1 INTRODUÇÃO
Os cabeçalhos das seções/subdivisões devem ser breves e claros. O texto do artigo deve ser estruturado preferencialmente contemplando os seguintes itens: introdução, método, resultados e considerações finais. Acrônimos e abreviações devem estar entre parênteses e serem precedidos de seu significado completo quando do primeiro uso no texto.
Num destes invernos, conheci em Paris, o Pesquisador e Professor Marlon Miguel. Um brasileiro que pesquisa o pensamento de Fernand Deligny (1913-1996). Neste encontro, falávamos da importância deste autor para os estudos em educação. E, também comentávamos que no Brasil, não tínhamos ou pouco temos acesso aos estudos dele. Pensamos esta entrevista como um disparador de algumas ideias do autor, ainda pouco estudado nas pesquisas no Brasil.
Então, o Professor Marlon, atualmente tem se dedicado com pesquisas entre a filosofia, a arte, a educação, a clínica e a antropologia na Université Paris 8 e desde janeiro de 2020 no Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa (CFCUL), além de ser pesquisador afiliado ao Institute for Cultural Inquiry (ICI), em Berlim. Diante do trabalho de pesquisa do Professor Marlon, organizamos essa entrevista sobre o pensador Fernand Deligny. Tomamos essa entrevista como uma certa força de combate político e intelectual contra as formas mais conservadoras e reacionárias, que, muitas vezes, ainda investem o autismo enquanto uma identidade de um tipo de deficiência.
Abordamos na entrevista do educador e do pensador francês Fernand Deligny (1913- 1996) - que preferia ser chamado de “escritor e de etólogo”. Ele produziu uma obra inclassificável, no cruzamento entre os campos da filosofia, da educação, da arte, do cinema e da literatura. Sua obra é composta por: desenhos, fotos, filmes, vídeos, poemas, diários, artigos, livros, cartas, fragmentos de textos, entrevistas e mapas. Dedicou sua vida e obra a experiências junto com crianças e jovens desviantes, delinquentes e autistas, extraindo uma experiência de vida autística.
A entrevista foi elaborada a partir de três partes, a primeira foi intitulada “Três linhas da obra de Deligny”; a segunda, “Escrita”; e a terceira, “Educação”.
Parte I: Três linhas da obra de Deligny
Sônia - Conta, como chegou ao pensamento de Fernand Deligny?
Marlon - Eu conheci o pensamento de Deligny quando estava fazendo o meu mestrado, e mais especificamente em um grupo que surgiu na França em 2009. Tínhamos formado um grupo autogerado de militantes e pesquisadores chamado “Emancipação” após os Projetos de Reforma Universitária (LRU). Nós organizamos um encontro em torno do Deligny em um momento em que nos debruçávamos sobre questões de educação popular. Deligny nos foi apresentado por uma participante, Flavie Lupi, que estava fazendo mestrado com o professor Bertrand Ogilvie3, da Université Paris 8 e que escrevera alguns textos sobre o autor. Discutimos sobre Deligny a partir de elementos que ela trouxe e também a partir de trechos dos seus filmes, em especial, do filme Ce gamin, là4. Então, o meu primeiro contato sobre Fernand Deligny foi através da imagem, dos filmes. Foi muito impressionante ver a relação estabelecida com as crianças autistas. Naquela época, 2008-2009, era completamente desconhecido o trabalho dele, o trabalho na região de Cévennes5. Foi uma espécie de primeiro encantamento através da imagem, e aí depois, muito depois, anos depois, é que eu fui realmente começar a estudar isso seriamente, ler os textos, ir atrás do pouco de bibliografia crítica que existia e estudar o trabalho dele. Mas meu primeiro contato foi através da imagem, em especial através do filme Ce gamin, là.
Sônia - Como que Deligny se torna investigação em sua tese À La marge et hors-champ: l’humain dans la pensée de Fernand Deligny (MIGUEL, 2016)
Marlon - Eu elaborei inicialmente um projeto sobre Deleuze, Guattari, Guimarães Rosa e mais especificamente sobre o conceito de “língua menor”. Mas, como eu tinha conhecido a obra de Deligny a partir do filme Ce gamin, là, fui incentivado pela minha orientadora Catherine Perret6 e pelo grupo de pesquisa da minha École doctorale na Paris 8 (Ecole Doctorale Esthétique, Sciences et Technologies des Arts) a assumir este autor na tese em vez de trabalhar com autores já tão conhecidos (os franceses, o filósofo Gilles Deleuze (1925-1995) e o psicanalista Félix Guattari (1930-1992) ou desconhecidos na França (o escritor brasileiro Guimarães Rosa (1908-1967). Então, comecei a ler, explorar mais os textos dele, percebi que de fato seria a oportunidade de trabalhar com esse conceito de “língua menor” em um autor específico. Este pensador construiu de fato uma língua muito particular, uma espécie de “brecha”.
Sônia - Pelo que eu li na introdução da sua tese intitulada À la marge et hors-champ: l’humain dans la pensée de Fernand Deligny (MIGUEL, 2016), sobre o material do arquivo sobre Deligny, este é disperso. Tu escreves no início da sua tese o percurso para chegar ao material de Deligny. É importante contares para nós, pesquisadores, como tu chegastes aos materiais. E, hoje, onde está este material e o arquivo dele? Podes, também, falar da questão do arquivo de Deligny e a relação com o grupo de Cévennes? Por que o arquivo está em nome do autor Deligny? Ou seja, centrado na pessoa dele, questiono isto, porque sabemos que toda a produção de Cévennes é a de um grupo, não? Este grupo, arrisco afirmar, que funcionava e funciona próximo a um grupelho7. Eu os sinto, em Cévennes, funcionando como um grupelho. Então, assim, no arquivo, constam dados e documentos de uma experiência não somente em torno deste autor, mas de um funcionamento de pessoas. Podes nos falares da tensão que se passa quando se marca a identidade do arquivo do que se passava em Cévennes, somente a Deligny?
Marlon - Eu comecei a estudar o Deligny, na verdade, pelo livro L'Arachnéen et autres textes8. Justamente é o livro publicado no Brasil, em 2015, com o título O aracniano e outros textos9. O que eu acho que na verdade é um texto muito difícil e complicado de começar, não é uma boa entrada na leitura deste autor. Neste livro, constam textos mais conceituais de 1978- 1980. Mas eu cheguei primeiro através deste livro. Apesar de complicado e bastante misterioso do ponto de vista mais prático do seu trabalho, fiquei encantado com os textos deste livro; realmente tem um trabalho conceitual muito forte e um sistema de pensamento muito bem definido. Então, em seguida, comprei o livro Fernand Deligny. Œuvres10. O livro faz um percurso da obra de Deligny, desde os primeiros textos de 1938 até, quase o último texto dele, escrito em 1993. Este livro me permitiu ter uma visão de conjunto, de boa parte de suas obras. Mais tarde, tive a oportunidade de ir a Cévennes. O objetivo inicial das idas para Cévennes era terminar o trabalho de organização dos arquivos de Deligny, que morrera em 1996. Uma primeira parte do trabalho de organização dos arquivos tinha sido feito, a partir de 1998 até 2007 por Jacques Allaire11, mas de maneira bastante superficial. Nesse período, alguns textos inéditos foram encontrados e incluídos nas Obras - que são, na realidade, obras incompletas. É preciso notar, em primeiro lugar, que grande parte do que está nas Obras são textos que já tinham sido publicados; têm poucos textos realmente inéditos. O trabalho muito importante de edição feito por Sandra Alvarez de Toledo, da editora L’Arachnéen12, aproveitou de certos achados dessa primeira organização, mas foi sobretudo então uma edição que dava conta pela primeira vez do conjunto da obra de Deligny.
O meu trabalho quando cheguei em Cévennes, junto com uma outra brasileira, a Noelle Resende13, era terminar a organização do que não havia sido arquivado. Tínhamos como objetivo selecionar os textos inéditos e já publicados, encontrar um método de classificação, etc. Os documentos que encontramos no arquivo eram compostos de muitas correspondências, de trabalhos preparatórios para muitos textos - publicados ou não -, versões diferentes de textos e vários textos completos inéditos. Nossa tarefa era então finalizar a organização dos materiais dele no arquivo e enviá-los para o Institut de Mémoires de l’Édition Contemporaine14(IMEC). É neste Instituto que o material sobre ele pode ser consultado, é lá que esses documentos se encontram hoje disponíveis para consulta do público.
Noelle e eu chegamos em Cévennes pela primeira vez em setembro de 2014 e nos deparamos com um material muito vasto e em um estado completamente caótico. Tinha assim, mais ou menos, trinta caixas que já haviam sido enviadas para o IMEC. E, também, restavam em torno de mais ou menos mais trinta caixas para organizarmos. Mas não havia somente textos. Encontramos também desenhos, imagens, fotografias, mapas e correspondências. Tinha um material bastante vasto e uma parte permanecia intocada desde a morte do Deligny. Fomos a Cévennes seis vezes, por períodos mais ou menos longos, para organizarmos os documentos em arquivos e tentarmos encontrar uma lógica interna para a organização dos textos. Nós elaboramos uma divisão cronológica e temática dos materiais de Deligny e o enviamos para o IMEC. Assim, constituímos uma primeira versão de um fundo que se encontra agora disponível, embora bastante caótico porque juntamos um material que era às vezes duplicado, às vezes complementar, espalhado em dezenas de caixas diferentes. Uma segunda etapa do trabalho está em curso. Junto com uma outra pesquisadora, Marina Vidal Naquet15, estou finalizando a organização definitiva desse material unificando os dois envios feitos16.
Durante a organização, nós rapidamente nos demos conta de que o relevante nestes documentos e materiais que estavam em Cévennes era que, embora fosse o Deligny que estivesse escrevendo os textos, eles eram completamente habitados por todas as vozes daquelas pessoas que viveram ali em Cévennes. Os textos e materiais, produzidos durante quase trinta anos, são parte da vida das crianças autistas e das outras presenças próximas, os “cuidadores” das crianças. Esse ponto é na verdade determinante para entendermos a obra e a escrita de Deligny. Há um grande perigo ao se instituir tudo o que se passa e se passou em Cévennes unicamente no nome “Deligny”. Tivemos certamente que englobar estas vozes em um nome próprio único: “Deligny”. Mas este perigo a gente descobriu, também, rapidamente lendo todas as séries de textos e documentos onde o próprio Deligny relatava sua preocupação. Em vários textos, ele expressa este cuidado com a composição de vozes na produção do que se passava em Cévennes. Penso, em especial, em um texto até pouco tempo inédito que encontramos, que foi editado pela primeira vez, aqui no Brasil na revista Ao Largo, e em seguida publicado também na reedição das Obras, na França no fim do 2017: O homem sem convicções17. Nesse texto, Deligny justamente faz toda uma crítica ao nome próprio e do seu nome próprio na assinatura do trabalho e da produção desse vasto material “aracniano”. Uma preocupação que ele manifesta afirmando não ser o representante de todas estas vozes que compõem a rede e que por isso, não queria que elas - as vozes - fossem absorvidas segundo ou a partir do nome próprio “Deligny”.
Sônia - Ele não queria ser um nome maior.
Marlon - Não queria se tornar um nome maior, uma entidade “maiúscula” como a Justiça, a Democracia, a Liberdade, como diz nesse texto, O homem sem convicções. Mas o nome “Deligny” deveria de algum modo dar conta deste “corpo comum”, deste coletivo de pessoas que trabalhavam em um funcionamento “aracniano”. É interessante como esse ponto se vê na própria escrita do Deligny. Ele escreve dia após dia, todas as manhãs em Cévennes, na pequena casa onde vive. Ele tem um contato constante com vários personagens, não somente as presenças próximas, mas também, com editores, psicanalistas, filósofos, sociólogos, cineastas e intelectuais da época. Muitos deles vêm conversar com Deligny, debatem sobre os textos escritos por ele. Tem muitos personagens nesta escrita de Deligny, na verdade todos eles têm um papel determinante. Por exemplo, Isaac Joseph, que é sociólogo; mais tarde tem o Jean-Michel Chaumont18 que é filósofo; tem também um dos editores dele, o Émile Copfermann19; todos esses personagens estão dialogando e trabalhando diretamente com Deligny na construção dos textos. Estas pessoas fazem, por exemplo, a distribuição de parágrafos dos textos, outras, por vezes, fazem cortes em textos. Eles perguntam coisas e lançam problemas, ou interrogam Deligny sobre certas questões, de modo que ele trabalhe sobre essas questões. Enfim, todos eles - as presenças próximas, os intelectuais e os diferentes interlocutores - são determinantes na elaboração dos materiais e dos textos. Eles são tão determinantes quanto o autor Deligny. Então, penso que a institucionalização de Deligny, de seus arquivos, deriva do fato de que se trata de um verdadeiro autor, com um estilo de escrita muito forte. Mas é preciso sempre lembrar: ele estava completamente contaminado por essas figuras que viviam em torno dele e que habitam o seu texto.
Ainda para complementar o argumento, alguns dos livros dele mostram bem essa posição. Por exemplo, os Cahiers de l’immuable (1975) e o próprio Nous et l’innocent (1975), mas sobretudo os três números dos Cahiers de l’immuable (1975 -1976). Eles são uma síntese de documentos contendo textos de Deligny, textos dos chamados vizinhos ou “passantes”, textos, mapas, fotos e diários das “presenças próximas”, ou mesmo, de outras pessoas de fora de Cévennes, como psicanalistas militantes e filósofos. Esses cadernos são uma síntese do que se passava em Cévennes. Na época, houve justamente uma forte discussão sobre o tema da autoria do material. No momento da publicação dos Cahiers (Cadernos), houve um conflito em relação a essa publicação. Os Cahiers eram editados por Félix Guattari na Revue Recherches e este queria o nome de Deligny estampado na capa como autor. Deligny, não queria que fosse o seu nome que aparecesse na capa, mas é o nome dele que acabou aparecendo.
Sônia - Já tinha essa tensão?
Marlon - Então, já tem uma tensão que é muito interessante. E, é obvio! Porque eles queriam o Deligny. Ele já tinha uma trajetória enorme, já era uma figura conhecida, isto chamaria mais a atenção do público. Mas esse conflito revela a tensão entre a absorção do coletivo no nome próprio do Deligny e a produção realmente coletiva em Cévennes.
Sônia - Eu acho esta tensão importante, e estou falando como pesquisadora. Como pesquisadora que investiga o pensamento de Deligny, sempre devemos tensionar o “coletivo no nome próprio do Deligny e a produção realmente coletiva em Cévennes”. Vejo como uma situação que tangencia as pesquisas, quando se pensa com Deligny e as produções das presenças próximas ou passantes, não?
Marlon - A questão da autoria tem que ser problematizada, por exemplo, os mapas. Eles não são, nunca foram, nenhum mapa foi feito pelo Deligny. Os mapas são traçados por todos aqueles que viveram lá com ele, e vivem ainda, em Cévennes, “as presenças próximas”. As fotografias tampouco foram feitas pelo Deligny, os filmes tampouco foram feitos pelo Deligny. Existe a autoria do Deligny nestes materiais enquanto, digamos, “propositor dos dispositivos”; e em seguida a autoria dos textos, que são muito ricos, têm um estilo muito forte, mas estes textos também são um trabalho sobre e a partir de todos estes materiais que não são de autoria do Deligny.
Sônia - A própria produção do Deligny é um funcionamento em rizoma20, não tem como. Um funcionamento de rizoma como é o trabalho de Cévennes não pode estar centralizando numa pessoa, essa tensão...
Marlon - É a rede. Justamente Noelle e eu encontramos um texto inédito que seria talvez para um quarto Cahier de l’immuable, nunca finalizado, em que ele aceita a “coincidência”, a ressonância entre “rede” e “rizoma”. Mas há um conflito intelectual entre Deleuze & Guattari e Deligny que não é simples. Por isso, precisamos ter cuidado com essas aproximações, é preciso considerar com rigor as aproximações conceituais que existem entre esses autores.
Sônia - Bom, voltando a sua tese À la marge et hors-champ (MIGUEL, 2016). Nela, dividiste em três (3) movimentos o trabalho de Deligny. Podes falar deles, como e porque os dividiu?
Marlon - Existem três movimentos na tese - uma parte mais histórico-sócio-política, uma parte sobre as práticas em Cévennes e uma parte sobre o pensamento propriamente filosófico de Deligny. Em relação aos movimentos da trajetória de Deligny, penso que ele próprio reconhece dois grandes momentos na vida dele, um que seria um momento mais propriamente institucional e um outro, em que há um movimento que é para fora da instituição. Na tese, eu vejo esses dois movimentos se desdobrarem, na verdade, em três grandes períodos bem claros:
1. Um primeiro período que é mais propriamente institucional, no sentido em que o Deligny está trabalhando dentro da Instituição e mesmo dentro das principais instituições de Estado ligadas ao problema da juventude “inadaptada”, como começou a ser chamado esse público, com a qual ele trabalhava desde o fim dos anos 1930, a partir de 1943 em meio à Ocupação de Vichy21. Este é o período em que ele passa pela instituição escolar - ele trabalha antes da guerra, em escolas, em classes especiais - e em seguida vai trabalhar em um asilo psiquiátrico. Trata-se do asilo psiquiátrico d’Armentières22, perto de Lille, onde ele vai trabalhar em especial no pavilhão 3, o de crianças e jovens ditos inadaptados. No fim da guerra, ele vai trabalhar em um Centro de Observação e de Triagem (COT), que é um centro de reinserção social. Pelo Centro passavam jovens, a maior parte delinquente. Eles permaneciam nesse Centro por certo período, algumas poucas semanas, alguns poucos meses, antes de uma decisão judicial, de uma decisão definitiva em relação ao destino destes jovens. Neste período, Deligny tem, sem dúvida, uma relação muito ambígua com a Instituição. Ele está trabalhando diretamente dentro da Instituição, mas eu digo ambígua porque está sempre procurando de alguma forma criar brechas para desestruturar o funcionamento interno dessas instituições - quase como se ele quisesse boicotá-las ou sabotá-las. Ele está, neste momento, muito próximo de várias questões, vários problemas colocados pela educação popular ou métodos de pedagogia moderna, com Célestin Freinet23 (1886-1986). Ele quer que as crianças façam atividades fora da escola; a mesma coisa acontece no asilo: ele quer sair com os pacientes do asilo psiquiátrico, ele quer fazer atividades com os jovens fora dos asilos, criar ateliês de costura, de artesanato. Enfim, nos anos 40, imagina, é o começo de tudo isso! É próximo do que estava acontecendo ao mesmo tempo em Saint Alban24, que é a grande instituição percursora da psicoterapia institucional. O que ele está tentando é uma desestruturação da forma clássica do funcionamento do asilo. Mas a diferença de atuação é que Deligny não quer fazer de sua atuação no asilo um programa, como em Saint Alban, que tinha o objetivo de fazer experimentações de um programa da antipsiquiatria, da psicoterapia institucional. Deligny, neste período é muito claro em relação ao seu trabalho no asilo. Seu trabalho não é parte de um programa, ele faz “tentativas25”. Ele vai definir mais tarde esta experiência como tentativas de “brechas” institucionais, ou seja, de desestruturação do funcionamento institucional da época. E, para ele, a tentativa de desestruturação institucional não pode se tornar um modelo de um novo tipo de instituição. Este posicionamento do trabalho de Deligny vai se intensificar muito mais tarde na posição de um lugar fora ou à margem da Instituição.
2. Depois da tentativa no Centro de Observação e Triagem de Lille, começaria então o que eu chamaria de o segundo grande período de sua trajetória, o da rede La Grande Cordée - literalmente “A grande cordada”, que é um termo de alpinismo designando a ligação por uma corda entre vários montanhistas. Trata-se de uma rede formada sobretudo com jovens delinquentes. Deligny e nomes como Henri Wallon26 (1879-1962) e Louis Le Guillant 27(1900- 1968) fundaram essa rede com apoio do Partido Comunista Francês. Eles tentavam encontrar possibilidades para os jovens sobreviverem, reencontrarem um prazer na vida e fazer alguma coisa com a vida deles. E a própria La Grande Cordée tem duas fases. A primeira fase entre 1948 e 1952/1953 tem uma forma institucional mais cristalizada. Eles dependem de serviços ligados ao Estado, dependem da seguridade social francesa, recebem dinheiro da seguridade social para poder pagar os estágios junto com os jovens. E há uma segunda fase, a partir de 1953, quando eles perdem todos os benefícios públicos e saem de Paris. Eles entram em um período propriamente fora da Instituição. Eles não têm mais os benefícios do Estado e entram em uma espécie de processo nômade. Eles viajam pela França, em um pequeno grupo junto com os jovens delinquentes, organizando formas de trabalho, tais como: elaboração de cineclubes, reconstrução e reforma de casas, ateliês de filmagem, criação de cabras e produção de leite, de queijo, de pão, etc. Já se aproximam do que mais tarde vai acontecer em Cévennes. O período da La Grande Cordée é de transição. Há já nesse momento, por parte de Deligny, uma desconfiança em relação ao trabalho - à moral do trabalho - e às instituições ditas de “reinserção”. Ao longo dos anos, a rede da La Grande Cordée vai se afastar progressivamente do Estado.
O fim da La Grande Cordée vai marcar uma cesura no trabalho de Deligny. Depois da filmagem de Le moindre geste (1962-1965), Deligny irá para a clínica de La Borde e é lá que vai conhecer o garoto autista que era chamava pelo nome de Janmari28. Cansado com o trabalho feito em La Borde, resolve partir e começa em seguida o último grande período de sua trajetória. Ele se instala então junto com outros, em 1967, em Cévennes, para a tentativa junto a crianças autistas mudas.
3. Então, são três (3) momentos na trajetória de Deligny (MIGUEL, 2016) que a gente compreende bem. E dois movimentos, um dentro e um outro fora da Instituição. É no terceiro momento, em Cévennes, fora da instituição, que sua produção vai sofrer uma transformação intelectual e teórica importante; um novo estilo vai surgir nos textos dele. E o contato dele com o autismo é determinante. A partir do momento em que ele conhece o Janmari ou, se quisermos remontar ao começo de sua preocupação mais fina com a linguagem, a partir já do momento em que ele conhece Yves, que é o personagem principal do primeiro filme, Le moindre geste. Mas de toda a forma, é sobretudo o contato dele com o Janmari que é determinante, que vai revelar um impasse, dentro da linguagem e ele vai ter que buscar um novo tipo de linguagem para dar conta um pouco da experiência da ausência de linguagem da mudez ou da experiência não verbal. Não é toa, que em carta a François Truffaut29 (1932- 1984), Deligny diz que Janmari seria seu grande “maître à penser”. A partir de 1967, tem de fato uma transformação enorme no texto de Deligny, no estilo do texto dele. Têm os textos que foram traduzidos para o português, o livro O aracniano (2015), mas também os textos anteriores do início dos anos 70. Neste livro vemos bem, em todo o caso, a língua, que poderíamos chamar de “língua menor”; é uma língua muito estranha, com transformações sintáticas, gramaticais, aberrantes em relação ao francês normalizado, oficial.
Sônia - A que tu estás falando não é uma periodização, mas são experimentações que movimentam diferentes linhas do pensamento de Deligny. É muito produtivo pensar por tentativas?
Marlon - Claro. A experimentação dele em relação à linguagem, mas em relação à Instituição, e em relação a todos os encontros que ele vai viver ao longo dos três períodos. Quer dizer, nós temos que levar a sério a ideia de encontro. O encontro dele com o Janmari é de fato determinante para produção intelectual e teórica dele. É o contato com esse garoto mudo que vai forçar uma reorganização da sua escrita, do seu pensamento.
Mas tem uma coisa que eu falei sobre a passagem de Deligny, dentro da Instituição ou fora dela, que eu gostaria de precisar. O que se passou também tem a ver com o contexto histórico, francês e europeu, na época. Deligny estava trabalhando dentro da Instituição, ele também acreditava que era possível um funcionamento diferente das instituições. O que acontece a partir de 1943, em seguida a partir de 1945 e enfim em 1948 (quando os comunistas saem do poder), vai reestruturar um pouco a questão e o seu posicionamento. Então, é preciso lembrar, que em 1943, eles estão no meio do governo fascista de Vichy. É ali que começam todas as grandes reformas em relação à juventude e à juventude dita “inadaptada” pelas instituições e que vão ser intensificadas depois da guerra, em 1945 e a partir de 1948. Há uma importante transformação quando surge o conceito de “infância inadaptada”, há uma transformação nas instituições que vão trabalhar cada vez mais com um modelo dito inclusivo, e não mais com o modelo de exclusão. Mas o inclusivo é concebido de uma forma extremamente violenta, como reaproveitamento “eficaz” de mão de obra. Para Deligny, essa reestruturação é uma forma de funcionamento que torna o trabalho na Instituição completamente inviável. Você vai forçar a inclusão destes “incapacitados” a partir da capacidade de produzir resultados eficazes para a sociedade, ou seja, produzir bons resultados escolares, produzir bons resultados no trabalho, em suma, produzir uma classe trabalhadora dócil e eficaz. A única coisa que interessa é, portanto, a “eficácia” desses jovens em uma sociedade cada vez mais capitalista. Um trabalho de fundo com essa “inadaptação” não faz parte do projeto dessa reestruturação. E o combate conduzido por figuras como Deligny, Guillant, Wallon; os comunistas, por uma crítica social como âncora do debate sobre a “inadaptação”, será perdido. É essa transformação histórica que forçará Deligny a sair progressivamente da Instituição. A noção de “eficácia”, a intensificação do capitalismo liberal ditando as políticas institucionais é o grande problema impedindo que ele trabalhe dentro da Instituição.
Parte II: Escrita
Sônia - Tu começaste a falar da questão da linguagem. A linguagem e o encontro com a experiência autística. Essa experiência, faz com que ele mude o processo de escrita, faz com que ele também se depare com outro processo, uma outra produção de investigação da linguagem. A linguagem é o traçar?
Marlon − Quando Deligny encontra com Janmari, em 1966, mais precisamente, na época em que está em La Borde, ele nunca tinha tido uma experiência tão próxima com o autismo. Ele tinha tratado crianças com traços psicóticos, mas nunca tinha tido contato com um grau de autismo tão severo. O Janmari tem nesse momento 12 anos, ele é mudo, tem estereotipias bem acentuadas e autodestrutivas. Isto de certo modo causa um espanto, acho que “espanto” seria a palavra certa, para Deligny. Este espanto vai forçá-lo de algum modo a trabalhar com o autismo severo, que obviamente não vai ser um trabalho baseado no verbo, já que a linguagem verbal é completamente inexistente neste tipo de autismo. Para Janmari, a linguagem verbal é inexistente. O uso dela não tem eficácia e ela é mesmo nociva para este tipo de criança autista. Então eu acho que esse encontro com a experiência dos autistas faz com que ele queira ir buscar outras pistas. Neste momento, ele vai escrever um texto muito interessante chamado “Uma linguagem não-verbal”, publicado nos Cahiers de la Fgéri30(1967).
Mas a questão não é simples, tem uma ambiguidade nos textos do Deligny em relação à linguagem. Ele sempre escreve que as crianças autistas não possuem acesso à palavra, que elas vivem na vacância da linguagem. “Linguagem” significa aqui então a palavra, o verbo, o discurso, ou seja, o que ele quer dizer é que essas crianças não estão inscritas no discurso. Ele percebe, no entanto, que embora elas não estejam inscritas no discurso, existem outras formas de linguagem que aparecem entre elas, como o traçar, por exemplo. As crianças autistas traçam. Janmari pode passar dias, semanas, meses, traçando os mesmos círculos ou quase-círculos, quase iguais, infinitamente. Existe, portanto, algum tipo de manifestação de algo que me parece ser uma linguagem. Há nos textos de Deligny essa ambiguidade, porque ele recusa bastante o termo “linguagem”. Em alguns momentos, ele parece aceitar que existe algum tipo de linguagem, em outros momentos, não. No entanto, o traçar é certamente um tipo de linguagem. Há duas coisas aí: por um lado ele vai desenvolver um trabalho, uma reflexão em torno do traçar, de que tipo de linguagem é essa e de que tipo de função tem esse traçar para as crianças autistas. Em seguida, ele vai buscar um tipo de escrita que incorpore também esse traçar. Por isso ele escreve tanto. Quando nós chegamos nos arquivos em Cévennes, encontramos uma quantidade absurda de textos que ele escreveu e reescreveu. Ele escrevia e reescrevia incessantemente os mesmos textos, com micro variações ou, simplesmente recopiava os mesmos textos. Sua produção é incessante, colossal, e a gente percebe como ele incorpora um pouco essa ideia de traçar. Ele escreve por escrever. Ele escreve mesmo sem ter algo a dizer, está escrevendo simplesmente, como se escrever se tornasse um modo de vida. É como o autista que traça. E isso ao ponto que, como eu dizia no começo, os interlocutores, os editores, se tornam importantes, porque nessa produção gigantesca, alguém tem que vir, intervir e organizar estes escritos de modo que eles tomem uma forma publicável. O Jean-Michel Chaumont, que trabalhou e editou alguns livros do Deligny, me disse justamente isto, que o Deligny escrevia como uma torneira aberta, era uma água, um fluxo, que seguia correndo, até que alguém viesse e a fechasse. Há algo, também, bastante obsessivo no modo como ele escreve e que de alguma forma diz respeito a este escrever-traçar.
Penso que o ponto principal, em relação à linguagem e a crítica à linguagem, é que o Deligny começa a desconfiar progressivamente desta linguagem que é simplesmente um veículo de comunicação. Como se houvesse uma espécie de incisão ou de barreira entre dois sujeitos e como se a linguagem, simplesmente vinculada como informação, não permitisse a passagem entre esses dois, digamos, sujeitos, ou mais sujeitos. Então, para dar conta da experiência junto aos autistas, ele passa a ter que buscar outras formas de linguagem. Obviamente a linguagem poética ou uma linguagem que produza torções dentro da linguagem vai permitir que ele, de alguma forma, possa transmitir a experiência que está vivendo em Cévennes, junto com os autistas. Tem uma anedota interessante, que é, por exemplo, o filme Ce gamin, là, que é coproduzido pelo Truffaut. A primeira montagem do filme não tinha texto, não tinha a voz-off do Deligny. Truffaut pede para Deligny escrever um texto que funcionaria como uma narração do filme, como uma legenda do filme. Truffaut desejava um filme “didático” sobre a tentativa em Cévennes. Deligny aceita apenas em parte a comanda. Em vez de fazer um texto explicativo ou narrativo, como queria Truffaut, ele escreve um texto poético, que entra, sem dúvida, em conexão com as imagens, mas sem, no entanto, explicá-las. Quer dizer que Deligny aceita a comanda de fazer o texto, mas, ao mesmo tempo, ele desfaz a comanda, a esquiva, no sentido em que o texto não está no filme para explicar o que está acontecendo nas imagens. Eu penso que é nisto que o Deligny acredita, que somente esta outra forma de linguagem pode de alguma forma transmitir o que acontece nas aires de séjour31. Então, eu acho que a investigação da linguagem dele tem a ver também com uma busca de transmissão da experiência. Mas o lugar da transmissão vai se dar em um lugar onde a linguagem ordinária se desfaz.
Sônia - Vamos continuar falando de linguagem ou de outra semiótica. Deleuze e Guattari, principalmente no livro Mil Platôs (1995), citam Deligny e a experiência da elaboração dos mapas. No livro de Guattari, Lignes de fuite (1995) é explicito o conceito de semiótica em rizoma e a questão do estruturalismo. Então não sei se podes aproximar este conceito, com Deligny e a linguagem?
Marlon - Eu penso que sim. Nós podemos chamar está escrita que Deligny inventou como parte de uma outra semiótica, que não é propriamente uma semiótica da significação em stricto sensu, ou tampouco da informação. Sim, é completamente viável a aproximação. Em primeiro lugar, a questão é entender como a escrita dele é feita a partir de materiais. Como já disse antes, de materiais que não são materiais feitos por ele. Trata-se de uma escrita atravessada por materiais, que vem, por exemplo, se a gente quiser usar um vocabulário filosófico, de um fora. É uma escrita atravessada por materiais que são, em primeiro lugar e sobretudo, as cartografias traçadas pelas presenças próximas. Mas há também os chamados diários do “costumeiro”, que são os diversos diários, que chegam ao Deligny, produzidos pelas presenças próximas32 nas diversas áreas de convivência; ou ainda as fotos, os filmes, as imagens dos filmes. Quer dizer, trata-se de todos esses materiais que não são dele, mas que serão incorporados a sua escrita como materiais de reflexão e de escrita. Eles são obviamente assimilados, absorvidos e transformados segundo o seu estilo, mas é isso que faz com que se trate de uma escrita em rede - eu evito usar a palavra “rizomática” para resguardar a singularidade dessa prática e por conta da certa tensão que existe entre Deligny e Deleuze- Guattari, mas trata-se sem dúvida de um modo de escrita rizomático. Em todo caso, é uma escrita em rede no sentido que ela põe em rede esses diversos materiais e que essa escrita não seria possível sem esses diversos materiais, sem a sua relação. Então nesse sentido, ele está de fato produzindo uma outra semiótica. A questão dos mapas é também essencial. Os mapas são uma forma de expor - esta foi a palavra que eu usei constantemente na minha tese (MIGUEL, 2016) e me parece uma palavra justa. Eles buscam expor os movimentos dessas crianças: os movimentos as trajetórias, os gestos, as atitudes, os deslocamentos destas crianças em um território. Quando eu digo expor, é porque é expor mesmo. Como se faz uma exposição, como se expõe um quadro, elas não são representações. Há uma busca, nos mapas, de uma semiótica que não é representativa, porque representar uma criança como sujeito é pôr-se no lugar dela, é falar por ela. É exatamente tudo o que ele não quer, é todo o problema da linguagem para Deligny. Representar significa na verdade assimilar, ou se nós quisermos, colonizar o outro, dizer, falar, pelo outro. Os mapas tentam de alguma forma expor, dar a ver, exprimir. Nós podemos usar diversas palavras, mas que guardem essa ideia de não estar significando e interpretando o movimento destas crianças, os gestos, as atitudes, quer dizer, não está significando o que elas estão fazendo, justamente porque elas não estão em um registro discursivo. Se eles - os autistas - não se estruturaram na palavra, então, eles não se encontram em um registro propriamente da significação. A definição de “gestos para nada” ou de trajetos para nada traz essa ideia importante do “para nada” porque efetivamente as crianças autistas não significam. Ou, em todo o caso, elas não significam tal como um sujeito falante o faria. Então os mapas têm a função de expor sem significar, sem interpretar. A escrita do Deligny vai tentar de alguma forma mimetizar essa “função” dos mapas; ela vai também expor os comportamentos, mas sem nunca os interpretar - e aqui, sem dúvida, a leitura de Deleuze e Guattari vai ao ponto: não se trata, em Deligny, nunca de linguagens interpretativas. Não há nada mais distante da linguagem do Deligny que a interpretação. Assim, podemos entrar em um outro tipo de relação com estas matérias: trata- se de uma relação construtiva ou construtivista; não a interpretação desses gestos, dessas atitudes, desses comportamentos, desses deslocamentos, mas a sua exposição, a tentativa de torná-los visíveis. Então os mapas das presenças próximas e a escrita de Deligny mostram como estas crianças estão interagindo com o território ou com o “meio” - palavra muito importante para Deligny. E a partir daí, a questão será como se vai em seguida modificar este meio para trabalhar com essas crianças. Penso que essa posição muda tudo. Nós não estamos mais dizendo o que devemos fazer para as crianças, ou tampouco falando por elas. Mas estamos observando como elas estão interagindo entre elas, com um certo “Nós”, com um dado território. O que podemos fazer com elas? Tanto os mapas quanto a escrita do Deligny tentam produzir um chamado para que se faça algo com elas e assim, de fato, não estamos no registro da representação, da comunicação, etc. E eu acho que isso é o essencial, nesta outra semiótica.
Você tinha me perguntado também sobre o estruturalismo. A relação do Deligny com o estruturalismo é delicada e é igualmente ambígua. Ele tem uma interlocução importante com Lacan, por exemplo; ele retoma de Lacan diversos termos: “simbólico”, “real” e outros. Mas, sobretudo, simbólico e real. E justamente, ele vai pensar sua escrita, esta linguagem como tentando produzir um real. Embora isso seja de certo modo impossível; e essa é toda a discussão. Escrevendo, estando na linguagem, é impossível sair completamente do simbólico, mas talvez seja possível produzir algo que exponha o real - o real sendo isso que não é assimilável, o inassimilável, a coisa inassimilável, como dizia Freud. Então, a relação de Deligny com o estruturalismo vem por um lado com Lacan, por outro lado com Lévi-Strauss, que é realmente o autor que ele lia e que se baseava como um os autores teóricos fundamentais, mas também com Althusser. Os outros autores seriam Wallon, Leroi-Gourhan33 (1911-1986) e, bem mais tarde na trajetória dele, Ludwig Wittgenstein34 (1889-1951). Wallon, Claude Lévi- Strauss35 (1908-2009) e Leroi-Gourhan são realmente as três fontes teóricas das reflexões de Deligny. Ele vai trazer do estruturalismo toda uma reflexão sobre a estrutura que é tanto uma estrutura do sujeito, como uma estrutura “outra”; ele chama de “outra estrutura”, “outra gravidade” que é uma estrutura justamente não significante, aracnídea.
Sônia - Mas quando ele coloca a ideia de outra gravidade, isso me deixa muito curiosa. Ele já não estava falando mais da própria estrutura que ele estava lendo nestes autores. Eu fico com a sensação de que outra gravidade não é mais estrutura para ele?
Marlon - É. Eu não sei. É uma boa pergunta.
Sônia - As escritas de Deligny não estão classificadas em gêneros ou tipos de textos. Tem o livro Essi & Copeaux. (2005) são escritos de aforismos e fragmentos do pensamento de Deligny. Relaciono a escrita dele como um modo de escrita não formatado em significantes.
Marlon - Isto do estruturalismo é uma discussão em aberto. Em aberto dentro do próprio texto do Deligny. Ele é contraditório: certas vezes afirma que não saímos nunca da estrutura simbólica e que esse é todo o drama do sujeito - do “sujeito-que-nós-somos”, como ele fala do “homem-que-nós-somos”. Haveria então uma fissura total, absoluta entre nós, sujeitos de linguagem, e essas crianças não estruturadas pela linguagem. Em outros textos, no entanto, ele afirma que essa fissura às vezes é anulada e que há uma espécie de corpo comum que surge. O comum é de fato partilha, uma experiência comum entre esses seres não estruturados pela linguagem e os outros seres, nós, estruturados pela linguagem. Tem uma ambiguidade nos textos de Deligny, eles são contraditórios, é como se ele não tivesse chegado a uma conclusão, até por que ele não quer chegar a uma conclusão. O que existe é o que ele chama, em alguns textos, de “simbiose” ou de “bipolaridade”. Talvez essa seja a grande novidade em relação ao estruturalismo e ao pós-estruturalismo. Ou seja, que nós somos sempre seres estruturados, simbolicamente, socialmente, culturalmente, etc., etc. e etc., mas somos sempre, também, já e ao mesmo, não estruturados. Tem sempre algo que está fugindo a esta estruturação, que está além ou aquém dela - e a escrita poética é a grande prova disso. A escrita que ele inventa, quer dizer que há de fato algo que rompe, que faz explodir completamente as estruturas. Então, penso que é isso que eu guardei, digamos assim, da teorização mais potente e que traz alguma coisa nova a toda essa discussão do estruturalismo e do pós-estruturalismo. Há uma convivência e uma coexistência de uma estrutura muito forte com algo que está sempre desestruturando essa estrutura.
Parte III: Educação
Sônia - Tens mais alguma questão que queiras colocar? Tu deixas rastros para nós pesquisarmos. Penso que está entrevista potencializa rastros para pesquisa.
Marlon - Talvez tenha um ponto que eu possa precisar um pouco. É em relação à educação. No contexto Francês, o Deligny, passou muito tempo esquecido. Ele caiu em um certo esquecimento a partir do final dos anos 70. É a época justamente dos textos mais teóricos. Mas, no meio em que ele continuou sendo lido é o da educação, em particular da educação especializada. E, até hoje... Aqui, na França, o Deligny é uma referência importante para educação especializada, sobretudo por causa dos primeiros textos dele, Graine de crapule36 (2007) e Les vagabonds efficaces37 (2007). Ele virou uma referência nos meios de educação mais progressista e alternativa, como por exemplo nos Centre d'Entraînement aux Méthodes d'Éducation Active (CEMEA), que são ligados a todas essas práticas de educação ativa, pedagogia moderna e popular. Realmente se tornou ali uma certa referência, nesse meio da educação, junto com outras referências como Célestin Freinet e tantos outros. Mas agora ele começa a ser redescoberto pelas artes, pela filosofia, pela antropologia, lá onde por muito tempo ele tinha ficado esquecido. Talvez aqueles que vinham de Deleuze e Guattari lembrassem da referência, mas Deligny caiu no esquecimento e só agora está voltando a ser descoberto.
No Brasil ele não era nada conhecido, nem mesmo na educação. Ele traz uma reflexão para educação que é muito interessante e que continua presente mesmo em seus textos mais tardios. Talvez esses textos tragam reflexões para a educação até mais interessantes do que os textos dos anos 40. Enfim, não sei se mais interessantes, mas em todo o caso tão interessantes quanto. É curioso em todo o caso que na França, atualmente, ninguém da educação leia os textos mais tardios.
Deligny permanece refletindo em todos os três grandes períodos da sua trajetória sobre as experiências do asilo, da escola e das diferentes instituições sociais. Elas continuam sendo centrais mesmo em seu pensamento tardio. Ele continua voltando a elas, então a reflexão sobre a educação dele continua. E ele dá uma definição, que eu acho muito interessante do educador, que é o educador como criador de circunstancias. E eu acho que o Deligny traz uma crítica muito atual à educação no que concerne a relação com a ideia de eficácia. Qual é o funcionamento do sistema educativo a partir de um conceito de eficácia? Eficácia em produzir bons resultados escolares, na reinserção social, na capacitação do aluno. A eficácia não lhe interessa. O que o interessa é encontrar as circunstâncias que sejam favoráveis ao aluno, para que ele possa de alguma forma, desenvolver a sua potência, a sua normatividade própria, mesmo que essa não corresponda a uma produção x, y, z, que é aquela solicitada pela instituição escolar. Existe, em Deligny, um pensamento a ser explorado pelos educadores de como criar ferramentas que permitam ao aluno valorizar sua singularidade. Assim, entramos em uma outra grande palavra, a singularidade. A ideia de singularidade está muito presente nele, mas é a singularidade que depende sempre de um certo meio e de uma certa coletividade ou “corpo comum”. A coletividade é uma palavra que vai desaparecer um pouco do vocabulário dele ao longo dos anos e dará lugar progressivamente a de “comum”. Em todo o caso, a singularidade é valorizada dentro de um certo conjunto de circunstancias, pela maneira como ela é “ativada” por essas circunstâncias, ou ainda como ela é parte de um corpo comum, de um coletivo. Atualmente, quando se fala de capacitação do indivíduo ou do sujeito, o que é sublinhado é a possibilidade desse indivíduo em si, como se ele fosse um ser isolado, e nos esquecemos do seu funcionamento no interior de uma vasta coletividade. Temos aí uma questão a ser explorada: é importante dizer que o educador não está na instituição para regularizar o aprendizado, para normalizar o estudante, para torná-lo mais eficaz, mas ele está na instituição para valorizar a singularidade em relação ao corpo comum possível. A potência da imaginação, por exemplo, tão bem elaborada por Deligny, no texto Les enfants ont des oreilles (2007), é sempre uma potência a ser explorada entre o educador e o “coletivo infantil”, nunca em uma relação sujeito-sujeito (educador-aluno). O grande perigo da imaginação, diz Deligny nesse texto, é que o aluno se ponha a imaginar a (sua) história sozinho, desgarrado dessa coletividade.
Assim, fica uma referência interessante para educação, que é esse belíssimo texto escrito em 1949, Les enfant ont des oreilles (2007) e que eu gostaria que algum dia nós conseguíssemos traduzi-lo para o português. Me parece realmente muito rica essa insistência na capacidade de tecer uma espécie de imaginário, mas que só funciona se for um imaginário coletivo. A questão da coletividade é muito essencial; é ela que permite a potência dessa singularidade; é nessa tensão entre singularidade e coletividade que um trabalho pedagógico realmente interessante pode ser feito. Porque não há singularidade sem coletividade, para Deligny; somente há a ativação desta imaginação, desta potência da imaginação singular através de um coletivo que é, nesse caso, o coletivo infantil. Tem muita coisa aí, enfim... Vai ficar para uma outra vez, mas teria toda a relação do Deligny também, com o pensamento soviético de Anton Makarenko38 (1888-1939), onde não há potencialização do indivíduo sem seu correlato com o coletivo, com um aprendizado da sensibilidade que é coletivo e eu acho que isso é uma coisa interessante para nós pensarmos a educação atualmente.