1 INTRODUÇÃO
Os patriarcas brancos nos disseram: “Penso, logo existo”. A mãe negra dentro de cada uma de nós - a poeta - sussurra em nossos sonhos: Sinto, logo posso ser livre”. A poesia cria a linguagem para expressar e registrar essa demanda revolucionária, a implementação da liberdade.
Audre Lorde
O presente artigo tem como objetivo narrar a experiência de um grupo de mulheres no Projeto Roda de Conversas, da comunidade do Parque das Missões, na Baixada Fluminense, tendo como foco a conversa como prática cotidiana em que a relação dialógica se manifesta.
Discutimos aqui de que maneira a arte, a ciência, a saúde física e mental da mulher e sua emancipação social podem estar apoiadas pela conversa como metodologia de estabelecimento de um diálogo, a conversa definida aqui por nós como discursos nos quais “ângulos dialógicos” (BAKHTIN, 2008) se complementam, se confrontam, se somam e negociam tanto para a problematização de um mundo em que se experimenta a vida, quanto para investir na possibilidade de ressignificar essa vida e os sonhos, dentro de um projeto antirracista, feminista e anticapitalista.
hooks (2020) chama a nossa atenção para a necessidade de compreender o amor não como um sentimento, uma afeição, mas sim como uma ética, lembrando-nos também do seu caráter coletivo se quisermos garantir nosso compromisso com uma sociedade mais justa. Ela diz que “sempre pensar o amor como uma ação, em vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e comprometimento” (hooks, 2020, p. 55).
No caso das mulheres, a autora sugere que são elas que falam mais do amor, possivelmente porque tenham tido menos amor disponível. Diz ela ainda que “o amor não pode florescer em isolamento. Não é uma tarefa fácil amar a si mesma” (hooks, 2020, p. 94). Concordamos com a autora, e identificamos essa dificuldade, sobretudo quando se é uma mulher negra e periférica no Brasil atual.
Essas mulheres são triplamente vitimadas - primeiramente pelo racismo, e ainda pelo machismo e pela pobreza. São pessoas para as quais a branquitude, o patriarcado e o capitalismo - estruturas poderosas e perversas de dominação - agem de maneira articulada e permanente para desumanizá-las, excluí-las e silenciá-las.
Irmanadas com essas mulheres, com e por elas, temos desenvolvido este estudo, que consiste em parte de uma pesquisa de Mestrado. Pedindo licença a elas, orientanda e orientadora assinam este artigo, perguntando-nos: Em que medida rodas de conversas organizadas para a troca de experiências, de afetos e de cuidados, realizadas com um grupo de mulheres negras de uma comunidade periférica no Município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro, podem contribuir para a emancipação delas? E também: Será que poderia ser a conversa uma metodologia emancipatória, produtora de processos antirracistas, feministas e produtora de crítica a um sistema opressor para o grupo de mulheres que compõem um coletivo?
2 A RODA DAS MULHERES E SEUS ESCRITOS
No projeto Roda das Mulheres do Parque das Missões, mulheres da comunidade, no Município de Duque Caxias, na Baixada Fluminense, participam de diversas atividades. Uma delas é a oficina de literatura e de leitura. Com as escritas de si produzidas ali, um grupo de 64 mulheres enunciam seu cotidiano, denunciam maus-tratos, exclusão e assumem o lugar de narradoras da sua própria história. Leem e conversam sobre literatura, criam e transgridem por meio da linguagem poética, das imagens e metáforas, como Audre Lorde defende na epígrafe deste artigo. É como diz a letra da música composta coletivamente na oficina “Escrita de Si’, realizada pela educadora Fabiana da Silva
Chega de dor de cabeça, eu preciso de carinho,
Sou uma mulher guerreira,
Só não se meta comigo.
Eu sou dona do meu corpo,
Uso a roupa que eu quero,
Não admito violência,
Seja no Brasil ou na França.
Na Roda das mulheres poesia faz bem.
Viajamos com as palavras também.
Entendemos que os encontros dessas mulheres nas rodas são processos educativos importantes e produtivos no sentido de uma formação ética, estética e política. As conversas nas rodas, e aquilo que é produzido ali, são experiências que nos ensinam muito sobre processos educativos críticos às muitas formas de violência sofrida por meninas e mulheres em seu cotidiano. E por consistirem em produção de caráter crítico é que os compreendemos como parte de processos emancipatórios, antirracistas, feministas e anticapitalistas fomentados pelas conversas.
A Roda das Mulheres surgiu em 2009, como projeto de uma estudante de Pedagogia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - moradora local, cujo desejo era desenvolver com outras moradoras maneiras de proteger as mulheres cis e trans em um território que ela entendia como extremamente violento para essas mulheres e meninas, as quais, mesmo sofrendo agressões de vários tipos, tinham toda forma de dificuldade de denunciar o que viviam pela complexidade das relações de poder estabelecidas nesse contexto. Um dos exemplos que se poderia citar dessa interdição seria a imposição da lógica do sistema de poder, via rede varejista de venda de drogas, que inviabilizava as possíveis denúncias aos órgãos competentes, como a delegacia especializada de apoio às mulheres vítimas de violência.
Os encontros semanais foram iniciados a princípio com 26 mulheres, que trabalhavam em uma fábrica conhecida como Acabamento da Dona Regina. As conversas tinham como tema as questões que mais mobilizavam essas mulheres: relações violentas, dependência financeira, filhos, o envolvimento dos companheiros no sistema varejista de venda de drogas e questões de saúde da mulher.
O projeto da Roda das Mulheres, de maneira geral, é pautado na política de cuidado e redução de danos. Acontece ali um trabalho realizado dentro de um espaço de favela em que a presença de grupos armados traz uma percepção muito específica sobre como conseguir apoio para sair de relações violentas. A polícia não acessa esses espaços para prender o agressor e acolher a vítima. E os poderes locais, além de impedirem o acesso do cuidado e segurança, também trabalham para a perpetuação dessa falta de apoio para que essas mulheres consigam acessar seus direitos.
Espaços de acolhimento e trocas de afetos como a Roda de Mulheres possibilitam o fortalecimento desses grupos vulnerabilizados por esse contexto, que não são atendidas pelas políticas públicas. Falamos aqui de mulheres que têm seu destino determinado pelo racismo e pelo local de moradia.
O objetivo do trabalho então tem sido municiá-las com ferramentas que contribuam para que elas se compreendam como pessoas que merecem viver e viver plenamente. Por isso a escolha da arte como uma das experiências propostas ali.
Tolstói (2011) nos chama a atenção para o fato de que a arte é uma experiência que une as pessoas pelos seus sentimentos, pela humanidade. A arte nos contagia com os sentimentos de outras pessoas e o autor a considera tão imprescindível quanto a fala. Nós diríamos que a potência da arte está naquilo que ela nos provoca em nossa humanidade, nosso espírito solidário, nos processos de identificação com um “outro”. Está sim para além do que pode ser falado, mas reside sobretudo nos afetos. Mais do que manifestar-se como interação verbal, manifesta-se como interação subjetiva e espiritual2, porque nos mobiliza em toda a nossa humanidade e percepção da experiência do outro de uma maneira mais sutil e mais intensa, e também em nossa imaginação. E a imaginação é emancipatória porque funda um mundo novo possível.
3 “EU QUERIA QUE COMIGO FOSSE TUDO DIFERENTE”
As oficinas de cuidado, como espaços onde essas mulheres encontram “escuta”, mostram que é possível ousar sonhar, que é possível falar e ser ouvida e que a partir dessa escuta sensível e ativa encontramos respostas para as questões que são coletivas e não somente individuais. Este é o amor-ação, que menciona hooks, é o amor que “é aquilo que o amor faz de nós” (hooks, 2020, p. 50).
Nos encontros despontam escutas sensíveis e afetos. Experiências de resiliência e luta são compartilhadas nos fazendo concordar com Ribeiro (2018, p. 07) quando nos provoca a refletir sobre o fato de que “pensar feminismos negros é pensar projetos democráticos”.
Inicialmente a Roda era somente um espaço de escuta coletiva. Elas chegavam e iam falando e tratava-se de vários assuntos. O que foi muito produtivo, pois criou-se ali uma rede de confiança extremamente necessária para hoje se obter como resultado o respeito à dor da outra e vivermos a experiência de sororidade.
Com o passar do tempo, as conversas foram se aprofundando e a poesia aparecendo, tendo sido inserida nas conversas como um insumo, uma forma de otimizar as trocas. A poesia foi um caminho para se trabalhar o autocuidado e o amor próprio, a palavra na sua potência transgressora e criadora. Com a linguagem poética foi possível acessar dores, muitas vezes escondidas por medo ou vergonha. E hoje ela segue sendo a principal linguagem de trabalho realizado, formas de ler e fruir juntas poesia.
Sentimos que não seria apressado dizer que as mulheres que compõem a Roda hoje compreendem a literatura como um direito que contribui para a luta por outros direitos. Como manifestação literária, comunicada através do teatro, da música, de manifestações artísticas populares orais ou escritas.
A fabulação, a linguagem ficcional e as imagens poéticas são necessidades básicas de humanidade. Não há ninguém que possa viver sem elas, tendo em vista que o que está posto na literatura é “um modelo de coerência gerado pela força das palavras organizadas” (CANDIDO, 2004, p. 177), em imagens e metáforas, enunciação criativa rimada - ou não - em forma de reflexão, crítica social, histórias e desejos.
E para as mulheres negras periféricas assume ainda outros matizes. Como nos lembra Audre Lorde, não é luxo, é luz. Diz a autora:
Para as mulheres, então, a poesia não é luxo. É uma necessidade vital da nossa existência. Ela cria um tipo de luz sob a qual baseamos nossas esperanças e nossos sonhos de sobrevivência e mudança. Primeiro como linguagem, depois como ideia e depois como ação mais tangível. É da poesia que nos valemos para nomear o que ainda não tem nome (LORDE, 2019, p. 43).
O poema de Márcia Rosa Agripino, participante da Roda, nos dá pistas disso:
Eu às vezes não entendo!
As pessoas têm um jeito
De falar de todo mundo
Que não deve ser direito.
Aí eu fico pensando
Que isso não está bem.
As pessoas são quem são,
Ou são o que elas têm?
Eu queria que comigo
Fosse tudo diferente.
Se alguém pensasse em mim,
Soubesse que eu sou gente.
Falasse do que eu penso,
Lembrasse do que eu falo,
Pensasse no que eu faço
Soubesse por que me calo!
Porque eu não sou o que visto.
Eu sou do jeito que estou!
Não sou também o que eu tenho.
Eu sou mesmo quem eu sou!
Bakhtin nos chama a atenção para o fato de que não são palavras que enunciamos, são medos, desejos, sentimentos. A palavra, que “é ponte entre mim e os outros” (BAKHTIN, 2004, p. 113), conecta essas mulheres umas às outras - nas suas experiências, em diferentes dimensões de suas vidas.
A maneira de acessar tudo isso são as conversas, essa metodologia cotidiana e comum, meio pelo qual os sentidos produzidos na “ponte da palavra” circulam, ensinam, tensionam, se ressignificam. A conversa é o espaçotempo de “admirar” - que em sua origem é “olhar para”, “olhar de fora”. A conversa coloca-nos em contato com um outro e essa exotopia nos permite conhecê-lo e nos identificar com ele.
Mais ainda, o ato de narrar-se em uma conversa desloca a narradora do próprio lugar para o lugar de uma outra pessoa. Narrar-se é deslocar-se, olhar-se de fora narrando-se. Olhar-se na pupila de um outro, no ato de narrar-se a si mesmo, é ver duplicados não somente os olhos, mas as vozes (BAKHTIN, 2003). Para nós a conversa é essa experiência exotópica.
É neste movimento de deslocamento e de tensionamento da minha voz com a voz de um outro, movimento dos sentidos, que se estabelecem as relações extralinguísticas inerentes a todo e qualquer discurso.
Se essa mesma conversa acontece em torno da arte e tendo a produção artística como experiência mobilizadora, é mais um dado que confirma sua potencialidade emancipatória. E isso não somos nós que afirmamos sem critério. Essa potencialidade reflexiva está apontada no texto poético de Bruna Affonso, participante da Roda de Conversa:
Eu estou aqui!
Vc quase não vê
afinal é tanta coisa pra fazer.
Nem sempre fico feliz, mas digo que sim.
Cansada de rótulos colocados em mim!
Nem sempre pra resolver tudo
mas tentando fazer minha parte no mundo.
E aqui vou permanecer, ainda que eu não dei conta de tudo,
que eu me perca, que eu precise tomar fôlego, que eu pense em desistir.
Se me perguntarem de onde tiro forças, sei lá!
Só sei dizer que sinto talvez garra ou instinto...
Sobrevivendo, vivendo, tentando...
Eu estou aqui!
4 SAÚDE, ARTE E AS CONVERSAS: EMERGÊNCIAS EMANCIPATÓRIAS
As rodas, ao longo da história do projeto, assumiram múltiplos formatos. Hoje participam 64 mulheres. Além das oficinas de poesia, são realizadas campanhas de prevenção contra o câncer de mama, a importância da realização do exame preventivo e da participação dessas mulheres na vida escolar dos seus filhos.
Essas campanhas, que acontecem duas vezes ao mês, proporcionam também experiências de encontros, risos e afetos. São momentos de autoconhecimento e cuidados com o corpo no que diz respeito à saúde - como a oficina “Conhecendo a sua xoxota”, com informações sobre saúde feminina - e do ponto de vista estético - como a oficina de tranças, terapia em que buscamos trabalhar o cuidado com os cabelos crespos; ou a oficina de limpeza de pele em que elas tocam na pele umas das outras; oficina de defesa pessoal - em que treinam boxe e a capoeira como lutas que as ajudam tanto na segurança quanto no controle sobre seus corpos.
As oficinas são oferecidas por voluntários diversos que foram se integrando ao projeto ao longo desses anos.
O Psicólogo Vinícius Caleb é um desses voluntários. Ele desenvolve com elas espaços de escuta por meio das oficinas de “plantaterapia”.
Ampliar espaços como esse fortalece a emancipação de mulheres que vivem em contextos de silenciamento e invisibilização. Contribui para que ousem sonhar e possam falar e escrever sobre si e sobre as outras, como sujeitas narradoras das experiências dinâmicas que as aproximam. Esse processo de compartilhamento de histórias revoluciona e acolhe. É importante frisar de novo que aqui falamos de mulheres negras4.
As Rodas são ambientes de acolhimento e apoio. E em cada encontro tentamos criar estratégias que envolvam as mulheres para trabalhar questões dolorosas e difíceis que fazem parte do cotidiano delas. São histórias de solidão, abandono e situações que colocam em risco suas vidas, como as histórias de abortos com métodos sem nenhuma segurança em ambientes insalubres e clandestinos. São temas duros, tais como estupro, assédio, morte, perda de filhos, humilhações.
Situações em que tão fundamental quanto enunciar, quanto ensinar, é escutar. Trata-se da escuta sensível e atenta à qual já nos referimos em outro momento neste texto e que dá fundamento e sentido à conversa - “versar com” é imprescindível e exige também silêncio. Um silêncio que compõe a relação dialógica porque é se colocar no diálogo em atitude de atenção e de solidariedade, “ad-mirar” e escutar, porque ouvir com qualidade parece tão fundamental quanto ter algo inadiável a dizer.
Ao longo desses anos, as conversas têm consistido em um trabalho cotidiano e miúdo, no entanto muito potente para um feminismo anticapitalista, antirracista, como anunciamos aqui em um outro momento, um trabalho produzido para que não seja estranho para quem nele se apoia e que seja tecido com “fios de ferro” (EVARISTO, 2016, p. 109). Uma ação que provoque mudanças concretas.
Por isso, a ideia de abrir a roda e convidar essas mulheres para um espaço de troca seguro, cujo pertencimento tenta-se garantir pela escuta qualificada, sem pretensão de tecer o certo ou o errado, de emitir julgamentos.
Audre Lorde, a autora da epígrafe deste texto, pergunta no livro Irmã Outsider se estamos “fazendo o nosso trabalho”. A resposta não é fácil, porque nunca é muito fácil saber exatamente a medida e o limite do que se deve ou se pode fazer. Entretanto lembramo-nos do que Bakhtin afirma sobre o caráter responsivo e responsável tanto por parte do artista, quanto do pesquisador em Ciências Humanas, e entendemos que a coordenação do trabalho da Roda, realizada pela educadora Fabiana Silva, uma das autoras deste artigo, vai nessa direção.
E a responsabilidade e resposta significam dialogar com essas pessoas e suas histórias não olhando para seu lugar - e para elas - como ausências, mas estando atenta às emergências que se dão no contexto da Roda.
Em um contexto onde as questões materiais são tão precarizadas, onde falta tanto, a ausência grita. Ausência de políticas públicas, de cuidado, de dinheiro, de respeito. Tudo o que amplia significativamente as dores e as durezas da vida, e faz gritar o abismo social que essas mulheres narram.
Para a compreensão da complexidade desse contexto e no sentido de defender uma inversão do olhar sobre esse lugar, convocamos Boaventura de Sousa Santos, sua “sociologia das ausências” e “sociologia das emergências”, ideias a partir das quais o autor propõe “transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças” (SANTOS, 2008, p. 102). Consiste em denunciar a produção da não-existência, ou seja, demonstrar que o que não existe na verdade é produzido como não-existente, como lemos nas palavras do autor:
Em primeiro lugar, a compreensão do mundo excede em muito a compreensão ocidental do mundo.
Em segundo lugar, a compreensão do mundo e a forma como ele cria e legitima o poder social tem muito a ver com a concepção do tempo e da temporalidade.
Em terceiro lugar, a característica mais fundamental da concepção da racionalidade ocidental é o fato de, por um lado, contrair o presente e, por outro, expandir o futuro (SANTOS, 2008, p. 239)
Sueli Carneiro, ao falar sobre os Direitos Humanos e o combate às desigualdades, afirma que: “na base dessa contradição perdura uma questão essencial acerca dos direitos humanos: a prevalência da concepção de que certos humanos são mais ou menos humanos do que outros, o que, consequentemente, leva à naturalização da desigualdade de direitos. Se alguns estão consolidados no imaginário social como portadores de humanidade incompleta torna-se natural que não participem igualitariamente do gozo pleno dos direitos humanos” (CARNEIRO, 2011, p. 15).
No artigo 3° da Declaração Universal dos Direitos Humanos é afirmado que todo indivíduo tem o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Em 2020, a cada nove horas uma mulher foi morta no Brasil. Números alarmantes que revelaram o silêncio do ambiente doméstico, que se tornaram os lugares mais perigosos para muitas meninas, jovens e mulheres. “A pandemia das sombras", como denominada pela ONU, confinou vítimas e agressores, indicando mundialmente a escalada dos abusos e da violência doméstica.
Pesquisas realizadas por coletivos de jornalistas - Um Vírus e Duas Guerras - dão conta de que quando se iniciou o processo de isolamento por conta da pandemia, 195 mulheres foram mortas em 20 estados.
Esses números são chocantes, mas não dão conta das subnotificações, desnudadas quando se identificam os números de óbitos e agressões sofridas por mulheres. Dados como raça, identidade de gênero e orientação sexual ficaram de fora da maioria das pesquisas, e isso é grave, notadamente quando analisamos as denúncias do aumento de mortes de mulheres e meninas na Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro e as variáveis raça e gênero não são contabilizadas.
A subnotificação é um grande problema, pois ainda há confusão entre feminicídio e homicídio de mulheres. E essa violência decorrente da não identificação por tipificação de crime expressa o tamanho do problema em relação ao sistema. Os números seguem em alta e, independentemente dos imbróglios da tipificação das mortes usada pelo Estado, é claro que mais mulheres estão morrendo: mulheres negras, pobres e moradoras de áreas periféricas como o Parque das Missões.
A Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio, carrega a marca do primeiro lugar. Em segundo lugar, está Austin, em Nova Iguaçu (58ª DP), na Baixada Fluminense, seguido de Campo Grande (35ª DP), também na Zona Oeste da capital fluminense. Infelizmente essa realidade dialoga com os dados de 2019.
Apenas no mês de janeiro de 2021 foram registradas as mortes de nove mulheres. Há uma queda quando comparamos com o mesmo período de 2019 e a resposta vem a partir do momento que lembramos que por conta da pandemia as mulheres não buscaram as redes de apoio e proteção por estarem confinadas com os seus agressores. Inúmeras organizações da sociedade civil vêm continuamente denunciando que as principais vítimas dessa violência são mulheres em situação de vulnerabilidade.
Diante dessas vulnerabilidades é que se apresentam os cuidados e apoios ativos da assistência social e de espaços de acolhimento como os encontros da Roda das Mulheres do Parque das Missões. Principalmente por meio da participação ativa da assistente social Flávia Mendonça, que atua voluntariamente nos encontros desde o ano de 2012 e que possibilitou a intervenção da assistência social nos casos de violência doméstica ali narrados.
A participação de Flávia Mendonça possibilitou o acesso das mulheres da Roda à rede de atendimento da base de assistência e cuidado dos centros de atendimento que fornecem apoio e orientação e apoiam o cumprimento da Lei Maria da Penha (11.340/06). Cabe a este profissional identificar e conhecer as formas de violência que se desenvolvem dentro do ambiente familiar e buscar, a partir dos equipamentos fornecidos pela Assistência Social, incidir sobre a questão.
O (A) assistente social é uma parte fundamental desse trabalho de prevenção e combate à violência doméstica e de gênero, pois ele (a) detém o conhecimento necessário para melhor acolher as vítimas diante das variadas formas de violação da integridade física, psicológica ou de seus direitos.
Organizações como Criola, CEPIA, Programa Social Sim! Eu Sou do Meio, Mulheres da Baixada, Feminicidade, Fórum Estadual das Mulheres Negras RJ, Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos - Regional Rio de Janeiro, Roda das Mulheres Apadrinhe um Sorriso, Teia de Solidariedade da Zona Oeste são parcerias que foram sendo conquistadas ao longo dos anos e que vêm apoiando na feitura das oficinas e outros encontros e ações promovidas na Roda das Mulheres.
A rede de atendimento é estabelecida pela articulação entre instituições e serviços, para efetivação das leis e políticas destinadas ao combate à violação dos direitos das mulheres. É composta de quatro setores principais: Saúde, Justiça, Segurança Pública e Assistência Social. A Lei Maria da Penha garante em seu artigo 9º:
A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso (BRASIL, 2006, n.p.).
A Roda das Mulheres possibilita que a prática da liberdade seja possível a partir do momento em que as ferramentas compartilhadas nos encontros ajudam essas mulheres a olharem para si como pessoas que merecem viver e viver plenamente.
Quando mulheres escrevem um poema que depois se transforma em uma canção cantada por todas em que dizem que precisam de carinho ou que que usam a roupa que elas querem é: “a instauração de uma prática divisora que primeiramente tem efeitos ontológicos, constituído por sujeito-forma. No âmbito do dispositivo, a enunciação sobre o Outro constitui uma função de existência” (CARNEIRO, 2005, p. 39)
“Eu sou dona do meu corpo, seja no Brasil ou na França” é um dos grandes gritos desse grupo de mulheres que ao escreverem sobre a liberdade de escolher o que usar transmitem que o poder sobre si parte delas e não do “outro”.
Importante trazer para este diálogo a questão racial. Das 64 mulheres da Roda, um ponto em comum é a negritude delas, para além do gênero.
Quando uma mulher negra - a maioria são mulheres negras retintas - escreve que usa a roupa que ela quer e que é dona do seu corpo é revolucionário, pois crescemos ouvindo que mulher direita não pode usar roupa assim, que mulheres negras não podem usar batom vermelho, pois é batom de puta, que nossa sensualidade é negativa e, se não for gerenciada para caber nos moldes da sociedade patriarcal, merece ser punida. Logo, quando mulheres negras escrevem, musicalizam e dançam que são donas dos seus corpos isso significa, acompanhando Sueli Carneiro,
o campo de resistência que vincula o negro ao dispositivo de racialidade como sua contrapartida necessária, posto que, para Foucault, onde um campo de poder se institui, resistências são produzidas e são elas que criam as condições para a inclusão no dispositivo, para a negociação com o poder e disputas sobre a verdade histórica […] Nessa biopolítica, gênero e raça articulam-se produzindo efeitos específicos, ou definindo perfis específicos para o “deixar viver e deixar morrer”. No que diz respeito ao gênero feminino, evidencia-se a ênfase em tecnologias de controle sobre a reprodução, as quais se apresentam de maneira diferenciada segundo a racialidade; quanto ao gênero masculino, evidencia-se, a simples violência (CARNEIRO, 2005, p. 70-72).
A frase/grito: “Sou uma mulher guerreira, só não se meta comigo” nos guia para o lugar em que muitas vezes mulheres negras são colocadas. Como as fortes e guerreiras. Que tudo aguentam. Aguentam a dor, o desprezo, o descaso, o desamor, a solidão, as perdas de filhos, netos, companheiros, a falta de políticas de assistência. Mulheres que foram ao longo de um secular processo de escravização e liberdade controlada criando táticas para conseguir sobreviver e salvar os seus. Mas a que preço? - é a pergunta que precisamos cada vez mais nos fazer.
Dados apontam que mulheres negras são a maioria no cárcere (sejam as apenadas ou sendo as companheiras que visitam seus esposos ou a mães/avós que visitam filhos e netos), são as maiores vítimas de violência doméstica e são também as que encontram muita dificuldade em denunciar e receber medidas protetivas contra seus agressores. E são também as que mais morrem. São as mulheres negras as maiores vítimas de violência obstétrica.
Logo, acreditamos que ampliar espaços como o da Roda de Conversas das Mulheres do Parque das Missões possibilita que mais e mais mulheres que vivem no silenciamento dos espaços periféricos possam experimentar processos de emancipação, por meio do amor-ação que fortalece o coletivo do qual nos falou hooks (2020), e que o compartilhamento das dores, dos sonhos, das interdições fortaleça suas subjetividades. Que ousem sonhar e possam falar e escrever sobre si e sobre as outras, apropriando-se da palavra poética. Não como objetos e sim como tradutoras das dinâmicas que as aproximam. Pois essa proximidade revoluciona e acolhe. O Projeto Roda das Mulheres do Parque das Missões segue acolhendo e prestando apoio. E cada encontro consiste em um trabalho imprescindível. Um feminismo anticapitalista, antirracista e antissexista, que não seja estranho para quem nele se apoia e que seja tecido com “fios de ferro” (EVARISTO, 2016. p. 109). E que provoque mudanças concretas.
E quem segue envolvida na coordenação do projeto tem a atenção para o caráter fundamental da linguagem no processo dos encontros. O ser humano é um ser vivo dotado de linguagem. É a linguagem que nos constitui, que constitui nossa humanidade. Falamos continuamente, mesmo quando não estamos falando. No trabalho na Roda é possível perceber dois movimentos que dizem respeito à enunciação e para os quais quem coordena está frequentemente atenta.
O primeiro deles é o movimento de vozes sociais que estão polifonicamente presentes na enunciação. Um exemplo é o fato de que por vezes os pontos de vista sexistas, e de cunho racista, ou que eventualmente normatizem os números de violência contra a mulher negra e a falta de políticas públicas de segurança e acolhimento - sobre os quais acabamos de discorrer neste artigo - podem aparecer.
Na circulação das conversas são vários os pontos de vista que possam estar manifestos em uma construção discursiva contra elas mesmas, já que o tempo todo essas mulheres ouviram toda uma sociedade falar de si. Na Roda, essa normatização é problematizada, a polifonia se instaura no trabalho e é experimentada uma atitude de responsabilidade responsiva em relação ao grupo por parte das coordenadoras e coordenadores. A quem servem os discursos que desqualificam a sua presença no mundo?
E daí emerge a percepção da sua condição e narrativas que indicam movimentos claros de ressignificar a própria vida e a percepção do vivido.
A roda me possibilitou falar mais de mim e ouvir mais as outras mulheres. Foi aqui que soube que a minha filha sofreu a mesma violência que eu. Tentei proteger os meus filhos do ciclo de violência me separando do traste e vi que hoje minha filha vem buscando meios para sair do mesmo ciclo de violência que eu fui vítima. Hoje não aceito que o ciclo que vivi dentro de casa vendo minha mãe apanhar do meu pai e depois do meu padrasto e na qual eu também fui vítima seja a realidade dos meus filhos. Isso a Roda das Mulheres vem me ajudando a combater. O ciclo da violência da qual fui vítima, mas que me recuso a continuar a ser (Andreia Silva, 41 anos, participante da Roda das Mulheres).
Por isso nos parece que, na conversa, a questão é pensar a enunciação, entrar em diálogo com aquilo que se enuncia, mas não somente. Não menos importante aqui é estar atentos à qualidade da nossa escuta. Porque é na qualidade da escuta que se reflete boa parte da responsabilidade que assumimos com nosso interlocutor. Responsabilidade na etimologia do termo: respondere, como aprendemos em Nascentes (1955) Qual é a qualidade da nossa responsividade em relação ao nosso interlocutor/interlocutora?
A conversa na Roda de Mulheres do Parque das Missões consiste em discursos que se atravessam, entrelaçam, dando origem a algo novo no mundo, e ao mesmo tempo nos mostra que somos permeados pelos atravessamentos de sermos sujeitos coletivos diferentes e que, como nos ensinam Arriscado e Santos (2003, p. 56), “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.