Preâmbulo
O esboço e a exposição inicial das reflexões que vão neste artigo seriam animados pela música “Apesar de você...”, de Chico Buarque de Holanda. A ideia era afirmar que, apesar das derrotas sucessivas que agravavam o quadro político institucional e da identificação de debilidades que as favoreceram (o descaso no enfrentamento da questão racial entre elas), os setores progressistas teriam condições de “dar a volta por cima”, aprender e ensinar novas lições e, em breve, “raiaria um novo dia!!!” Aos poucos fui mudando a perspectiva. E, então, a canção de Gilberto Gil “O sonho acabou” (1972) 1 tomou conta de mim! Isso porque, de uma maneira geral, a militância do Movimento Negro e as/os não negras/os, engajadamente antirracistas, acreditaram que eram consistentes os avanços políticos e institucionais antirracistas sob o “guarda-chuva conceitual” do respeito aos direitos humanos e diversidade, alguns contemplados em legislações, e práticas de Estado e governamentais, e na sociedade civil, pelo menos entre setores progressistas. Aos poucos, foi ficando evidente que “o buraco é mais embaixo”! As “conquistas” mostraram-se mais discursivas e “politicamente corretas” do que efetivas, precárias e insuficientes para a retomada de iniciativas e de novas mobilizações progressistas. Foi-se a crença de que seriam irreversíveis. Resta considerar que é necessário se lançar à construção de novas estratégias no Movimento Negro, capazes de gerar mais consistência às lutas contra o racismo, para que se renovem os sonhos e, mesmo entre os setores progressistas, predomine e seja efetivo o reconhecimento de que “Questão Racial, Questão Nacional”!2 Espero explicitar melhor as razões da mudança no título e em minhas perspectivas ao longo do texto.
É chocante a percepção de que faltava profundidade/consistência/efetividade nos avanços e nas conquistas legais-institucionais pós redemocratização, “turbinados” a partir de 2003 e até o golpe de 2016. Apesar de tudo isso, não eram flagrantes a perpetuação das desigualdades sociais-raciais e os contrastes culturais entre “elites e massas”? Concordo que a pouca efetividade das “conquistas políticas-institucionais” contaminavam, também, diferentes âmbitos governamentais, programas econômicos, culturais e outros, ao longo desse período. Este artigo, porém, tomando como exemplo as dificuldades na implementação das Leis, se restringe a observar que – mesmo valorizando iniciativas, esforços e realizações – em relação à questão racial, tudo se mostrou insuficiente para barrar, sequer enfrentar, a onda de conservadorismo e reacionarismo. E por quê?
O contexto em que foram sancionadas e estão sendo implementadas as leis
A crise das esquerdas e a falta de uma referência socialista coloca para os movimentos sociais, a reflexão e a busca de novos paradigmas que orientem a ação política cotidiana, uma vez que as teorias socialistas já não dão conta das tarefas e da nova realidade sociocultural do mundo contemporâneo. Nessa nova realidade, emergem as demandas do Movimento Negro, que na periferia do capitalismo desenvolvido é constrangido a reelaborar uma política de intervenção – de combate ao racismo – quando as teorias “das lutas de classe” não respondem mais às lutas de sujeitos sociais específicos. (OLIVEIRA, 2002, p. 17).
No final do século XX, entusiasmos da “redemocratização” pós-anistia política impulsionaram pregações libertárias e críticas antigas às características dos processos educacionais no Brasil. A retomada do Movimento Negro Brasileiro interagiu intensamente com aquele contexto, demandando mudanças curriculares e em procedimentos didático-pedagógicos. Apenas um exemplo, entre muitos outros em todas as regiões do país, do engajamento e da atuação de organizações negras, o Núcleo de Estudos Negros (NEN), do estado de Santa Catarina, durante muitos anos, publicou a Série Pensamento Negro e Educação (ROMÃO, 1997)3
Alguns agentes políticos-institucionais se esforçaram, embora timidamente, nesse sentido. Vale pontuar, como exemplo, o Seminário Raça Negra e Educação, realizado em São Paulo, em dezembro de 1986, organizado pela Fundação Carlos Chagas e pelo Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo; também a Revista Proposta, nº 51, da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE);4 e adiante, no âmbito do Ministério da Educação (MEC), a criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) – o volume 10 foi sobre “Pluralidade Cultural e Educação Sexual” (BRASIL, 1997).
A partir de 2003, com o incremento de agendas progressistas, especialmente em âmbito federal, impulsos governamentais e em setores proeminentes da sociedade civil visaram atender demandas antigas do Movimento Negro Brasileiro, de redes de educadores antirracistas e de estudiosos(as)/pesquisadores/as (frequentemente oriundos/as do Movimento Negro), de que era necessário e urgente enfrentar o preconceito e a discriminação racial na educação. Os órgãos e os mecanismos dos sistemas educacionais estariam encarregados de coordenar e proceder mudanças curriculares e em procedimentos didáticos, em todas as modalidades de ensino. Agora era exigência legal criar formas de atender àqueles reclamos.
Correspondiam aos acúmulos de incontáveis encontros e dinâmicas políticas e pedagógicas, em contextos de variadas características e dimensões, institucionalizadas ou não, mesclando agentes educacionais, pesquisadores acadêmicos, educadores-militantes do Movimento Negro e suas intersecções; tudo interagindo com pensamentos críticos do euroetnocentrismo sobre interpretações da formação e do desenvolvimento da sociedade brasileira. Assim é que se foi plasmando o subcampo acadêmico Educação e Relações Etnicorraciais (ERER), um suporte fundamental para a efetiva implementação das Leis. Ações emblemáticas desse processo foram: a sanção presidencial ao Art. 26-A (redação dada pela Lei Nº 11.645, de 10 março de 2008) e ao Art. 79-B (incluído pela Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003) da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) – Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), os pareceres e a resolução de 2004 do CNE, que geraram as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (DCNERER), assim como o Plano Nacional de Implementação da Lei em tela.5 Entre 2003 e 2016, vários órgãos do executivo federal (com destaque para a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e Secretaria de Ensino Superior (SESU), ambas do MEC), quase sempre em parceria com executivos estaduais e/ou municipais, e Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (NEABs) de inúmeras universidades, levaram a efeito um esforço admirável, financiando e realizando Cursos de Formação Continuada de Educadores e diversas linhas de publicações, com foco na História e Cultura Afro-brasileira e Indígena. Notáveis, também, a extensa lista de publicações patrocinadas e organizadas pela SECADI-MEC, editais de apoio a manifestações e eventos culturais de parte da Fundação Cultural Palmares, no Ministério da Cultura, além da extraordinária e altamente qualificada produção e publicações do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), do Ministério do Planejamento, exaustivas em dados qualitativos e quantitativos, demonstrando que as desigualdades raciais estruturam e são decisivas para a perpetuação das desigualdades sociais no Brasil.
Apesar de tudo, da legislação e da normatização subsequente, a efetiva implementação das leis vem se constituindo em um desafio, para gestores e planejadores, difusores e financiadores, ou ainda na base dos sistemas, entre educadores e suas práxis em cotidianos escolares. Parecem normais obstáculos de todo tipo, naturalizando a invisibilidade-invisibilização, tanto da questão racial (preconceito e discriminação racial ostensivos na reprodução das desigualdades sociais, e da cultura do racismo em todo o espectro da vida social brasileira), quanto das diversas e complexas dinâmicas de resistência protagonizadas por negros e mulheres negras, em todo o território nacional.6
Vejamos alguns exemplos de situações registradas em relatórios de pesquisa realizada em 2016 e 2017, sobre a implementação das Leis Nº 10.639/2003 e Nº 11.645/2008 (BRASIL, 2003, 2008), por estudantes de diversas licenciaturas. Comecemos por trechos de comentários de uma diretora, que sabia das leis e de sua importância:
É complicado porque o professor é capaz de fazer o que ele quiser ou não, por que tem muito professor que tem um discurso muito bonito, mas a prática não é nada disso. [...]. Depende de o professor achar importante... se o professor achar importante pode ter Lei ou não, que aquilo vai acontecer, se ele internalizar aquilo, pronto, ele vai trabalhar. Depende do professor, [se ele] é o protagonista, se ele quiser, tendo Lei ou não, ele trabalha. Eu faço parte do comitê de étnico-racial do estado Rio de Janeiro, há muito tempo a gente não tem mais reunião, a coisa sabe, eles tiraram a pessoa que era a Selma, que era bem integrada e tudo a gente ficou sem contato e nunca mais houve esses encontros do comitê.(Diretora da Escola Estadual Sargento Antônio Ernesto, bairro Cabuçu-Nova Iguaçu–Relatório de Alice Regina Santos-2016-2).
Agora a resposta chocante, pelo descaso e desinteresse de um professor, mesmo perante a insistência da pesquisadora, e depois de ouvir sobre as leis:
Victória (pesquisadora): Você conhece as Leis 10.639/03 e 11.645/08?
Professor: Nunca ouvi falar.
Victória: Tá. Você pode falar sobre o que ela representa para você?
Professor: Nada, nunca ouvi falar. Não conheço.
Victória: É sobre a integração [de conhecimentos sobre a história] africana e indígena na escola/ sala de aula.
Professor: Isso é uma prática cotidiana na nossa escola. Não precisamos de lei para isso. Victória: Okay.... E a seu ver, quais são-seriam os resultados da implementação das Leis? Professor: Não ia fazer muita diferença, porque Acervo 80% dos nossos alunos são mestiços. Uma minoria branca e uma minoria negra.(Relatório de Vitória da Cruz Pereira – Colégio Estadual Guadalupe-RJ).
São comuns nas falas dos/as entrevistados/as reclamações de que falta formação adequada. Entretanto, os/as pesquisadores/as comentam que, mesmo depois de serem alertados de que já há farta bibliografia, vídeos e muita informação na internet, e outros esquemas de formação, predominam insensibilidade e resistência-rejeições-desinteresse entre a maioria dos/as educadores/as. Embora um coordenador pedagógico de escola particular declare conhecer as Leis, diz que lá elas são implementadas “indiretamente”, se vê isento de responsabilidades e prefere falar na necessidade de “penas mais rigorosas”, para que se cumpram as Leis.
C.A: O problema não é a lei, o problema é a implementação da lei. A questão é educacional, não adianta ter lei se a gente não cumpre. Essa lei é bem simples, mas não se cumpre, seja por falta de conhecimento ou falta de educação. Lei a gente tem muita, mas se a gente não tem educação a lei vai ficar por aí. A gente falta cumprir, cobrar e ter penas mais rigorosas. (Entrevista concedida a Marcos Silva-2017-2 a um professor da escola).
Comum, também, é a ocorrência de atividades apenas em datas comemorativas, como diz esse orientador pedagógico. Ele conhece as leis, defende a necessidade de que sejam postas em prática e expõe uma visão crítica do contexto escolar, indiferente ou reativo. No entanto, a impressão final do pesquisador é de que o orientador, talvez mesmo por cansaço, também não demonstrou interesse e engajamento, a responsabilidade de nada acontecer é sempre de outros profissionais:
Não. Eu não vejo. Infelizmente eu vou ser muito sincero. Sabe, a gente põe no PPP [Projeto Político-Pedagógico], a gente pede, a gente pede para planejar algo e fica aí como está. Agora em novembro, a gente tem a questão da consciência negra, eu acho que é uma atividade que deve ser trabalhada no dia a dia, não só para mural [Figura 1], para trabalho. Enfim, mas eu acho que quando a gente tem uma data, a gente deveria pelo menos estar mais estimulado. Não estou vendo nada. Não sei se eu sou mais velho, mas eu estou vendo muito blá blá blá e pouca prática, sabe? Na hora de chegar junto ninguém chega. (Entrevista do orientador da Escola Estadual Laerte Grise-Serepédica. Discente Pesquisador: Giovany Rodrigues Escala).
Contudo, o contrário também acontece: a escola pode não implementar as leis (nem no PPP, nem nas práticas do conjunto de professores), mas há educadores/as que, mesmo isolados/as, assumem responsabilidades, criam projetos e se tornam referência de engajamento nesses temas para a comunidade escolar:
Eu vejo mais esse movimento no âmbito do Ensino Médio aqui como professora do município e coordenadora. Eu não vejo uma conscientização sobre esse assunto e nem vejo uma abertura no currículo e na grade para se falar sobre esses temas, que são pouco debatidos. Eu, como coordenadora, participei de reuniões de formação, cursos e formações na oitava coordenadoria da qual a nossa escola faz parte e pouco se fala sobre esse assunto. Felizmente, aqui na nossa escola, temos uma professora que é muito atuante no movimento negro na causa afro e na valorização na cultura afro e aqui na escola temos um projeto em grupo chamado meninas MBP (meninas Black Power Piquet) e ela desenvolve essas meninas nesse sentido. (Relatório de Rian de Souza Facundo. Entrevista com um professor da escola).
E o pesquisador procurou e encontrou a confirmação:
Pesquisador: Está sendo implementada na escola? Como?
Estudante do Ensino Médio: Não. São pouquíssimos trabalhos que citam a África e coisas relacionadas. O nome do projeto é meninas Black Power. E, na verdade, essa iniciativa veio do professor Francisco, mas quem ministra é a professora Josélia. O nosso objetivo é trazer mais pessoas para a nossa cultura também, não apenas pessoas negras, mas todo o tipo de pessoa que tenha a autoestima baixa. E nós temos projetos e atividades aqui na escola. (Escola José Piquet Carneiro – Bangu – Pesquisador Rian de Souza Facundo).
Sobre a pesquisa
Os relatórios resultaram de investigações junto a escolas da zona oeste do Rio de Janeiro e de municípios da Baixada Fluminense, em 2016 e 2017. Apenas os relatórios de escolas dessas regiões foram analisados, porque seriam convidadas a participar de um projeto de extensão, que não atenderia em localidades muito distantes do campus Seropédica, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Em 2018 e no primeiro semestre de 2019, com o desenvolvimento da pesquisa, obtivemos mais de 500 relatórios, de mais de 450 escolas, algumas de diversos bairros da capital e de escolas de cidades do interior. Foi possível, então, confirmar que o quadro é semelhante em todo o estado do Rio de Janeiro.7
O esquema e a “pegada” (metodologia) da pesquisa foram sendo definidos a partir de falas de estudantes sobre como haviam sido suas experiências no ensino básico, em relação aos temas e aos conteúdos discutidos na disciplina ERER, obrigatória para todas as licenciaturas, no Departamento de Teoria e Planejamento do Ensino (DTPE), do Instituto de Educação da UFRRJ. A partir daí, foi elaborado um questionário com cinco perguntas e proposto às turmas, como uma das avaliações finais da disciplina, que investigassem – individualmente, de preferência nas escolas onde cursaram o ensino básico – se, e/ou como estavam sendo (ou não) implementadas as Leis Nº 10.639/2003 e Nº 11.645/2008. O questionário foi adotado como ponto de partida, em cada ambiente educacional visitado. Desde a preparação e em cada etapa da pesquisa, os/as estudantes tiveram oportunidade de refletir sobre sua formação, de voltar a escolas de ensino básico com novas posturas, informações e reflexões, e exercitar seu espírito investigativo e capacidade de análise – todo o processo foi individualizado, socialização só em um seminário final.
Os/as licenciandos/as foram iniciados/as em procedimentos básicos de pesquisa, coleta e organização de dados e de elaboração de relatórios; e orientadas/os a entrevistar: pelo menos um/a educador/a, um membro da coordenação pedagógica, um membro da direção, e um/a estudante. As entrevistas quase sempre foram realizadas separadamente, com cada agente educacional – menos com estudantes, quase sempre em grupo. Foi também enfatizada a necessidade de gravar as entrevistas em áudio e/ou vídeo, de que fossem transcritas, de solicitar acesso ao PPP e de fotografar murais e outros documentos, como formas de comprovação.
Os relatórios considerados completos foram os compostos por descrições e reflexões sobre o contexto da pesquisa e pela transcrição e análise das falas dos/as agentes educacionais. A maioria dos/as entrevistados/as – diretores/as, orientadores/as pedagógicos/as, professores/as e estudantes – não conheciam as leis em tela e/ou não sabiam que eram obrigatórias, em quase todas as escolas pesquisadas. Não apenas o desconhecimento das leis chamou atenção, pois, nas escolas em que foram realizadas as atividades, a responsabilidade era quase sempre isolada de um/a ou outro/a professor/a, maioria professores/as de História, de Língua Portuguesa ou de Artes. No Ensino Fundamental parece que é mais aleatória a abordagem de História e Cultura Africana, Afro-brasileira, Indígena e referências à questão racial. No Ensino Médio, é comum aparecerem esses temas, principalmente no terceiro ano, visando os exames para o ingresso em universidades, considerando que podem ser cobrados no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). No mais, o desconhecimento da maioria dos/as agentes educacionais beira o senso comum. Fora de contextos de agência do Movimento Negro e ostensivamente antirracista, são escassos e pouco difundidos estímulos/oportunizações de debate e eventos sobre os temas, a importância da sua transversalidade e as vantagens para a relação ensino-aprendizagem com visão-postura crítica para a formação da consciência social de crianças e adolescentes.
Foram encontradas situações em que diretores/as de escolas eram contrários/as às Leis e as consideravam desnecessárias e populistas. Desse modo, ficou evidente, no caso dessas escolas, que a não aplicação das leis sinalizava vieses ideológicos, limitando, inclusive, o direito de crianças e de adolescentes acessarem esses conteúdos.
Por que prevalecem tamanha resistência e dificuldades? Alguns apontamentos históricos ajudam na contextualização do quadro atual.
A raça e a sublimação do racismo
Não há solução para os males sociais fora das leis da biologia. Não há política racional, independente dos princípios biológicos, capaz de trazer paz e felicidade aos povos. Política econômica, conservadora, democrática, socialista, fascista, comunista, todas essas políticas e formas de governo falham se não se inspirarem nos ditames da ciência da vida. Eis, por que, a política por excelência, é a política biológica, a política com base na eugenia. (KEHL, 1933apudGÓES, 2015, p. 8)8.
“O negro” sempre foi um objeto de estudos para pensadores sociais brasileiros, como para as elites intelectuais em toda América. Visto como um problema, um obstáculo a avanços civilizacionais, “um fator da nossa inferioridade como povo”, como escreveu Nina Rodrigues (1976, p. 7). Quantos e quais, entre os mais influentes “pensadores sociais”, o consideravam partícipe da construção nacional? Dramas humanos e sociais antes e depois da escravidão, constitutivos da história social brasileira, eram deixados de lado (invisíveis, estereotipados, encaixados em interpretações “a doc”, omitidos, silenciados) por teorias e metodologias “cegas à cor”, na verdade cegas à questão racial!
Aos poucos, vem sendo mais conhecida e estudada a trajetória da ideia de raça, constitutiva da chamada modernidade ocidental e do conceito de nação e de nacionalidade, que impulsionou a aventura imperial europeia. Vem sendo feita a crônica dessas influências sobre a intelectualidade brasileira nas décadas iniciais do século XX. De como aquelas ideias impregnaram o arcabouço jurídico, filosófico, e tudo o mais que moldou a instituição do Estado nacional republicano, estigmatizando as grandes maiorias negras e mestiças e orientando-planejando-executando as políticas públicas que o efetivaram – especialmente a colossal política de imigração e colonização, para substituir o negro como principal matriz genética/demográfica da sociedade brasileira.
Só nos anos de 1930, especialmente a partir dos livros Casa Grande e Senzala, cuja primeira edição se deu em 1933, e Sobrados e Mocambos, em 1938, Gilberto Freyre reconheceu a importância do negro no período colonial e durante o império, rompendo com a pregação, até então amplamente dominante, do desvalor do negro e de sua incapacidade de constituir uma sociedade saudável, apta ao desenvolvimento e à civilização. A visão de Freyre, além de inovadora, era conveniente para os esforços de consolidação de apoios sociais e de alianças políticas capazes de sustentar a Revolução de 30, sem contar que ajudou na criação de nova narrativa sobre a identidade nacional, a partir da valorização da esmagadora maioria mestiça da população. O pensamento de Freyre, especialmente a narrativa de Casa Grande e Senzala (FREYRE, 2019), eclipsou (não superou) a visão arianista/eugenista, que continuou orientando a maioria da intelectualidade brasileira em seus projetos e suas realizações. No entanto, em outra mão, aquele autor inaugurou novo momento no pensamento social: era “criada” a etnicidade negra! Para Freyre (2015), o negro não era um obstáculo, mas um “co-colonizador”! Suas características mais marcantes, a culturalidade exótica e atavismos (reminiscências de africanidades e do escravismo) constituíam a “alma” brasileira! A escravidão teria sido benigna para negros e para o desenvolvimento da sociedade, e a mestiçagem que campeara entre negras, indígenas e brancos seria um diferencial, redimindo conflitos e equilibrando antagonismos em nossa formação social. Tais idealizações, entusiasticamente acolhidas por grande parte da intelectualidade brasileira, e também em âmbito internacional, fincaram as linhas mestras da ideia de democracia racial, que se tornaria um “mito fundante da nacionalidade”... e um exemplo para o mundo!
O antirracismo e o protagonismo negro
O protagonismo do Movimento Negro na relação educação e Movimentos Sociais tem se constituído como um dos principais mediadores entre a comunidade negra, o Estado, a sociedade, a escola básica e a universidade. (GOMES, 2018, p. 42).
Cada vez mais se mostram insensatas resistências em relação às demandas de enfrentamento do racismo, das quais as dificuldades na implementação das Leis Nº 10.639/2003 e Nº 11.645/2008 constituem um exemplo em contextos educacionais. Em todas as áreas do conhecimento, acumula-se, pois, extraordinária massa crítica sobre a importância deletéria da raça-racialização-racismo na construção do mundo contemporâneo; e, no Brasil, crescem os estudos sobre a trajetória das lutas negras – o “outro lado” – desde as remotas evidências dos Quilombos e outras formas de luta; e dos notáveis esforços de adaptação/resistência, compreensão e ação nos meios negros, face ao que, no pós emancipação, poderia ser uma nova condição – Cidadania!
Imensa frustração! Uma historiografia crítica do “abandono social” e da inferiorização a que era relegada a “massa ex-escrava” e seus descendentes só aparece após a visão pioneira de Clóvis Moura (1977) – por sinal, longamente menosprezada em hostes acadêmicas – que só se consolidou na virada do século XX para o XXI, graças a pesquisadores/as negros/as e não negros/as conscientes da importância de mais pesquisa sobre aquele momento histórico. Essa nova vertente historiográfica tem evidenciado dificuldades e tragédias, mas também jeitos e caminhos de superação no seio da grande maioria negra. Ademais aparecem protagonismos negros no amplo espectro da vida social em todas as regiões.9
Em outros campos acadêmicos também se firmam olhares críticos às idealizações da democracia racial e se torna evidente o racialismo entranhado no chamado pensamento social brasileiro – as visões e as projeções dos mais prestigiados intelectuais sobre a formação e o desenvolvimento da sociedade. Isso vem impondo releituras em relação à crucialidade da questão racial: sobre a vasta influência das doutrinas do racismo científico, do darwinismo social, de entidades, de programas, da “nata das Ciências” presente no Congresso de Eugenia de 1929, cujos principais agentes/pensadores estiveram à frente das concepções, do planejamento e da execução de políticas públicas de educação, de saúde, de habitação, urbanização e saneamento, de segurança pública...10
A partir dos anos de 1950, os estudos de Florestan Fernandes e outros – como os desenvolvidos no âmbito de um grande programa de pesquisa parcialmente financiado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)11 – foram um contraponto à prevalência das idealizações-romantizações do freyreanismo que fundamentavam a ideia de que, no Brasil, vigorava uma democracia racial. É um clássico das Ciências Sociais brasileiras a investigação e a análise de Florestan Fernandes (1964) sobre os “Movimentos Sociais no meio negro”12 desde as décadas iniciais do século XX. Impressiona a riqueza de depoimentos de dezenas de militantes negros/as em encontros assistidos por Florestan e/ou por seus auxiliares de pesquisa, nos quais se discutiam os prejuízos decorrentes do racismo e a envergadura de suas ações, ao longo de muitas décadas.13 Foi por meio daquela pesquisa que se tornaram conhecidos o fenômeno da FRENTE NEGRA BRASILEIRA e de uma potente e combativa Imprensa Negra, em São Paulo, e em outras regiões do Brasil.14
As correntes mais influentes das Ciências Sociais no Brasil, no entanto, levaram muito tempo para se reconhecer o pioneirismo da Sociologia do Guerreiro: a intensidade e o engajamento de Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), um dos intelectuais mais articulados, produtivos e desafiadores do establishment acadêmico nos meados do século XX15 (BARIANI JUNIOR, 2011). Assim como as personalidades de Abdias do Nascimento (Franca/SP, 1914, e Rio de Janeiro, 2011) e de Solano Trindade (Recife, 1908, e Rio de Janeiro, 1974) citadas sempre como importantes lideranças da vasta insurgência negra que se generalizou em quase todas as regiões brasileiras, naquele período.16 Semelhante ao que ocorre em relação à ruptura estabelecida pelos estudos de Carlos Hasenbalg (1979) e outros, a partir dos finais dos anos de 1970, que só recentemente vem obtendo o reconhecimento merecido, no âmbito das nossas Ciências Sociais.17
Só a re-emergência do Movimento Negro Brasileiro nas últimas décadas do século XX pôs em xeque o sedutor paradigma da democracia racial. Como um movimento social, instituiu-se “a ferro e fogo”, aproximou-se e identificou o papel político das manifestações culturais de matrizes africanas e plasmou a ideia de Consciência Negra – valor do negro e necessidade-possibilidade de enfrentar o racismo. A partir de então, potencializadas por diversos fatores e uma nova conjuntura nacional e internacional,18 multiplicando-se e articulando-se em entidades e grupos negros, de variados tipos, em todas as regiões brasileiras, as denúncias e os enfrentamentos ao racismo tomaram força e conquistaram crescentes espaços institucionais e políticos.
Novos territórios, temperatura e pressão
Não precisamos ser profetas para compreender que o preconceito incutido na cabeça do professor e sua incapacidade em lidar profissionalmente com a diversidade, somando-se ao conteúdo preconceituoso dos livros e materiais didáticos e às relações preconceituosas entre alunos de diferentes ascendências étnico-raciais, sociais e outras, desestimulam o aluno negro e prejudicam seu aprendizado. O que explica o coeficiente de repetência e evasão escolar altamente elevado do alunado negro, comparativamente ao do alunado branco. (MUNANGA, 2005, p. 16).
Além de reconhecer prejuízos, mas também lutas e protagonismos das populações negras, até pouco tempo invisíveis como constitutivas na construção da sociedade e da vida nacional brasileira, é preciso historiar e contextualizar brevemente a própria emergência do novo subcampo acadêmico da ERER. Isso porque ele articula extraordinária massa crítica a partir de visões antirracistas de novos/as pensadores/as sociais, capitaneados/as pelo protagonismo político-ideológico do Movimento Negro, especialmente no âmbito da Educação, problematizando e ressignificando saberes “universalmente consolidados” e a naturalização do racialismo e etnocentrismo em currículos e procedimentos pedagógicos.
Oportuníssimo, então, observar a proeminência de textualidades e ressignificações que emanam de práxis didático-pedagógicas de educadores/as negros/as e não negros/as antirracistas. Vale ressaltar a obra de Azoilda Trindade (1994) 19 e sua pregação pioneira de que o contexto dos sistemas educacionais e no cotidiano escolar estava impregnado de racializações, muitas vezes inconscientes e involuntárias. Em escrita dialógica e amorosa, essa autora interroga a normatização da branquitude, incapaz de enxergar que os corpos carregam estigmas e outras representações construídas nas relações sociais, como o desvalor associado ao corpo negro, a partir da história e das imagens da escravidão, perpetuado em preconceitos e estereótipos insidiosos, naturalizados no imaginário e na vida social. Azoilda Trindade então convida os educadores:
Imaginem se nosso olhar sobre nossas crianças de Educação Infantil forem carregados da certeza de que elas são sagradas, divinas, cheias de vida.
Podemos trabalhar a potencialização deste princípio nas nossas crianças, se nosso olhar, nosso coração, nosso corpo senti-las verdadeiramente assim.
Elogios, um afago, brincadeiras de faz-de-conta, nas quais elas se sintam a mais bela estrela do mundo, a mais bela flor, alguém que cuida, alguém que é cuidado. Um espelho para que elas se admirem, para que brinquem com o espelho, e se habituem a se olhar e a serem olhadas com carinho e respeito. (TRINDADE, 1994, p. 142).
Para Azoilda, a inconsciência desse problema e do seu impacto na formação dos valores sociais e culturais era obstáculo à constituição de comunidades pedagógicas e ao entrosamento de agentes educacionais com estudantes, e destes entre si. Daí, a responsabilidade de educadores/as: sua (in)sensibilidade e sua empatia (ou falta de) são vistas como decisivas para o “rendimento escolar”. Isso fica evidente na elaboração dessa autora, sobre os “valores civilizatórios afro-brasileiros”!20
Azoilda Trindade e sua práxis pedagógica constituem um exemplo, por excelência, do protagonismo de novos agentes sociais e políticos capitaneados por Movimentos Sociais negros e indígenas nos finais do século XX e no século XXI, que arregaçaram as concepções de Direitos Humanos e do valor da diversidade cultural. As ousadias, as irreverências e as problematizações trazidas por arautos da consciência negra e antirracista instituíram-se por fora de (muitas vezes contra) esquemas acadêmico-institucionais. De maneiras inter e transdisciplinares potencializaram vivências críticas, tantas vezes isoladas, angustiadas, de educadores em incontáveis salas de aula e em contextos educacionais mais amplos e diversos. Aos poucos, insufladas por crescente bibliografia ensaística e de resultados de pesquisa, e pela produção cultural/artística que emergia dos “mundos negros” onde sempre estiveram, e que agora galgavam condições de se insurgir21, aquelas vivências foram trançando o magma de transgressões curriculares, inserindo temas, conteúdos e procedimentos didáticos, de que se alimentam os esforços de implementação das leis em tela, e alentadas discussões em licenciaturas de quase todas as universidades brasileiras.22
Além das pressões da militância negra, é notória, na redação dos PCN (BRASIL, 1997), a influência das teorias do multiculturalismo, predominantes no hemisfério norte e, por decorrência, entre a intelectualidade brasileira no mesmo período. Conjuminâncias políticas e teóricas que abriram espaços para novos olhares sobre a formação e o desenvolvimento da sociedade brasileira. Todavia, para educadores antirracistas, era pouco: mais do que “reconhecimento” do valor das “culturas negras”, postularam mudanças curriculares e em procedimentos pedagógicos. Não bastava a “universalização” da educação e mais vagas no Ensino Superior como pregavam setores progressistas – era preciso considerar as flagrantes e “tradicionais” desigualdades de oportunidades, além da questão política imanente aos valores a serem aprendidos, e a que tipo de seres humanos formar. O crescimento de investimentos e as oportunidades educacionais deviam ser acompanhados da desracialização e da problematização dos currículos euroetnocentrados, a partir de novos referenciais históricos, simbólicos e estéticos, inaugurando práxis pedagógicas efetivamente dialógicas, capazes de aprender e ensinar novas lições potencializadoras de leituras críticas do mundo. Dessa forma, haveria currículos coerentes com aquele contexto histórico-social-educacional, capazes de ajudar a construção de novos sentidos de justiça social, cidadania e democracia.23
Reações-acomodações-ressignificações
O elemento básico para a introdução à história africana não está na história africana, e sim na desconstrução e eliminação de alguns elementos básicos das ideologias racistas brasileiras. (CUNHA JUNIOR, 1991, n.p.).
O ponto de partida deveria estar precisamente na resistência. Quer dizer, nas formas de resistência das massas populares. Se nos recusamos a conhecer essas formas de resistência porque, antidialeticamente, aceitamos que tudo entre elas vem sendo reprodução da ideologia dominante, terminamos caindo nas posições voluntaristas, intelectualistas, nos discursos autoritários cujas propostas de ação não coincidem com o viável dos grupos populares, A questão é como nos acercar das massas populares, para compreender os seus níveis de resistência, onde se encontram entre elas, como se expressam e trabalhar então sobre isto. (FREIRE, 1985, p. 20).
Verdade que, nas últimas décadas do século XX e iniciais do XXI, houve momentos emblemáticos e conquistas de espaços políticos-institucionais significativos. Contudo, no caso da Lei Nº 10.639/2003, apesar da regulamentação e de inúmeras reimpressões das DCNERER24, dos planos nacionais de implementação, de cursos de extensão e de especialização oferecidos por Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, e por NEABs (muitos com apoio da SECADI-MEC), são recorrentes as reclamações de que sua implementação, mais de uma década e meia depois, onde acontece, permanece restrita a “Agentes das Leis”: sempre o mesmo perfil de educadores, que já realizavam atividades antes da existência das leis – militantes do Movimento Negro, ou educadores/as (negros/as ou não), assumidamente antirracistas.25
Do ponto de vista que defendo neste artigo, a implementação das Leis funcionaria como fator de sustentabilidade do amplo conjunto de políticas de ações afirmativas, proclamadas durante o recente ciclo de governos progressistas. Educadores/as e estudantes de todos os níveis e modalidades educacionais teriam acesso, por exemplo, a discussões/informações/formação sobre as razões, a importância/oportunidade daquelas políticas públicas e sua extensão a setores do mercado de trabalho.
Devidamente implementadas, as leis e as disciplinas ERER capilarizariam-ampliariam-fortaleceriam, talvez como nenhuma outra política pública, a discussão sobre o valor da diversidade, das problematizações e das ressignificações de narrativas históricas, de simbologias e estéticas até agora quase exclusivamente euroetnoreferenciadas. No entanto, é comum educadores problematizarem seus próprios referenciais, seus “saberes”?
Imprescindível lembrar Paulo Freire, que costuma ser muito mais citado e reverenciado do que efetivamente seguido. Apesar de evidente a multiplicidade de visões e posturas entre agentes educadores, parece que, em geral, a maioria dos/as educadores/as se vê como progressista, pois é com esse segmento que Paulo Freire procura insistentemente dialogar. E é com seu apoio que questionamos: como educar para a liberdade e favorecer a formação de consciências críticas, desconsiderando sensibilidades populares em relação a preconceitos e discriminações, e as novas epistemologias e teorizações que desvendaram a questão racial como elemento central na construção de subjetividades, na vida social, e no mundo das instituições? Como cultuar a pedagogia do oprimido sem dialogar com as grandes maiorias negras e pobres, com quilombolas e indígenas, sem problematizar a recorrência e a naturalização das opressões?
Apesar de diferentes conceitos e contextos, trago essas citações em um esforço de ajudar minha argumentação:
Não são raros os revolucionários que se tornam reacionários pela sectarização em que se deixam cair, ao responder à sectarização direitista. [...]. Enquanto o sectário de direita, fechando-se em “sua” verdade, não faz mais do que o que lhe é próprio, o homem de esquerda, que se sectariza e se encerra, é a negação de si mesmo. (FREIRE, 1975, p. 22-24).
Por isso é que essa educação, em que educadores e educandos se fazem sujeitos de seu processo, superando o intelectualismo alienante, superando o autoritarismo do educador “bancário”, supera também a falsa consciência do mundo. [...]. Nenhuma “ordem” opressora suportaria que os oprimidos todos passassem a dizer: “Por quê?” (FREIRE, 1975, p. 86-87).
Fundamental aprofundar reflexões e investigações sobre essas lacunas e inconsistências no âmbito educacional, como indícios de que as debilidades que vimos descrevendo/analisando eram generalizadas, em todo o espectro das instituições e em suas maneiras de interação com a “vida social”. Problema de tamanha envergadura não teria ajudado para o ambiente de relativa facilidade em que foi engendrado e desferido o golpe parlamentar-jurídico-midiático26, que destituiu a presidenta da República Dilma Rousseff, que insuflou o corporativismo de setores do judiciário e da segurança pública, favoreceu a vitória de Jair Bolsonaro, e a ampliação da maioria conservadora no Congresso Nacional, nas Câmaras de Vereadores e nas Assembleias Legislativas em todos os estados brasileiros? Se essa argumentação for considerada, penso que diminui a surpresa com as sucessivas derrotas “anunciadas” desde o golpe e com o flagrante despreparo e precariedade da resistência, face aos avanços do reacionarismo e do conservadorismo.
Parece evidente que visões e posturas “política e discursivamente corretas” entre educadores progressistas, no que tange à questão racial, se mostraram inconsistentes, espelhando o que é comum, também em relação ao elitismo classista e à supremacia masculina, no vasto “mundo institucional”.
Mesmo considerando a escandalosa campanha dos principais telejornais, hiperdimensionando a corrupção, como se fosse exclusividade dos governos progressistas, o que insuflou a teia de “armações” entre o Ministério Público e o juiz Sergio Moro (titular da operação Lava Jato)27; também a celeridade inédita do julgamento em 2ª instância que levou à prisão do ex-presidente Lula, e a inviabilização de sua candidatura, com chances reais de vitória; considerando, ainda, o atentado esdrúxulo e controverso sofrido por Jair Bolsonaro, cuja investigação segue em sigilo; e a inundação de fake news (hoje objeto de investigação pelo Superior Tribunal Federal – STF), demonizando o Partido dos Trabalhadores (PT) e inúmeros de seus quadros mais importantes e visíveis, o ex-presidente Lula e familiares. Mesmo com tudo isso, será que o golpe e as sucessivas vitórias do conservadorismo têm a ver exclusivamente com aquelas manipulações e com os “jogos de cena”, acordos e desacordos que envolvem parlamentares, agentes e corporativismos dos Poderes Executivo e Judiciário, além do alto empresariado, e eventualmente algumas das mais influentes instituições da chamada sociedade civil?Ou, mais profundamente, essa sequência de derrotas sinaliza problemas eminentemente culturais, no sentido de crenças e de hábitos demais arraigados na vida social?
É flagrante a fraqueza na correlação de forças políticas que levou à frustração e à perplexidade predominantes entre os setores progressistas. Isso não tem nada a ver com as distâncias entre o “mundo institucional”, onde se inserem os contextos educacionais, e o cotidiano da “vida social” das grandes maiorias negras e pobres?
Insofismável o contraste cultural (linguagens, hábitos, jeitos, crenças, valores em geral) entre os setores mais instruídos, “politizados” e filiados às teorizações e às narrativas épicas dos processos civilizatórios que erigiram nações e sociedades no ocidente europeu, e as grandes “massas”, herdeiras da escravização, das desditas pós-emancipação, e da hierarquização racial/social que orientou e executou as políticas públicas que construíram e consolidaram o Estado Republicano. Por isso, as dificuldades de efetiva interação entre os ambientes, mesmo quando há as melhores intenções de dirigentes políticos e outros agentes progressistas – educadores entre eles. Tamanho distanciamento cultural-ideológico se mostrou um ambiente propício, “anunciador” do estonteante quadro de perdas.
Parece que um problema decorre do outro e o realimenta:
• distanciamentos e dificuldades de interação, compartilhados por educadores prejudicaram a implementação de uma legislação tão “forte” – as Leis Nº 10.639/2003 e Nº 11.645/2008 constituem os artigos 26-A e 79-B da LDBEN, para a qual já se acumula ampla e densa produção em todas as modalidades, níveis, processos educacionais e campos de conhecimento, das artes às chamadas disciplinas “duras”, “exatas”;
• e a não implementação das Leis favorece a perpetuação de lacunas, invisibilizações, silenciamentos que mantém a distância entre os “dois mundos”.
Afinal, antes e depois da sanção presidencial que adotou as leis em tela, dos pareceres e da resolução que se consolidaram como Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, ainda assim não deixou de haver tensões em todo o espectro dos sistemas educacionais em torno da importância, da oportunidade e das características da sua implementação. Como já foi assinalado, eram e ainda são comuns indiferenças e descasos, quando não, rejeições ostensivas em relação aos temas e aos conteúdos arrolados pelas leis e às discussões sobre euroetnocentrismo em currículos. Assim como em relação aos procedimentos pedagógicos racializados e às demandas de enfrentamento de preconceitos e discriminação racial no cotidiano escolar. Mesmo que reiteradamente e abrangendo todos as áreas e todos os campos da produção de conhecimentos sejam expostos informações e trabalhos acadêmicos, fundamentando a justeza das reivindicações do Movimento Negro Brasileiro que, desde longe, capitaneava a luta contra o racismo também na educação, e a necessidade e a oportunidade de educadores se tornarem “agentes das Leis”.
Desse ponto de vista, a desconsideração das leis e as razões de não serem implementadas na amplitude, na seriedade e na efetividade como precisava ser podem ser vistas como indicativas de inconsistências e fator agravante, em todo espectro institucional, das dificuldades dos setores progressistas, adiante, reagirem ao golpe e à sequência de derrotas políticas.
Considerações finais
[...] em tempos recentes, a democracia participativa tem assumido uma nova dinâmica, protagonizada por comunidades e grupos sociais subalternos em luta contra a exclusão social e a trivialização da cidadania, mobilizados pela aspiração de contratos sociais mais inclusivos [...]. Em verdade, neste limiar do século XXI, estamos a viver uma verdadeira “reviravolta teórico-conceitual”, nos caminhos da “democratização da democracia”.
[...] radicalizar a Democracia face às complexidades das diferentes realidades socioculturais, exige trabalhar na ruptura da gramática sociocultural estabelecida que relega os cidadãos a meros observadores e consumidores. (CARVALHO, 2004, p. 2).
“O sonho acabou”! Frustrou-se a imaginação de que bastava, e era possível estender às grandes maiorias negras e pobres os valores do “mundo institucional”. Marcelo Paixão (2014) chamou de “lenda da modernidade encantada” os esforços de transposição – para efeito de análises e múltiplas referenciações – em terras brasileiras, de pensamentos e eventos que constituíram a chamada modernidade europeia.
Desde longe, houve, e ainda há, entre a intelectualidade progressista, quem acredite sinceramente nesse tipo de projeto-processo: que as “massas” simplesmente receberiam “bancariamente” aqueles valores culturais-institucionais, e que desse jeito ampliariam seus níveis de consciência social e política e de participação-insurgência e consistência democrática, inaugurando uma era de qualidade de vida satisfatória para toda a sociedade. Paulo Freire, na Pedagogia do oprimido, não estaria falando dessa visão autoritária, arbitrária e elitista de “conscientização”, de “conquistas das massas”, que (muitas vezes altruísta e bem-intencionada) menospreza as culturas de resistência e protagonismos que caracterizam diferentes dimensões da vida e de lutas sociais? Serão suficientes as derrotas recentes, para que os setores progressistas percebam a impertinência-inconsistência de tal visão?
Considerando o viés desse tipo de problema no âmbito educacional, será possível menosprezar insurgências antirracistas, protagonizadas por professores e estudantes em cotidianos escolares, ao longo do ano letivo, ou em eventos de Consciência Negra, concentrados em novembro, inseridos ou não em Projetos Políticos Pedagógicos, em número crescente de escolas nas últimas décadas?
Relatórios da pesquisa dos/as estudantes de licenciaturas falam de atividades cerimoniais, aprofundamentos conteudísticos, festividades empolgadas e empolgantes, envolvendo estudantes e educadores/as em contextos educacionais, problematizando e enfrentando preconceitos e discriminações raciais, em escolas de quase todas as regiões do Rio de Janeiro. Ainda que, às vezes, as atividades sejam segregadas em salas de aula, ou permitidas apenas em dias e horários pouco adequados, ou realizadas com descaso e “a contrapelo” de gestores e de outros agentes de comunidades escolares. Será muito diferente em outras regiões brasileiras?
Parece que foi demais a efervescência em instituições e ambientes de frequência obrigatória, e de máxima capilaridade social como são as escolas do ensino básico, e a variedade de jeitos e tons como transbordaram novas consciências, posturas e estéticas corporais em todas as regiões brasileiras e no amplo espectro das relações sociais.28 Tudo isso pode ser visto como irrelevante para a aceleração-intensificação de “incômodos” e rejeições, insuflando a “combatividade” de diferentes reacionarismos que apoiaram e sustentaram o golpe e a ampliação da derrota eleitoral em 2018?
Frente à conjuntura atual de perdas sucessivas e ao horizonte de mais dificuldades, é forçoso reconhecer que, mesmo sob a hegemonia política de setores progressistas, o “jogo” democrático formal (e tantas vezes precário) mostrou-se insuficiente: que garantias para o cumprimento de legislações inclusivas, de ações afirmativas e outros “avanços” políticos-institucionais, se tudo depender da ação-interesse-engajamento de gente elitista-classista-racista-corporativista, tantas vezes enrustidos e até inconscientes?!?!? Serão possíveis transformações históricas – PRÁ VALER – sem a participação efetiva-deliberada das grandes maiorias interessadas?29
É flagrante e ainda majoritária na “teoria social” (a teia de reflexões-pesquisa-análises acadêmicas ou não sobre o acontecer da sociedade) a consideração das grandes maiorias negras e pobres como objeto de boas intenções, mas incapazes de significações próprias sobre o acontecer da vida social, ou sobre o papel das instituições, e de iniciativas e superações.30 Além disso, será que a intelectualidade progressista e teóricos/as mais influentes estão atentos/as ao crescente debate sobre as disputas políticas, e sobre características perniciosas e precariedades em processos “democráticos” sob a égide da globalização neoliberal, como conceituada por Boaventura de Souza Santos (2005), entre outros?
Assim como essa militância antirracista ostensiva e desabrida pode ser vista como um fator agravante do ímpeto com que os conservadorismos saíram dos “porões e armários”, pode ser vista, também, como um “bastião da resistência e insurgência”. A vasta bibliografia e a agência de educadores-agentes das Leis, aqui expostas descortina a “resistência e protagonismos negros” desde o pós-emancipação aos tempos atuais, mostrando o enfrentamento perene e tenaz, por meio de práticas culturais e artísticas, afetivas, holísticas, místicas, desprendidas de exclusivismos materialistas-cognitivos-analíticos. O que impede sua plenitude política?
Sugiro pensarmos que a distância cultural entre “elites progressistas” e “massas” tem se mostrado um empecilho à potência transformadora dessas características e possibilidades, em contextos em que é comum se acolher e celebrar a pluralidade-diversidade de caminhos e jeitos na vida, como nas lutas sociais. É imprescindível problematizar tal distanciamento, e se lançar à construção de espaços de diálogos e de geração de estratégias coletivas, entrosando vastas reservas de forças materiais e espirituais, capazes de enfrentar a onda conservadora-autoritária-arbitrária –
esta que “tradicionalmente” predominou camuflada-maneirosa-“cordial” no amplo espectro da institucionalidade e que, hoje, está descaradamente aberta.
Assumir que existe o distanciamento e a necessidade de sua superação são os dois primeiros problemas? Considerando que o conjunto de forças progressistas amadureça com a urgência e a consistência necessárias, ainda assim será preciso estar atentos/as e arredar arrogâncias de “saberes consolidados”, de “verdades consagradas”, de exclusivismos teóricos bem estruturados. Juntos, setores progressistas reconfigurados no antirracismo e em relação a outros vícios do elitismo-classismo-sexismo, etc., prontos ao diálogo, e as grandes maiorias negras e pobres terão oportunidades de aprenderem e se ensinarem novas e velhas lições. Sem isso, e mesmo na possibilidade de novas vitórias eleitorais-políticas-institucionais, como sustentar a construção de cidadania-democracia-justiça social DE VERDADE?