1 INTRODUÇÃO
O projeto intitulado Transmissão de conhecimento ou experiência no ensino da Filosofia: limites e possibilidades fundamentou-se sobre os três pilares que sustentam a universidade pública brasileira: o ensino, a pesquisa e a extensão, de modo que estiveram diretamente relacionados em todas as fases. Desde sua formulação, procuramos construir uma intervenção social com potencial transformativo por meio da experiência filosófica em um grupo de crianças e adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade social4.
Os pressupostos epistêmicos e metodológicos estabelecidos para justificar nossas práticas de ensino orquestravam uma arquitetura discursiva que modulava os fenômenos cotidianos e, simultaneamente, era modulada por eles, desenvolvendo uma simbiose entre teoria filosófica e realidade prática. A necessidade de trilharmos esse caminho ocorreu na elaboração da hipótese do projeto, porque, na medida em que defendíamos a possibilidade de os educandos (crianças e adolescentes) pensarem filosoficamente suas atividades sem os submeter a uma estrutura de ensino que privilegiasse a transmissão de conteúdos filosóficos, novas possibilidades para a experimentação filosófica vieram à tona.
Nossa hipótese baseava-se na observação de que o atual contexto educacional de ensino de filosofia que vigora no Brasil restringe o papel do professor ao de transmissor de conteúdos e espera do aluno sua acumulação nos anos escolares5. Esse modelo de ensino implica problemas em relação ao despertar crítico do aluno para com o mundo e para consigo mesmo, uma vez que, violentamente, lhes coloca problemáticas construídas na história da filosofia por teóricos consolidados nessa tradição de pensamento e considerados necessários ao exercício do filosofar.
Em resistência a esse modelo educativo, nossas ações concentraram-se nos espaços informais de ensino, como tentativa de romper com os imperativos de transmissão de conteúdo. Esses imperativos são amplamente encontrados na escola e poderiam ser responsáveis pelo empobrecimento do filosofar, segundo nossas hipóteses. Desse modo, para que pudéssemos verificá-las e vivenciar outra relação com o ensino da Filosofia, estabelecemos vínculo com o “Projeto Barracão”.
O Barracão é uma organização não-governamental ligada à Cáritas Diocesana de Marília-SP e mantida pelos Irmãos Marianistas. Esse projeto atende a população em situação de risco social e pobreza no bairro Jardim dos Lírios, com os objetivos de orientar e apoiar crianças, adolescentes e suas famílias no acesso a direitos sociais e na formação da cidadania. Tais objetivos materializam-se em atividades formativas complementares àquelas desenvolvidas na escola, almejando reforçar a aprendizagem e ampliar as formas de leitura de mundo. De acordo com a página oficial do Barracão (2012),
O projeto teve sua origem nos anos 80 com a demanda de atender crianças e adolescentes que se encontravam em situação de rua na cidade de Marília. A iniciativa foi da diretoria da Cáritas que percebendo essa realidade, propôs um trabalho para ser realizado na própria rua. A proposta consistia em aproximação, contato e atividades com as crianças e adolescentes em praças públicas. Posteriormente, o projeto foi instalado em uma construção precária que passou a ser denominado de Barracão pelos jovens que ali frequentavam daí o nome do projeto. No ano de 1993 foi inaugurado o prédio atual. Os Religiosos Marianistas estiveram presentes desde o início, apoiando e ajudando a orientar essa proposta. No ano de 2001, assumiram definitivamente o projeto com a demanda de atender crianças e adolescentes em condições de pobreza e exclusão social6.
As atividades de formação que o Barracão oferece para a comunidade são divididas em dois subprojetos: o Programa Amigos do saber e o Programa segundo tempo. Ambos são executados em turnos contrários às aulas e são desenvolvidos por educadores que compõem o seu corpo de funcionários.
Analisando cuidadosamente o funcionamento da ONG, procuramos inserir o projeto Transmissão de conhecimento ou experiência no ensino da Filosofia: limites e possibilidades, de tal modo a desenvolver atividades filosóficas que proporcionassem aos estudantes reflexões sobre problemas surgidos dentro e fora do espaço, ao pretender subverter a lógica tradicional de transmissão de conhecimentos dessa natureza.
Nossas atividades encontraram embasamento teórico nas práticas do cuidado de si, desenvolvidas por Foucault, nas noções de presença e poética da transmissão, de Fernando Bárcena, assim como nos debates e nas posturas contra a lógica da explicação, desenvolvidas a partir da reflexão de Jacques Rancière, de O mestre ignorante. Nesse sentido, buscamos produzir oficinas temáticas que pudessem ser interessantes aos gostos dos estudantes, e, em conjunto, problematizar filosoficamente relações sociais presentes nelas. Esperávamos pelo surgimento de experiências reflexivas espontâneas, empíricas, para que aos poucos fosse possível utilizar conceitos da tradição filosófica.
Essa quase “ausência conceitual” a priori tornou-se o campo de intensidades do pensamento, ora forjado no silêncio dos corpos, ora na resistência viva do debate, mas frequentemente na insistência de uma forma de questionamento que não visava a busca por respostas que silenciassem o pensamento, mas que pudessem instigá-lo cada vez mais a continuar pensando. Nessa relação, notamos que apareciam reflexões que poderiam ser consideradas, senão Filosofia stricto sensu, ao menos uma forma de problematização filosófica das relações. A isso demos o nome de vivências de filosofia7 ou vivências filosóficas. Vale lembrar que nossa intenção no projeto não era transmitir conceitos ou conteúdos da Filosofia, mas pensar o ensino da Filosofia de outro modo que, apesar de ainda não sabermos muito bem qual seria, tínhamos a intuição de que não poderia se realizar por meio da mera transmissão abstrata de conceitos vindos da História da Filosofia.
Frente a isso, o objetivo desse artigo é apresentar o movimento de nosso pensamento e prática com pretensões filosóficas junto às crianças e adolescentes do Barracão, nossos companheiros de viagem no filosofar. Assim, optamos por escrevê-lo procurando conectar relatos de nossa experiência prática com elementos teóricos, na tentativa de nos ensinarmos no pensamento e a fim de significar aquilo que ia acontecendo em nossas vivências e em nosso exercício filosofante.
2 PARA CONTEXTUALIZAR: UM LUGAR TEÓRICO
Na Grécia antiga, a filosofia socrática amparou-se em duas máximas que relacionavam o problema “sujeito e verdade”, isto é, a possibilidade de o indivíduo conhecer e sentir o mundo que o circunscreve de maneira segura e verdadeira. A primeira delas, gnôhti seautón, pode ser traduzida como “conhece-te a ti mesmo” e se refere à busca pelo conhecimento do indivíduo a partir de indagações cognitivas sobre si e seu papel no mundo que habita. Já a segunda, epiméleia heautoû, tem o significado de “cuidado de si” como uma modalidade do saber que tem por objetivo a experiência empírica do sujeito em conhecer a si mesmo, a partir das vivências que coleciona ao longo da existência. Segundo a historiografia realizada por Michel Foucault (2006) sobre o “cuidado de si” e o “conhece-te a ti mesmo”, ambas as atitudes foram inseparáveis para a produção da verdade filosófica desde a prática socrática8.
Sobre este aspecto, Foucault (2006) afirma que Sócrates inaugura uma tradição ao privilegiar o “cuidado de si” em relação ao “conhece-te a ti mesmo”, acoplando-o a um procedimento secundário ao cuidado de si, no qual a experiência empírica condicionaria o pensamento. No decorrer da história ocidental, essa tradição “[...] chegou ao cristianismo, passando por Platão, pelos epicuristas e pelos estoicos, que somente foi interrompida com a modernidade” (PAGNI, 2011).
Na modernidade, o pensamento de Descartes deu fundamento para a inversão dessa lógica. Segundo Foucault (2006), a epiméleia heautoû (cuidado de si) ganhou várias definições desde o seu surgimento, mas sempre manteve um eixo comum completamente antitético à noção de egoísmo (preocupação somente consigo, não com uma moral coletiva, por exemplo, da cidade), que poderia dar margem a uma confusão. Foucault (2006) apontou alguns paradoxos como as razões de o “cuidado de si” ter desaparecido da preocupação dos historiadores da filosofia: (a) a partir do “ocupar-se consigo mesmo” constituíram-se as morais mais austeras no ocidente desde os primeiros séculos antes da nossa (moral estoica, moral cínica e, em certo grau, moral epicurista); (b) em lugar da epiméleia heautoû constituíram-se as regras retomadas tanto da moral cristã ou não-cristã (como pátria, classe etc.) de obrigação rigorosa em relação ao próximo, afastando o sujeito de si, em favor do outro (do próximo); e, por fim, o fator principal de inversão dessa lógica deveu-se ao que chamou de (c) “momento cartesiano”, pois “(...) atuou de duas maneiras, seja requalificando filosoficamente o gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo), seja desqualificando, em contrapartida, a epiméleia heautoû (cuidado de si)” (FOUCAULT, 2006, p. 18).
Esse “momento cartesiano” refere-se à contribuição significativa de Renè Descartes à história da filosofia, quando instaurou um procedimento de análise da verdade submetido à consciência do conhecimento. O Cogito do sujeito cartesiano, por si só, era capaz de produzir conhecimento sobre o ser das coisas, sobre a verdade dos objetos, a partir da indubitabilidade de sua existência enquanto sujeito. Assim, [Eu] penso, logo, existo foi uma operação que inverteu a lógica que havia privilegiado até então o cuidado de si em favor do conhece-te a ti mesmo. Em consequência, a perda da epiméleia heautoû no curso da história da filosofia fez com que fosse esquecida a vivência entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, enquanto forma de compreensão da verdade: o procedimento cartesiano passou a isolar o objeto a ser compreendido do sujeito que o observa. Ao invés de a experiência do pensamento acontecer entre sujeito e objeto relacionados, o sujeito moderno perdeu a dimensão empírica quando o isolou de si e o tratou como experimento: a filosofia passaria a operar segundo métodos científicos de observação, não mais como prática.
Nesta rubrica, se a filosofia pôde ser definida como a “forma de pensamento que tenta determinar as condições e os limites do acesso do sujeito à verdade” (FOUCAULT, 2006, p. 19), então, para Foucault, também poderíamos chamá-la de “espiritualidade”, pois os procedimentos de sua acepção seriam relativos ao “conjunto de buscas, práticas e experiências tais como purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência, etc., que constituem (...) o preço a pagar para ter acesso à verdade” (FOUCAULT, 2006, p. 19). Acontece, porém, que no curso da modernidade, parece ter ocorrido a perda do cuidado de si e, por conseguinte, a perda da experiência do pensamento junto ao objeto.
Como observou Chauí (1982), na contemporaneidade existe, por parte da ideologia neoliberal dominante, o entendimento de que o desenvolvimento social pode ser medido pelo seu grau de progresso técnico, o que significa operar segundo a lógica de manipulação laboratorial dos objetos sem os relacionar com o sujeito. Por buscar controlar coisas e objetos, a ciência moderna transformou-se naquilo que foi a religião no mundo medieval: uma mistificação sobre o mundo na medida em que a ela é confiado o poder de dizer a verdade, mesmo conforme racionalidades bastante específicas - muitas vezes tecnicistas - sobre a vida. Aquele que não segue seu receituário de como se portar no mundo torna-se passível de sofrer intimidações de todas as ordens pela noção de competência, representada pela seguinte expressão: “não é qualquer um que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro em qualquer lugar e sob qualquer circunstância.” (CHAUÍ, 1982, p. 58).
Ao abandonar o cuidado de si em relação ao conhece-te a ti mesmo reelaborado sob o paradigma cartesiano, como método objetivo de compreensão da verdade, o progresso cientificista superou a falta de experiência entre o sujeito e o objeto pela figura do especialista:
entre nosso corpo e nossa sexualidade, interpõe-se a fala do sexólogo, entre nosso trabalho e nossa obra, interpõe-se a fala do técnico, entre nosso trabalho e nossa obra, interpõe-se a fala do técnico, entre nós como trabalhadores e o patronato, interpõe-se o especialista das “relações humanas”, entre a mãe e a criança, interpõe-se a fala do pediatra e da nutricionista, entre nós e a natureza, a fala do ecologista, entre nós e nossa classe, a fala do sociólogo e do politólogo, entre nós e a nossa alma, a fala do psicólogo (...) e entre nós e nossos alunos, a fala do pedagogo. (CHAUÍ, 1982, p. 58)
A questão central de nosso texto, então, é a seguinte: como poderemos elaborar estratégias de resistência na relação pedagógica de ensino e aprendizado, em oposição à figura do professor como aquele que retira do aluno a experiência do cuidado de si, tal como em Sócrates? Nessa linha, Marilena Chauí (1982) ainda nos aponta um caminho interessante: “deixando o morto falar”. Como bem afirmou a filósofa, há em Rousseau e Sócrates algo em comum. Rousseau compreende que o ofício do pedagogo é preservar o sujeito o máximo possível para que ele não perca a ética ao ser contaminado com o inóspito ambiente político da cidade, capaz de corrompê-lo. O mestre deveria fazer com que o Emílio reencontrasse o que a vida social destruíra com o advento da propriedade privada. Era necessário um “olhar de longe” para aprender a amar e a compreender o que está próximo de si, isto é, não a sociedade corrompida pelos demais homens, mas olhar o outro que não faz parte de sua cultura. Aprender com o “selvagem” aquilo que seus pares já esqueceram, “fazer de Emílio um cidadão do mundo, já que não é possível torná-lo um cidadão de seu Estado, (...) pô-lo em contato com o silêncio das origens” (p. 54).
Para Platão, o papel do filósofo é afastar toda pedagogia que não tem compromisso direto com o verdadeiro e o justo, estes que são o próprio bom e o belo. A verdadeira pedagogia seria uma dimensão da filosofia, responsável por não permitir que as almas esquecessem aquilo que o mestre Sócrates havia ensinado antes de sua morte, isto é, aquilo que não deixava que os homens caíssem no rio do esquecimento e que lhes fosse destinado a retirar do espírito a ignorância das sombras da caverna, em favor do bom e do belo simbolizados pela luz do conhecimento.
Dessa forma, o que há em comum nos dois filósofos é a palavra partilhada entre mestre e aprendiz: o logos a dois. Isso se trata, pois, de um diálogo com o morto, que obedece à ideia de silêncio das origens, aquilo que se foi, mas continua vivo à espera para nascer outra vez em outro ser: em suma, trata-se do aluno que se relaciona com o outro silencioso, para que a palavra e o pensamento nele possam nascer; “é a dimensão simbólica do ensino e do aprendizado que se manifesta nesse diálogo com o outro que não é alguém, porque é o saber (...) por isso, aprender é lembrar” (CHAUÍ, 1982, p. 55). Por essa razão, segundo Chauí, “toda arte é ofício de segredos e de mistérios” (1982, p. 55), e o papel do professor, antes de ser um técnico do ensinar, cuja transmissão disciplinada do conteúdo se realiza pelo emprego do método mais adequado, um tanto quanto mecanicamente na arte de ensinar tudo a todos, é o métier de um artista que cria sua obra livremente, não sabendo aonde tudo o levará.
Também este métier artístico da atividade docente parece-nos uma definição mais precisa em oposição ao que comumente vem se praticando nos espaços formais de transmissão de conteúdos científicos, filosóficos e artísticos. Ao tomar os alunos como objeto do conhecimento e o professor como sujeito munido de capacidade técnica de ensinar, incorre-se no erro cartesiano de reproduzir um método científico de investigação científica. Nesse modelo tendemos a compreender apenas um sujeito como aquele que detém o conhecimento e, por isso, se legitima na tarefa de ensinar, enquanto o outro recebe as informações transmitidas. No entanto, é desconsiderado, ou no máximo colocado em plano inferior, o fato de cada aluno ser também o sujeito nesta relação. Sujeito porque, no ato do aprender, a forma como ele interpreta o que se procura transmitir, e o recodifica a seu modo para produzir um sentido do aprender, também faz dele um papel ativo na relação “ensino e aprendizagem”. Então, como equacionar dentro do paradigma cartesiano, uma relação que foge ao seu esquematismo por possuir dois sujeitos e nenhum objeto? A nosso ver, isso só seria possível deslocando-se o referencial de análise que foi construído pouco a pouco no curso da modernidade, e, talvez, retomando-se pontos da literatura clássica para repensar o ensino de filosofia na contemporaneidade.
Em 1784, Immanuel Kant (1985) postulou sua noção sobre o esclarecimento (Aufklarung), após ser indagado por filósofos alemães que também debatiam sobre a questão.9 Sua resposta à pergunta remete-nos diretamente ao desenvolvimento descrito por Rousseau, em Emílio, quando procurou refletir sobre os limites de uma educação que se pretende emancipadora. Kant afirma que o esclarecimento é a saída do sujeito da menoridade da qual ele próprio é culpado, seja pela preguiça, quando este prefere gozar dos privilégios de se manter dependente de outrem e não ser o sujeito das próprias decisões, ou pela covardia, quando a falta de coragem nas tomadas de posição é preponderante, transferindo igualmente suas responsabilidades a outro poder. Em consequência, sua noção de maioridade é definida como o pleno uso do entendimento (racionalidade) pelo sujeito, sem a mediação pastoral de outro indivíduo supostamente esclarecido. A partir de como o autor coloca a questão em sua época, duas constatações são importantes para repensarmos o nosso presente. Primeiramente, Kant compreende o estado de esclarecimento como relacional entre um sujeito capaz de racionalizar suas escolhas, em vez de alocá-lo num grau absoluto que poderíamos indicar em etapas gradativas de evolução (o esclarecimento é um processo, e não um ponto a ser atingido em absoluto). A segunda constatação é a de que, ao fazer a reflexão, Kant também indagou-se se a sociedade e a época em que viveu eram emancipadas, conforme os termos de seu pensamento.
No mesmo sentido, o comentário que Foucault faz sobre a referida obra abre-nos a possibilidade de deslocar a questão de nossa época em relação ao esclarecimento e, assim sendo, utilizar das ferramentas conceituais da filosofia para fazer uma ontologia do presente:
A Aufklärung é um período, um período que formula ele próprio sua divisa, seu próprio preceito, e que diz o que ele tem a fazer, tanto com relação à historia geral do pensamento, como com relação ao seu presente e às formas de conhecimento, de saber, de ignorância, de ilusão nas quais ele sabe reconhecer sua situação histórica.
Parece-me que nesta questão da Aufklärung, se vê uma das primeiras manifestações de uma certa maneira de filosofar que teve uma longa história há dois séculos. É uma das grandes funções da filosofia dita moderna (aquela cujo começo pode ser situado no extremo fim do século XVIII) interrogar-se sobre sua própria atualidade. (FOUCAULT, 1994, p. 1501).
Foucault afirma que a questão “o que é a nossa atualidade?” ou “qual é o campo atual das experiências possíveis?” revela outro modo de interrogação crítica, capaz de pensar seus próprios estatutos de esclarecimento, num período em que a aura europeia indicava a existência ou formação de uma idade esclarecida (iluminista), em oposição ao papel que a filosofia ocupara até então: de verificar os pressupostos de validação do conhecimento verdadeiro.
Posto isto, como fazer a analítica do presente a partir do nosso objetivo, o campo educacional? E quais posicionamentos assumir em sua relação? É disso que trataremos na seção a seguir.
3 INFILTRANDO NO ESPAÇO E NOS TEMPOS DAS ATIVIDADES A ESCRITA DE SI.
No ano de 2010, estabelecemos o primeiro contato com o Barracão, almejando uma lenta ambientação. Buscamos constituir laços e estipular relações diretas com as crianças, jovens e educadores do projeto de forma discreta, procurando ser consistentes, pois sabíamos que era necessário sermos notados pelos seus participantes, mas sem lhes impor condições de nosso lugar e de nossa função. Em momento algum fomos apresentados ou nos apresentamos como pessoas que estavam lá para ensinar a Filosofia. Simplesmente colocamo-nos em uma situação espaço-temporal de nos “infiltrarmos” nas relações cotidianas que as crianças e adolescentes do Barracão desenvolviam para participar com eles das atividades que lá aconteciam. Não queríamos que nossa relação com eles já se iniciasse com um imperativo que direcionasse nossas relações: os professores de Filosofia que vêm ensinar a Filosofia! Nosso primeiro objetivo era apenas estar presentes. Para isso, era necessário fazermo-nos presentes sem impormos as condições de nossa presença; era necessário que fôssemos aceitos como parte daquele grupo e não como estrangeiros que vêm de fora dele para realizar alguma atividade imposta a eles, como normalmente ocorre nessas situações. Assim, para pensarmos essa relação, procuramos entender melhor a condição que aqui estamos denominando presença e iniciamos um intenso diálogo com o filósofo da educação Fernando Bárcena, especialmente através da sua obra Pedagogía de la presencia.
Inspirado nas conferências Introducción al presente en la ciudad, ministrada por Ortega y Gasset, em Buenos Aires no ano de 1928, Bárcena desenvolve uma refinada reflexão sobre o presente e amplia de forma singular sua exposição para a Filosofia da Educação. Para o autor,
Ortega quería hacer una meditación sobre el presente, y al introducir a su auditorio en él con sus reflexiones se obliga a poner el acento en su dramatismo constitutivo, pues en todo presente conviven tres modalidades de tiempo diferentes, algo así como tres «presencias del presente»: el hoy de los jóvenes, el hoy de los hombres y mujeres maduros y el hoy de los viejos. Tres dimensiones vitales conviven, en conflicto, diferencia y hostilidad inevitable, en cada presente, de modo que todo presente es siempre discontinuo, y significa cosas distintas para el joven de veinte años, para el hombre de cuarenta y para el viejo de ochenta. Así que nos hacemos presentes en el presente de modo diferente, en función de la generación de la cual cada uno forma parte (BÁRCENA, 2010, p. 1).
Para Bárcena (2010, p. 3), esta “relación entre generaciones - donde tiene lugar el juego de las transmisiones, los desencuentros, las asimetrías, las discontinuidades, y las alteridades - es un encuentro entre dos modalidades de experiencia del tiempo: un tiempo adulto y un tiempo joven o tiempo-niño”. Dessa maneira, procuramos, durante todo um ano, tão somente acompanhar as atividades do Barracão, questionando-as e refletindo sobre elas com os educandos e participantes. Procurávamos encontrar uma maneira de estar presentes para melhor entender as relações de aprendizagem que ali ocorriam, preparando-nos e gestando nossa proposta de um “ensino da Filosofia”.
Assim, compreender o conceito de presença e a relação que chamamos aqui de estar presente não implicou apenas dialogar com Bárcena, pois, como podemos observar no fragmento acima, a presença do presente infere, necessariamente, três percepções distintas. A partir dessa leitura, deduzimos que seríamos percebidos de formas diferentes, singulares, pelas crianças, jovens e adultos (educadores). Por isso, para descobrirmos o que nós éramos, e como estávamos sendo percebidos, foi preciso estar lá, experimentar as relações e sermos experimentados por elas. Foi preciso fazer um exercício de presença.
A partir de Bárcena e Ortage y Gasset, para além das três percepções da presença, é possível pensar em pelo menos duas formas de presença: uma que se impõe, como a do professor que chega na sala de aula e ministra suas aulas desde aquilo que planejou ensinar aos seus alunos, que podemos chamar aqui de presença exterior, uma vez que a relação que estabelece com o grupo não implica necessariamente uma relação imanente a ele; outra que pode ser compreendida como presença interior, pois a relação que se procura estabelecer é a de infiltração, ou seja, de se tornar imanente ao grupo, estabelecendo-se com ele uma relação de pertencimento.
Durante o período de gestação, temas dissonantes expandiam-se na diversidade das presenças, não apenas de nossa geração em relação com a dos educadores e a dos participantes, mas a de como cada um se fazia presente naquele projeto. Individualmente procuramos encontrar elementos que potencializassem nossa presença e ampliassem essa nossa tentativa de fazer uma análise de nossa relação com o e no Barracão; uma análise que nos dava condições de nos fazermos mais presentes e de evidenciarmos nossa presença naquele espaço e com aquelas pessoas. Tínhamos conseguido responder a uma questão essencial às nossas preocupações. Tínhamos conseguido nos fazer presentes sem dizer o que estávamos fazendo ali e transformado a problemática presença externa em presença interna. Éramos reconhecidos por nós mesmos e não como os professores de Filosofia ou como educadores.
Porém, uma questão ainda não tínhamos conseguido responder e isso começou a incomodar a todos nós enquanto equipe que pretendia ensinar a Filosofia. Precisávamos dar o passo seguinte em nosso objetivo, que era o de ensinar a Filosofia. A questão que nos movia já não era a necessidade de dizer a Filosofia, de ensinar a Filosofia, mas a de como “apresentar” a Filosofia para os participantes do Barracão de tal forma a fazê-la presente, como nós nos fizemos presentes. Seria isso possível sem a transmissão de conteúdos filosóficos, presença externa, e sem uma postura regulamentada pela formalidade institucional?
Finalizado todo o processo de ambientação, decidimos propor uma atividade que pudesse introduzir o filosofar nas relações que estabelecíamos com eles. Desse modo, pensamos em desenvolver uma atividade que valorizasse uma problematização filosófica que nos era cara, pensada a partir dos conceitos de Michel Foucault, o cuidado de si e o cuidado do outro. Essa decisão surgiu das reflexões teóricas que ocorriam nas reuniões semanais do Grupo de Estudos e Pesquisa em Ensino da Filosofia, que sustentavam e embasavam conceitualmente nossas ações. Regularmente debatíamos o conceito de presença, do livro Pedagogia de la Presencia, de Fernando Bárcena, e a noção de cuidado de si, de Michel Foucault, no conjunto de textos Las Tecnologias Del Yo e no curso A Hermenêutica do Sujeito. Nesse sentido, nada mais importante do que trabalhar essas noções nas relações que estabelecíamos com as pessoas do Barracão.
Antes de evidenciarmos os procedimentos que constituíram nossa práxis, é de extrema relevância apresentar nossa compreensão das noções de cuidado de si. Obviamente, essa separação é exclusivamente expositiva, pois não fizemos essa distinção dualista entre teoria e prática no dia-a-dia do projeto. Como mencionamos anteriormente, essa noção foi-nos apresentada a partir das leituras das obras de Foucault. Para ele, “En la cultura grecorromana el conocimiento de sí se presentaba como la consecuencia de la preocupación por sí” (1990, p. 54). Como podemos observar, Foucault identifica nos gregos uma inseparabilidade entre uma concepção epistemológica e uma vida ética, que não separa o conhecimento da vida. Ao fazer uma releitura de alguns diálogos platônicos, especificamente, o diálogo Alcebíades I, o autor percebe que, para a cultura greco-romana, o cuidado de si (epiméleia heautoû) está intimamente ligado ao conhecimento de si (gnôthi seautón). Segundo Foucault, essas duas noções não estão em oposição no pensamento de Sócrates, mas se complementam. O desenhar do conhecer-se no pensamento de Sócrates só se configura com a existência de um cuidado de si, que tem como uma de suas dimensões o conhecimento de si. A partir desse tensionamento, Foucault apresenta-nos outra forma de nos relacionarmos com nós mesmos que, apesar de já estar presente em Sócrates, foi desinflacionada pela história do pensamento ocidental.
Ao examinar essa relação apresentada por Foucault, notamos que o cuidado de si apresenta-se como substrato ético de uma estrutura epistemológica, o conhecimento de si. Logo, o sujeito que desenvolve o cuidado de si transita necessariamente para seu próprio conhecer-se e, sendo assim, encontrará tecnologias nas quais toda sua plenitude possa ser contemplada.
O cuidado de si também passa pelo cuidado do outro, pois o outro faz com que nos repensemos, nos modifiquemos, nos examinemos, visto que dialoga conosco e traz consigo aspectos que nos fazem reconstruir a nós mesmos e a nossa vida10. Sócrates é um ilustre exemplo para demonstrar tal princípio do cuidado do outro. N’A Apologia de Sócrates, vê-se a preocupação que o filósofo tem para com os outros atenienses, procurando sempre examiná-los para que pudessem se ocupar com si mesmos.
Provocados pelo pensamento de Foucault, optamos por dar o andamento do projeto nesse registro. Passaríamos para o segundo momento do projeto com uma ação que pretendia produzir, pela presença interna, uma relação entre os participantes do projeto e a Filosofia. Associamos as reflexões de Foucault com nossa proposta de pensar o "ensino" de Filosofia como um problema propriamente filosófico, e não apenas como uma problematização abordada pedagogicamente. Sendo assim, no primeiro semestre do ano de 2011, iniciamos uma atividade que chamamos de “Oficina Jogar e Pensar”. Essa atividade tinha a intenção de problematizar a relação que os participantes tinham com si mesmos e com os outros, ou seja, almejamos materializar as noções de cuidado de si e do outro, de Foucault, e o conceito de presença, de Bárcena, sem recorrermos a métodos que reportassem à transmissão de conhecimentos. Assim, a opção por fazer uma atividade levou em conta não fazer referência alguma ao termoFilosofia,e nem mesmo buscar trabalhar a História da Filosofia com seus principais autores e temas. A ideia era vivenciar uma relação em que a Filosofia estivesse presente.
Iniciamos, assim, as ações que constituiriam os três passos para a materialização da “Oficina Jogar e pensar”. Nosso objetivo era trabalhar a relação de parceria e o diálogo entre eles para que fosse possível uma reflexão conjunta em que os participantes fossem despertados para a necessidade do cuidado de si na sua relação com o outro.
A “Oficina Jogar e pensar” contemplou as seguintes etapas: (a) após um breve diálogo, formamos duplas para iniciar as atividades; (b) no segundo momento, os educandos recortaram gravuras, desenharam e escreveram algo que estivesse relacionado a eles em seus respectivos contornos; (c) por fim, os próprios educandos comentaram a representação feita pelo outro de si mesmos no papel e, conjuntamente, refletimos sobre a atividade realizada.
Ao encerrarmos a primeira etapa da proposta, solicitamos que eles comentassem suas imagens no papel, tendo em vista as semelhanças e as diferenças de cada sujeito em relação ao grupo. Por meio dessa oficina foi possível verificar aspectos que delineavam e possibilitavam uma inflexão sobre si mesmo de tal modo que a representação do outro era problematizada. Percebemos que, apesar da diversidade cultural do grupo, um discurso se estabelecera de maneira uníssona. A grande maioria associou sua identidade a signos e símbolos disseminados pela sociedade do consumo, ou seja, imagens ligadas ao futebol, a aparelhos eletrônicos (celulares, notebooks, TVs), e ao mundo das celebridades. Um princípio de identidade fora descoberto pelo grupo, mas era necessário questionar o porquê daquele princípio, ou seja: como era possível todos projetarem sua identidade baseados em uma realidade social distinta daquela em que vivíamos?
A partir desses questionamentos, começamos a identificar elementos que destoavam do grupo: sujeitos que, apesar da repressão social e institucional, imprimiram sua personalidade e sua realidade naquele espaço coletivo. Notamos que alguns educandos desenharam e colaram armas e drogas ilícitas; especificamente, o desenho da folha da maconha era elemento básico naquele grupo dissonante. Ao questioná-los sobre aquela escrita, houve um estranho silêncio que tomou conta de todo o processo. Para nós, um problema, então, surgiu: como tratar dessa questão sem, por um lado, nos resignarmos àquilo que a instituição e a sociedade esperavam de nós, reprimindo aquilo que havia aparecido nos discursos dos participantes e, por outro, ignorar esses discursos vindos dos alunos? Estávamos em uma relação ambivalente: como tratar esse problema sem polarizar a discussão?
Frente aos novos desafios, mergulhamos no universo criado pelo filósofo francês Jacques Rancière. O autor apresenta em seu livro O mestre ignorante (2002) os problemas que advêm de um ensino que visa a transmissão de conteúdos e é amparado pela lógica explicadora. No primeiro capítulo do livro, Rancière narra a história do professor Joseph Jacotot que, exilado nos Países Baixos durante o século XIX, teria de ensinar francês para estudantes que somente falavam holandês, língua que Jacotot não conhecia. Não havia, portanto, uma língua em comum para ambos. No entanto, descobrindo uma versão de Telêmaco bilíngue, Jacotot, por meio de um intérprete, solicitou aos estudantes que lessem a obra e que aprendessem, apoiados pela tradução, o texto francês. Em seguida, mandou-os repetir sem parar o que haviam aprendido. Depois pediu para que escrevessem em francês tudo que pensavam do haviam lido. Jacotot teve uma surpresa imensa com o resultado. Sem lhes explicar a estrutura da língua francesa, os estudantes haviam apreendido as formalidades da línguas.
Degustando as palavras de Rancière, muitas questões começaram a afetar diretamente o grupo, principalmente as que tocavam a linguagem. Qual língua era preciso falar para alcançar aquelas crianças e adolescentes? Será que existia algo que correspondesse à versão bilíngue do Telêmaco que pudéssemos utilizar nesse contexto? Como romper com a lógica da transmissão e não cair em um processo formal de ensino?
Tendo como referência as reflexões de Rancière, iniciou-se um ciclo de críticas sobre as práticas desenvolvidas na “Oficina Jogar e pensar”. Questionamo-nos sobre nosso papel enquanto educadores: será que exercemos um saber-poder inconscientemente? Até que ponto as práticas exercidas nas oficinas não haviam sido imposições que aquelas crianças e adolescentes sofreram? Teria a proposta desencadeado uma aprendizagem mútua a partir das experiências e das narrativas expostas nas oficinas, ou foram apenas simulacros?
Percebemos que a forma como se trata o conhecimento na relação de ensino/aprendizagem a partir de uma lógica explicadora, coloca o professor - aquele que sabe e detém o conhecimento - em uma relação de superioridade ao aluno, que não sabe e necessita da “sabedoria” do professor para sair do estado de ignorância. No limite, desconsidera as experiências e o conhecimento pessoal do educando, necessitando de novas estratégias de abordagem.
A partir do trabalho prático, outras questões foram levantadas. Notamos uma falta de sentido, para alguns, naquilo que estavam realizando. A partir de Gumbrecht (2010), denominamos esse fenômeno como produção de ausência, ou seja, o indivíduo não vê sentido em desempenhar qualquer atividade sem que exista uma razão própria para ser feita, o que o leva a se ausentar na reflexão sobre a proposta.
Frente a essas novas evidências, questionamo-nos sobre a “Oficina Jogar e pensar”. Será que os sujeitos somente executaram aquela atividade porque havíamos “ordenado”? Para sanar essa dúvida, uma grande reunião com as crianças e adolescentes revelou-nos o inevitável. Muitos sujeitos daquele grupo só executaram aquela atividade porque os professores haviam pedido e, para a grande maioria deles, o significado da oficina era mecânico. Só existiu um significado no final da atividade, quando os elementos gráficos foram debatidos coletivamente.
O padrão discursivo desvelava o processo de institucionalização daquelas crianças e adolescentes. Quando questionamos o “porquê” eles haviam executado aquelas atividades durante todo um semestre sem ao menos questionarem a finalidade daquilo tudo, a resposta surgiu com a mesma agressividade dos nossos atos. “Porque vocês mandaram”. Voltávamos, então, à estaca zero. Isso porque não havíamos percebido um elemento básicos: aqueles indivíduos cresceram em instituições educacionais e projetos sociais, em sua grande maioria sobre poder-saber coercitivo, e nós éramos institucionalizados por um saber-poder acadêmico, por mais que desejássemos transvalorar os valores a partir de outra conceitografia que propõe a experiência e a Filosofia viva.
Diante desses dados, inferimos que a atividade do cuidado de si não havia sido atraente, e pior, percebemos que não havíamos atingido nosso objetivo com ela, que era levar cada um a cuidar de si mesmo. Essa constatação foi decepcionante e reveladora para o grupo. Além disso, regredimos no processo que tínhamos estabelecido até aquele momento com o grupo: saímos da presença interna e impusemos uma presença externa. Notamos que precisávamos cuidar muito mais daqueles momentos para não reproduzirmos o lugar comum pelo qual estávamos sendo formados na academia. Afinal, somos formados para sermos professores destinados aensinaralgo. Sempre se espera de nós que ensinemos algo: um conteúdo pré-determinado a ser transmitido para as crianças/ adolescentes. Esse dever de ter algo a ensinar, e não dar algo a pensar para que cada um pense por conta própria, foi uma das causas que nos levou ao regresso à institucionalização do saber e da posição de professores. Apesar de o “Projeto Barracão” ser um espaço que propõe atividades informais, a lógica que coordenava todas as ações estava submissa às disciplinas da institucionalização formal. Notamos esse ardil apenas dois semestres depois do início das atividades, após o último debate coletivo sobre a “Oficina Jogar e pensar”. Nele observamos, a partir das falas dos educandos, que maioria das atividades foi executada de forma automática, apenas porque um professor havia solicitado. Portanto, por maior que fosse a nossa vontade, a força da instituição foi muito maior que a nossa tentativa de presença. Uma inevitável questão passou, então, a povoar nosso pensamento: seria mesmo possível ensinar a Filosofia sem o recurso à transmissão de conhecimentos, apenas com a presença filosófica?
4 MAIS UM TENTATIVA DE MOVIMENTAÇÃO…
No semestre seguinte, o último movimento da sonata começou a soar. A estrutura melódica repensava a aplicabilidade da hipótese, pois o processo de reestruturação das ações implicava resolver os problemas que haviam emergido no final do semestre anterior. Alguns problemas tornaram-se evidentes naquele momento, e podem ser enunciados em três camadas distintas, mas não hierárquicas: estrutural, coletiva e institucional.
As dificuldades de ordem estrutural dizem respeito à conjuntura discursiva em que o projeto foi inserido. Como os pressupostos teóricos e práticos do projeto “Transmissão de conhecimento ou experiência no ensino da Filosofia: limites e possibilidades” já indicam no título duas realidades conflituosas (a primeira - hegemônica vigente -, transmissão de conhecimento, com fundamentos para a continuidade e para a conservação; e a segunda - microfísica -, a experiência, com pressupostos à resistência e descontinuidade), o embate foi inevitável. Este teve início no questionamento sobre a fase em que o projeto estava, ou seja, perguntamo-nos se realmente havíamos superado os processos de ambientação com os participantes do projeto Barracão.
Esse primeiro questionamento levou o grupo a identificar elementos teóricos e pragmáticos para superar essa primeira barreira. A resposta que demos foi negativa. Analisando cuidadosamente esse fenômeno, percebemos que, estruturalmente, o projeto pressupunha uma construção nas relações e nas atitudes face ao filosofar. Para isso, era necessária certa constância dos participantes que frequentavam o Barracão e do grupo de professores. Contudo, o que ficou evidente em nossa análise foi uma considerável rotatividade em ambos os grupos: os frequentadores do projeto Barracão e muitos professores que ministravam as oficinas não haviam participado do processo de ambientação desenvolvido na primeira fase do projeto. Por isso, muitas vezes a presença interna nas atividades não era alcançada. Essa demarcação inicial levou-nos à constatação da necessária manutenção de sujeitos (professores e as crianças e adolescentes), para que se pudesse produzir uma continuidade da experiência de pensamento e para que essa experiência pudesse se tornar filosófica. Infelizmente não encontramos um meio para resolver esse problema. O que vivenciamos e inferimos a partir dessa experiência foi que a continuidade por si só não possibilitava uma experiência filosófica.
A rotatividade das crianças e adolescentes, associada com o panoptismo dos educadores do projeto, aumentou nossas dificuldades no início do segundo semestre. Investigamos quais eram os desejos das crianças e adolescentes para o segundo semestre e notamos que era necessário separá-los para o desenvolvimento de atividades que atendessem às demandas específicas. Mas, ainda assim, os resultados não foram satisfatórios, pois desejávamos a participação autônoma daqueles sujeitos e eles, no entanto, não compreendiam e não se dispunham a tomar essa posição. Estavam tão mergulhados no processo institucional do automatismo que era impraticável o cooperativismo, ou uma gestão que fosse oriunda daquele grupo.
Foi nesse período que uma convergência ocorreu a partir de uma criação coletiva e horizontal, quando configuramos um cronograma para o segundo semestre, com base nos interesses de cada grupo. Decodificamos paulatinamente cada jogo de interesse e estruturamos ações práticas, que, embora nunca tivessem ocupado a centralidade em nossas atividades, foram utilizadas como contra-dispositivos para alcançarmos as experiências e as vivências filosóficas.
Diante disso, elaboramos atividades com base na “poética da transmissão” e na “estética da existência”, tendo como pano de fundo o conceito de “cuidado de si”. A partir dessa relação que Foucault nos leva a estabelecer com o cuidado e com a necessidade de se criar um estilo de vida, direcionamos nossas ações focando a poética da transmissão11, a fim de proporcionar aos educandos uma experiência de si que os levasse a pensar a sua própria vida como uma obra de arte, ou, para utilizar uma terminologia foucaultiana, como uma estética da existência12.
Durante todo um semestre, realizamos atividades que privilegiavam algo que produzisse algum efeito na relação deles com as suas próprias vidas. Assim, procuramos exibir videoclipes, trechos de documentários, pinturas e músicas. O sentido disso tudo era produzir uma relação de troca: eles nos ofereciam alguma música ou vídeo retirado da internet e nós fazíamos o mesmo. Nessas trocas de materiais, partilhávamos também nossas vivências com eles. Com isso, recriamos uma ambientação constante e reflexiva, permitindo aos participantes (crianças, adolescentes, educadores e nós mesmos) um espaço para falar sobre o que cada um pensava a respeito das obras.
Encontramos aquilo que nos faltava: a coisa em comum, o Telêmaco de Jacotot. Isso permitiu que houvesse algo que pudesse afetar a todos aqueles que estavam em contato com o objeto, de tal modo que seu pensamento fosse despertado para dar atenção, de tal forma, que seu pensamento estivesse afetado por aquele objeto em comum. Assim, nossas conversas começaram sempre a partir dos problemas que eram formulados e enunciados do contato de todos com algo que estava presente e ao alcance de todos. Isso nos levou a ter uma experiência de pensamento que pode ser entendida como uma experienciação do filosofar. Com isso, vários questionamentos foram abordados de uma maneira filosófica: Deus (onipresente e onipotente) existe ou não? O que seria a morte e por que às vezes a tememos? Como a violência interfere na comunidade? Qual o sentido do crime? Qual é (se houver) a diferença entre os gêneros masculino e feminino? Além disso, foram levantadas questões sobre a sexualidade e outros temas.
Durante as discussões, nossa postura foi guiada pela figura de Sócrates. Tentávamos, como o Filósofo, ser o mais atentos possível ao outro e aos problemas que o afetam, sugerindo caminhos e indagando seus pressupostos. Nesse sentido, houve o emprego de linguagens que se aproximavam mais do contexto deles. Com essa atividade, percebemos que as experiências anteriores revelaram a ineficácia, do ponto de vista do dar a pensar, da expressão por vias escritas. A cultura oral fazia parte das relações sociais das quais aqueles indivíduos faziam parte e essa linguagem parecia ser quase uma exigência numa intervenção social da natureza do projeto.
A intervenção social realizada, nesse sentido, proporcionou um diálogo da academia com a realidade em que se insere. Tomar contato com o conhecimento, não apenas na dimensão teórica, mas também na forma empírica, contribuiu com o processo de formação intelectual de todos os indivíduos envolvidos no processo. Ao buscarmos compreender com quem dialogávamos, isto é, ao relativizarmos nosso ponto de vista na experiência, houve uma abertura de possibilidades de reflexão13.
A essa altura do trabalho e da escrita deste texto, retornamos à questão inicial do projeto: seria possível ensinar a Filosofia sem a transmissão de conhecimentos e sem explicações? A resposta mais prudente para tal questão seria o talvez. Podemos dizer com segurança apenas que tentamos a todo o tempo ensaiar-mo-nos na tentativa de que isso se realizasse, mas não sabemos ao certo se o realizamos. Ainda assim, podemos dizer que uma coisa é certa: fomos movidos o tempo todo a filosofar com os participantes do Barracão. Não sabemos se ensinamos algo a eles ou não, mas certamente aprendemos a filosofar com os problemas que as relações com eles nos trouxeram.
Talvez não tenhamos ensinado nada a ninguém, mas aprendemos. Aprendemos que para filosofar e pensar filosoficamente é necessário mais do que ter contato com a História da Filosofia; é necessário que o nosso pensamento seja tomado por problemas que nos obriguem a pensar (DELEUZE, 1988); é necessário, com amparo da tradição filosófica, pensarmos filosoficamente nossos problemas; mas, sobretudo, é preciso cuidar de nossos pensamentos e de nossas relações para que não as institucionalizemos e é preciso cuidar do pensamento do outro para que seu pensamento se torne filosófico.
Podemos dizer, amparados por Foucault, que cada um que cuida - de si e do outro - é movido a criar para si um estilo de vida em que o cuidado, o pensamento e o conhecimento estejam interligados em uma possibilidade de invenção de si mesmo no pensamento filosófico. Talvez este seja o lugar onde precisamos nos colocar para entender como ensinar a Filosofia de uma maneira a não institucionalizar o pensamento: um lugar onde o cuidado de si e do outro, e o cuidado com nossos próprios pensamentos e com os do outro prevaleça em relação aos conhecimentos a serem transmitidos. Melhor dizendo, onde os conhecimentos sejam experienciados em razão da criação de condições de se ter um melhor cuidado de si e do outro. Nesse sentido, podemos pensar o ensino da Filosofia como um lugar onde se aprenda a cuidar e onde se aprenda a fazer da própria vida uma obra de arte.
5 GRANDES ESFORÇOS E PEQUENAS APRENDIZAGENS
Nas intervenções realizadas pelos jovens do projeto, pudemos produzir experiência em relação ao contexto social no qual eles vivem. Sob um ponto de vista formal, as colocações feitas pelos jovens eram diferentes das que estávamos acostumados a participar no ambiente universitário. No entanto, os momentos de reflexão filosófica não foram ausentes e tampouco desprovidos de questionamentos pertinentes.
Compreendemos, para tanto, que a condição fundamental para isso foi a relação que estabelecemos desde a fase de ambientação. Compreendemos, principalmente, o próprio estabelecimento de uma relação que pudesse tanto quanto possível se distanciar da figura autoritária do educador como aquele que detém a luz do conhecimento em transmissão àqueles que dela necessitam para alcançar a maioridade em relação ao mundo.