Introdução
Neste artigo, temos o objetivo de analisar a trajetória de estudantes negros inseridos pelas cotas raciais nos cursos de Educação Superior no Instituto Federal Sul-rio-grandense (IFSul), campus Pelotas. Consideramos as reflexões acerca das cotas raciais como um mecanismo de visibilidade e de valorização social da população negra. Tal ênfase foi uma das categorias emergentes no diálogo realizado com estudantes inseridos por cotas raciais no Ensino Superior da IFSul no período de 2014 a 2017.
A pesquisa adotou como procedimentos metodológicos uma abordagem qualitativa e a análise de conteúdo, subsidiada por Bardin (2011), para tratar do material das entrevistas. As entrevistas com os estudantes foram fundamentais para o desenvolvimento do trabalho, pois explicitaram, nos relatos cotidianos, as questões raciais e os desafios de ser um estudante cotista negro em um sistema que ainda prevalece, em sua grande maioria, a população não negra.
Sobre o contexto da pesquisa, verificamos que o IFSul procura manter-se atualizado e em consonância com as leis vigentes. Nesse aspecto, observamos que, desde 2009, a instituição adota reservas de vaga de cunho social e, a partir de 2013, adota a reserva de vaga de cunho racial de acordo com a Lei Nº 12.711, de 29 de agosto de 2012 (BRASIL, 2012a). A política de cotas amplia as possibilidades de acesso ao Ensino Superior e, de certa forma, democratiza o acesso, pois, antes, o sistema nacional não considerava as desigualdades raciais, étnicas, sociais, entre outras; consequentemente, não atendia esses grupos de forma específica no Ensino Superior; no entanto, destacamos que ter acesso não implica em garantia da permanência.
Considerando a promulgação da Lei Nº 12.711/2012, conhecida como Lei das Cotas, o IFSul começou a implementá-la a partir do ano de 2013, um ano após a consolidação da constitucionalidade e da obrigatoriedade da lei pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Lembrando que a questão das ações afirmativas já marcava presença nas universidades brasileiras desde o início do ano de 2000, enfatizando como exemplo a Universidade de Brasília (UnB), em 2003, pioneira na implementação de um percentual de vagas em seus vestibulares para candidatos negros, o que gerou muitas controvérsias e potencializou a discussão em vários setores da sociedade sobre a necessidade de políticas públicas para atender especificamente a população negra.
Nessa perspectiva, há de salientarmos que, por muito tempo, houve a negação das autoridades governamentais brasileiras em relação ao reconhecimento das desigualdades sociais e raciais. Contudo, os movimentos sociais, principalmente o movimento negro, a partir dos anos de 1970, desempenharam papel fundamental na superação dessa negação, disputando consciência social, visibilidade e igualdade de direitos junto ao Estado. A intensificação da atuação do movimento negro nos processos de ressignificação e de politização da raça, por volta dos anos 2000 (GOMES, 2017), configuram mudanças significativas na estrutura do Estado.
Na Conferência de Durban, em 2001, na África do Sul, acirraram-se os debates sobre a desigualdade racial histórica, ainda que em um viés hegemônico, ancorado nas questões socioeconômicas e considerando a desigualdade de classe. No entanto, é fundamental salientarmos que, por ocasião dessa Conferência, o Brasil passou a reconhecer internacionalmente a existência do racismo e assumiu que o problema do país perpassa a ordem social, econômica, educacional e racial. Assim, em sua Declaração e Programa de Ação (BRASIL, 2001) adotada para a Conferência de Durban, em 8 de setembro de 2001, reconhece-se a dimensão da desigualdade racial:
Reconhecemos e afirmamos que, no limiar do terceiro milênio, a luta global contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata e todas as suas abomináveis formas e manifestações é uma questão de prioridade para a comunidade internacional e que esta Conferência oferece uma oportunidade ímpar e histórica para a avaliação e identificação de todas as dimensões destes males devastadores da humanidade visando sua total eliminação através, inter alia 1, da adoção de enfoques inovadores e holísticos, do fortalecimento e da promoção de medidas práticas e efetivas em níveis nacionais, regionais e internacionais [...]. (BRASIL, 2001, p. 10, grifo do autor).
Nesse aspecto, o mito da democracia racial brasileira é desvelado e começou-se a considerar a negritude como elemento discriminado na sociedade.
Souza, Castro e Santiago (2022, p. 4), ao analisarem como as relações racistas são produzidas nas instituições escolares, destacam que “[...] as sociedades racistas formam-se precisamente a partir da proliferação de espaços e nichos altamente hierarquizados e racializados [...]”. Não é, assim, um mecanismo de mero preconceito, sua força está na reprodução das relações de desigualdade.
As ações afirmativas têm, portanto, um papel importante no que diz respeito à quebra de paradigmas tradicionais, pois evidenciam que a desigualdade social está alicerçada em outros elementos para além da questão econômica. Vale destacarmos que as instituições públicas, por obrigatoriedade legal, têm aplicado a política de cotas nos processos seletivos para ingresso de estudantes e servidores. No presente artigo, analisamos o percurso de estudantes que ingressaram utilizando a opção de cotas raciais em uma instituição e evidenciamos aspectos relacionados ao cotidiano dessa experiência.
O percurso da investigação e o desafio das entrevistas
Os dados que compõem a base empírica deste estudo são os documentos disponibilizados na instituição e as entrevistas realizadas com os estudantes. Os documentos permitiram-nos identificar a implementação das cotas étnico-raciais na instituição e a quantidade de vagas disponibilizadas. Obtivemos, também, permissão da instituição para acessar a base de dados do IFSul com o objetivo de mapear a quantidade de alunos que efetivamente ingressaram por cotas e em quais cursos estavam matriculados.
As entrevistas foram realizadas no segundo semestre de 2019, nas dependências do IFSul/campus Pelotas. Todos os entrevistados tinham mais de 21 anos e concordaram em participar da entrevista voluntariamente; tinham ciência da finalidade da entrevista e autorizaram o uso das informações, por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que estabelecia o anonimato ao entrevistado. Ludke e André (2014, p. 59) observam que uma boa medida para garantir o anonimato “é o uso de nomes fictícios no relato”. Contudo, optamos por utilizar numerais para identificar os estudantes e, paralelamente, possibilitar ao leitor identificar manifestações repetidas de um mesmo estudante.
Destacamos que o trabalho aqui apresentado considera os pressupostos éticos estabelecidos para as pesquisas na área da Educação, considerando o documento Ética e integridade na prática científica, produzido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (2011) e as orientações do verbete “Autodeclaração de princípios e de procedimentos étnicos na pesquisa em Educação”, escrito por Mainardes e Carvalho (2019). Os procedimentos metodológicos resguardam a dignidade humana e preservam a liberdade e a diversidade dos grupos envolvidos, bem como anunciam de forma detalhada os processos de coleta, de organização e de análise dos dados.
Após realizarmos o primeiro momento da investigação, na base de dados do Instituto, que nos gerou uma quantidade volumosa de dados, dialogamos com os estudantes que entraram no IFSul pelo recorte das cotas étnico-raciais, com vistas a compreender como se consolidava a sua vivência acadêmica. Sob inspiração de Bardin (2011), optamos pela realização de entrevistas para compreender aspectos que não estavam contemplados nos documentos acessados. “Para tirar partido de um material dito ‘qualitativo’ é indispensável à entrevista [...]”, pois ela fornece “[...] um material verbal rico e complexo” (BARDIN, 2011, p. 93). Contudo, trabalhar com entrevistas requer do pesquisador rigorosidade metodológica para potencializar a análise qualitativa do fenômeno abordado.
Partindo dessa premissa, procuramos, então, os alunos inseridos por cotas raciais no Ensino Superior do IFSul/campus Pelotas. No primeiro momento, as buscas foram feitas na página inicial do IFSul, com consulta aos vestibulares anteriores e ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu), no intuito de encontrarmos o número de vagas oferecidas por curso no período de 2014 a 2017. O resultado desse levantamento foi: 757 vagas para ampla concorrência, 607 para cotas sociais e 193 para cotas raciais, o que totalizou 1.557 vagas para o Ensino Superior.
Diante desses dados, e para dar continuidade ao desenvolvimento da pesquisa, direcionamos as buscas ao Departamento de Registros Acadêmicos (Dera), obtendo, então, acesso às pastas de matrículas dos estudantes que ingressaram pela modalidade de cotas raciais. Salientamos que obtivemos acesso a um relatório dos alunos ingressantes por cotas raciais pelo sistema Q-Acadêmico2 (QA), porém os dados não se encontravam atualizados na época (dezembro de 2018).
Em muitos casos, a informação etnia (cor/raça) estava desatualizada e, nesse tópico, encontramos a seguinte observação: “Não dispõe da informação”. Ao questionarmos sobre tal situação, a informação que obtivemos foi de que o QA estava sendo atualizado devido à obrigatoriedade da autodeclaração (cor/raça) para questões de censo e pesquisa. Sendo este um sistema de gerenciamento administrativo dos mais diversos setores, incluindo dados acadêmicos dos estudantes, entendemos que manter o sistema em constante atualização é fundamental; contudo, estranhamos a falta da informação cor/raça, pois é um dado significativo, no que tange à identificação do público atendido pela instituição. Desse modo, a análise deu-se por meio das pastas de matrículas dos estudantes. Os resultados alcançados pela análise dos arquivos das matrículas (Pastas) foram: 123 estudantes matriculados por cotas raciais, autodeclarados3 pretos e pardos, na modalidade L24 e L45.
Ao compararmos os dados encontrados (vagas ofertadas x vagas preenchidas), percebemos que o número de alunos matriculados não está no mesmo patamar das vagas oferecidas, indicando que há um limite em torno do acesso e a necessidade de um olhar sistêmico sobre essa questão. Nesse aspecto, inferimos que, diante do novo paradigma de acesso à universidade, considerando aqui o oferecimento de vagas no recorte das cotas, ainda precisamos pensar estratégias para ocupação das vagas disponibilizadas. Isso implica pensarmos o acesso antes e depois do processo seletivo, ao passo que a “[...] legislação estabelece que não basta garantir o acesso, pois é necessário que o estudante consiga permanecer no ensino para obter êxito” (ISAACSSON, 2017, p. 23).
Considerando os dados encontrados nos arquivos do Dera (123 alunos inseridos por cotas raciais), verificamos o número de alunos que estavam com matrículas ativas, ou seja, com as matrículas efetivadas e atualizadas no sistema QA. A verificação deu-se de maneira individual no sistema QA, caso em que foram encontrados: 29 evadidos, 23 cancelamentos, sete trancamentos, cinco formados, duas transferências e 57 estudantes com matrículas ativas, no mês de dezembro de 2018.
A garantia do direito à educação é para todos; no entanto, o fenômeno evasão/abandono atinge as instituições de maneira geral. Desse modo, o acompanhamento do estudante torna-se imprescindível. Para Charlot (2005, p. 63), “[...] há uma relação estatística entre a origem social e o êxito ou o fracasso escolar, porque existe uma desigualdade social frente à escola”. Nesse sentido, ainda segundo o autor, “[...] ao constatar essa desigualdade social, é necessário entender como está se construindo e assim poder lutar contra ela”. Dessa forma, a instituição é desafiada permanentemente a se reformular para atender às contradições que se colocam no cotidiano escolar, em todas as suas modalidades de ensino. De acordo com Charlot (2013, p. 41), “[...] quando a escola seleciona os seus alunos, ela vive em uma situação de paz; quando ela se abre a novos públicos escolares ingressam também nela novas contradições”.
Partindo desse pressuposto teórico, é importante ressaltarmos a necessidade de um olhar sistêmico em relação ao acesso, à permanência e ao êxito do estudante. Nesse contexto, significa que o estudante tem o direito ao acesso e ao estabelecimento de uma trajetória acadêmica sem interrupções. Para tanto, as interrupções acadêmicas não devem ser banalizadas pela instituição, mas sim observadas de forma crítica, pois, por muitas vezes, a interrupção leva o aluno à evasão, e esta, por sua vez, expõe o aluno à situação de fracasso.
Para compreendermos a trajetória acadêmica dos estudantes inseridos por cotas raciais nos cursos superiores, optamos pela realização das entrevistas. Considerando a demanda de tempo que envolve a sua realização, foram selecionados os estudantes que já tivessem cursado mais de 50% do curso para nossa abordagem. Para esse recorte, as informações foram obtidas por meio do QA (dados dos alunos), o que resultou em 11 estudantes com progressão de 50% ou mais e 46 estudantes com menos de 50%. Assim definimos que a entrevista seria a amostra dos 11 discentes encontrados nos seguintes cursos: três estudantes do Curso de Engenharia; três estudantes do Curso de Engenharia Química; três estudantes do Curso de Design; um estudante do Curso de Tecnologia em Gestão Ambiental; um estudante do Curso de Saneamento Ambiental. Salientamos que nos cursos de Licenciatura em Computação e Tecnologia em Sistema para Internet não obtivemos a progressão necessária para o recorte estipulado, considerando que são cursos mais recentes na instituição.
Levando-se em conta o recorte estabelecido, foi enviada por e-mail uma carta convite no mês de julho de 2019 para os estudantes. Tal documento apresentava os objetivos da pesquisa e convidava-os a participarem dela. Passados alguns dias, sem a obtenção de respostas, concluímos que era necessário partir para o Plano B, que era buscar pessoalmente esses sujeitos da pesquisa.
Como no Ensino Superior o currículo é organizado por disciplinas, pode ocorrer que os estudantes estejam matriculados em um semestre e cursando disciplinas de outro, caso em que, para localizar o estudante na instituição (sala, curso), foi necessário averiguar a matrícula por disciplina individualmente. Assim, por meio do QA, buscamos os boletins individuais para verificar quais disciplinas os acadêmicos estavam cursando, quais horários e em quais salas elas estavam sendo ministradas. Desse modo, foi realizada a busca, porém alguns contratempos sempre acontecem. Por exemplo, o estudante não estar em sala de aula; não ter vindo à aula naquele dia; a disciplina estar sendo ministrada em outra sala; a disciplina não estar sendo ministrada por falta de professor. Nesse ínterim, voltamos ao ponto de partida até localizarmos todos os entrevistados, o que demandou tempo, esforço e mobilidade do pesquisador.
As entrevistas ocorreram no período de 6 de agosto a 12 de agosto de 2019. Todos os entrevistados tinham mais de 21 anos. As entrevistas duraram em torno de 30 minutos; foram realizadas na própria instituição, nos horários estabelecidos pelos estudantes. Ao início de cada entrevista, apresentávamos a proposta da pesquisa, solicitávamos a autorização para realizar a gravação e para utilizar as informações da entrevista na pesquisa, mantendo o anonimato dos entrevistados. Tais acordos foram firmados em cada uma das entrevistas realizadas, pela assinatura do TCLE pelo entrevistado.
Por ocasião, a amostra foi composta por quatro estudantes do sexo feminino e sete estudantes do sexo masculino, entre a faixa etária de 22 anos e 36 anos, composta por alunos do 6º ao 9º semestre. Quanto à autodeclaração, do grupo feminino, três se autodeclararam pretas e uma parda; do grupo masculino, quatro se autodeclararam pretos, e três, pardos, conforme os dados do Quadro 1 a seguir.
Entrevista | Idade | Sexo | Curso | Semestre | Autaclassificação |
---|---|---|---|---|---|
E01 | 23 | Fem. | Engenharia Química | 7º | Preta |
E02 | 25 | Fem. | Engenharia Química | 8º | Parda |
E03 | 36 | Masc. | Engenharia Elétrica | 7º | Preto |
E04 | 24 | Masc. | Engenharia Elétrica | 7º | Pardo |
EOS | 22 | Fem. |
Tecnologia em Saneamento Ambiental |
6º | Preta |
EOG | 24 | Masc. | Design | 7º | Preto |
E07 | 30 | Masc. | Engenharia Química | 9º | Pardo |
EOS | 24 | Masc. | Engenharia Elétrica | 3º | Preto |
E09 | 25 | Masc. | Design | 7º | Pardo |
E10 | 30 | Fem. | Design | 8º | Preta |
E11 | 31 | Masc. | Tecnologia em Gestão Ambiental | 6º | Preto |
Fonte: Elaborado pelas autoras. Dados da entrevista.
A partir das transcrições das entrevistas e tomando a técnica de análise de conteúdo de Bardin (2011), foram feitas as análises das comunicações. Entendemos que, na análise de conteúdo, “[...] não existe coisa pronta [...], mas somente regras de base, por vezes dificilmente transponíveis” (BARDIN, 2011, p. 36). De acordo com Bardin (2011, p. 94), “[...] qualquer pessoa que faça entrevista conhece a riqueza da fala, a sua singularidade individual”; todavia, a ação de entrevistar constitui-se em caminhar por um “estreito desfiladeiro da linguagem” (BARDIN, 2011, p. 94).
Portanto, em busca de destacarmos a voz dos estudantes cotistas e sua experiência na academia, foi feita uma primeira leitura do material, com vistas a operacionalizarmos o processo de análise da pesquisa. As entrevistas foram submetidas à decodificação e, posteriormente, à análise categorial. Utilizando os registros, a partir do roteiro estabelecido para as entrevistas (que contemplava oito perguntas abertas), buscamos captar o olhar dos estudantes sobre o contexto acadêmico, compreender sua autopercepção quanto às cotas raciais, a existência ou não de constrangimentos pelo fato de serem cotistas, outras formas de constrangimento como por discriminação, preconceito ou racismo e, por fim, dificuldades e êxitos na vivência acadêmica. Assim, destacamos, nas falas dos estudantes, a compreensão geral das cotas raciais como um mecanismo de pertencimento a uma comunidade específica e a possibilidade de superação de uma desigualdade social historicamente construída no Brasil.
Cotas raciais: um olhar de pertencimento e visibilidade social
A partir do pressuposto teórico utilizado neste trabalho, podemos afirmar que as ações afirmativas, no recorte racial, têm um papel importante na construção da identidade negra na sociedade atual. Segundo Gomes (2017, p. 94), “[...] a identidade se constrói de forma coletiva, por mais que se anuncie individual”, e as cotas raciais vêm fazendo esse movimento e, aos poucos, “[...] a negritude começa a ser percebida socialmente como uma forma positiva de expressão da cultura e da afirmação da identidade” (GOMES, 2017, p. 94-95).
Entendemos que a política de cotas veio para promover o acesso e reparar as desigualdades sociais e raciais. No entanto, podemos inferir, sem exageros, que ela possibilita a visibilidade e a valorização da população negra, bem como explicita outras questões presentes em nossa sociedade, como o racismo e o preconceito, chamando atenção para os aspectos de vulnerabilidade nas relações socioeconômicas, políticas e culturais vivenciados pela população negra. Além disso, a possibilidade de inserção por meio das cotas raciais contribui para a valorização social e para a constituição de uma identidade do estudante cotista.
A E02, quando mencionou as cotas raciais, destacou a inclusão, pois, em seus relatos, veio à tona a motivação individual e a identidade racial. Ela mencionou o grupo familiar e relatou que, nesse âmbito, cresceu como uma criança branca; que seus pais nunca abordaram a consciência sobre a sua identidade racial, mas isso foi mudando por intermédio de experiências vividas durante o curso técnico e no curso superior.
[...] na época eu tinha a ideia das cotas mais relacionada à questão da renda. [...] a minha posição racial, digamos assim, fui descobrir aqui dentro... com uma professora de Biologia que instigou isso na gente. [...] aí foi nessa situação que quando eu entendi as cotas... já no ensino superior, eu digo assim, não! Se eu sou uma mistura... me enquadro como parda [...], foi nessa linha assim de me descobrir, ãh, racialmente falando[...], é uma sensação de estar completa. (E02).
Podemos observar, portanto, a importância de trabalhar as relações raciais no âmbito da sala de aula, visto que a efetivação da política de cotas pressupõe que conhecer a história e a cultura da população negra é a base para a formação identitária e para a valorização da diversidade cultural. Segundo Woodward (2014, p. 34), “[...] a identidade torna-se, assim, um fator importante de mobilização política”, social e cultural. Podemos dizer que a cota racial é uma forma de valorizar a população negra e constrói um campo favorável para emancipação étnica, edificando “[...] uma nova forma de emancipação sociorracial do corpo” (GOMES, 2017, p. 100), mostrando que são “[...] sujeitos históricos e corpóreos no mundo” (GOMES, 2017, p. 94).
As cotas como mecanismo de visibilidade e de valorização social foram explicitadas nas entrevistas, mostrando que, antes da inserção por meio delas, a situação da população negra no campo universitário era invisibilizada e, quando um negro ocupava os bancos escolares, sua presença era atrelada ao mérito individual; raramente fazia-se relação ao racismo estrutural da sociedade brasileira. As cotas raciais denunciam a desigualdade racial presente na sociedade e reivindicam uma sociedade mais justa e mais igualitária. Nesse sentido, os estudantes ressaltaram que se sentiam valorizados e visíveis à sociedade. O E06 mencionou: “Eu acho bem interessante essa questão porque é uma valorização [...], tu sente a diferença assim [...]. Hoje em dia me sinto mais valorizado”.
Outra fala deixou explícita a questão da valorização e a da visibilidade: “[...] a gente sempre foi marginalizado... deixado de lado... então eu acho justo hoje em dia ser valorizado” (E09). Em seu relato, o E09 denunciou a falta de oportunidade estabelecida para a comunidade negra e destacou a questão socioeconômica, quando indicou que o negro vive às margens da sociedade. A política de cotas, de certa forma, possibilita a população negra inserir-se em espaços de poder e visualização social que antes eram reservados a grupos restritos.
Considerando as cotas raciais como uma abertura para a inserção da população negra no meio acadêmico, o E08 e o E11 se referiram às diferenças sociais e consideraram que as cotas ajudam a superar a falta de oportunidade presente no cotidiano da população negra, da periferia e oriunda do ensino público. Conforme indicou o E08: “[...] com certeza... porque muitas vezes eles não têm acesso né... daí de qualquer forma dá uma ajuda para ele conseguir se inserir no meio”. O E11 traçou o perfil das dificuldades sociais que os negros enfrentam:
[...] diferença gigantesca... eu sempre estudei em escola pública... morei em bairro pobre e sempre percebi que eu tenho muitos amigos e desses amigos... eu fiz superior... mais um... ou dois... e a grande maioria que não fez curso superior são negros e até mesmo pra entrar no ensino técnico... eu fiz o técnico no IFSul e era muito baixo e já não tinha negros e na época nem tinha essas cotas... não tinha o sistema de cotas e aí era mais baixo ainda, era mais difícil ainda... era muito difícil... pra entrar e a cota ajuda equilibrar... ajuda equilibrar isso [...]. (E11).
Podemos perceber que, na fala de E08 e de E11, a desigualdade social permeia a população negra nos dias de hoje. O sistema estrutural não lhes garante uma educação de qualidade, muitos não conseguem completar o Ensino Médio e poucos conseguem chegar à universidade. Indo além, no centro da estrutura social brasileira, a violência e a desigualdade têm cor, pois negros contam com menos anos de estudos e muitos jovens morrem antes de completar 18 anos, bem como têm menos acesso ao mercado de trabalho, possuem acesso restrito aos sistemas de moradia, de saúde e de saneamento básico.
De outra forma, na entrevista de E10, a estudante destacou a questão do posicionamento identitário, o avanço social e a luta diária da população negra como uma estratégia para garantir a sua visibilidade na sociedade:
A luta pelos meus direitos... atualmente a gente vê mais a questão do posicionamento... eu vejo as cotas como uma oportunidade né [...], do negro tá avançando e se inserindo... tendo mais essa oportunidade de o negro tá se inserindo no meio social... eu vejo assim esta questão... das cotas. (E10).
Partindo dessa fala, as cotas raciais, além de oportunizarem o acesso à educação, possibilitam à população negra um avanço social, pois é uma forma de minimizar a diferença existente entre os grupos sociais. A fala de E10 grita por uma mudança nas relações sociais e reivindica o respeito à diversidade brasileira. A cota racial possibilita a desnaturalização da desigualdade racial. Ela reivindica a diferença e denuncia o preconceito e o racismo, isso é um avanço social que não podemos abdicar (GOMES, 2017).
Segundo Schwarcz e Gomes (2018, p. 18), “[...] os atuais índices de desigualdade, discriminação e exclusão tornam nítida a contínua e teimosa invisibilidade das gerações negras”. Portanto, a política de cotas, de certa maneira, acirrou os debates na sociedade, na mídia, nas universidades, desvelando o “paraíso racial”. Desnudado, o Brasil teve de reconhecer que a democracia racial não existe e vivemos em uma sociedade extremamente desigual.
Corroboramos Ponce e Ferrari (2022, p. 3) quando afirmam que a educação para as relações étnico raciais deve considerar “[…] dois elementos que são indispensáveis para a construção de currículos escolares que se pretendam antirracistas: a implementação de políticas públicas adequadas ao seu objetivo e a adoção dos princípios sobre a educação para as relações étnico raciais”. Não basta estabelecermos o ingresso de estudantes cotistas, precisamos consolidar uma educação que pauta o racismo de forma crítica na sala de aula.
Nas palavras de Gomes (2017, p. 19), “a luta não dá trégua”; contudo, “[...] o Brasil do século XXI tem um perfil étnico-racial mais diverso do que de séculos atrás”. Todavia, ainda precisa avançar muito. Entendemos que ninguém nasce racista ou preconceituoso. Segundo Almeida (2019 p. 50), “[...] o racismo é uma decorrência da própria prática social [...] que se constitui nas relações políticas, econômicas, jurídicas, e até familiares”, não sendo, portanto, “[...] uma patologia social e nem um desarranjo institucional [...] o racismo é estrutural”. Nas suas bases teóricas, o autor afigura “[...] o racismo como processo histórico e político”, no qual se criam “[...] as condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados sistematicamente” (ALMEIDA, 2019, p. 51). Isso indica que, no círculo hegemônico da sociedade brasileira, permanece o racismo estrutural sem precedentes.
Diante do exposto, resta um olhar esperançoso para o futuro a espera que a sociedade possa compreender “[...] a sombra da opressão que a esmaga [...]” e “[…] expulsar essa sombra pela conscientização” (FREIRE, 2019, p. 53). Assim, estaremos em um patamar de “[...] humanização e libertação do homem e da sociedade brasileira” (FREIRE, 2019, p. 53). Freire (2019, p. 159) explica “[...] que toda a compreensão de algo corresponde, cedo ou tarde uma ação” e que “[...] a natureza da ação corresponde à natureza da compreensão”. Dessa forma, esperamos que a sociedade se conscientize que negros e brancos têm os mesmos direitos e, portanto, os mesmos deveres de se respeitarem como cidadãos brasileiros e sujeitos históricos no mundo.
Partindo dessa premissa, o E09 mostrou sua indignação, pois via as cotas como uma forma de inclusão e citou: “[...] até porque quem critica, na verdade, tem as outras cotas também que servem pra “ene” outras coisas que podem ser utilizadas também e... então não sei pra que o problema negro ter cota. É um direito [...]”. Nesse trecho, fica nítido que o aluno faz alusão a críticas contrárias à política de cotas raciais. Segundo Soares (2014), a grande maioria das pessoas representa as bases do senso comum, “[...] com pouco conhecimento político, histórico ou social, prevalecendo o conhecimento de cunho ideológico” (SOARES, 2014, p. 4). Para a autora, também há um número de intelectuais que atuam nas universidades argumentando contra o sistema de cotas:
Há também intelectuais que atuam em universidades que emitem opiniões e escrevem trabalhos científicos argumentando contrariamente ao sistema de cotas, com inúmeras justificativas. Em sua maioria, são intelectuais brancos e de classe média alta, que parecem subestimar o racismo no Brasil. (SOARES, 2014, p. 4).
De acordo com Gomes (2017, p. 20), “[...] vivemos em tempos de políticas de ações afirmativas nas universidades e nos concursos públicos”. Logo, “[...] isso mexe com as forças conservadoras, com o capital e com os grupos de poder” (GOMES, 2017, p. 20). Ainda segundo a autora, “[...] mexe com o mercado de trabalho excludente e com os grupos que sempre ocuparam vagas de emprego, lugares de poder e liderança, como se fossem privilégios de alguns e não direito social de todos e todas” (GOMES, 2017, p. 20).
Para os estudantes entrevistados, as cotas raciais caracterizam-se como uma possibilidade de acesso ao Ensino Superior que os motivou a ingressar na instituição. Também servem como fomento para que a população negra busque seus direitos; o direito de serem representados nas universidades públicas do Brasil, pois, além da visibilidade, os estudantes negros sentem-se valorizados. Aferimos, então, que o sistema de cotas configura outro perfil de estudantes: “[...] a juventude negra que se afirma por meio de sua estética e da ocupação de lugares acadêmicos e sociais” (GOMES, 2017, p. 75). Ainda segundo a autora, “[...] juventude, essa, em sua maioria periférica, que aprendeu a ter orgulho de ser negro e da periferia, numa postura afirmativa e realista” (GOMES, 2017, p. 75).
Nesse sentido, podemos dizer que as universidades no Brasil, hoje, tornaram-se mais plurais e heterogêneas e que as ações afirmativas, de maneira geral, protagonizam essa pluralidade. A política de cotas vem ajudando a minimizar a desigualdade de acesso ao Ensino Superior e vem aos poucos transformando o quadro de exclusão social da população negra. Todavia, a permanência está para além do acesso; nessa perspectiva, é preciso que as instituições estabeleçam políticas direcionadas para a permanência dos estudantes.
Considerações finais
A presente escrita analisou a trajetória acadêmica de estudantes cotistas no Ensino Superior do IFSul/campus Pelotas, enfatizando o olhar para a sua permanência nos espaços dessa instituição. Para tanto, iniciamos o texto apontando os desafios ali presentes em abarcar as diversidades sociais e culturais dentro de uma sociedade heterogênea. No que concerne a essa questão, podemos afirmar que a instituição busca atualizar-se com as normas e as mudanças advindas no aspecto educacional e político. Dentro dessa perspectiva, evidenciamos o desafio como entidade de Ensino Superior de Graduação, considerando deslocamentos novos no enfrentamento de políticas que abranjam as diversidades que a sociedade impõe, seja nos campos político, social e cultural. Consideramos, de forma específica, a consolidação da Lei Nº 12.711/2012, que estabelece ação norteadora no âmbito das garantias de acesso e de permanência dos alunos inseridos pelas cotas raciais nos cursos superiores da instituição.
As cotas raciais foram implementadas no IFSul/campus Pelotas, por meio do Edital nº 072 de 20136, e os primeiros estudantes, no recorte de cotas raciais, ingressaram na instituição em 2014. Os documentos da instituição permitiram-nos identificar a implementação das cotas étnico-raciais e a quantidade de vagas disponibilizadas. Obtivemos, também, permissão da instituição para acessar a base de dados do Instituto com o objetivo de mapear a quantidade de alunos que efetivamente ingressaram por cotas e em quais cursos estavam matriculados. Após identificarmos os discentes cotistas, dialogamos com eles, no intuito de compreendermos particularidades da vivência acadêmica.
Foram realizadas 11 entrevistas e verificamos que os estudantes se sentem valorizados com o advento das cotas. Inferimos, assim, que a política de cotas consolidou novos espaços de atuação para a população negra, produzindo visibilidade e criando possibilidades de acesso a espaços restritos, dentre eles as instituições públicas. Nesse sentido, percebemos que a cota contribui para a visibilidade e a valorização social da população negra, bem como potencializa uma identidade de estudante cotista que se reconhece em um corpo negro como sujeito histórico no mundo.
Ao passo que o Brasil, demarcado por um longo período de escravidão, deixou marcas profundas de desigualdade, ainda hoje percebemos que a maioria da população negra vive às margens da sociedade por falta de políticas públicas para atender essa demanda populacional. Dessa maneira, as cotas raciais são percebidas como uma política de inclusão e de reparação histórica e vêm atuando no combate às injustiças sociais e raciais alicerçadas sobre um terreno preconceituoso que é a nossa sociedade. Tomando por base essa reflexão, pudemos perceber que os estudantes cotistas negros atrelam a política de cotas a um processo de reparação histórica. Ao fazerem essa conexão, os estudantes entendem que as cotas têm como objetivo amenizar as desigualdades sociais e raciais construídas ao longo do tempo.
Por fim, a análise configura que, para alguns estudantes, as cotas, além de oportunizarem o acesso à educação, possibilitaram um avanço social e a visibilidade na rede de relações acadêmicas e sociais. No entanto, constatamos, no desenrolar das entrevistas, que a demanda de alunos/as negros/as no Ensino Superior ainda está distante de uma posição igualitária, visto que, mesmo com as cotas, o número de estudantes negros na sala de aula ainda é pequeno. Assim sendo, somente essa política não dá conta de superar os processos da desigualdade social e racial que existem na sociedade brasileira. Faz-se necessário, por conseguinte, pensarmos em novas construções políticas para mudar esse quadro. Se o acesso não garante a permanência, precisamos criar estratégias de permanência e êxito do estudante da instituição educacional.