1 INTRODUÇÃO
Lawrence Kohlberg (1984) fundou as bases de uma tradição de pesquisa que creditou às estruturas de juízo moral um papel preponderante na motivação das ações morais. A despeito dos avanços teórico-metodológicos logrados pela perspectiva de Kohlberg, a constatação de que indivíduos de reconhecido compromisso moral nem sempre apresentavam níveis sofisticados de juízo moral (COLBY; DAMON, 1992) e que um juízo abstrato muitas vezes não se traduzia em ação (BLASI, 1983) ou mesmo não conservava a mesma consistência quando submetido a diferentes contextos (NISAN, 1993), revelou as limitações do paradigma kohlberguiano para explicar o fenômeno da moralidade em sua complexidade.
É nesse contexto que emerge uma nova corrente de estudos no campo da Psicologia Moral, inaugurada pelos trabalhos de Augusto Blasi (1983, 1995) e William Damon (1984), e também deste último com Anne Colby (1992), que privilegia o self (ou a identidade), e não mais os juízos deontológicos como unidade de análise sobre o funcionamento moral. Segundo esses autores, a integração da moral ao self (aqui entendido como a representação que o sujeito elabora sobre si mesmo) é um aspecto fundamental do funcionamento moral e a centralidade que valores morais ocupam no self constitui um importante motivador das ações morais.
Nas últimas décadas, uma série de pesquisas tem sido desenvolvida em torno do conceito de self moral, evidenciando seu papel na motivação de ações morais (COLBY; DAMON, 1992; AQUINO et al., 2009; HERTZ; KRETTENAUER, 2016) e a maior centralidade da moral em indivíduos com intenso envolvimento em ações morais pró-sociais (COLBY; DAMON, 1992; HART; FEGLEY, 1995; FRIMER; WALKER, 2009). O funcionamento do self moral e suas relações com ações morais têm sido investigados majoritariamente com ênfase na busca de explicações sobre o papel regulatório que o primeiro componente exerce sobre o segundo, o que sugere a importância de se promover mais investigações sobre se (e como) ações morais poderiam influir na construção do self moral e em seu funcionamento (BERGMAN, 2004; CARLO; HARDY, 2011; JENNINGS; MITCHELL; HANNAH, 2015). Algumas pesquisas têm incursionado por esse campo ao explorar o papel que a realização de ações morais pode exercer sobre o self moral. O contexto privilegiado desses estudos tem sido projetos sociais desenvolvidos no âmbito escolar e universitário (PRATT et al., 2003; METZ; MCLELLAN; YOUNISS, 2003; CARLO; HARDY, 2011; COX; MCADAMS, 2012), mediante a metodologia pedagógica denominada Service-Learning, que, no contexto brasileiro, optamos por nomear Aprendizagem por Projetos Sociais (APS)3. Trata-se de uma metodologia capaz de responder ao imperativo pedagógico de contribuir com a construção de valores morais pautados nos direitos humanos e na cidadania participativa, uma vez que tem como fundamento proporcionar o engajamento dos educandos com projetos de intervenção sobre problemas sociais ou ambientais.
O objetivo do presente estudo é explorar se a participação de jovens em ações morais, no contexto da metodologia da APS, pode favorecer a integração de conteúdos morais às suas representações de si4. Para tanto, após breve discussão sobre o processo de integração da moral ao self e sobre o conceito de APS, serão apresentados e analisados dados de uma pesquisa qualitativa longitudinal realizada com 19 jovens do sexo feminino, protagonistas de dois projetos sociais desenvolvidos em uma escola particular de São Paulo.
2 INTEGRAÇÃO DA MORAL AO SELF
Segundo Damon (1984), moral e self são sistemas conceituais distintos, que se encontram pouco coordenados, de modo sistemático e consciente, até o início da adolescência, período em que passa a ocorrer uma maior (ou relativa) integração e influência recíprocas entre tais sistemas. A integração da moral ao self, consoante o autor, irá variar de uma pessoa para outra e, quanto mais a moral estiver coordenada a objetivos e interesses pessoais, maior será a centralidade que ocupará na representação de si e tanto maior será sua influência na motivação e nas ações morais (COLBY; DAMON, 1992; AQUINO et al., 2009; FRIMER; WALKER, 2009; JENNINGS; MITCHELL ; HANNAH, 2015; SILVA, 2020).
De acordo com Blasi (1995), a moral se integra ao self por meio de sua integração aos sistemas motivacionais e emocionais dos indivíduos. Em sua concepção, os indivíduos se vinculam a determinados objetos de desejo ou interesse, investindo a si mesmos e se identificando com eles. Tais objetos de interesse, a que posteriormente o autor irá denominar de valores, podem ou não expressar conteúdos morais e passarão a ser organizados no self em sua relação com outros valores e de acordo com a maior ou menor preferência do sujeito. Ao considerar que o ser humano é imbuído de uma tendência a preservar uma coerência com sua própria identidade, Blasi (1983; 1995) advoga que um indivíduo que possui valores morais compondo o núcleo do seu self sentir-se-á motivado a agir moralmente para preservar sua autoconsistência.
Concordando com os referidos autores, Araújo (2007) acrescenta que os valores se organizam na forma de um sistema complexo e dinâmico. Segundo o autor, a maior ou menor centralidade de valores morais no self está relacionada à intensidade do vínculo afetivo que o sujeito estabelece com um objeto que expressa conteúdos morais. Entretanto, adverte que a centralidade de um valor não determina, de modo linear, a condução das ações, pois as diferentes situações de caráter moral com as quais nos deparamos são compostas de uma multiplicidade de conteúdos, pessoas e circunstâncias, que interagem e dinamizam nosso sistema de valores, de tal sorte que um mesmo valor pode ganhar ou perder centralidade na identidade em relação a outros valores, a depender do contexto, dos conteúdos e das pessoas com os quais se vincula no momento da ação. Esse dinamismo do sistema de valores é corroborado por Silva (2020).
3 APRENDIZAGEM POR PROJETOS SOCIAIS E AÇÕES MORAIS
A Aprendizagem por Projetos Sociais (APS) é um conceito utilizado para referir-se a diferentes abordagens metodológicas em que os educandos têm como desafio desenvolverem projetos de intervenção sobre problemas sociais ou ambientais, assumindo papel de protagonistas no diagnóstico e estudo do problema, bem como no planejamento e na execução da intervenção (PUIG et al., 2009). Trata-se, por conferir papel ativo dos educandos na construção do conhecimento e na resolução de problemas, de uma metodologia ativa de aprendizagem (VALENTE; ALMEIDA; GERALDINI, 2017), cujo traço distintivo é a intervenção. Entretanto, cumpre assinalar que, na APS, é comum o estabelecimento de parcerias com a comunidade e com entidades sociais, visando potencializar e, por vezes, viabilizar o projeto (PUIG et al., 2009).
Porquanto as ações de intervenção são feitas sobre situações de conteúdo moral, ou seja, que expressam conflitos ou problemas relativos ao bem comum, à garantia dos direitos humanos, do bem-estar e/ou da qualidade de vida (VÁZQUEZ, 2012), constituem-se como ações morais. Por essa razão, consideramos que os projetos de APS configuram um contexto privilegiado para estudar o papel que o engajamento de jovens em ações morais pode exercer na construção da moralidade e, consequentemente, o potencial dessa metodologia para uma educação comprometida com a construção de valores e da cidadania. Alguns estudos foram desenvolvidos nessa perspectiva, evidenciando a contribuição do engajamento em ações pró-sociais para a formação moral (METZ; MCLELLAN; YOUNISS, 2003; PRATT et al., 2003; BERNACKI; JAEGER, 2008; COX; MCADAMS, 2012).
4 O PRESENTE ESTUDO
A maioria dos estudos empíricos sobre self moral e ação moral (METZ; MCLELLAN; YOUNISS, 2003; PRATT et al., 2003; AQUINO et al., 2009; HERTZ; KRETTENAUER, 2016) tem como característica comum a utilização de instrumentos fechados e análises quantitativas em corte transversal. Embora esses estudos tenham reconhecido valor, entendemos que deixam um amplo terreno a ser explorado no âmbito das abordagens qualitativas e longitudinais. Assim, por meio de uma perspectiva qualitativa e longitudinal, o presente estudo visa responder à seguinte questão: o envolvimento de jovens em ações morais, no contexto da Aprendizagem por Projetos Sociais, pode favorecer a integração de conteúdos morais às suas representações de si?
4.1. As participantes e os projetos sociais
Para realizar esta pesquisa, desenvolvemos um estudo com 19 jovens estudantes do sexo feminino, com média de 17 anos de idade, que protagonizaram projetos sociais no âmbito de uma disciplina da 3ª série do Ensino Médio de uma escola privada de classe média alta localizada na cidade de São Paulo (Brasil). As 19 jovens que compõem a população deste estudo estiveram divididas em 2 grupos, cada um desenvolvendo um projeto distinto. Os projetos foram desenvolvidos em aulas de uma hora e meia de duração, uma vez por semana, ao longo de sete meses de um ano letivo.
A disciplina desafiava as estudantes a eleger um problema social e elaborar, planejar e executar uma intervenção com o objetivo de enfrentá-lo. O primeiro projeto, protagonizado por cinco jovens, abordou a problemática da população em situação de rua. Em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da prefeitura de São Paulo (Brasil), as estudantes realizaram oficinas de fotografia junto a um grupo de frequentadores de um Espaço de Convivência para Adultos em Situação de Rua. O segundo projeto, por sua vez, adotou como tema o cárcere feminino e foi desenvolvido por 14 jovens em parceria com egressas do sistema carcerário e com profissionais da ONG Pastoral Carcerária. A intervenção do grupo consistiu na realização de uma conferência em um centro cultural composta por quatro mesas redondas com temas como: condições do cárcere feminino; maternidade no cárcere; e gênero e drogas.
4.2. Instrumento e procedimento de coleta de dados
Para a coleta de dados, elegemos o questionário aberto como instrumento de investigação. O instrumento, sistematizado no Quadro 1, foi elaborado com base em pesquisas qualitativas que se debruçaram sobre o self moral (COLBY; DAMON, 1992; HART; FEGLEY, 1995; FRIMER; WALKER, 2009), sendo constituído por três dimensões do self: I) hierarquia de valores; II) self autobiográfico; e III) presença no mundo.
Hierarquia de valores |
1. Quais são as três coisas ou atividades mais importantes para você? Enumere por ordem de importância. 2. Como você se sente em relação a cada uma dessas coisas/atividades? Justifique a sua resposta. |
Self autobiográfico |
3. Como essas coisas/atividades se tornaram importantes para você? Escreva um relato o mais completo possível. 4. Conte três coisas importantes que você já fez na sua vida. Por que elas foram importantes? 5. Conte coisas que você já fez e que mudaram a sua forma de pensar ou quem você é. Como foi viver essa situação? Por que isso mudou a sua forma de pensar/quem você é? |
Presença no mundo |
6. Como você vê a sua presença no mundo? O que sente em relação a isso? 7. O que você gostaria que fosse diferente no mundo e o que já fez para concretizar isso? Como você se sente em relação a isso? |
Fonte: os autores.
A aplicação do questionário ocorreu em dois momentos distintos: antes do início dos Projetos Sociais (pré-teste) e após um mês de sua conclusão (pós-teste). A fim de garantir a espontaneidade das respostas, a vinculação da pesquisa ao projeto foi ocultada das participantes, que foram informadas tratar-se de uma pesquisa sobre identidade de jovens. As jovens concordaram livremente em participar da pesquisa e, juntamente com os adultos responsáveis por elas, autorizaram sua realização através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
4.3. Aporte teórico para análise dos dados
Para estudar a integração da moral à representação de si, adotamos como referência a Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento (TMOP) (MORENO et al., 1999; SASTRE, 2018). Fundamentada na tradição de pesquisas de Barbel Inhelder (INHELDER; CELLÉRIER, 1992), a TMOP propõe que o ser humano organiza seu conhecimento sobre a realidade na forma de modelos mentais, que são sistemas de representações sobre os mundos externo e interno, construídos a partir de elementos que o sujeito seleciona da realidade, dos significados que lhes atribui e das relações e implicações que estabelece entre eles.
Tendo em vista que um modelo organizador é uma representação da realidade na qual comparecem apenas os dados selecionados como significativos pelo sujeito, o recurso à TMOP como instrumento de investigação sobre o self moral possibilita identificar: I) se, e com qual frequência, conteúdos morais são mobilizados espontaneamente na representação que o sujeito realiza sobre si; II) quais significados são atribuídos a eles e o investimento pessoal mobilizado; e III) se tais conteúdos se encontram isolados ou se relacionam-se entre si ou com outros conteúdos de natureza não moral. Disso se pode inferir sua maior ou menor centralidade na representação de si (SILVA, 2020).
4.4. Procedimento de análise dos dados
A análise dos dados foi realizada tendo como referencial a perspectiva de análise multidimensional (ARANTES, 2012) da TMOP (MORENO et al., 1999; SASTRE, 2018). Essa perspectiva preconiza a análise integrada das respostas que compõem o protocolo de pesquisa, pois reconhece que apenas o exame do conjunto de respostas é capaz de aproximar-se do sistema geral de organização do pensamento do participante sobre o fenômeno investigado e, portanto, de apreender os aspectos que são centrais em seu pensamento.
Inicialmente, identificamos os modelos organizadores de cada participante nas fases pré e pós-teste, mediante o seguinte procedimento: I) identificação dos elementos abstraídos em cada resposta, dos significados atribuídos a esses elementos (a definição, o sentido, a explicação ou justificativa relativa a dado elemento) e das relações estabelecidas entre elementos e/ou significados; II) identificação dos elementos centrais integrados ao modelo organizador sobre representação de si, adotando como critérios: a) a frequência com que foram abstraídos ao longo do protocolo; b) a maior ou menor elaboração dos significados e a carga de sentimentos atribuídos a esses elementos; e c) as relações estabelecidas entre elementos e significados, ou seja, se um elemento figurava isolado ou integrado a outros elementos no sistema geral de organização do pensamento. Em seguida, nos detivemos à centralidade com que conteúdos morais foram integrados aos modelos organizadores de cada participante em ambas as fases da pesquisa e passamos a buscar regularidades entre tais formas de integração na população estudada. Disso resultaram as categorias de análise que serão descritas na seção seguinte.
No processo de análise, consideramos tanto conteúdos concernentes à dimensão privada da moralidade (cuidado e responsabilidade com o próximo, por exemplo) como à sua dimensão pública (bem comum e direitos humanos, por exemplo) (MOSHMAN, 2011).
5 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS
O procedimento de análise dos dados desdobrou no agrupamento dos modelos organizadores em quatro categorias de integração da moral à representação de si: I) Participantes que abstraíram conteúdos morais com centralidade nas duas fases da pesquisa e que ampliaram sua integração na segunda fase; II) Participantes que abstraíram conteúdos morais de modo periférico nas duas fases da pesquisa e que ampliaram a integração de conteúdos morais ou os ressignificaram na segunda fase; III) Participantes que não abstraíram conteúdos morais na primeira fase, mas passaram a fazê-lo na segunda fase; e IV) Participante que não abstraiu conteúdos morais em ambas as fases. Porquanto a única participante que constitui a categoria 4 não abstraiu conteúdos morais em nenhuma das fases da pesquisa, não nos deteremos à sua descrição.
5.1. Categoria 1: integração central da moral à representação de si nas duas fases da pesquisa
A categoria 1 é composta por 9 jovens que realizaram o projeto sobre o cárcere feminino (participantes 2, 3, 4, 7, 8, 9, 10, 11 e 12) e uma jovem que realizou o projeto com pessoas em situação de rua (participante 15). As 10 participantes agrupadas nessa categoria abstraíram elementos com conteúdo moral com frequência nos protocolos pré e pós-teste, lhes atribuíram significados elaborados e dotados de notável vínculo pessoal, além de estabelecerem relações entre elementos morais e não morais, o que revela centralidade de conteúdos morais em suas representações de si.
Na representação de si pós-teste, não obstante, essas jovens acrescentaram novos elementos, significados e relações de conteúdo moral, sendo alguns deles associados ao projeto de APS, operando, portanto, uma ampliação na integração de conteúdos a morais. Em virtude do nosso enfoque na dimensão moral, na apresentação subsequente não nos deteremos aos pormenores de conteúdos de outra natureza. A fim de ilustrar a dinâmica geral dessa categoria, descreveremos os resultados referentes a uma representante da categoria (participante 3), protagonista do projeto sobre o cárcere feminino.
Na fase pré-teste, a jovem abstraiu os seguintes elementos de conteúdo moral: ajudar o outro, voluntariado, desigualdades sociais, ideologia e participação em manifestações. Já na fase pós-teste, a jovem conservou os elementos morais voluntariado, desigualdades sociais e participação em manifestações, porém atribuiu novos significados a alguns deles. Ademais, passou a abstrair os elementos política e a conferência sobre o cárcere feminino, além de ampliar o sistema de relações entre os elementos. A seguir, descreveremos os elementos morais, seus significados e suas relações.
O voluntariado com crianças em situação de vulnerabilidade é um dos elementos morais que foi abstraído nas duas fases da pesquisa. Conforme figura nos excertos a seguir5, em ambas as fases o elemento recebeu os significados de uma ação significativa realizada por ela - que mobilizou o sentimento de bem-estar e o valor da benevolência - e de experiência transformadora de si. Contudo, se, na primeira fase, ela afirma que a referida transformação ocorreu em seu conceito de felicidade, na segunda afirma ter ocorrido no sentido de promover seu empoderamento. Outra mudança relacionada a esse elemento resulta da relação que ele passa a estabelecer com o elemento desigualdade social, que foi abstraído nas duas fases com o significado de mudança que deseja ver no mundo, mas apenas na segunda passou a integrar-se ao voluntariado, quando a jovem acrescenta a este o significado de uma ação que desenvolveu para enfrentar a desigualdade social.
Q4.Pré. Fiz trabalho voluntário com crianças de uma comunidade carente, brincando com elas alguns dias depois da aula. Isso me fez sentir bem, pois para elas eu fazia a diferença. Q5.Pré. [...] A experiência com as crianças carentes me fez mudar meu jeito de ver a vida, pois meu conceito de felicidade mudou com elas. Q7.Pré. Questões de desigualdade, tanto econômica quanto de gênero, raça, orientação sexual etc. são meu maior incômodo [...] (Participante 3, protocolo pré-teste). Q4.Pós. [...] participar de um trabalho comunitário voluntário, senti que estava fazendo algo bom para aquelas crianças. Q5.Pós. Todas as situações que já contei no item 4 foram situações muito intensas de serem vividas e de certa forma me empoderaram. Q7.Pós. Acho que o mais urgente é minimizar a desigualdade social [...] fazendo trabalhos comunitários, por exemplo. Me sinto bem em relação ao que fiz, mas acho que preciso fazer mais
(Participante 3, protocolo pós-teste).
A ideologia foi um elemento moral abstraído somente na representação de si pré-teste, sendo considerada a terceira coisa mais importante em sua vida, uma fonte de prazer e o resultado do desejo de lutar por algo em que acredita e de transformar a realidade. Este elemento estabelece relação com dois outros elementos, quais sejam, a participação em manifestações e as desigualdades sociais. O primeiro foi significado como ação por ela realizada visando ao enfrentamento das desigualdades sociais. Notamos, assim, a coordenação entre esses dois elementos, que também se articulam ao significado atribuído à ideologia, formando um sistema coerente de significados.
Q1.Pré. [...] 3) Ideologia. Q2.Pré. [...] As ideologias em que acredito ocupam um terceiro quase segundo lugar, pois gosto de me envolver com a militância. Q3.Pré. [...] A ideologia veio de um desejo de buscar e lutar por algo que eu acredito e tentar fazer a mudança, e é algo mais recente em minha vida. Q6.Pré. [...] Também participo de grandes manifestações, pois acho que é outra forma de fazer a diferença. Q7.Pré. Questões de desigualdade, tanto econômica quanto de gênero, raça, orientação sexual etc. são meu maior incômodo. Para mudar isso, tento participar do maior número de manifestações possíveis e sempre repensar meus atos e meus costumes
(Participante 3, protocolo, pré-teste).
Na representação de si pós-teste, a ideologia é substituída pela política, que ocupa segundo lugar em sua hierarquia e é significada como parte importante de si mesma, importância essa que advém do sentimento de atuação em um coletivo. A participação em manifestações populares também foi um elemento conservado na nova dinâmica de pensamento da jovem, assim como o significado de ser uma ação por ela desenvolvida visando ao enfrentamento das desigualdades sociais – o que revela a coordenação com este elemento. Mas, no protocolo pós-teste, a política passa a receber também o significado de algo importante que já fez na vida - por sentir-se politicamente atuante - e de uma experiência intensa que a empoderou, tendo, por isso, gerado uma transformação pessoal.
Q1.Pós. [...] 2) Política [...]. Q2.Pós. [...] A política é importante para mim, pois me sinto atuante em um coletivo. Q3.Pós. [...] A política é mais recente na minha vida, mas entrou com muita força e é parte importante de mim. Q4.Pós. Participar de manifestações populares, por sentir-me atuante politicamente. Promover um evento sobre as mulheres em situação de cárcere, pois me fez sentir atuante e promover a reflexão, e participar de um trabalho comunitário voluntário, senti que estava fazendo algo bom para aquelas crianças. Q5.Pós. Todas as situações que já contei no item 4 foram situações muito intensas de serem vividas e, de certa forma, me empoderaram. Q6.Pós. Sinto que minha atuação é mais pontual, em pequena escala, mas me sinto satisfeita em relação a isso. Apesar disso, quero me tornar mais atuante. Q7.Pós. Acho que o mais urgente é minimizar a desigualdade social. Tendo atuação política, indo a manifestações, difundindo conhecimento, fazendo trabalhos comunitários, por exemplo. Me sinto bem em relação ao que fiz, mas acho que preciso fazer mais
(Participante 3, protocolo, pós-teste).
Conforme é possível observar neste excerto, um novo elemento abstraído pela participante na fase pós-teste é a conferência sobre o cárcere feminino, para a qual foram atribuídos os significados de uma ação importante por ela desenvolvida, por sentir-se engajada e promover a reflexão, além de algo que a empoderou, motivo que a faz reconhecer essa experiência como promotora de transformação pessoal. O elemento se manifesta coordenado ao elemento desigualdade social, quando a jovem afirma que a “difusão de conhecimentos” é uma das ações que já desenvolveu no enfrentamento das desigualdades, e se coordena aos elementos voluntariado e manifestações, que formam um sistema de relações ao partilharem alguns significados.
Na representação de si pós-teste, além da ampliação de significados atribuídos à participação em manifestações e ao voluntariado, notamos a conformação de um sistema moral no qual os elementos política, voluntariado, participação em manifestações e conferência sobre o cárcere feminino articulam-se tendo os sentimentos de empoderamento e engajamento como significados comuns. Entre os diversos fatores que podem ter interferido na configuração da nova dinâmica psicológica dessa jovem, há indícios de que o modo como ela significou a experiência no projeto desempenhou um papel, porquanto os sentimentos de empoderamento e engajamento vinculados a essa experiência passaram a figurar como novos significados de elementos que se conservaram da representação de si pré-teste, além de produzirem novas articulações na rede configurada pelos elementos morais.
Essa característica é compartilhada pelas demais participantes dessa categoria. Outro aspecto digno de nota concerne ao fato de que 8 dessas jovens (participantes 2, 3, 4, 7, 9, 10, 11 e 15) referem-se ao projeto na segunda fase, o que endossa o papel dessa experiência nas mudanças operadas em suas representações de si. Todas elas acrescentaram significados relacionados ao projeto a elementos preexistentes na representação de si ou a novos elementos, conformando novas relações e, assim, conferindo maior consistência à integração da moral à representação de si.
5.2. Categoria 2: integração periférica da moral à representação de si nas duas fases da pesquisa
A categoria 2 abarca 3 jovens que protagonizaram o projeto sobre o cárcere feminino (participantes 5, 6 e 14) e 2 que protagonizaram o projeto com pessoas em situação de rua (participantes 16 e 17). Diferentemente da categoria anterior, as 5 participantes agrupadas nessa categoria abstraíram elementos com conteúdo moral de modo pontual, somente em uma ou nas duas últimas questões do protocolo, em ambas as fases da pesquisa. A menor frequência, significação e carga afetiva vinculadas aos elementos morais no conjunto do protocolo, somada à centralidade que atribuíram a elementos sem conteúdo moral, revela que essa dimensão ocupou uma posição mais periférica nas representações de si elaboradas por essas participantes.
Embora essa configuração tenha se conservado na fase pós-teste, notam-se mudanças em termos da emergência de novos elementos e significados com conteúdo moral, explícita ou implicitamente associadas ao projeto de APS. Expomos, a seguir, a dinâmica de funcionamento psicológico da participante 17, protagonista do projeto com pessoas em situação de rua.
No que concerne à dimensão moral, a participante abstraiu os elementos altruísmo e trabalho comunitário na fase pré-teste ao responder à última questão do protocolo, lhes atribuindo, respectivamente, os significados de algo que gostaria que fosse diferente no mundo e de ação que desenvolveu para mudar o que gostaria que fosse diferente no mundo. Tais elementos, contudo, deixam de ser abstraídos na fase pós-teste, momento em que são selecionados a igualdade social e o projeto com pessoas em situação de rua, sendo o primeiro significado como aquilo que a jovem gostaria que fosse diferente no mundo e o segundo como uma ação por ela desenvolvida visando ao enfrentamento desse problema, ao que ela acrescenta o sentimento de felicidade.
Q7.Pré. Eu acho que as pessoas deveriam começar a se preocupar mais com as outras e ver que a vida não gira em torno delas, as pessoas deveriam começar a ajudar mais as outras pessoas que não têm tantos privilégios como elas. Eu já fiz trabalhos comunitários, não jogo lixo na rua e se vejo alguém jogando, eu converso com essa pessoa, não xingo as pessoas etc.
(Participante 17, protocolo pré-teste).
Q7.Pós. Eu gostaria que todas as pessoas fossem tratadas igualmente e tivessem os mesmos direitos e que todos conseguissem o que desejam. Eu estou fazendo em um projeto de intervenção uma oficina de fotografia com moradores de rua, e ver como eles gostaram e se empenharam em fazê-la me deixa muito feliz
(Participante 17, protocolo pós-teste).
As outras 2 jovens dessa categoria que abstraíram o projeto social (participantes 5 e 6) também o significaram como uma ação desenvolvida para enfrentar o que gostariam que fosse diferente no mundo. Em relação a esse último aspecto, uma delas passou a mencionar elementos cujos conteúdos estabelecem continuidade com o tema do projeto (desigualdades de classe e gênero) e a outra passou a relacionar o projeto ao objeto de preocupação que conservou da fase pré-teste (injustiças relativas aos direitos humanos).
Retomando a descrição da participante 17, identificamos uma mudança referente à forma como ela significou sua presença no mundo ao responder à penúltima questão do protocolo. Na primeira fase, ela afirma que sente que deve fazer a sua parte como cidadã e ser humano. Na segunda fase, entretanto, a jovem passa a afirmar que a sua presença é pequena e insuficiente e vincula um sentimento de tristeza a essa constatação.
Q6.Pré. Eu vejo que eu sou só mais uma pessoa no mundo, mas que somos só várias pessoas no mundo, que podemos fazer a diferença individualmente, ajudando o coletivo. Eu sinto que de alguma forma eu estou aqui por algum motivo e razão, e eu tenho que fazer a minha parte como cidadã e como ser humano
(Participante 17, protocolo pré-teste).
Q6.Pós. Eu vejo minha presença e atuação no mundo muito pequena até agora, não fiz muitas coisas para mim e nem pelos outros, e eu sinto que eu poderia ter feito bem mais do que eu fiz. Isso me deixa triste e me faz sentir como uma pessoa egoísta
(Participante 17, protocolo pós-teste).
Apesar da valência negativa dos sentimentos de insuficiência e tristeza que figuram na representação pós-teste, eles revelam uma leitura crítica acerca de sua inserção objetiva no mundo. Assim como essa jovem, todas as outras integrantes dessa categoria ressignificaram a percepção acerca de sua presença no mundo na segunda fase da pesquisa, sendo que três delas passaram a referir-se a lacunas e à necessidade de maior engajamento; duas delas abstraíram a experiência no projeto de APS em sua representação de si.
5.3. Categoria 3: integração periférica da moral à representação de si na segunda fase da pesquisa
A categoria 3 contempla 3 jovens, 2 delas protagonistas do projeto sobre o cárcere feminino (participantes 1 e 13) e uma protagonista do projeto com pessoas em situação de rua (participante 18). As 3 participantes agrupadas nessa categoria não abstraíram nenhum conteúdo moral na fase pré-teste a passaram a fazê-lo na representação de si pós-teste, embora sem conferir centralidade a tais conteúdos no modelo organizador.
No protocolo pós-teste, essas jovens selecionaram conteúdos morais por meio de referências indireta ou diretamente associadas ao projeto social. O primeiro caso se trata da participante 1, protagonista do projeto sobre o cárcere feminino, que não mencionou o projeto ao responder ao protocolo, porém abstraiu a identidade feminina como elemento central. As outras jovens abstraíram o projeto como elemento, significando-o como algo que fizeram para mudar o que gostariam que fosse diferente no mundo e apresentando mudanças positivas no que diz respeito ao modo como concebiam sua presença no mundo. A participante 18, protagonista do projeto com pessoas em situação de rua, também significou essa experiência como algo que contribuiu com a constituição de sua identidade. Os excertos a seguir exemplificam as mudanças operadas entre as fases pré e pós-teste dessa jovem.
Q6.Pré. Eu vejo que eu sou uma pessoa normal vivendo uma vida normal no meio de tantas outras coisas maiores do que eu. E eu não vejo problema nenhum nisso. Q7.Pré. Eu gostaria que o sistema escolar fosse totalmente diferente, e o que eu fiz pra mudar isso foi apenas reclamar porque nada que uma menina de 17 anos fale vai mudar uma coisa tão grande assim (Participante 18, protocolo pré-teste).
Q4.Pós. [...] Um projeto de intervenção [projeto de APS]. Todas essas coisas fizeram parte da construção de quem eu sou hoje atualmente e me fizeram crescer muito. Q6.Pós. Eu vejo a minha presença no mundo como alguém que ainda tem muito para aprender e conviver comigo mesma e com os outros. E também sinto que estou no mundo para exercer um papel, como ajudar as pessoas. QPós.7. Queria que muita coisa fosse diferente, tanto que eu nem sei dizer ao certo todas elas. Meu projeto de intervenção com pessoas em situação de rua é uma tentativa de concretizar algo para mudar isso (Participante 18, protocolo pós-teste).
Conforme pode-se notar, na fase pós-teste, a jovem seleciona o “projeto de intervenção” (APS) como uma ação desenvolvida para enfrentar as mudanças que deseja no mundo, mas não menciona nenhum problema concreto a ser enfrentado, o que enfraquece seu significado. Por outro lado, ressignifica o elemento presença no mundo, passando a revesti-lo de um sentido altruísta e vinculando-o ao elemento “projeto de intervenção”.
6. DISCUSSÃO
Das 19 jovens participantes dos projetos sociais, 18 revelaram mudanças em suas representações de si no tocante à integração de conteúdos morais. Treze delas abstraíram a experiência que protagonizaram nos projetos como um novo elemento, sendo que 4 jovens da categoria 1 e uma jovem da categoria 2 acrescentaram, ademais, outro elemento moral com conteúdo relacionado ao projeto, a exemplo da desigualdade social e do machismo, abstraídos, respectivamente, pelas participantes 11 e 4. Ainda em relação a essas 13 jovens, verificamos o surgimento de novos significados com conteúdos relacionados ao projeto em elementos abstraídos na representação de si pré-teste e a emergência de relações entre elementos engendradas por esses novos significados.
As participantes da categoria 1 foram aquelas que, de modo geral, apresentaram significados mais elaborados e maior investimento afetivo em relação ao projeto, assim como maior ampliação da rede de relações entre elementos morais. Essas constatações sugerem que, quanto mais central é a moral na representação de si, maior será a tendência em se atribuir significados positivos e sentimentos de grande carga afetiva a experiências morais (LAPSLEY; STAY, 2014). Em relação às cinco jovens da categoria 2, houve uma ampliação, embora pouco significativa, na integração da moral à representação de si, refletida na ligeira ampliação de significados e relações entre conteúdos morais. Três delas abstraíram a experiência do projeto como significativa em suas representações de si. No que tange às três jovens da categoria 3, duas abstraíram o projeto e ressignificaram a percepção de sua presença no mundo, relacionando-a ao projeto. A jovem que não mencionou o projeto selecionou conteúdos morais diretamente relacionados a ele.
Esses dados representam um indício do papel que ações morais desenvolvidas pela metodologia de APS podem desempenhar na integração da moral ao self, indo ao encontro das hipóteses formuladas por Bergman (2004) e Carlo e Hardy (2011) e aos resultados de pesquisas que direta ou indiretamente exploraram esse fenômeno (METZ; MCLELLAN; YOUNISS, 2003; PRATT et al., 2003; COX; MCADAMS, 2012;). Convém assinalar, contudo, que alguns estudos indicam que ações morais pontuais ou que não vinculam reflexão e intervenção, tal como na APS, exercem pouca influência em aspectos como a empatia, o juízo moral e a percepção de si como sujeito moral (BOSS, 1994; GOETHEN et al., 2014). Em consonância com as proposições de Puig et al. (2009), nos interessa pontuar que o sucesso da intervenção e o seu reconhecimento por parte dos sujeitos podem ser fatores relevantes para o processo de integração da moral ao self, pois se a atribuição de valor a uma ação moral pode favorecer a construção de valores (BLASI, 1995; ARAÚJO, 2007; SILVA, 2020), quando esta é executada pelo próprio sujeito pode desdobrar no reconhecimento e na valoração de si como um agente moral (LAPSLEY; STAY, 2014).
Finalmente, os resultados deste estudo indicam que, mediante a APS, uma ação moral não só pode integrar-se à representação de si como um valor (SILVA, 2020), mas, além disso, modificar ou ampliar o significado de outros valores e/ou a rede de relações estabelecidas entre eles, conferindo maior coesão ao sistema moral e, logo, maior centralidade da moralidade no self.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O envolvimento de jovens em intervenções sobre demandas sociais, proporcionado pela metodologia de APS, se mostrou uma experiência favorecedora da integração da moral à representação de si, indicando que a relação entre self moral e ação moral não se restringe ao papel motivador que o primeiro componente exerce sobre o segundo, mas que uma ação moral que é planejada e executada pelo sujeito com protagonismo e que se dirige ao enfrentamento de um problema social com o qual ele interage diretamente pode contribuir com a construção de valores morais e da cidadania.
Consideramos que a APS é uma importante referência metodológica para a educação em valores e para a cidadania, pois não se limita à problematização e à proposição de soluções para problemas sociais, mas desafia os educandos a intervirem sobre problemas reais e complexos que expressam conflitos de caráter moral, suscitando a mobilização e a construção de valores. Estamos falando de uma metodologia que tem na práxis da ação-reflexão-ação seu fundamento último (PUIG et al., 2009), Além disso, a APS proporciona um contexto favorável para a investigação das relações entre self moral e ação moral.
Em contrapartida, o fato de termos analisado apenas dois projetos fundamentados na APS, com baixo número de participantes, todas elas jovens do sexo feminino, limita a proposição de generalizações e aponta para a necessidade de mais estudos a fim de confirmar, ampliar e/ou contestar nossos achados. Ademais, pesquisas longitudinais de maior duração se fazem necessárias para investigar se (e como) as mudanças operadas nas representações de si em decorrência de ações morais em geral ou da APS em particular se conservam ao longo tempo.