Introdução
A incorporação do tema que trata da educação étnico-racial no currículo brasileiro é uma das questões estruturais que merece investigação na Educação e na Educação Física brasileira (MONTEIRO; ANJOS, 2020). A possibilidade de um trabalho investigativo interdisciplinar sobre o tema em questão pode torná-lo significativo e abrangente, principalmente no âmbito da Educação Física, no qual podemos estimular o trabalho com o corpo, valorizar sua beleza e romper com privilégios étnico-raciais. Uma educação antirracista (BRASIL, 2005) pode oferecer novos olhares formativos, além de reconhecer costumes e tradições trazidos para o Brasil na afrodiáspora. Silvio Almeida, em seu livro O que é Racismo Estrutural?, evidencia o perigo em silenciarmos os racismos, gerando um aumento incalculável dos atos racistas existentes nas instituições (ALMEIDA, 2018), sendo fundamental a valorização e a visibilidade das contribuições afros e indígenas.
Uma educação antirracista baseada na Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, tem na Educação Física um amplo campo para trabalharmos as possibilidades identitárias, corporais e culturais (BINS; MOLINA NETO, 2017; MOTA E SILVA; QUENZER MATTHIESEN, 2018; PIRES; SOUZA, 2015), além de colaborar para os estudos descoloniais, permite uma maior democratização da educação escolar. Dessa forma, este estudo aborda temas pertinentes à educação étnico-racial nos municípios de Vitória e de Cariacica, no Espírito Santo, relacionados a projetos e/ou programas desenvolvidos no interior das escolas e da Comissão de Estudos Afro-brasileiros (Ceafro), no cumprimento da Lei Nº 10.639/2003 (BRASIL, 2003), modificada pela Lei Nº 11.645, de 10 março de 2008, que alterou a Lei de Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, responsável por estabelecer as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” (BRASIL, 2008). Assim sendo, buscamos, neste artigo, analisar os resultados/impactos desses projetos no campo da ação educativa, compreendendo a Educação Física escolar como lócus de desenvolvimento das possíveis temáticas identificadas1.
Sendo a Ceafro uma política pública que objetiva propor e avaliar tal temática, a reflexão que oferecemos se sustenta na análise feita dos projetos e/ou dos programas de práticas pedagógicas elaborados a partir da Lei Nº 10.639/2003. Nesse sentido, a pesquisa/reflexão constitui uma investigação inicial sobre essa Lei, instrumento fundamental para uma postura antirracista na Educação, especialmente no que se refere à forma pela qual a memória histórica é concebida pelo saber-fazer escolar. Nosso objetivo geral foi investigar como as Comissões de Estudos Afro-brasileiros relacionam os elementos pedagógicos da escola com as estruturas das políticas públicas, no que tange ao campo da Educação Física escolar no cumprimento da referida lei. O objetivo específico foi identificar como se destacam os discursos sobre os corpos negros no ambiente escolar.
Para cumprimento dos objetivos, a metodologia mais adequada foi a pesquisa exploratória com abordagem qualitativa. O processo metodológico ocorreu de acordo com as três fases da pesquisa: a) Fase exploratória: análise dos documentos, a saber: a Portaria de implementação da Ceafro Vitória (Portaria Nº 052/2004); sua atualização (Portaria Nº 083/2012); Projeto Escolar 1: “Práticas pedagógicas de valorização da vida: trabalhando com as diversidades”; Projeto Escolar 2: “Educação para as relações raciais no Brasil: a importância da discussão racial e as políticas públicas brasileiras em educação”; enquanto Cariacica nos enviou: a Portaria de implementação de sua Ceafro (Portaria Nº 03/2015), as leis de referência municipais para as suas ações;2 b) Fase de produção de dados: entrevistas com as interlocutoras das Secretarias de Educação dos Municípios de Cariacica e Vitória; c) Fase de análise de dados: discorrer sobre a análise do discurso apresentado pelas comissões e pelos documentos enviados; os materiais utilizados foram gravadores e softwares de reversão áudio-literária.
Inicialmente, realizamos a análise dos documentos escritos e orais, a fim de satisfazermos os objetivos propostos. A investigação inspirou-se nas formulações de Bardin (2011) relativas à análise de conteúdo, as quais se desdobraram no estudo documental anteriormente referenciado. Posteriormente, a partir dos resumos dos documentos, realizamos entrevistas com as duas comissões. Por fim, foram elencadas as categorias temáticas dos pontos a serem investigados e a análise interpretativa dos conceitos que aparecem nos documentos e nas entrevistas.
A análise de conteúdo compreendeu, portanto, a organização e a sistematização dos dados empíricos por meio da pré-análise, a exploração do material, o tratamento dos resultados e sua interpretação (BARDIN, 2011). Empregamos uma análise categorial que funcionou por operações de desmembramento do texto em unidades, em eixos, segundo reagrupamentos estruturais. Entre as diferentes possibilidades de categorização, a investigação dos temas e sua problematização em conjunto, documentos e entrevistas são caminhos eficazes para as análises do discurso (BARDIN, 2011) direto, pois, no decorrer da argumentação, trouxemos à discussão as falas dos interlocutores das Secretarias Municipais de Educação e os documentos apresentados.
As entrevistas ocorreram nas Comissões de Estudos Afro-brasileiros localizadas nas Secretarias de Educação. Tiveram duração de 47 minutos, e o conteúdo tratou exclusivamente das atividades desenvolvidas, das relações entre a Ceafro e as escolas bem como dos participantes das ações, como estudantes, professores, diretores, dentre outros. Textualmente, a denominação de IC e IV refere-se às interlocutoras entrevistadas das Secretarias de Educação dos Municípios de Cariacica (IC) e Vitória (IV).
Política de educação étnico-racial nas redes municipais de Vitória e de Cariacica: os documentos em ação
As relações étnico-raciais constituem-se entre os diferentes grupos sociais e os sujeitos a eles pertencentes. No Brasil, são guiadas por conceitos a respeito de suas distinções e afinidades relacionadas aos grupos aos quais pertencem, estando sujeitos à disputa e ao conflito de espaços. Os conteúdos disciplinares (saber acadêmico), quando optam por seguir uma lógica eurocêntrica hegemônica, privilegiando apenas um continente, universalizam a verdade. Tais conteúdos silenciam outros tipos de ontologias, epistemes e saberes, tratando como não relevantes as heranças das culturas, as corporeidades e as diversidades étnicas de grupos não-brancos. É nesse ângulo que observamos a necessidade de conhecer a política desenhada nas Redes de Educação dos municípios a serem estudados.
A partir da leitura da Portaria Nº 052/2004, as políticas de implementação e de organização dos projetos e dos programas das questões étnico-raciais, na Secretaria de Educação de Vitória, encontram-se sob a coordenação da Ceafro, vinculada ao Gabinete da Secretaria Municipal de Educação, com o objetivo de “[...] promover estudos e viabilizar ações, com vistas à implementação da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, no âmbito da Rede Municipal de Ensino de Vitória” (VITÓRIA, 2004). A Comissão de Estudos é instituída pelo secretário de Educação e a ela compete “[...] promover e participar da Formação Continuada de professores, gestores e auxiliares em educação, relacionada à temática de Educação multiétnica nas Relações Etnicorraciais de Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana” (VITÓRIA, 2004), visando: “Sensibilizar os(as) educadores(as) do Sistema Municipal de Ensino a desenvolverem uma pedagogia pluriétnica e multirracial por meio de cursos de formação, palestras, debates, discussões e similares, no que diz respeito a questões afro-brasileiras” (VITÓRIA, 2004, 2012).
Na Secretaria de Educação (SEME) de Cariacica, de acordo com a Portaria/SEME Nº 03, de 6 de abril de 2015, ficou instituído
[...] um grupo de estudo que terá por finalidade, a formulação da minuta de resolução para implementação da criação do ‘CEAFRO’ que tem como objetivo construir e elaborar políticas públicas, a partir do plano nacional de implementação das diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana da Lei nº 10.639/03. (CARIACICA, 2015, p. 3-4).
Tendo como base a existência das Comissões de Estudos Afro-brasileiros, conforme a Portaria Nº 052/2004, ou um grupo criado para tal fim, Portaria Nº 03/2015, iniciamos a análise pelas estruturas apresentadas nos documentos recebidos das Coordenações das Secretarias Municipais.
A documentação enviada pela Ceafro de Vitória foi constituída por leis municipais e por ações de acolhimento em casos raciais na escola e, também, em formações que objetivam um projeto a ser desenvolvido pelo servidor público na escola em que este atua. A documentação enviada pela Ceafro de Cariacica foi constituída pelas leis municipais e suas ações formativas para os servidores, com objetivo que estes repensem suas práticas no interior da escola.
Os projetos da coordenação de estudos das relações étnico-raciais da Ceafro
Pela Ceafro do município de Vitória, foram-nos apresentados dois documentos, os quais estruturamos de acordo com a proposta metodológica. Para tanto, servimo-nos dos Quadros 1 e 2 a seguir, nos quais podemos visualizar as estruturas de análise.
Estrutura conceitual de análise | Documento | Objeto de análise | Interlocução |
---|---|---|---|
Diversidade | Lei | Intolerância religiosa | Comunidade |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Estrutura conceitual de análise | Documento | Objeto de análise | Interlocução |
---|---|---|---|
Postura política do educador | Projeto | Reflexões pedagógicas | Professores e educadores |
“Práticas pedagógicas” | Projeto | “Superação de conceitos” | Professores, diretores de escolas etc. |
Diversidade | Projeto | Raça, gênero, sexualidade | Professores, educadores e Instituições organizadas |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Os documentos os quais constituem projetos escolares da Ceafro da SEME de Vitória apresentam percursos similares nos processos de aplicação dos dispositivos legais educacionais constitutivos da Lei Nº 10.639/2003. Consideramos que as similitudes e as coincidências representam práticas e conteúdos recorrentes na oferta da educação.
No que tange ao campo da Educação Física, as formações oferecidas pelas Comissões de Estudos Afro-brasileiros são fundamentais para romperem estereótipos e estigmas raciais, pois, como nos afirmam o estudo de Pires e Souza (2015), há perigo em se apresentar conteúdo da cultura afro na Educação Física sem uma preocupação quanto à subversão das lógicas coloniais reproduzidas pelas escolas. As pesquisas sobre formação de professores (MOTA E SILVA; QUENZER MATTHIESEN, 2018, p. 127) demonstram as surpresas que alguns profissionais possuem ao descobrirem as manipulações eugenistas do início do século XX geradores de estereótipos e estigmas racializantes. Os autores também problematizam o fato de alguns professores compreenderem a capoeira como único conteúdo afro a ser ofertado.
Dessa forma, a primeira estrutura comum identificada nos documentos é a postura política do educador, isto é, a quem são destinados os cursos oferecidos. São professores, coordenadores, diretores, pedagogos e servidores da Rede Municipal de Ensino. A primeira pergunta3 realizada visou compreender a iniciativa do servidor para realização do curso. IV diz que:
[...] a gente aprende muito nessas formações, é que a gente não está no espaço de militância, a gente está num espaço [...] está, como militante, porque a gente não faz as coisas pelo salário que a gente ganha, que é muito baixo, mas a gente faz porque ama muito, e isso é muito caro para nós.
Para ambas as coordenações, o que faz construir projetos sólidos no contexto escolar é a militância do servidor público. Essa mesma análise podemos identificar na fala da IC quando trata das leis municipais existentes em Cariacica. Para a IC, a conquista, de “[...] tudo [enfatizou] que se diz étnico-racial é pela militância. Se eu não fosse uma professora militante, nós não teríamos esse setor instituído na (rede)”. Percebemos que a opção pela construção de educadores militantes não é idealista, mas no intuito de fazer da militância um elemento orientador da formação continuada do docente. Isso é o que tem dado sentido à práxis dos educadores.
Embora os dois documentos apresentados não façam menção à militância, parece haver uma preocupação com os desdobramentos dos projetos nas escolas. Tal fato pode ser observado quando a IV salienta que, no processo de formação/curso, uma instituição adere à proposta do projeto:
[...] esse é um projeto institucional: não é dele, do diretor; é da instituição, é da escola toda. Ele envolve pedagogas, coordenadoras, diretor, então todo mundo executa o projeto de forma ampla na escola, geral, com todas [enfatizou] as turmas.
Estabelecemos, aqui, uma reflexão importante: no caso da escola, o trabalho coletivo, apesar de constituir preocupação mais recente, nem sempre encontra aceitação por parte dos diretores ou mesmo dos professores que, por força do hábito de trabalhar isoladamente, veem em uma nova proposta uma tarefa suplementar. As escolas deveriam funcionar como instituições de resistência e de transformação desses discursos que impõem normas, regulam e naturalizam os corpos, enquanto deveriam criar contextos socioeducativos em que os grupos étnico-minoritários e femininos pudessem afirmar sua identidade, “[...] por sua própria voz, autorrepresentação e construção do senso de suas experiências de incorporação por meios que consideram relevantes” (AZZARITO, 2016, p. 145, tradução nossa). Como o currículo poderia ser reescrito “[...] para empoderar meninas e garotos de diferente etnicidades e classes sociais para expressar suas capacidades corporais livre e completamente, e aprender sobre as regras fundamentais da atividade física em suas vidas”? (AZZARITO; SOLOMON, 2005, p. 40, tradução nossa).
Discorrendo sobre o “trabalho coletivo”, há algumas limitações para essa perspectiva: a cultura do “individualismo” na atividade docente e um possível “praticismo” para o qual bastaria a prática para a construção do saber docente. Constrói-se, portanto, um possível “individualismo”, resultante de uma reflexão em torno de si próprio, consistindo em uma posição autoritária, quando se considera a reflexão como elemento suficiente para resolver os problemas da prática docente.
Essa reflexão tem continuidade, pois o “projeto institucional” demonstra preocupação com a “cultura do individualismo” que envolve a prática docente, em contraposição ao ambiente de cooperação que deveria presidir a realização do trabalho educativo coletivo. O trabalho isolado limita as possibilidades de o professor ter uma avaliação mais ampla e objetiva, uma vez que ele não é objeto de exposição e de análise. Restringe, assim, as possibilidades de melhoria, o que nos permite criar uma intervenção em que tudo o que se faz pode ser avaliado, com o objetivo de o professor marcar sua presença no contexto escolar e nas instâncias institucionais.
Contudo, há problemas que se manifestam na possibilidade do desenvolvimento de um projeto na escola e que estão diretamente ligados à saúde e à lida diária do professor, pois, de acordo com IV, “[...] hoje, nós ainda estamos em março, a pessoa [professor] já está esgotada, porque o cotidiano da escola é uma loucura, e ela trabalha o dia todo com muita criança. E aí essa pessoa vai ter estímulo como, para vir fazer o curso à noite?”.
Essa fala abre espaço para dois fatores que, devido à estrutura institucional, não nos permitem identificar a solidificação na formação e na participação dos educadores. O primeiro está relacionado ao cumprimento da carga horária, pois, segundo IV: “Na educação infantil os professores de Educação Física, Arte e Música não têm. Isso não existe, não temos curso dentro do horário de trabalho”. O segundo fator é o que defende a IC, quando discute a formação continuada dos professores, tendo como proposta temáticas étnico-raciais. Para a IC, quanto à formação de educadores, “[...] nunca teve um espaço de formação dentro do calendário escolar. Essa é uma das grandes lutas nossas”.
Ao final, vimos que, de acordo com a interlocutora de Vitória, não há formação específica para essa área ou outra, depende da adesão que o professor faz ao curso. Para a IC, até o momento, não houve formação ou curso para os professores pois a interlocutora se posiciona de forma contrária à organização de formação de professores “fora” do horário de trabalho. Parece-nos que não se trata de fortalecimento de voluntariado, mas que o próprio município faça adesão à proposta de formação. Nessa relação antagônica, desde a formação da Ceafro do município de Cariacica, as formações ocorreram por meio de palestras e de eventos formativos em parceria com os movimentos negros organizados e a universidade pública.
A problemática da formação continuada refere-se a propostas que aspiram um novo modelo de conteúdo, agora mais diverso e inclusivo, diferente do tradicional que, durante muito tempo, esteve atrelado às questões hegemônicas. Tal mudança gera dificuldades para os educadores ressignificarem e promoverem rupturas com os conteúdos oficiais consolidados. Esses desafios, atualmente, de forma analítica, situam-se nos campos dos processos relacionais, englobando fatores educacionais. Nesse sentido, uma das interlocutoras, por exemplo, reitera que os projetos a serem desenvolvidos em conjunto com a Ceafro beneficia toda a escola, não devendo ser compreendido somente como um projeto pontual desenvolvido por um diretor e/ou professor. Em sua fala, ela afirma: “[...]é um projeto institucional... não é dele [referindo-se ao diretor da escola]” (IV).
Na escola, os atores, entre si, estabelecem relações com os processos que podem se caracterizar, em sua essência, com o saber acadêmico; contudo, essas relações têm, de uma forma geral, um caráter essencialmente social e coletivo. Assim, temos de considerar e perguntar: Será que os vários elementos (das formações) que compõem os novos contextos de interpretações passam a regular as relações no contexto escolar?
Em efeito, percebemos que o caráter da Lei Nº 10.639/2003 é plural. Sua aplicação é responsabilidade de toda a comunidade escolar, uma vez que o maior desafio consiste na superação do preconceito entre todos os atores que encenam e contracenam no palco escolar, todos expostos aos mesmos referenciais que pairam sobre a população negra no Brasil, enfim, sobre a cultura afro-brasileira.
Um ponto em comum aos projetos configura-se, bem a propósito, como uma apropriação particular do instrumento legal – e ambos se fundamentam mais na lei do que no seu conhecimento. Essa análise faz-se necessária, pois não identificamos, em nenhum momento, conteúdos que tratam da Lei Nº 10.639/2003. De forma geral, os conteúdos são considerados como se o conhecimento da lei já estivesse fundamentado e apreendido pelos professores4.
Os projetos buscam dar conta daquilo que os professores consideram fundamental – a reparação de uma injustiça, por meio da valorização dos atributos morais/valorativos relacionados ao povo afro e afro-brasileiro. Nesse sentido, os projetos possuem dificuldades em avançar nos conteúdos sobre o conhecimento acadêmico acerca da África, dos africanos e da cultura afro-brasileira, de modo sistemático, pois as formulações existentes ainda se baseiam nos discursos amplos e diversos, presentes nas pautas dos movimentos organizados, dificilmente aderidos pelas instituições políticas e escolares.
Assim, notamos possibilidades de desconstrução de ideologias hegemônicas e etnocêntricas existentes nos conteúdos oficiais, operando, assim, como estímulo para o pensamento crítico e solidário de toda a comunidade escolar. A desconstrução faz-se na ênfase à ideologia do branqueamento com o objetivo de compreender a influência de tal ideologia nos processos de construção das subjetividades da geração afro, ainda tão presente nos conteúdos escolares. Outra ideologia presente no viés capitalista, que pode ser desconstruída, é da inferiorização, a começar pelo aspecto econômico-consumista, pois a população negra é a que mais se encontra na “classe pobre”. Além disso, no caso dos afro-brasileiros, a inferiorização dada pela cor, a qual, por ser uma marca, um estigma, faz com que essa população não tenha um lugar garantido na sociedade, porque é a partir dessa característica de marca visível, que foi simbolizada historicamente, que se aponta, ainda hoje, quem é o negro no Brasil e qual é ou não é o seu lugar (ANJOS, 2006).
Isso nos leva à segunda estrutura comum entre os projetos analisados, a busca pelo respeito, pela inclusão e pela diversidade na escola. Verificamos que as atividades se voltam mais para a formação ética e moral do que para o enfrentamento de conteúdos didáticos disciplinares – como os de caráter historiográfico, geográfico, linguístico ou literário. Pensadas como momentos de valorização da herança africana, as atividades estabelecem pouca relação com a crítica antirracista ao conteúdo didático formal e projetam discursos de transformação das relações entre os grupos sociais, baseados nas noções de tolerância, de respeito à diferença e à diversidade.5
O caráter pontual das iniciativas é outro traço comum entre os projetos analisados e as interlocuções, que pode ser percebido em suas abordagens adotadas: os projetos enfatizam os caracteres éticos e morais relacionados com a temática e destacam os elementos de confronto que lhes são atribuídos.6 A análise dos documentos disponíveis demonstra, no entanto, que as atividades concentram esforços no trato da superação das temáticas e da história oficial. Por fim, constituem traços comuns entre os projetos estudados: o planejamento e a execução.
Ainda que o discurso contido nos documentos delegue aos professores participantes a autoria e a condução dos projetos a serem implantados nas escolas, a pesquisa evidencia e analisa o quanto esses projetos são dependentes da participação de um grupo de professores de disciplinas específicas: os docentes de História, de Língua Portuguesa e de Artes – o que foi evidenciado. Aqui, reside o objeto principal que estamos buscando: a participação da Educação Física em consubstanciar a Lei Nº 10.639/2003 na operacionalização pedagógica no contexto escolar. Se temos, como objetivo, suscitar a reflexão sobre a possibilidade da inclusão na aplicabilidade no campo da Educação Física escolar, como desenvolver as temáticas nas aulas dessa disciplina na concepção conceitual, procedimental ou atitudinal, partindo do professor?
Se concebermos a escola como espaço democrático, o saber acumulado e a visão crítica dos educadores podem gerar mudanças que promovem a ressignificação de valores já estabelecidos na sociedade. É ingênuo pensar que, em um jogo de uma dada modalidade esportiva não residam elementos que comportem subjetividades dominantes “étnicas” e “sociocêntricas”, isto é, classificações cognitivas e fisiológicas em face às outras culturas e expressões corporais.
Entendendo que professores são agentes ativos na construção de sua própria prática sem esquecer que estão em interação com os demais e imersos nas limitações da escola, sem qualquer prolixidade, analisamos que a necessidade de formação continuada em campos e em áreas específicas é necessária, pois as rupturas de paradigmas de conhecimentos podem não ser críticas ou rompidas durante a formação acadêmica. Esse conhecimento, cristalizado pela força social de classe, é levado para as escolas. Cada professor com seus conteúdos. Assim, elementos como racismo, preconceito, raça/etnia, gênero etc. são percepções existentes no espaço escolar, vividas pelo professor, mas não vivenciadas no que tange ao contexto escolar, conforme atesta Coelho (2018) em seus estudos acerca do estado da arte sobre a formação de professores e as relações étnico-raciais.
Para Daolio (1995), a transmissão cultural exige capacidades de subjetividades e de representação. Toda continuidade cultural se perderia se não houvesse a possibilidade de serem conservadas e transmitidas às gerações seguintes. A escola e seus componentes curriculares possuem a tarefa de transmitir a memória cultural e os valores produzidos historicamente pelas/nas relações sociais. Nesse contexto, pensar o corpo negro e repensar a Educação Física como produto cultural e discursivo nos faz refletir que toda mudança é permeada por relações de poder, a partir de inúmeras possibilidades de significações biológica, cultural e social, pois o corpo expressa a história acumulada de uma sociedade (ANJOS; QUINTÃO, 2016).
A operacionalidade dos projetos das políticas educacionais nas escolas, a partir da Lei Nº 10.639/2003, ocorre em uma via de mão dupla. Argumentamos essa possibilidade no momento em que a IV salienta: “Porque não é um tema que vai ser distribuído. A gente não pensa assim. É o contrário. São profissionais de diferentes áreas que vêm abarcar um tema com o que ele trabalha na escola...[...]”. Por sua vez, a IC enfatiza que “[...] ainda não há um foco na Educação Física”. Desse modo, os conteúdos são ministrados sem uma distribuição disciplinar, mas, sim, por temática, a exemplo apontamos o racismo religioso, os preconceitos de gênero e de classe, a autoestima e o empoderamento de crianças e de jovens.
Como os projetos não indicam as disciplinas participantes, identificamos, então, uma tentativa de pedagogizar as temáticas, cada qual ao campo de estudo do professor. Em nosso caso, estamos atentos à Educação Física. Para a IV, é um “tema específico” que abrange o conjunto interdisciplinar: “[...] quando a gente faz as grades do curso, de quem vai vir conversar, a gente pensa. Fala: ‘Olha, a gente tem um público diferenciado. São professores de diversas áreas’. Então, normalmente, se vai falar de literatura, a professora de português lembra de falar [...]”.
Ao analisar as diferentes áreas que abarcam um tema, refletimos acerca dos saberes dos educadores no contexto escolar. Tardif (2008, p. 36) apresenta o saber docente como “[...] um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais”. É oportuno, aqui, falar sobre os saberes experienciais valorizados e desenvolvidos pelos professores no âmbito de sua atuação profissional. Partem, assim, do habitus do professor como sujeito e como coletividade (TARDIF, 2008). Portanto, a contextualização das formações oferece possibilidade de suscitar experiências realizadas no cotidiano escolar. Essa experiência de que nos fala Tardif (2008) pode ser transposta para os componentes de conhecimentos da Educação Física.
Os municípios de Cariacica e de Vitória apresentam similarmente temáticas e objetos semelhantes, embora em contextos distintos. O município de Cariacica, pela Lei Nº 4.479, de 31 de maio de 2007, tem como objetivo “[...] realizar ou apoiar eventos que tenham por objetivo combater a intolerância religiosa” (CARIACICA, 2007, n.p.), no plano da estrutura conceitual da “diversidade”. Já no município de Vitória, a questão da religiosidade é enfocada nas “relações raciais” e nas “práticas pedagógicas”. Nossa argumentação caminha em direção às experiências do professor e ao que a ele é oferecido. As interlocutoras IV e IC apresentam os embates existentes no cotidiano escolar. Para a IV, com referência à “intolerância religiosa”,
[...] a gente não usa mais. A gente usa a expressão “racismo religioso”. Então, nós lembramos, nessa área, que, no módulo do curso que teve essa abordagem do racismo religioso, houve uma polêmica gigantesca... E aí teve professor, inclusive da Umbanda ou do Candomblé, com as suas guias que se manifestaram... [...]. Então foi um curso inflamado de quatro horas [...], a gente ficou quatro horas falando apenas sobre isso.
Para a IC, situação semelhante ocorre nos contextos da escola, pois, em face às manifestações que se apresentam “[...] há um confronto de cultura religiosa” entre os principais atores que constituem o cenário escolar: professores e alunos.
Teves (1992) esclarece que, para investigar uma realidade social, é preciso contar com um conjunto coordenado de representações, uma estrutura de sentidos e de significados que circula entre membros de determinados grupos sociais, mediante diferentes formas de linguagem, alicerçando e construindo ações. Contudo, parece-nos que a estratégia de enfrentamento desses embates não se restringe apenas as do plano pedagógico, de saberes docentes e dos conjuntos de conteúdos e de disciplinas oferecidos. As condições reais de intervenção amparam-se em atitudes unilaterais, não levando em conta a práxis pedagógica nem o sentido político-pedagógico de confrontação do objeto posto em pauta de discussão (diversidade).
Os temas analisados permitem-nos, mais uma vez, indicar o objeto que ainda apresenta dificuldade de aceitação entre os grupos que se antagonizam simbolicamente às relações étnico-raciais no interior da escola e na sociedade, negligenciando a Educação Física e seus conteúdos de luta e de danças pautados na cultura afro-brasileira. Ao analisarmos as leis municipais do município de Cariacica, não identificamos possibilidades de enfrentamentos utilizando o corpo, a arte, a música, enfim, as expressões corporais identitárias.7 Os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1997) inclusive levantam essas possibilidades: é preciso considerar que a linguagem do corpo e a linguagem das artes em geral transversalizem, particular e pedagogicamente, a Educação Física e a Arte. Podemos vincular as expressões culturais, em geral, aos diferentes grupos étnicos, constituindo manifestações culturais identitárias, as quais socialmente podem ser contextualidadas, de forma decolonial, conhecidas, e, se possível, vivenciadas, a exemplo do Congo e/ou do Ticumbi no estado do Espírito Santo.
A capoeira, as danças e as plasticidades corporais afro-brasileiras, como práticas culturais, são significativas de valores e, como conteúdo da Educação Física, trazem a valorização de sua herança africana por meio de um sistema ético-estético próprio, calcado em valores específicos que guardam relação com símbolos afrodescendentes. Para esta discussão, chamamos Anjos (2013), que, ao estudar as danças e as manifestações populares do norte do Espírito Santo, revelou que essas práticas estão carregadas de expressões simbólicas religiosas, as quais são manifestadas coletiva e individualmente.
Acreditamos ser salutar discutir o rompimento de determinados conceitos no interior dos conteúdos e nas formações acadêmicas dos educadores, o que nos leva à terceira estrutura de análise: o saber pedagógico do educador e sua relação com a Educação Física no interior na escola. Trata-se de uma questão crucial no contexto da prática docente: a necessidade de repensar a alienação pedagógica que se denota pela impossibilidade de o professor objetivar as circunstâncias, por tomar as suas práticas como objeto de valor em si, ou seja, não pensar a práxis pedagógica como práxis social da qual ele participa.
É preciso, portanto, romper com a individualidade, evitando problemas que são evidentes no processo real do trabalho pedagógico: o professor vai expressando uma atuação solitária e fragmentada no cotidiano da escola e, cada vez mais, reduz a sua autonomia como sujeito instituinte na construção do Projeto Político-Pedagógico (PPP); utiliza métodos e conteúdos de forma mecânica, provenientes de “pacotes curriculares”; avalia em uma abordagem essencialmente técnica, pautada na eficiência do processo de avaliação: adere, sobretudo, a uma prática reiterativa, não criadora/criativa. E o mais agravante: imerso nesse contexto, muitas vezes o professor não se apercebe da problematização da sua atividade e da fragilidade da sua prática para enfrentar novas formas de organização e de relação com o conhecimento, portanto suas ideias acabam formando um engessamento em sua consciência de educador, dando-lhe um sentido e uma direção em oposição ao trabalho pedagógico coletivo. Dessa forma, muitas vezes, o docente estabelece uma relação de exterioridade com a sua atividade, como se ela não lhe pertencesse (o conteúdo não é meu!) e, com isso, acaba aprisionado ou se sujeitando ideologicamente, perdendo sua condição de sujeito social concreto e criativo em sua lida cotidiana de ensinar.
Retomando a questão central desta análise, é importante ressaltarmos que a religiosidade africana e a europeia/católica foi ressignificada em solo americano, constituindo-se em um elemento extremamente importante de coesão da identidade das classes populares. Se, em um primeiro momento, permaneciam as divisões étnicas e de classe, em um momento posterior restava apenas a origem como fator de identidade que habilmente foi reforçado por elementos culturais, como a religião popular, a dança e a capoeira.
Aqui, reiteramos que, no universo da capoeira, há uma grande abertura para múltiplas religiosidades e saberes que vão muito além do ato motor. Como descreveu Brito (2011), há diversos elementos de um “catolicismo popular” que ocupam um lugar de destaque na capoeira, como a referência a santos, como São Bento, São Benedito e Santo Antônio, presentes em canções e em nomes de toques de berimbau. Há também uma abertura para o cristianismo evangélico, porém isso não significa uma total ruptura com o afro religioso, constituindo antes uma série de continuidades facilmente observável, principalmente na ritualística neopentecostal, conforme Silva (2005, 2007).
Parece que os programas educacionais e as leis publicadas, nesse caso os legisladores, desconhecem as possibilidades de a Educação Física promover intervenções em conjunto e/ou interdisciplinarmente aos diversos componentes curriculares do Projeto Pedagógico da escola; no entanto, a Educação Física sequer é mencionada nos documentos analisados em ambas as coordenações de estudos afros. Entretanto, existem conteúdos que se revelam como potenciais lócus dos princípios de discussão das questões afro e raciais na escola. Há, porém, importantes contextos em que isso pode ocorrer. É a possível identificação entre praticar uma arte (capoeira) e fazer desta um instrumento de desvelamento de conflitos étnicos, culturais e simbólicos. Seguindo nessa linha, além da prática da capoeira e de atividades suplementares com distintas temáticas culturais, a exibição de filmes seguida de debates dos alunos traz a possibilidade de eles entrarem em contato com o universo da temática da diversidade religiosa na sociedade, utilizando a capoeira como instrumento pedagógico para esse fim.
A Educação Física, que tem o corpo e o movimento como seu objeto de conhecimento, busca, nas matrizes teóricas da Biologia e das Ciências Sociais, suas epistemes para pedagogizar suas ações e suas intervenções na escola. Estaria, portanto, a capoeira sendo pedagogizada no viés das relações étnico-raciais? Estaria o esporte sendo tematizado no contexto das rupturas dos conhecimentos biológicos tão arraigados na Educação Física? Que expressões corporais demandam a identidade étnica-racial na escola? Estariam o hip hop e outras danças regionais atuando como produtoras de cultura e de arte e se constituem como elementos sociais políticos para sentir-se ouvidos?
A Educação Física assim como outros campos pedagógicos poderiam acessar esses elementos carregados de símbolos para serem utilizados como instrumentos de rupturas dos conteúdos tradicionais, os quais, por muito tempo, se mantiveram na continuidade de representações que excluem a identidade étnico-racial. No entanto, sabemos da dificuldade presente na Educação Física de superar a visão pedagógica predominantemente “eurocêntrica”, buscando se apropriar das manifestações que afirmam incisivamente a cultura afro-brasileira e indígena, a exemplo da capoeira, do samba-de-roda, do maculelê, do maracatu etc. Todavia, essa superação é muito cara à Educação Física. Tal dificuldade decorre da percepção de que a Educação Física encontra, em seu percurso histórico, uma série de eventos sociorraciais que conflitam para a superação antirracista, em que associar o seu objeto de investigação à questão étnico-racial é ter de rediscutir a sua própria história.
Considerações finais
Tendo em vista nossos objetivos, foi possível concluirmos, nesta pesquisa, que as Comissões de Estudos Afro-Brasileiros, mesmo oferecendo ações tanto no que diz respeito à formação de projetos afrorreferenciados nas escolas quanto no enfrentamento antirracista no cotidiano escolar, possuem limites quanto ao racismo institucional. Ao relacionarmos os elementos pedagógicos da escola com as estruturas das políticas educacionais, não identificamos trabalhos ou abordagens com a cultura do corpo negro. Não podemos diluir essa constatação após análises dos documentos, das entrevistas e das interpretações realizadas, nas quais não identificamos nenhuma menção à Educação Física como possibilidade de protagonizar rupturas dos elementos pertinentes à temática étnico-racial na escola.
Em relação à análise dos discursos sobre os corpos negros no ambiente escolar, identificamos que os elementos/conceitos identificados nos documentos vêm expondo possibilidade de articulação das diferenças étnico-raciais e procurando/buscando promover rupturas no ato pedagógico. Contudo, a possibilidade de emergir essas rupturas torna-se mais tênue quando há propostas de enfrentamentos de determinados conceitos e de representações sociais incrustradas nos agentes produtores dos conteúdos dos componentes curriculares na escola.
Pareceu-nos também que, para esses enfrentamentos, a Educação Física, componente que trabalha com o corpo e o movimento, não se apresenta como instrumento para a superação das cristalizações tradicionais pedagógicas. Podemos citar a capoeira que poderia ser a resposta às intolerâncias religiosas sob os registros de denúncia ao racismo no espaço de relações entre elementos simbólicos afro-brasileiros e o espaço político institucional.
Este estudo limitou-se a ouvir as comissões das Secretarias de Educação Municipais. Poderíamos ouvir os professores, mas eles serão objeto de pesquisa em outra oportunidade. No entanto, ao analisarmos as interlocuções, não vimos, nos documentos/programas e nas falas das interlocutoras dos municípios pesquisados, elementos culturais, artísticos, de movimento corporal que pudessem ser referência de desenvolvimento da cultura afro-brasileira no contexto escolar. A capoeira é citada; contudo, parece desconsiderar as questões sociais, históricas e culturais envolvidas nesse tema/nesse conteúdo. Isso representa, por parte da escola, a continuidade de um projeto que serve a uma sociedade excludente. Nesse sentido, entendemos que de nada adianta inserirmos conteúdos (mesmo culturais e étnicos), em uma relação conteúdo-método, sem considerarmos a relação dialética professor-aluno-conhecimento necessária nos processos de ensino e de mudança.
Mudar conteúdo e método, necessariamente, exige mudar nossos objetivos e nossas concepções. Mesmo com todo o discurso de inclusão que a Lei Nº 10.639/2003 apresenta, se conservarmos os objetivos da escola liberal, incluiremos a exclusão. Azzarito, Simon e Marttinen (2017, p. 206) argumentam que professores de “[...] Educação Física necessitam repensar e recolocar a agenda da justiça social na direção das atuais inequidades produzidas pela globalização, cuja característica é homogeneizar pessoas jovens na incorporação de normas monoculturais”.
Deixamos evidente que o estudo das relações étnico-raciais na Educação Física deve conduzir a uma reflexão sobre corpo e poder e desvelar até que ponto essas relações influenciam a produção de estereótipos. Assim como Silva e Moreira (2010), defendemos, também, que corpo, movimento e cultura como campos de estudos da Educação Física são temáticas que, potencializadas dentro e fora da escola, podem colaborar para o reconhecimento das desigualdades culturais e educacionais produzidas pelo fenômeno do racismo, assim como deter seus efeitos contemporâneos. Também pensamos que é preciso avançarmos na discussão sobre a Lei Nº 10.639/2003, dimensionando a tensão entre sua aplicabilidade e suas propostas, pois entendemos que “desconstruir” conceitos e combater preconceitos demandam militâncias políticas – por que não dizer militância pedagógica, que precisa ser exercitada na escola em forma de interesse comum e interdisciplinar.
Diante desse questionamento, atentamos para alguns desafios quando propomos trabalhar com os elementos das questões étnico-raciais, pautados no ensino da Educação Física, problematizando as relações de hierarquias e de classificações construídas historicamente. Ademais, a corporalidade que expressa valores identitários e estéticos de matriz étnico-racial, negra e indígena, deve ser apropriada e considerada como corporalidade que não se resume à biologia, à fisiologia ou à estética de movimentos, mas, sim, dotada de identificações culturais e de estéticas étnico-raciais.
Importa, em um plano teórico-metodológico interdisciplinar, fazer com que essas considerações repercutam de forma mais efetiva na escola. Justificamos esse último desejo como uma sugestão para que o estudo da cultura corporal na escola básica e na formação de professores se torne significativo e contribua para fazer avançar as questões étnico-raciais na escola com a cultura corporal de movimento exercendo seu protagonismo de trabalhar com o corpo.
Como discussão final, vimos dificuldades para concluir os estudos, pois nossos argumentos e nossas interpretações analíticas se envolveram nos conflitos políticos, em um cenário conturbado de inquietações e de denúncias das políticas públicas. Isso nos permitiu experimentar deslocamentos epistemológicos relativamente arriscados em uma conclusão de estudos, pois não temos subsídios na Educação Física brasileira para essa discussão. No entanto, concluímos que, para atingir os objetivos da Educação e da Educação Física, incluindo nas ações pedagógicas voltadas às novas narrativas, isso só será possível se for superada a fragmentação do conhecimento. Então, não teríamos uma proposta para a História; teríamos, sim, uma proposta para a Educação, como forma de ampliar o trabalho pedagógico no que for possível por meio de decisões e de estratégias internas à escola, com clareza de limites de cada componente. Para finalizarmos, enfatizamos que essa discussão, tão ausente na Educação Física, é necessária para construirmos gênesis de marcos discursivos das políticas educacionais, da Educação Física, da escola e da Lei Nº 10.639/2003.