?” (KANT, 1998, p. 53-61). A interpretação desse pequeno texto de um autor clássico da Modernidade já é indicativo de que Foucault pensa sua ontologia e, com ela, a formação ética do si mesmo sem abandonar por completo aspectos do ideal iluminista da educabilidade humana. Encontramos aqui uma situação semelhante à posição heideggeriana em relação ao humanismo: sua crítica não significa o fim do humanismo e menos ainda a defesa do inumano, mas sim outra perspectiva de pensar a condição humana. A morte do sujeito que aparece em As palavras e as coisas (Les mots et les choses) não significa, obviamente, o fim do ser humano, mas sim traz consigo outra perspectiva de problematizá-lo.
Por que Foucault toma esse pequeno texto para justificar sua ontologia do presente? Ele o faz claramente numa dupla direção, para mostrar que: a) o pensamento que visa à formação ética do si mesmo só é possível enquanto pensamento crítico da atualidade e; b) quando tal pensamento da atualidade é crítico, ele põe imediatamente em questão o próprio sujeito que pergunta pelo presente em que vive. Portanto, há, no recurso ao pensamento de Kant, um duplo movimento que está entrelaçado em si: crítica da atualidade e pergunta pelo si mesmo que pretende compreender criticamente a atualidade. Antes de interpretar com mais detalhes esses dois movimentos de pensamento, cabe destacar neles a presença ao menos implícita da ontologia heideggeriana.
Nossa hipótese é que a ontologia do presente, vista sob a luz do pensamento de Heidegger, significa o esforço foucaultiano de presentificação do Dasein, mais precisamente, da historicidade do ser humano, a qual aparece, na interpretação que Foucault faz do texto kantiano, como estado de menoridade. Sendo assim, a menoridade é, do ponto de vista ontológico formativo, a “precariedade humana” que retém tanto os limites como as possibilidades da sua própria condição. Ora, é dessa condição precária que brota, como veremos adiante, a própria educabilidade humana, pois, consciente dela, o ser humano precisa ter a coragem para pensar por conta própria. A consciência da precariedade da condição humana é um passo decisivo para o enfrentamento da menoridade que a caracteriza, pois o ser onipotente, que se autocompreende como todo poderoso, não admite tal precariedade, dispensando com isso também a noção de formação como cuidado ético de si mesmo e dos outros. Desse modo, a onipotência levada ao seu extremo impede a constituição do mundo comum.
No que se refere ao primeiro movimento indicado acima, Foucault toma Kant como exemplo típico do pensador que faz da filosofia a ferramenta conceitual para pensar o que está acontecendo em seu próprio momento histórico. Kant publica o ensaio na revista Berlinische Monatsschrift, pondo o Publikum como uma das noções centrais da própria Aufklärung. O referido texto torna-se interessante, para Foucault, porque, além de apresentar a reflexão sobre o campo do que é público e do encontro entre a Aufklärung cristã (Kant) e a Aufklärung judaica (Mendelssohn), também marca o surgimento de “um novo tipo de questão no campo da reflexão filosófica” (FOUCAULT, 2010, p. 12). Como é esse novo tipo de questão que mais interessa a Foucault, precisamos segui-lo de perto em sua argumentação, perguntando-nos inicialmente o seguinte: em que sentido Kant inaugura um novo tipo de questão - nova perspectiva de pensar a atualidade − e por que isso se torna importante para a ontologia do presente?
Kant coloca pela primeira vez, nesse pequeno ensaio, a questão da atualidade e do lugar ocupado pelo sujeito quando escreve sobre sua atualidade. Ao lê-lo, é possível compreender a “filosofia como superfície de emergência de uma atualidade” que sintetiza um “conjunto cultural característico”, uma vez que o próprio filósofo, ao interrogar a atualidade, interroga o próprio “nós de que ele faz parte” (FOUCAULT, 2010, p. 14). Tendo isso presente, o que está em jogo, nesse texto de Kant, é a nova maneira de interrogar o tema da Modernidade. Foucault sintetiza o problema do seguinte modo:
O discurso tem de levar em conta sua atualidade para, [primeiro], encontrar nele seu lugar próprio; segundo, dizer o sentido dela; terceiro, designar e especificar o modo de ação, o modo de efetuação que ele realiza no interior dessa atualidade. Qual é a minha atualidade? Qual é o sentido dessa atualidade? E o que faz que eu fale desta atualidade? (FOUCAULT, 2010, p. 15).
Em síntese, Foucault toma esse pequeno opúsculo de Kant para assinalar o surgimento moderno de uma nova maneira de compreender e praticar filosofia, que vai muito além da analítica da verdade. Esse novo tipo moderno de filosofia refere-se ao domínio prático, abrangendo a ética e a política. Ora, enquanto domínio prático, envolve-se também com o problema da formação humana. Desse modo, a ontologia do presente, além de conter tanto ética quanto política, possui traços ontológicos importantes para problematizar o sentido da formação humana. Antes de delinear tais traços, na parte final deste ensaio, precisamos ainda reconstruir o segundo movimento que emerge da interpretação feita por Foucault do pequeno texto de Kant.
Se o primeiro movimento se concentra na primeira hora da aula de 5 de janeiro de 1983, do qual resulta, como vimos, a concepção de filosofia enquanto reflexão da atualidade, o segundo movimento interpretativo ocorre na segunda hora da mesma aula. Foucault esforça-se aí para mostrar que o pensamento da atualidade, quando feito de maneira crítica, conduz imediatamente à reflexão sobre a condição do próprio sujeito que pensa a atualidade. Tem-se, com isso, a segunda dimensão da ontologia do presente, a saber, a reflexão sobre nós mesmos e, como ela trata da condição humana, sua investigação torna-se indispensável para pensar a própria ontologia da formação humana. Foucault se atém exaustivamente no primeiro parágrafo do texto kantiano “Was ist Aufklärung?”, comentando-o com riqueza impressionante de detalhes, a qual infelizmente não podemos relatar aqui.
Contudo, há dois aspectos de seu longo comentário que precisamos reconstruir: o primeiro refere-se à expressão saída (Ausgang) e o segundo, à menoridade (Mündigkeit). Embora estejam entrelaçadas em si, denotam aspectos específicos que precisam ser considerados. Kant usa a expressão saída, primeiramente, para definir o esclarecimento. Mas o que isso significa? Ele toma o esclarecimento como saída não para indicar a era na qual se encontrava a Alemanha do século XVIII, visando a reivindicar-lhe lugar e singularidade na história do mundo. Ausgang também não foi tomada para indicar um momento de transição para um estado definitivo, acabado. O esclarecimento como saída não indica a passagem automática para o estado melhor, no qual a humanidade seria mais feliz. Segundo Foucault, Kant “define simplesmente o momento presente como ‘Ausgang’, como saída, movimento pelo qual nos desprendemos de alguma coisa, sem que nada seja dito sobre para onde vamos” (2010, p. 27). Portanto, significa abandonar determinada condição, sem que se alcance de imediato outra condição melhor. Sendo assim, é preciso ver antes que condição é essa que exige a passagem e porque ela é tão difícil de ser alcançada. Ora, é justamente nesse momento então que a Ausgang vincula-se diretamente à Mündigkeit, ou seja, à saída do ser humano de seu estado de menoridade.
Esse é o ponto da interpretação de Foucault que mais nos interessa: a ontologia do presente possui raiz nitidamente ontológico-antropológica que funda não só a ética e a política como também a própria formação humana. A interpretação do texto kantiano auxilia Foucault a perceber, com forte inspiração heideggeriana, que a problemática de fundo do esclarecimento refere-se à precariedade da condição humana, caracterizada de maneira ontológico-formativa como menoridade. A liberdade humana e a formação humana possível necessitam do enfretamento do estado de menoridade, o qual depende da própria formação humana. Mas o que caracteriza tal condição de menoridade? Trata-se de uma condição pela qual, primeiramente, o ser humano é responsável, na medida em que, por preguiça e covardia, deixa-se orientar pela tutela de outros. Segundo Foucault, a menoridade não se refere à disposição natural e nem expressa a impossibilidade jurídico-política, no sentido de que um governo ou um senhor impeçam seus subordinados de serem independentes e autônomos. Trata-se, isto sim, do modo como o próprio sujeito faz autoridades externas, como o livro, o diretor de consciência e o médico, agirem em seu próprio nome. Portanto, a preguiça e a covardia caracterizam o débito ontológico que o sujeito possui consigo mesmo, levando-o a associar sua obediência irrestrita à incapacidade de pensar por si mesmo. O problema é que esse débito ontológico possui consequências políticas de longo alcance, empurrando o ser humano para a obediência irrestrita ou à “servidão voluntária”.
Em síntese, Foucault elabora sua ontologia do presente seguindo de perto as pegadas heideggerianas. Tendo como pano de fundo a historicidade do Dasein, interpreta o pequeno texto de Kant “Was ist Aufklärung?” em dupla perspectiva: primeiro, formula a noção de filosofia como pensamento da atualidade e; segundo, deriva dela a forma do sujeito pensar a si mesmo, enquanto sujeito que pensa a própria atualidade. Esse duplo movimento, pensamento da atualidade e pensamento de nós mesmos, marca o traço distintivo da ontologia foucaultiana do presente.
4 FORMAÇÃO PÓS-HUMANISTA
A Carta sobre o humanismo é um texto importante da crítica heideggeriana à concepção de ser humano oriundo da ontologia tradicional. Tal crítica segue, em linhas gerais, os trilhos abertos por Ser e tempo. Essas duas obras, além de conterem traços de uma ontologia da formação humana, inspiram muitos autores contemporâneos, entre eles o próprio Michel Foucault, a não só pensar uma nova ontologia, como também a conectá-la com outra perspectiva de formação humana. Reservamos esta parte final do ensaio para delinear alguns traços gerais da ideia de formação humana que está inerente tanto à ontologia fundamental de Heidegger como à ontologia do presente de Michel Foucault.
Nesse contexto, precisamos resumir novamente o núcleo da concepção ontológica tradicional de ser humano e extrair dela a ideia aproximada de formação humana. O projeto heideggeriano de investigação sobre o sentido do ser torna evidente o procedimento dedutivo inerente à história da ontologia de buscar o princípio último e derivar dele a noção estática de natureza humana. Pensada aos moldes da ideia inteligível ou da substância imóvel, a natureza humana já contém em si, de forma pronta, todas as potencialidades que precisam ser desabrochadas pela intervenção do adulto educador, como pai ou professor. Formar significa aí seguir retilineamente o modelo que já se encontra pronto na interioridade humana, cuja referência empírica é dada pela imitação exemplar que o educando deve fazer de seu educador. Assim, a criança está desde o nascimento com sua essência definida, bastando seguir de perto os passos adultos para que veja tal essência desabrochar com segurança e sem qualquer risco de desvio. Quanto mais colada estiver à orientação adulta, menos perigo a criança corre de se perder no meio do caminho.
A revolução na maneira de pensar provocada por Ser e tempo conduz a compreender o ser humano, enquanto ente privilegiado no qual se põe a questão do sentido do ser, não mais como natureza humana pronta, aos moldes da substância imóvel, mas sim como condição existencial constituída pela historicidade, que, ao tomar consciência de sua precariedade, lança-se ao desafiante projeto de dar sentido à sua própria existência finita. Na perspectiva da ontologia da formação humana, tal projeto vem sustentado por três noções que precisam ser agora reconstruídas, a saber, disposição, cuidado e angústia. Levaremos em conta, nesta breve reconstrução, tão somente os aspectos que interessam à formação humana.
Tem-se dado pouca atenção, de modo geral, ao parágrafo 29 de Ser e tempo, dedicado ao fenômeno da Befindlichkeit (disposição).7 Considerando isso, põe-se a seguinte pergunta: em que sentido a disposição caracteriza o ser humano e qual é sua relevância formativa? A disposição talvez seja o resultado mais imediato e importante da crítica heideggeriana à noção de sujeito como substância imóvel. Por isso, caracteriza antes de tudo a capacidade de abertura da condição humana, abertura do estar lançado e abertura do ser-no-mundo. Ao contrário da fixidez e imobilidade do sujeito, ela designa sua capacidade de se construir - ou, também, de se destruir -, na fluidez contingente de sua existência. Pondo-se na própria acontecência e impulsionando-a, a disposição indica muito mais a força do que um estado no qual estaria colada de maneira fixa a natureza humana. Importante é, do ponto de vista formativo, que a disposição de abertura descortina ao ser humano infinitas possibilidades. Heidegger acentua, no referido parágrafo, a importância metodológica da capacidade humana de abertura, uma vez que ela, como parte da analítica existencial, propicia ao ser humano “escutar, por assim dizer, o ser dos entes que já se encontram previamente abertos” (HEIDEGGER, 1967, p. 139). Mas a capacidade de abertura, como disposição, também proporciona ao ser humano escutar a si mesmo. Em resumo, a disposição como capacidade de abertura é a força que conduz o ser humano a escutar o sentido dos outros entes ao mesmo tempo em que escuta a si mesmo. Na linguagem foucaultiana do autogoverno, o sujeito só pode escutar bem os outros na medida em que for capaz de se abrir para a escuta de si mesmo.
Na sequência, angústia e cuidado são tomados como aspectos centrais da compreensão de ser humano. Heidegger aborda-os de maneira mais sistemática, respectivamente, nos parágrafos 40 e 41 de Ser e tempo. Adquirem sentido pela historicidade do ser humano, mais precisamente pela de-cadência que, como possibilidade, ronda permanentemente a condição humana. O símbolo da de-cadência é a imersão do ser humano no mundo das ocupações, levando-o à fuga de si mesmo, uma vez que tal imersão joga-o na impessoalidade. Como disposição humana privilegiada, a angústia caracteriza, na perspectiva ontológico-existencial, a força que arranca o ser humano de sua cômoda impessoalidade e o põe a caminho da busca pela sua própria pessoalidade. A angústia assinala assim a saída da impropriedade rumo à propriedade. Ela é o fenômeno existencial por excelência, porque possui inerente a si dupla capacidade de liberdade e estranhamento. Devido à liberdade, a angústia coloca o ser humano frente a frente consigo mesmo. Como afirma Heidegger, ela “manifesta no Dasein o ser para o poder-ser mais próprio, ou seja, o ser-livre para a liberdade de assumir e escolher a si mesmo” (1967, p. 188; grifos do autor). Ou seja, é pela liberdade que o ser humano descobre a possibilidade de construir sua própria autenticidade. De outra parte, a angústia provoca o estranhamento: “Na angústia, se está ‘estranho’” (HEIDEGGER, 1967, p. 188). Nesse sentido, como capacidade de estranhamento, a angústia se assemelha àquela estranheza que tomou conta dos visitantes de Heráclito, que, ao serem chocados pelo filósofo, sentiram a “presença dos deuses” na familiar habitação humana. Mostra, então, que o “não sentir-se em casa”, o estranhamento, brota daquilo que é bem familiar, da própria habitação humana (ou seja: de seu modo próprio de ser no mundo). Assim sendo, a angústia desempenha papel formativo indispensável, pois, na medida em que provoca o autoestranhamento, impele o ser humano ao projeto de buscar ser o que ele é em sua própria historicidade.
Voltemo-nos, por fim, ao cuidado. Se a angústia é a força motriz que conduz o ser humano ao processo de estranhamento, orientando-o a compreender o não familiar da própria familiaridade, o cuidado, em sua possibilidade mais própria, é o modo de ser do ser humano estranhado. Uma vez impulsionado a sair de sua impessoalidade, que nada mais é do que sua forma decadente de ser no mundo, o ser humano constrói sua autêntica postura de cuidado. Do ponto de vista ontológico-existencial, o cuidado é o modo humano de ser no mundo que brota da própria historicidade. Evidenciando o percurso humano temporal no mundo, ele afasta o ser humano do risco da permanente decadência, porque, ao conceber-se como ser histórico, como ser que caminha para a morte, e assumindo essa sua condição de historicidade, o ser humano vê-se impelido a ser mais. Deixando-se mover pelo “esforço angustiado”, o ser humano elabora autenticamente a postura do cuidado para empreender a busca pelo seu aperfeiçoamento. Como afirma Heidegger: “A perfectio do homem, o ser para aquilo que, em sua liberdade, ele pode ser em suas possibilidades mais próprias (para o projeto), é um ‘trabalho’ do ‘cuidado’” (1967, p. 199). Atuar decididamente a favor da perfectibilidade humana, abrindo para o ser humano o horizonte de suas próprias possibilidades, é o papel formativo do cuidado. Contudo, considerando que, do ponto de vista pós-humanista, o cuidado refere-se ao ser humano historicizado, então seu aspecto formativo diz respeito ao desenvolvimento de capacidades que são elas próprias contingentes e maleáveis. A perfectibilidade como possibilidade impede a noção de faculdades mentais prontas que seriam desabrochadas pela intervenção do educador; também impede a posição do fim fechado e absoluto. A formação como perfectibilidade, ou seja, como contingência e maleabilidade das capacidades humanas, está sempre exposta ao risco do desvio, caracterizando a possibilidade de sua não realização. Desse modo, tal risco também é constitutivo da precariedade humana, isto é, de sua Dürftigkeit, a possibilidade do fracasso.
Em síntese, disposição, angústia e cuidado caracterizam a perspectiva ontológica que permite compreender o problema da formação de maneira pós-humanista. Nesse sentido, compreender o ser humano como um ser disposto significa, por um lado, destituí-lo da imagem, predominante na história da ontologia, do animal racional que carrega em si, por ser substância imóvel onipotente, a essência pronta orientada para a ideia do bem. A perspectiva pós-humanista assinala justamente o contrário: por ser formado pela disposição de abertura, o ser humano corre livremente ao encontro das possibilidades existentes no mundo, podendo ou não construir sua autenticidade. Como ser angustiado, o ser humano lança-se para fora de sua impessoalidade e, ao assumir a possibilidade autêntica do cuidado, atua a favor da perfectibilidade humana.
Embora não haja provas textuais evidentes sobre o modo como a força formativa inerente a essas noções centrais de Ser e tempo tenha influenciado diretamente a ontologia do presente de Foucault, há fortes indícios para crermos que a ontologia formativa heideggeriana é uma das fontes principais de inspiração da exegese que Foucault faz do texto de Kant. É o amplo espectro da virada heideggeriana pós-humanista que impulsiona Foucault ao esforço de atualização kantiana do problema da maioridade humana. Com base nisso, podemos ver então, no duplo procedimento interpretativo do texto kantiano, feito por Foucault, a influência da ontologia formativa de Ser e tempo, expressa pelas três noções capitais de disposição, angústia e cuidado. Primeiramente, é pela disposição humana de abertura que a filosofia, pensando criticamente a atualidade, transforma-se em modo cuidadoso de vida que conduz o sujeito a pensar a si mesmo, na medida em que interroga a atualidade da qual faz parte. Se é da disposição de abertura que nasce a capacidade humana da angústia e, com ela, do estranhamento, então é o sujeito estranhado que se torna capaz de perguntar pela autenticidade de sua existência. Em síntese, disposição humana de abertura é a capacidade das capacidades que habilita o sujeito a assumir a disposição afetiva da angústia e a formar a postura do estranhamento que está na base da pergunta por si mesmo.
De outra parte, na interpretação que Foucault faz do pequeno texto de Kant, encontramos, na condição humana da menoridade, a prova empírica da historicidade do ser humano, a qual possui relevância extraordinária à ontologia da formação humana. Na grande sombra ontológica da historicidade do Dasein e movido pela sensibilidade pedagógica inerente ao pequeno opúsculo de Kant, Foucault reconhece a covardia e a preguiça como maior débito ontológico que o sujeito possui consigo mesmo. De acordo com a arquitetônica de Ser e tempo, ambas são formas inautênticas do cuidado humano que encontram a possibilidade de sua superação na maioridade, a qual pode ser compreendida como versão iluminista crítica do modo autêntico do cuidado. De qualquer forma, covardia e preguiça assinalam, do ponto de vista existencial, a Dürftigkeit da condição humana - precariedade da qual o próprio ser humano é em certa medida culpado -, tornando-se obstáculo frontal à capacidade de pensar por si mesmo. Ora, somente o cuidado intenso de si sobre si mesmo é capaz de romper com os obstáculos autoimpostos pelo sujeito e que o impedem de encetar o caminho da maioridade. No âmbito da interpretação foucaultiana, como reconstruímos acima, a condição de maioridade traduz-se na liberdade pública que encoraja o sujeito a pensar por si mesmo. Contudo, a liberdade pública tem sua base sólida de sustentação no autogoverno conquistado pelo sujeito mediante o cultivo intenso e permanente que faz de si mesmo, em companhia com o mundo. Sendo assim, a ontologia do presente inscreve-se nitidamente na sapere aude kantiana, mas busca inseri-la agora nos trilhos da formação pós-humanista. Trata-se, em síntese, de um pensar por si mesmo que assume a insígnia da historicidade humana e, por isso, precisa abrir mão de sua enganosa onipotência transcendental.
Por fim, gostaríamos de concluir indicando um possível alcance político derivado da ontologia de formação pós-humanista. A história da ontologia prendeu-se à noção de natureza humana, fazendo brotar dela a onipotência da substância imóvel, ou seja, a ideia de um sujeito todo poderoso que acredita poder dominar-se a si mesmo, dispensando a companhia solidária dos outros. Desse modo, a arrogância do animal racional encurtou cada vez mais, desde o início da Modernidade, a possibilidade do viver junto, cooperativo e solidário. A crítica a tal arrogância, feita em nome da historicidade da condição humana e do autogoverno ético de si mesmo, abre possibilidade para a emersão do sujeito mais humilde, consciente de que o sentido de sua existência depende de sua convivência solidária com o mundo. Ora, a consciência dessa copertença inerente à habitação humana torna-se solo fértil para a democracia como forma de vida. Ela solidifica, pois, as relações solidárias do mundo pré-político que são indispensáveis para impedir que o próprio mundo político institucionalizado corrompa-se cada vez mais. É nesse sentido que tanto o cuidado de si heideggeriano como a formação ética do si mesmo foucaultiana carregam, enquanto traços de uma ontologia da formação pós-humanista, outra noção do político que, encontrando-se aquém do espaço institucionalizado, funciona como sua condição de possibilidade. Sendo assim, aprender a cuidar-se na mais pura simplicidade de sua acontecência no mundo é uma condição indispensável para que o ser humano adquira a força ética necessária para resistir aos constantes apelos de corrupção da vida pública.