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Revista e-Curriculum

versión On-line ISSN 1809-3876

e-Curriculum vol.18 no.2 São Paulo abr./jun 2020  Epub 15-Oct-2020

https://doi.org/10.23925/1809-3876.2020v18i2p501-522 

Dossiê Temático 2020: Web Currículo: Educação e humanismo

CIDADANIA E ESCOLA NO CONTEXTO DIGITAL1

CIUDADANÍA Y ESCUELA EN EL CONTEXTO DIGITAL

i Doutora em Ciências da Comunicação. Professora titular de Estudos de Mídia e Jornalismo da Universidade NOVA de Lisboa, Departamento de Ciências da Comunicação. E-mail: cristina.ponte@fcsh.unl.pt.


RESUMO

Este artigo discute aspetos da cidadania que têm influenciado a configuração da escola como um espaço de aprendizagem social. A primeira parte analisa dimensões da cidadania e confronta-as com resultados de estudos EU Kids Online (Portugal) e TIC Kids Online (Brasil) sobre oportunidades digitais e atividades online reportadas por crianças e adolescentes. A segunda parte confronta as políticas educacionais sobre cidadania em Portugal com as respostas dos jovens estudantes portugueses sobre a formação escolar que receberam no último ano em cidadania digital. As conclusões apontam a relevância das escolas como instituições sociais que não devem nem bloquear as oportunidades oferecidas pelo digital nem ignorar os seus riscos para uma cidadania plena.

PALAVRAS-CHAVE: Cidadania digital; Educação; currículo TIC; EU Kids Online

RESUMEN

Este artículo debate aspectos de ciudadanía que han influido en la configuración de la escuela como lugar de aprendizaje social. La primera parte confronta estos marcos con los resultados de los estudios EU Kids Online (Portugal) y TIC Kids Online (Brasil) sobre oportunidades digitales. y actividades reportadas por niños y adolescentes. La segunda parte confronta las políticas educativas sobre ciudadanía en Portugal con las respuestas de los jóvenes estudiantes portugueses sobre la educación escolar que recibieron en el último año con respecto a la ciudadanía digital. Las conclusiones apuntan a la relevancia de las escuelas como instituciones sociales que no deberían bloquear las oportunidades que ofrece lo digital ni ignorar sus riesgos para la ciudadanía plena.

PALABRAS CLAVE: Ciudadanía digital; Educación; Plan de estudios TIC; EU Kids Online

ABSTRACT

This article discusses aspects of citizenship that have influenced the configuration of the school as a place of social learning. The first part confronts those concepts with the results of the EU Kids Online (Portugal) and ICT Kids Online (Brazil) surveys of children and adolescents about digital opportunities and activities. The second part looks at Portuguese citizenship educational policies and the responses of Portuguese students about the formal education in the past year regarding digital citizenship. The conclusions point to the relevance of schools as social institutions that should neither block the opportunities offered by the digital world nor ignore the risks it poses to full citizenship.

KEYWORDS: Digital Citizenship; Education; ICT curriculum; EU Kids Online

1 INTRODUÇÃO

Quando no convite à minha participação no Seminário Web Currículo de 2020, com o tema Educação e Humanismo, Beth de Almeida assinalou o interesse em que tratasse de questões relacionadas com tecnologias e cidadania digital, aceitei a proposta certa de que tal me levaria a olhar com redobrada atenção para as recentes orientações curriculares em Portugal. Ao fazê-lo, também esteve presente a minha memória de docente do 1º ciclo do ensino básico, na década de 1980. Primeiro como professora numa escola de periferia envolvida num programa pedagógico de inovação escolar que considerava as crianças como agentes da sua aprendizagem - era em carateres de chumbo e numa imprensa tipográfica que imprimiam os seus textos. Depois como formadora de docentes no projeto MINERVA, que introduziu os primeiros computadores em salas de aula, num tempo digital pré-histórico onde os programas eram carregados por cassetes analógicas e onde crianças comandavam a tartaruga LOGO, escreviam textos em colaboração olhando o ecrã e ajudavam professores a resolver problemas tecnológicos. Pela oportunidade dessa evocação, fica desde já o meu agradecimento, Beth.

Os anos passaram. Na universidade continuei ligada aos estudos sobre crianças e media, a investigar sobre crianças e media. Em 2011, como coordenadora da equipa de Portugal na rede europeia EU Kids Online ‘fiz a ponte’ entre Sonia Livingstone, da London School of Economics e Political Science (LSE) e Alexandre Barbosa, do Centro de Estudos das Tecnologias de Informação e Comunicação (CETIC), para se replicar no Brasil o enquadramento teórico e a metodologia de estudo do EU Kids Online que avalia riscos e oportunidades da internet.

Assim, em 2012 surgiram os primeiros resultados do estudo brasileiro com os mesmos propósitos, TIC Kids Online. Desde então, este estudo tem vindo a realizar-se todos os anos, como um dos muitos estudos do CETIC sobre a realidade da sociedade de informação no Brasil e que são uma referência nacional e internacional. A série histórica TIC Kids Online permite dar conta de mudanças e de continuidades nos acessos, usos, competências, riscos e mediações para o digital entre crianças e adolescentes brasileiros. Esse conhecimento importa não só a decisores de políticas públicas de intervenção, mas também a pesquisadores e a todos os que trabalham e atuam junto de crianças e adolescentes e suas famílias. Se houve mudanças aceleradas, como as tecnologias móveis que eclipsaram os computadores de mesa e lanhouses, outros resultados ilustram a permanência de práticas e de comportamentos em relação ao digital que têm raízes em questões económicas, sociais e culturais.

Este estudo do CETIC foi também mobilizador para a rede de países latino-americanos, TIC Kids Online América Latina. Dessa rede já resultou um relatório da Comissão Económica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe (CEPAL), com contextualização e resultados do Brasil, Chile, Costa Rica e Uruguai (Trucco e Palma, 2020). A rede TIC Kids Online América Latina integra a rede Global Kids Online, com a coordenação da UNICEF.

Também os estudos TIC Educação, realizados desde 2005, permitem um conhecimento longitudinal e atualizado sobre condições e desafios digitais enfrentados pelas escolas brasileiras, as suas estruturas, docentes e alunos. A recente pesquisa de doutorado de Daniela Costa (2019), que coordena esse estudo do CETIC, ilustra bem o potencial que esses estudos têm para informar políticas de equipamento de escolas, de formação de docentes e de intervenção curricular.

A colaboração entre o CETIC e a rede EU Kids Online permitiu analisar resultados sobre usos digitais de crianças e adolescentes de cada um dos lados do Atlântico. Por exemplo, o olhar comparado sobre o estudo TIC Kids Online de 2014 e o estudo Net Children Go Mobile, realizado no mesmo ano em sete países europeus (Bélgica, Dinamarca, Irlanda, Itália, Portugal, Reino Unido e Roménia) evidenciou mais semelhanças entre as (mais difíceis) condições de acesso digital e o número elevado de contactos nas redes sociais por parte de jovens brasileiros e romenos do que entre estes e os seus pares da Dinamarca (Sozio et al., 2015). Países geograficamente distantes podem aproximar-se por caraterísticas socioeconómicas ou culturais.

O facto de em 2018 se ter realizado um novo questionário EU Kids Online em Portugal - e em mais 18 países europeus - permitiu nova comparação com resultados brasileiros do mesmo ano. São resultados de questionários Kids Online desse ano que analisamos neste artigo.

Começamos por rever dimensões do conceito de cidadania, como influenciaram a configuração da escola como local de aprendizagem social e que áreas de cidadania digital têm sido elencadas em currículos. Com esse enquadramento, passamos para a análise de respostas de jovens portugueses e brasileiros relacionadas com oportunidades digitais e com as suas atividades online realizadas em ambientes informais. Confrontamos depois políticas educativas em Portugal em matéria de cidadania com as respostas dos jovens portugueses sobre a formação que receberam no último ano relativa a atos de cidadania digital.

2 CONCEITO(S) DE CIDADANIA E EDUCAÇÃO: QUE SENTIDO(S)?

A definição moderna de cidadania que se afirmou com o Iluminismo foi marcada por obrigações entre o Estado e os indivíduos, associadas a direitos, deveres, condutas, poder e proteção, a uma ideia de ‘contrato social’, enunciada por Jean-Jacques Rousseau e que encontramos plasmada em textos do Direito à Ciência Política. Na Educação, contributos do sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) sobre a função social da escola pública como agente de socialização e de formação do ‘futuro cidadão’ continuam a ser referência.

Preocupava a Durkheim a anomia social que minava a vida nas metrópoles emergentes dos processos de industrialização e da expansão demográfica e urbana nas sociedades modernas. O sociólogo procurou um modelo social que contrariasse essa anomia por uma nova forma de solidariedade estrutural adaptada às sociedades emergentes, que designou como ‘solidariedade orgânica’. Para essa nova solidariedade social, que assentaria numa ordem jurídico-racional no contexto da crescente especialização e divisão do trabalho, Durkheim considerou imperiosa a função social da educação realizada pela escola laica, como descreve na obra Educação e Sociologia, publicada no Brasil em 2013 pela editora Martins Fontes. A responsabilidade do Estado na educação deveria decorrer através de uma rede de escolas públicas, com um currículo orientando por valores de cidadania republicana e pela aprendizagem de competências especializadas, necessárias a uma sociedade marcada pela divisão do trabalho.

Nesta linha, a escola pública, com a regulação de espaços, tempos, conteúdos, figuras e cânones de obediência, teria um papel central na socialização de crianças - sobretudo das que provinham de meios desfavorecidos, cujos pais resistiam a retirá-las da esfera laboral pelo seu contributo para a economia familiar. Pelo seu currículo, defendia Durkheim, os mais novos iriam adquirir uma compreensão dos valores comuns da sociedade, unindo indivíduos que de outro modo estariam separados. Esse currículo de valores comuns incluía a aquisição da língua nacional, educação moral, capacidade de autodisciplina, interiorização de regras sociais e dever de participação cívica. A influência do modelo em que uma geração mais velha transmite conhecimentos estipulados em programas nacionais a sucessivas gerações mais novas continua a imperar nas políticas públicas de educação.

A par da definição moderna de cidadania política e económica, assente numa visão estrutural e funcionalista da sociedade, outra definição de cidadania foi-se afirmando igualmente, merecendo a atenção da Sociologia de cariz interacionista e dos estudos de Comunicação. Essa definição realça a atenção às interações entre indivíduos e a processos de elaboração de sentido, que deveriam também ser encarados enquanto atos de cidadania. Contemporâneos de Durkheim, mas com perspetivas radicalmente diferentes na abordagem do social, Max Weber (1864-1920) ou Georg Simmel (1858-1918) são referências nessa abordagem com atenção à ação social dos indivíduos e às formas de sociabilidade humana.

No campo da Educação e dos Estudos da Comunicação, uma das figuras desta linha interacionista é o filósofo John Dewey (1859-1952), membro da Escola de Chicago, um dos pilares de produção de conhecimento social com atenção à ecologia humana, nas primeiras décadas do século XX. Nascido no pequeno estado de Vermont, na costa leste dos Estados Unidos, Dewey cresceu no seio de uma cultura comunitarista. As suas preocupações com o enraizamento dos indivíduos na comunidade, necessária à consolidação da nova nação, fizeram-no considerar que uma educação efetiva viria sobretudo das interações sociais, desde logo as proporcionadas nos primeiros anos.

Entendendo a educação como um processo de aprendizagem no presente, Dewey fundou um espaço educativo com características singulares, a Escola Laboratório, onde as crianças aprenderiam umas com as outras a resolver problemas em conjunto, como uma comunidade. As crianças eram vistas como sujeitos únicos, que se ocupariam a construir o seu próprio conhecimento, através dos seus próprios meios em vez de serem recetores de um conhecimento transmitido e imposto pelo professor e da realização de atividades determinadas por currículos estruturados e independentes das suas condições particulares de existência. Para Dewey, a experiência educativa deveria também abranger o desenvolvimento intelectual, social, emocional, físico e espiritual da criança no seu todo, e não apenas o desenvolvimento académico.

Este modelo de educação progressiva (Dewey, 1938; Williams, 2017) estimulou teorias de aprendizagem centradas no aluno, construtivistas e valorizadoras do conhecimento experimental, muito diferentes do ambiente da sala de aula do modelo anterior.

Retomando o conceito de cidadania, vemos uma tensão entre o estatuto relacional de cidadania e cidadania enquanto identidade individual, assente em atributos e direitos da pessoa. Se a primeira continua a ser a norma nos discursos institucionais, a segunda tem vindo a ser considerada de modo crescente e tem tomando formas diversificadas, sobretudo a partir da segunda metade do século passado. A reclamação de direitos civis por parte de indivíduos e movimentos sociais em nome da sua identidade faz emergir a chamada cidadania cultural, encarada sob duas perspetivas salientadas por Hartley (2010):

  • O direito a conhecer e a falar, na expressão de Toby Miller (2006), que se acrescenta à cidadania política (o direito de residência e de voto) e à cidadania económica (o direito ao trabalho e a uma vida melhor); essa cidadania cultural tem como base uma identidade física, de grupo (povos indígenas, minorias nacionais, subculturas, género, orientação sexual, raça e etnia, pessoas com deficiência, grupos de idade, etc.);

  • Comunidades com uma filiação voluntarista, ligadas por afetos e estilos de vida; estas comunidades fazem com frequência um uso subversivo dos media, para relações de associação e de identificação, a contracorrente das estratégias comerciais. Organizam-se numa base voluntarista, numa cultura do faça você mesmo. Esta cidadania cultural tem marcado a participação de grupo pela partilha, a paródia e o divertimento que Hartley (2010) contrasta com a sobriedade e distância formal do ideal moderno e racional da cidadania da esfera pública.

Para John Hartley, a internet alargou as possibilidades de expressão do indivíduo, ao favorecer a horizontalidade na comunicação e práticas criativas e colaborativas em redes físicas e virtuais. Esta ‘cidadania da paródia e do humor’ elege a comédia como fonte mais confiável de informação política e manifesta-se sobretudo em tempos eleitorais, captando a atenção dos mais novos, marginalizados na esfera pública habermasiana (Hartley, 2010). As redes sociais digitais facilitam essa linha de envolvimento cívico ao criarem oportunidades para partilha de histórias que criam confiança, constroem ligações e sugerem uma visão para o desenvolvimento do grupo, apontam Nick Couldry e colegas (2014).

3 JOVENS E CIDADANIA DIGITAL: PRÁTICAS E COMPETÊNCIAS

As duas visões sobre o lugar da escola na formação cidadã têm impactos no que se considera como cidadania digital e respetivos programas curriculares para a sua capacitação.

Um relatório recente do Berkman Klein Center Research, da Universidade de Harvard, apresenta um modelo alargado de cidadania digital para jovens virado para o futuro (Cortesi et al., 2020). O relatório destaca que, por um lado, tem existido uma visão normativa (e hegemónica no contexto escolar) de cidadania, que se foca em que os mais novos compreendam os valores e normas relativos a um uso responsável, seguro e adequado das tecnologias digitais, enfatizando aspetos e consequências legais no seu ensino nas escolas; por outro lado, assinala perspetivas que sublinham formas de envolvimento cívico e político de jovens, alimentadas por uma “cultura de participação” (Jenkins et al., 2006).

Para Jenkins e colegas (2006), o envolvimento de jovens na cultura participativa digital pode assumir várias formas: expressivas (criar conteúdos); associativas (integrar uma comunidade digital, como fóruns ou redes sociais); colaborativas (trabalhar com outros na criação de novos conhecimentos, como páginas wiki); de circulação (intervenções como a pirataria, com impacto no fluxo de distribuição de conteúdos no mercado). Para jovens com acesso a tecnologias digitais e sabendo fazer uso delas, as culturas participativas abrem assim oportunidades para criação pessoal, ligação a comunidades com os mesmos interesses, cooperação em projetos a várias mãos, circulação alternativa de conteúdos, entre outras atividades de intervenção.

Numa visão alargada do que tem sido identificado como competências para a cidadania em contexto digital, o relatório da Universidade de Harvard elenca 17 áreas que reúnem “as competências de que os jovens necessitam para uma participação plena do ponto de vista académico, social, ético, político e económico no nosso mundo digital em rápida evolução” (Cortesi et al., 2020: 28) e estão discriminadas na Tabela 1.

Tabela 1 Áreas e capacidades que constituem a cidadania digital+ (Cortesi et al., 2020

Áreas Capacidades implicadas
Acesso digital Ligar-se e aceder à internet, de modo individual ou coletivo (por exemplo, por redes de malha - mesh tecnology)
Análise de dados Estar consciente dos dados de fontes digitais e não digitais. Ser capaz de criar, compilar, representar, avaliar, interpretar e analisar dados.
Comportamento social positivo Interagir com outros (tanto indivíduos como coletividades mais amplas) no ambiente digital, de um modo ético, socialmente responsável e empático.
Contexto Estar consciente, compreender e interpretar fatores contextuais de relevância (por exemplo, fatores culturais, sociais, locais/regionais/globais) numa dada situação - com ênfase nas experiências e perspetivas dos grupos sub-representados, em termos de idade, etnia, raça, género e identidade sexual, religião, nacionalidade, local onde vive, nível educacional e de competências e/ou situação socioeconómica - e envolver de modo real nessa situação.
Economia digital Pesquisar atividades económicas online e offline, para beneficiar de diferentes formas de capital económico, social e/ou cultural - por exemplo ganhar dinheiro, aumentar conexões sociais, construir marcas pessoais.
Envolvimento cívico e político Participar em questões públicas (por exemplo, direitos LGBTQ, processos de paz, contra o discurso de ódio) e apoiar causas que o/a preocupem - usando meios digitais e não digitais - de modo a procurar melhorar a qualidade de vida da sua comunidade, do nível micro ao macro (Levine, 2007).
Identidade pessoal Usar os meios (digitais) para explorar elementos de identidade pessoal e compreender como as comunidades de que faz parte configuram essa identidade.
Informação de qualidade Encontrar, interagir, avaliar, criar e reutilizar informação (em sentido amplo, como notícias, informação de saúde, informação de ordem pessoal) de modo efetivo (Palfrey & Gasser, 2016).
Inteligência Artificial Compreender algoritmos envolvidos em plataformas com base em inteligência artificial com que interagimos e questões éticas em torno do desenvolvimento dessas tecnologias.
Legislação Conhecer enquadramentos, conceitos e teorias relacionadas com direitos legais em torno da internet e de outras ferramentas digitais (por exemplo, direitos de autor, uso correto de citações) e aplicar esses conhecimentos às suas atividades.
Literacia digital Usar a internet e outras ferramentas e plataformas digitais de modo efetivo para encontrar, interagir, avaliar, criar e reutilizar informação (Palfrey & Gasser, 2016). Compreender e trabalhar em torno de problemas conceptuais em espaços digitais (Carretero et al., 2017)
Literacia dos média Analisar, avaliar, fazer circular e criar conteúdo em qualquer suporte mediático (impresso, audiovisual, interativo) e participar em comunidades e redes. (...) Incluem-se literacias como leitura e escrita.
Pensamento computacional Compreender e aplicar conceitos, práticas e perspetivas computacionais: conceitos que os indivíduos usam quando programam (por exemplo, organizar uma sequência); práticas ativadas quando programam (por exemplo, experimentar, reusar, misturar); perspetivas desenvolvidas sobre si mesmos, sobre os outros e o mundo tecnológico mais amplo (por exemplo, estar ligado ou compreender o poder de desenvolver conteúdo com outros e para outros) (Brennan & Resnick, 2012).
Produção de conteúdos Produzir conteúdo (digital) com ferramentas (digitais.
Privacidade e reputação Proteger informação pessoal online, sua e de outros. Compreender a ‘pegada digital’ deixada pelas atividades que pratica e as consequências a curto e longo prazo. Ser capaz de gerir de modo adequado a sua marca digital e de entender dados inferidos - novos dados que derivam da captura e análise de outros pontos de dados e de que podem resultar novos conhecimentos sobre a pessoa (van der Hof, 2016).
Resiliência e bem-estar Responder aos riscos do mundo digital relacionados com conteúdos, contactos e condutas de um modo que assegure o bem-estar físico e mental.
Segurança Proteger a integridade de procedimentos de acesso (palavras-chave, perfis) e de dispositivos pessoais.

Fonte: Cortesi, S. et al. (2020: 28-30) - Adaptado

Para os autores, importa a interligação das áreas - por exemplo, competências digitais que permitam aos jovens construir a sua identidade envolvem competências sociais, comunicacionais, de literacia, segurança, resiliência, manejo de privacidade e reputação - e a necessidade de uma perspetiva mais balanceada das competências digitais, que contrarie o peso excessivo colocado no enfrentamento de riscos e a desvalorização das oportunidades digitais. Também salientam a relevância do contexto no desenho de iniciativas de cidadania digitais, pois fatores como género, idade, etnia, identidade sexual, nacionalidade, religião, situação socio económica e nível escolar afetam o acesso e uso de tecnologias digitais (Cortesi et al., 2020).

No Brasil, dados recentes do estudo TIC Kids Online apontam que o acesso ao digital ainda exclui cerca de seis milhões de crianças e adolescentes. Mas muitos daqueles que constam como usuários vivem em contextos que fazem a diferença: estudos qualitativos junto de pré-adolescentes de zonas periféricas deram conta de constrangimentos nas atividades digitais decorrentes de terem de partilhar o celular com acesso à internet com outros membros da família (Sampaio, Máximo & Ponte, no prelo). Não ignorar essas diferenças passa também por atribuir mais protagonismo aos jovens no desenho conjunto de iniciativas educacionais que tenham em conta as suas necessidades e interesses, “recorrendo a ambientes participativos e colaborativos, que apelem e valorizem o seu conhecimento, curiosidade e criatividade” (Cortoni et al., 2020: 39). Embora estas iniciativas “exijam mais tempo, flexibilidade e investimento do que programas já formatados, a inclusão de jovens pode contribuir para que o conteúdo definido tenha mais significado e os envolva realmente” (idem, ib.).

Entre as 17 áreas apontadas em programas de cidadania digital, quatro - Economia Digital, Análise de Dados, Inteligência Artificial e Pensamento Computacional - têm estado pouco presentes. Em particular as três últimas devem ser apreciadas não só pelas competências técnicas que exigem, mas também pelas competências cognitivas, metacognitivas, sociais e emocionais, integradas que estão no sistema digital mais amplo (Cortesi et al., 2020: 40).

O relatório agrupa as 17 áreas em quatro grandes objetivos educacionais (participação; empoderamento; envolvimento; e bem-estar), como se apresenta na Tabela 2:

Tabela 2 Agrupamento de competências e meios educacionais para as realizar 

Grupos de competências Objetivos e meios educacionais que capacitem os jovens a...
Participação
Acesso digital; Literacia digital; Produção de conteúdos; Segurança; Legislação.
Compreender como se ligarem à internet; usarem a internet e outras plataformas e meios digitais para encontrar, interagir, avaliar, criar e reutilizar informação; produzir conteúdo online; protegerem dispositivos e acessos digitais; compreender eme aplicarem conceitos legais ao ambiente digital.
Empoderamento
Envolvimento e participação cívica; Contexto; Informação de qualidade; Literacia dos Media.
Participar em assuntos públicos e causas que os motivam; estarem atentos e interpretarem os fatores de contexto ou relevantes numa dada situação e envolverem-se nela; partilhar informação e outros conteúdos em diferentes formatos mediáticos.
Envolvimento
Economia digital; Análise de Dados; Pensamento computacional; Inteligência Artificial.
Saber pesquisar sobre atividades económicas online e offline; envolver-se na criação, recolha, interpretação e análise de dados; compreender e aplicar conceitos computacionais; compreender e participar em debates sobre inteligência artificial.
Bem-estar
Privacidade e reputação; Identidade pessoal; Comportamento positivo; Bem-estar e segurança.
Proteger identidade pessoal e de outros; explorar a sua identidade; envolver-se com outros de modo ético, empático e positivo; ser resiliente face a riscos digitais para proteger a sua saúde física e mental

Fonte: Cortesi, S. et al. (2020: 28-33) - Adaptado

O quadro conceptual sobre cidadania apresentado no início desta secção e a sistematização trazida por este recente relatório no que se refere à formação para uma cidadania digital foram inspiradores para a análise que faremos de seguida, tanto das respostas de crianças e adolescentes portugueses e brasileiros sobre as suas práticas digitais como sobre a própria reflexão em torno do currículo formal em educação para a cidadania, em curso em Portugal.

4 PRÁTICAS DIGITAIS DE JOVENS PORTUGUESES E BRASILEIROS

Com base nos conceitos sobre cidadania e no relatório que temos vindo a apresentar, olhemos práticas de cidadania digital reportadas por jovens portugueses e brasileiros (9-17 anos) recolhidas em 2018. Começamos por respostas de jovens portugueses sobre aspetos positivos da internet, a que se seguem respostas sobre atividades digitais nos dois países.

4.1 Respostas sobre oportunidades da internet - nas suas próprias palavras

Uma das primeiras perguntas do questionário EU Kids Online em Portugal solicitava aos entrevistados que indicassem atividades na internet que considerassem boas para pessoas da sua idade. Sem surpresa, o que predominou nas 1347 respostas que indicavam alguma atividade foram referências genéricas a vídeos, ao YouTube e a música; foram também referidos muitos jogos educativos e outros (Friv, Fortnite, FIFA18, Clash Royale), tal como redes sociais (Instagram, Facebook, Whatsapp, Snapchat). Mais referidas entre os mais novos, foram indicadas plataformas de aprendizagem e pesquisa para trabalhos escolares.

Ainda que minoritárias, encontramos respostas que especificam atividades que incorporam atos de cidadania digital, nas linhas apontadas atrás. Muitas fazem uso da primeira pessoa (eu, nós), reportando uma experiência pessoal e de grupo. A relevância da internet para associação com pares, formação da identidade pessoal e procura de informação de qualidade são traços dominantes. A Tabela 3 apresenta exemplos e indica o sexo, idade e nível socioeconómico do/a respondente.

Tabela 3 Oportunidades digitais para pessoas da sua idade  

Respostas abertas Cidadania digital
Ver filmes para estudar, fotos para pôr na net eu não faço muito isso, eu procuro mais músicas para dançar, adoro estar com os meus amigos e primos a dançar e tirar fotos (F, 11, Médio); Informação de qualidade
Identidade pessoal
Práticas associativas
Jogos. Sites de documentários, sites de redes sociais pois sempre nos faz bem socializar com os outros e estarmos bem informados sobre o que se passa em redor do mundo. (M, 11, Baixo); Práticas associativas
Informação de qualidade
Participação cívica
As atividades de solidariedade. Algumas atividades em que ficamos a saber mais coisas, entre outras. (M, 11, Alto); Participação cívica
Informação de qualidade
Ouvir kpop/música coreana, aprender novas línguas e curiosidades, ler/escrever fanfics, aprender coreografias e fazer pesquisas. (F,13, Alto) Produção de conteúdos
Informação de qualidade
Literacia mediática
Pesquisa para trabalhos em sites licenciados. Ver vídeos em plataformas registadas. (M, 13, Baixo) Informação de qualidade
Legislação
As notícias para abranger a nossa cultura, por exemplo para que não sejamos pessoas fechadas ao mundo... (M, 14, Alto) Identidade
Participação cívica
Na minha idade, as pessoas começam a deixar a sua zona de conforto, ou seja a escola da sua localidade e têm de pensar no seu futuro, muitos antes de escolherem e mudarem para outras escolas têm a possibilidade de visitar certos sites para ver qual a escola mais adequada para si! Também serve para ótimas pesquisas e esclarecer dúvidas sobre certos assuntos e trabalhos. (M, 14, Baixo) Contexto
Identidade pessoal
Informação de qualidade
Todo o tipo de sites ou até mesmo redes sociais são boas para qualquer pessoa de qualquer idade. E podem ser usadas em qualquer sítio e a qualquer momento. Estamos sempre a aprender coisas novas com a internet. Até mesmo para nos informar de notícias de outros países. E são ótimas para falarmos com familiares que estão no estrangeiro ou até mesmo numa rua perto da nossa. Para mim a internet é muito importante, sem ela não aprenderia tantas coisas novas! (F, 15, Médio) Acesso digital
Informação de qualidade
Práticas associativas
Participação cívica
Ver documentários, vídeos que façam pensar sobre assuntos que normalmente causam controvérsia. (F, 16, Alto). Informação de qualidade
Participação cívica
Primeiro que tudo o mundo da informação à distância de um clique, o que torna o conhecimento mais acessível do que nunca. Os chats também são ferramentas muito importantes, porque permitem manter o contacto e fazer novos conhecimentos com pessoas que estão longe de nós. Por fim, os conteúdos-pirata que permitem aos jovens, que todos sabemos não terem recursos financeiros próprios, acederem a conteúdos multimédia como filmes e séries que de outra forma não poderiam ver. (M, 17, Alto) Acesso digital
Práticas associativas
Contexto
Práticas de circulação

Fonte: Questionário EU Kids Online, 2018

Pergunta QA3: Que coisas na internet achas que são boas para pessoas da tua idade?

A última resposta, que reitera a relevância da acessibilidade - acesso ao digital pelo hardware e por plataformas disponíveis; e acesso a conteúdos obtidos de forma subversiva do fluxo comercial -, é uma das poucas que refere o contexto, enunciado em voz coletiva (‘aos jovens’). Apesar de a situação socioeconómica familiar ser de nível elevado, o jovem coloca-se como parte de um grupo etário sem recursos económicos exigidos pelo mercado.

Nenhuma das respostas abertas aponta oportunidades decorrentes da Inteligência Artificial, Pensamento Computacional ou Análise de Dados, áreas que parecem distantes do seu reconhecimento e que também Cortesi et al. (2020) assinalam como por explorar.

4.2 Atividades digitais assinaladas por jovens, em Portugal e no Brasil

Aproveitando a oportunidade de, em 2018, terem sido feitas perguntas semelhantes no Brasil e em Portugal, foram analisados resultados sobre práticas de cidadania inseridas no quadro geral das atividades digitais (Simões e Senne, no prelo). Na Tabela 4 - que assinala as variações relativamente à frequência da atividade perguntadas em cada país - um traço comum é a intensificação de todas as atividades com a idade.

Tabela 4 Atividades online, por grupos etários, em Portugal e no Brasil 

% dos que realizam a atividade pelo menos uma vez por semana no último mês (Portugal) e dos que realizaram a atividade nos últimos 3 meses (Brasil) PORTUGAL BRASIL
9-12 13-17 9-12 13-17
Ouvi música na internet (N= 1840, PT; N= 2964, BR) 78 95 61 78
Vi vídeos (N= 1832, PT; N= 2964, BR) 85 92 65 76
Fui a uma rede social (N= 1823, PT; N= 2964, BR) 57 93 32 77
Joguei jogos online (N= 1838, PT; N= 2964, BR) 62 64 62 69
Usei a internet para os trabalhos de casa (N= 1812, PT; N= 2964, BR) 42 64 53 71
Procurei notícias online (N= 1821, PT; N= 2964, BR) 30 58 28 59
Conversei com pessoas de outros países (N= 1815, PT; N= 2964, BR) 26 41 22 48
Participei num grupo online com pessoas que têm os mesmos interesses e hobbies (N= 1813, PT; N= 2964, BR) 26 46 21 44
Procurei informações sobre oportunidades de trabalho ou de estudo (N= 1780, PT; N= 2964, BR) 40 50 4 40
Usei a internet para comprar coisas ou ver preços (N= 1824, PT; N= 2964, BR) 22 51 4 11
Procurei informação sobre saúde para mim ou para outra pessoa que conheço (N= 1808, PT; N= 2964, BR) 16 33 12 34
Criei um vídeo ou uma música e carreguei-os online, para partilhar (N= 1830, PT; N= 2964, BR) 13 17 23 52
Discuti questões políticas e sociais com outras pessoas (N= 1818, PT; N= 2964, BR) 6 16 4 28
Participei em campanhas, protestos ou assinei petições online (N= 1816, PT; N= 2964, BR) 5 9 1 7

Fonte: Simões e Senne (no prelo).

No topo da tabela nos dois países estão atividades relacionadas com música, vídeos e frequência de redes sociais - cujos significados podem ser diversos, como vimos nas respostas abertas. Em destaque também está o recurso à internet para apoio na realização de trabalhos escolares, uma referência bastante presente nas respostas abertas dos entrevistados portugueses, associada à ‘facilidade’ e ‘rapidez’ dessa procura de informação. Estes aspetos imediatos, contudo, são dissonantes de uma literacia digital definida como “capacidade de encontrar, interagir, avaliar, criar e reutilizar informação” (Palfrey e Gasser (2016).

Em posição intermédia, cerca de metade dos adolescentes dos dois países aponta três atividades: procurar notícias online, conversar com pessoas de outros países e participar em grupos online com pessoas que têm os mesmos interesses e hobbies. Todas ilustram a necessidade de informação, de associação, de pertença identitária e cultural.

Em Portugal, quase metade dos entrevistados refere procurar notícias pelo menos uma vez por semana; no Brasil, a busca por notícias chegou a 53 por cento nos três meses que antecederam o estudo. O aumento nessa prática é visível na série histórica da pesquisa Kids Online no Brasil, dado que em 2013 apenas um terço dos usuários procurava notícias. Nesse intervalo de seis anos, a par do aumento do consumo de notícias encontra-se o aumento de atividades relacionadas com troca de mensagens instantâneas, participação em redes sociais e consumo de vídeos, o que sugere que o uso dessas distintas plataformas pode ter potenciado a circulação de notícias (Simões e Senne, no prelo).

Regressando à Tabela 4, a procura de informações sobre assuntos que motivam ou preocupam - oportunidades de trabalho ou de estudo, questões de saúde - recolhe valores próximos nos adolescentes dos dois países, acima de um terço, salientando desse modo o empoderamento pela Informação de Qualidade.

Destacam-se duas diferenças entre os países nesta faixa etária: mais práticas de engajamento, ligadas a potenciais consumos, referidas por mais de metade dos adolescentes portugueses e que estão em linha com a Economia Digital; mais práticas ligadas à criação e partilha digital, ligadas à participação, referidas por mais de metade dos adolescentes brasileiros.

As duas questões explicitamente relacionadas com participação cívica - discutir questões políticas e sociais com outras pessoas; participar em campanhas, protestos ou assinar petições online - são as menos referidas, em ambos os países. A primeira regista uma expressiva subida entre os adolescentes e os valores percentuais do Brasil quase duplicam os de Portugal - para o que pode ter contribuído a particularidade de o ano de 2018 ter sido um ano de intensa vivência política no país. A participação política mais engajada recolhe valores quase residuais.

Em Portugal, os rapazes demonstram mais interesse por estas questões enquanto no Brasil há equilíbrio de género. Entre os fatores que podem explicar a presença de jovens brasileiras em debates sobre política estará o maior contato com temas de discriminação e discurso de ódio: no estudo Kids Online Brasil de 2018, quase metade das entrevistadas (48 por cento) reportaram ter visto alguém ser discriminado online, para 38 por cento dos entrevistados. Tal pode ser explicado pelo facto de temas identitários e questões de género se encontrarem no centro da agenda de debates sobre política na internet no país (Simões e Senne, no prelo).

A análise comparada olhou também para o engajamento comunitário, expresso na atenção a temas de relevância para a localidade ou país onde se vive. No Brasil, a pergunta foi: Nos últimos três meses você procurou na internet informações sobre o que acontece no lugar onde mora, na sua rua ou seu bairro? Cerca de um quarto dos brasileiros assinalou que procura informações online que afetam a comunidade onde vive, e o valor reportado pelos mais velhos (15-17 anos) mais do duplica em relação aos mais novos (9-10 anos).

Em Portugal, a pergunta incluía também assuntos ou acontecimentos presentes nos media e em ambientes online: Com que frequência procuras notícias sobre a tua região, o país onde vives, outros países, ou sobre assuntos e acontecimentos que aparecem nos media (rádio, televisão, jornais ou no online, incluindo as redes sociais)? Quarenta por cento assinalaram procurar, pelo menos uma vez por semana, informação sobre a sua própria região, país e o mundo mais alargado, ou sobre temas do seu interesse tanto através dos media tradicionais como de meios online. Os valores aumentam com a idade e são mais elevados entre rapazes.

Estes resultados apontam o interesse em conhecer de um modo mais sustentado as práticas digitais de crianças e adolescentes para além da sua condição de aluno. Decorrendo em ambientes sobretudo informais, as práticas digitais de lazer, comunicação e procura de informação envolvem, sem dúvida, dimensões de cidadania - relacional e cultural, como vimos quando ilustramos essas dimensões com respostas abertas. De que modos a escola atual considera essa dimensão de cidadania?

5 ESCOLA E CIDADANIA: A SITUAÇÃO EM PORTUGAL

No sistema escolar das sociedades contemporâneas, o modelo de organização escolar traçado por Durkheim continua a ser dominante, mas a retórica da educação progressiva está presente em muitas orientações pedagógicas e curriculares. Em Portugal, é o caso de documentos recentes, como os que definem o perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória, orientações curriculares para a formação em cidadania e o programa da disciplina TIC, obrigatória entre o 5º e o 9º ano de escolaridade.

5.1 Documentos orientadores de uma formação para a cidadania digital

Publicado em 2017, o Perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória de 12 anos, tem uma base humanista, de educação para a autonomia e direito à participação. A sua leitura sugere uma articulação das duas retóricas educativas atrás apontadas. Por um lado, sustenta-se que a gestão flexível do currículo assenta “no trabalho conjunto dos professores e educadores”, sem que nele processo intervenham os alunos. Por outro, nos descritores operativos é atribuído um lugar de agência aos alunos que parece anular a intervenção mediadora do docente.

Se este documento orientador da Educação em Portugal carrega uma linguagem de educação progressiva, outro, a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, faz uso de uma linguagem mais em linha com a perspetiva funcionalista e clássica de cidadania, ao enunciar que é seu propósito integrar “direitos e deveres que devem estar presentes na formação cidadã das crianças e dos jovens portugueses, para que no futuro sejam adultos e adultas com uma conduta cívica que privilegie a igualdade nas relações interpessoais, a integração da diferença, o respeito pelos direitos humanos e a valorização de conceitos e valores de cidadania democrática (...).” (sublinhados meus).

Nos currículos, a educação para a cidadania vai da educação pré-escolar ao final da escolaridade obrigatória de 12 anos. Com 18 domínios, a área curricular de Cidadania e Desenvolvimento é transversal nos quatro anos do 1º ciclo do ensino básico (6-9 anos) e nos três anos do ensino secundário (15-17 anos), e é uma disciplina autónoma nos 2º e 3º ciclo do ensino básico (10-14 anos). Cada um dos seus domínios dispõe de Guias de referência e cada escola tem autonomia para definir a estratégia de Educação para a cidadania que pretende incorporar. Os 18 domínios estão apresentados na Tabela 5:

Tabela 5 Abrangência dos domínios de Educação para a Cidadania nas escolas portuguesas 

Abrangência Domínios
Domínios obrigatórios para todos Direitos Humanos (civis e políticos, económicos, sociais, culturais, de solidariedade); Igualdade de Género; Interculturalidade (diversidade cultural e religiosa); Desenvolvimento sustentável e educação ambiental; Saúde (promoção da saúde, saúde pública, alimentação, exercício físico)
Disciplina Cidadania e Desenvolvimento no 2º e 3º ciclo Sexualidade (diversidade, direitos, saúde sexual e reprodutiva; Educação para os média; Instituições e participação democrática; Literacia financeira e educação para o consumo; Segurança rodoviária; Risco.
Domínios opcionais Empreendedorismo; Mundo do trabalho; Segurança; Defesa e paz; Bem-estar animal; Voluntariado; Outras.

Fonte: Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania. Ministério da Educação, 2018.

O Referencial de Educação para os Media, de 2014, vai do ensino pré-escolar ao final do ensino secundário e cobre 12 temas, com propostas de atividades adequadas a diferentes faixas etárias. A maioria dos temas abrange funções diversas dos média, suportes, orientações, condições de produção e de uso: Comunicar e Informar; Compreender o Mundo Atual; Tipos de Media; As TIC e os Ecrãs; As Redes Digitais; Entretenimento e Espectáculo; Publicidade e Marcas; Produção e Indústria/Profissionais e Empresas; Audiências, Públicos e Consumos.

Três temas apontam questões de responsabilidade, literacia e participação cívica: Liberdade e Ética, Direitos e Deveres; Os Media como Construção Social; Nós e os Media. Este último incide em produção mediática expressiva para participação e envolvimento cívico: Saber como se pode criar um media; Aprender a fazer um jornal escolar; Aprender a fazer um blogue; Saber se e como se pode ter voz num meio de comunicação social; Conhecer e aplicar os princípios éticos de criação e de publicação de conteúdos no espaço público; Tomar conhecimento da possibilidade de direito de resposta e de direito de retificação nos media.

A área da Educação para os Media tem tido em Portugal uma visibilidade crescente nos últimos anos, que se traduz em participação de projetos de escolas nos Congressos bianuais de Literacia, Media e Cidadania, organizados pelo Grupo Informal de Literacia Mediática. Esta plataforma cívica reúne entidades públicas da Educação e da Comunicação, académicos e diversas Associações profissionais. A par de outras iniciativas ligadas à literacia mediática, as atas dos cinco Congressos já realizados, disponíveis online, permitem dar conta de diferentes dimensões de participação de crianças e jovens em projetos de literacia mediática em ambiente formal e informal. Também o recente Observatório Media, Informação e Literacia, MILOBS, sediado na Universidade do Minho, apresenta já um repositório desta atividade.

Com um carater mais institucional, o currículo TIC em vigor nas escolas portuguesas, é transversal a todos os ciclos de estudo e constitui uma disciplina obrigatória do 5º ao 9º ano. Organiza-se em quatro eixos com objetivos distintos, discriminados na Tabela 6.

Tabela 6 Eixos da Disciplina TIC nas escolas portuguesas (5º a 9º ano de escolaridade) 

Eixo Objetivos e focos
Segurança, responsabilidade e respeito em ambientes digitais Adotar uma atitude crítica, refletida e responsável no uso das tecnologias, ambientes e serviços digitais;
Investigar e pesquisar Planificar estratégias de investigação e de pesquisa a realizar online;
Comunicar e colaborar Mobilizar estratégias e ferramentas de comunicação e colaboração;
Criar e inovar Explorar ideias e desenvolver o pensamento computacional e produzir artefactos digitais criativos, recorrendo a estratégias e ferramentas digitais de apoio à criatividade.

Fonte: Aprendizagens essenciais TIC| Articulação com o perfil dos alunos. Ministério da Educação, 2018.

Os quatro eixos do currículo TIC incluem itens de competências digitais agrupadas na Tabela 2. Destaca-se Participação que envolve literacia digital, produção de conteúdos, segurança e legislação. Nestes currículos, é recorrente a indicação de capacitação para questões de segurança, normas relacionadas com direitos de autor e identificação de fontes, definição de palavras-chave adequadas para localizar informação e análise crítica da sua qualidade. O trabalho em rede e colaborativo decorre em ambientes digitais fechados nos três primeiros anos; só a partir do 7º ano são fomentados “projetos em articulação com outras áreas disciplinares e ou domínios das TIC, serviços e projetos da escola, com a família e com instituições regionais, nacionais ou internacionais”.

É visível neste programa a influência do currículo de cidadania digital de Ribble e Bailey (2007), com atenção a direitos e responsabilidades digitais, regulação e segurança, saúde e bem-estar digital. Embora Ribble e Bailey (2007: XX) reiterem o legado de Dewey quando sustentam que “as escolas precisam de se tornar mini sociedades, refletindo as atividades da vida real dos estudantes que ensinam”, vemos nesta orientação a hegemonia de “códigos de conduta que equivalem a práticas aceitáveis e a comportamentos adequados que definem uma cidadania responsável no mundo digital” (Noula, 2018: 20).

Confrontando de novo com a Tabela 2, de fora do currículo TIC das escolas portuguesas ficam objetivos de literacia para a cidadania relacionados com análise de dados digitais, compreensão de fatores de contexto, economia digital, inteligência artificial e participação cívica e política - objetivos que favorecem a ligação entre o mundo digital e o mundo social, económico e político. Também o que crianças e adolescentes fazem nos seus quotidianos com as tecnologias digitais aparece desfasado do que é esse programa escolar, assente numa perspetiva de cidadania que ignora a sua cultura, as suas práticas e as suas necessidades de socialização e de informação. Como se fossem dois trilhos paralelos.

5.2 Avaliação da formação cívica digital recebida nas escolas

Uma pergunta do questionário EU Kids Online em Portugal captou o registo de alunos do 7º ao 12º ano (13 a 17 anos) sobre a frequência com que professores trabalhavam com eles questões de intervenção cívica na área digital. Dois itens de aprendizagem inseridos no currículo TIC - saber adequar a mensagem ao destinatário e respeitar direitos de autor - foram acrescentados a pedido da Direção Geral de Educação (DGE), parceira do estudo. O Gráfico 1 dá conta da variação entre frequência elevada, ocasional e inexistente dessa intervenção.

Fonte: Questionário EU Kids Online Portugal, 2018.

Pergunta M3.2 - Nos últimos 12 meses, quantas vezes recebeste formação na escola sobre...

Gráfico 1 Formação em cidadania digital reportada por alunos portugueses 

Terem recebido formação sobre comportamentos de segurança foi a situação mais destacada, seguindo-se a formação nas duas questões introduzidas a pedido da DGE, que atravessam os cinco anos do currículo da disciplina TIC, do 5º ano ao 9º ano. Segurança, normas e comportamento ético são assim as competências mais destacadas dentro do leque questionado, as únicas reconhecidas por mais de metade como tendo acontecido - com frequência ou algumas vezes - no último ano. Todas estão em linha com a ênfase dos currículos TIC.

Menos de metade dos adolescentes portugueses refere ter tido formação na escola sobre competências relacionadas com questões de privacidade e reputação, embora façam parte do currículo TIC e de modo recorrente. Formações sobre partilha de informação pessoal, novos contactos e partilha de conteúdos e imagens sexuais são referidas por cerca de um quarto como acontecendo com frequência. Estes três valores superam ligeiramente o das competências informacionais, outro dos eixos do currículo TIC.

O discurso público dominante que acentua os perigos de contactos com pessoas que se conhecem na internet ignora a realidade experienciada na adolescência, onde a larga maioria dos novos contactos têm origem em “amigos de amigos”, numa rede de socialização que é caraterística das próprias tarefas dessas idades. Os resultados do mais recente questionário europeu EU Kids Online revelam sem dúvidas que esse ‘risco’ é de longe considerado como uma oportunidade (Smahel et al., 2020: 98). Os resultados europeus apontam também para significativas diferenças de género no modo como reagem perante imagens de cariz sexual que encontram na internet - enquanto eles expressam elevados graus de satisfação ou indiferença, elas expressam sobretudo incómodo (idem: 93).

As restantes questões sobre formação cívica foram apontadas por menos de um quinto dos adolescentes portugueses como tendo acontecido com frequência no último ano. Nesse leque estão oportunidades de participação cívica e política e o conhecimento de como opera a esfera digital em termos de captação de dados pessoais.

A distribuição sugere assim que as competências na perspetiva da cidadania digital que estão mais presentes nas escolas em Portugal - seja na disciplina TIC seja noutras áreas curriculares - incidem muito mais em questões de segurança tecnológica e de responsabilização individual, na linha da visão normativa e relacional de cidadania, do que na perspetiva de uma cidadania cultural, identitária, crítica e com empoderamento.

6 CONCLUSÃO

Ao rever conceitos de cidadania que têm marcado orientações pedagógicas na escola portuguesa, este artigo dá conta de que a visão normativa continua a ser dominante e que a cultura escolar continua a ter dificuldade em considerar outras culturas e os seus protagonistas. O relatório da Universidade de Harvard sobre competências digitais foi um precioso contributo para essa sistematização.

De acordo com o padrão dominante, a escola tende a ser uma instituição conservadora, onde uma geração (de ‘mestres’) ensina outra geração (de ‘ignorantes´). Mesmo no caso do digital, onde jovens têm estado na primeira linha na apropriação e na reutilização das potencialidades das tecnologias, surpreendendo adultos pela sua inovação e criatividade. Tende a ser ignorada - quando não mesmo estigmatizada - a sua experiência digital realizada fora da escola. No caso português, que analisamos, existe desconexão entre o que crianças e adolescentes consideram como oportunidades (Tabela 3) e o que registam que fazem e que não varia significativamente dos seus congéneres brasileiros (Tabela 4), por um lado, e aquilo que constitui os eixos da disciplina TIC no currículo escolar (Tabela 6) e o que identificam como sendo trabalhado na escola (Gráfico 1), por outro.

Se matérias de segurança pessoal, responsabilidade e respeito ou sobre propriedade intelectual em ambientes digitais são reconhecidos pela maioria como tendo sido alvo de formação, outros resultados do Gráfico 1 apontam para menorização da atenção a dimensões de cidadania informacional e participativa.

Crianças e adolescentes não nascem com competências sociais, informacionais, criativas ou críticas para lidar com o digital. Vão também enfrentando no seu processo de desenvolvimento as particularidades da sua condição e contexto social. Por isso, cabe sem dúvida à escola - como território de democratização e de vivência cidadã do seu presente - um papel ativo numa formação humanista que situe o digital dentro do social, que capacite um sentido crítico e uma capacidade criativa que não decorrem do manuseamento destro de ecrãs. Uma intervenção por parte da escola que não ignore a cultura digital do presente e os seus desafios - que nem tolha as suas múltiplas oportunidades nem ofusque os seus (muitas vezes) subestimados riscos para uma cidadania plena.

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NOTA

1 Este trabalho é financiado por fundos nacionais da FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia no âmbito do projeto Ref: UIDB / 05021/2020.

Recebido: 12 de Abril de 2020; Aceito: 21 de Maio de 2020

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