Palavras iniciais
Analisarmos qualquer aspecto ligado à educação no Brasil é um desafio. Apesar dos avanços obtidos nas últimas duas décadas, problemas como a desigualdade educacional ainda se encontram na ordem do dia, dentre eles as barreiras de acesso ao Ensino Superior. Esses desafios perpassam por critérios de entrada, permanência e saída dos estudantes, dedicando atenção especial aos estudantes de grupos sub-representados.
É no sentido de superar esses desafios que o Brasil importa dos Estados Unidos a noção de ações afirmativas1, pelas quais o estado é responsabilizado pela criação e pela aplicação de leis antissegregacionistas (MOEHLECKE, 2002) que garantam direitos a esses grupos sub-representados. Assim sendo, como medida dessa política de ações afirmativas, alguns Estados iniciaram o sistema de cotas, o qual, atualmente, é o mecanismo mais praticado.
A literatura existente acerca da Lei de Cotas, desde seus antecedentes, passando pela sua implementação e culminando em sua avaliação, é muito vasta. Muitos autores avaliam o impacto dessa política nas universidades públicas brasileiras desde os contextos gerais até os mais específicos (BARRETO, 2015; CASTRO et al., 2017; CONCEIÇÃO; QUEIROZ, 2018; HERINGER, 2018, KRISHNA; TARASOV, 2013; PINTO, 2005; SANTIAGO; AKKARI, 2015; SANTOS; SOUZA; SASAKI, 2013; TEIXEIRA; MARQUES, 2021).
Para aumentar a representação em alguns campos da sociedade, o sistema de cotas inicialmente destinou vagas a negros, pardos e portadores de deficiência física em concursos públicos e mulheres na esfera política. Essa ideia também se estendeu ao sistema educacional. Precursora, desde 2002, na implantação de sistema de cotas étnico-raciais entre as instituições da região Nordeste (SILVA, 2010). Nesse sentido, a Universidade do Estado da Bahia (Uneb), em 2019, deu mais um importante passo na expansão de sua política de ações afirmativas ao ampliá-la para outros segmentos sociais historicamente discriminados: quilombolas, ciganos, transexuais, travestis e transgêneros e para pessoas com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades. Essa se constitui em uma nova etapa de ações afirmativas que perpassa pelo embate político e teórico em defesa de minorias políticas e que atravessam o processo de formação de professores. Por isso, é fundante perguntarmos e pesquisarmos se as ações afirmativas no ingresso e na permanência de estudantes cotistas têm conseguido alcançar o seu objetivo.
Essa nova etapa das ações afirmativas, indício das reinvindicações sociais desses grupos, aponta para a inevitável indagação sobre o acesso e as condições de permanência desses estudantes no Ensino Superior. Investigarmos como toda essa diversidade tem impactado os cursos, a exemplo os de formação de professores, é um caminho importante no sentido de fomentar as discussões sobre a formação dos diferentes sujeitos da educação frente às reflexões que articulam direito à educação, educação de qualidade e desigualdades sociais.
Estudos mostram que, após a implementação das cotas para o acesso ao Ensino Superior, a “cara” da universidade pública brasileira mudou: está mais negra, mais indígena, mais popular, mais diversificada (HERINGER, 2018). Entretanto, de fato, como as universidades e seus currículos têm se estruturado a partir da entrada desses grupos? Nesse sentido, as reflexões feitas neste texto partem da tentativa de responder ao seguinte problema: Que dificuldades os estudantes cotistas do curso de Biologia da Uneb têm enfrentado entre os anos de 2014 e 2019, especificamente no primeiro semestre cursado? Além disso, uma outra questão que nos interessa é: Em que a entrada de cotistas questiona o currículo voltado para a formação de professores de Biologia?
Nessa perspectiva, este estudo teve como objetivo identificar e analisar as dificuldades encontradas pelos cotistas do curso de Ciências Biológicas do Departamento de Educação da Uneb/campus VII, em relação à sua entrada e à sua permanência ao longo do primeiro semestre. No ano de 2020, os ingressantes não chegaram a ter contato com a universidade, pois, quando íamos iniciar o semestre, a pandemia do Coronavírus isolou geograficamente as pessoas, e, por isso, a Uneb interrompeu as aulas presenciais. Assim, este projeto piloto pretende contribuir com as discussões da área pedagógica do curso, de modo a possibilitar a compreensão do sistema de cotas decorrente da vivência dos sujeitos envolvidos e gerar um debate dentro do colegiado e do currículo da licenciatura em Biologia.
Marco teórico - ações afirmativas: instituindo as políticas de cotas
Há mais de 15 anos, as universidades públicas vêm adotando o sistema de cotas como forma de acesso de estudantes às Instituições de Ensino Superior (IES). Essas experiências mostraram que alguns tabus foram quebrados, a exemplo da evasão de cotistas (SILVA, 2010) ou desempenho (CASTRO et al., 2017; PINHEIRO, 2014). O Movimento Negro iniciou essa caminhada em busca de reivindicar o direito de acesso ao Ensino Superior em uma perspectiva de política pública (TEIXEIRA; MARQUES, 2021) e, desde então, várias universidades e faculdades implementaram o sistema de ações afirmativas com base em cotas.
Na Uneb, essa decisão contribuiu para a divulgação e a discussão do tema, em muitas partes do Brasil, e, posteriormente, para a implantação do sistema de cotas. A maioria das universidades públicas brasileiras efetivou convites à Uneb para realizar seminários e palestras para compartilhar essa experiência (SILVA, 2010).
Nesse sentido, as universidades e os institutos federais regulamentaram, para nós tardiamente, por meio da Lei Nº 12.711, de 29 agosto de 2012, a política de ações afirmativas para acesso às IES públicas do País, por meio do sistema de cotas (BRASIL, 2012). Tal lei estabeleceu que as IES deviam destinar metade de suas vagas nos processos seletivos para estudantes egressos de escolas públicas até o ano de 2016, levando em conta critérios raciais e sociais. Isso representa uma medida de ação prática contra a desigualdade em um sistema opressor que privilegia um grupo social/racial em detrimento de outros. Essas cotas, inicialmente reservadas a pessoas negras, hoje, aplicam-se a indígenas e seus descendentes, e, no caso da Uneb, ampliam-se para ciganos, quilombolas, travestis, transgêneros. Além destas, cotas para pessoas com deficiência também estão garantidas. As cotas fazem parte do conjunto de ações afirmativas que possuem o objetivo de diminuir as disparidades sociais, econômicas e educacionais entre indivíduos com etnias raciais e contextos sociais diferentes, uma vez que essas diferenças geram um aspecto excludente.
Entendemos que, se duas pessoas que vivem em situações desiguais concorrem a qualquer vaga nas mesmas condições, a desigualdade prévia será um fator determinante para o resultado. Assim sendo, até que haja um equilíbrio, as ações afirmativas seriam uma maneira de colocar essas pessoas no mesmo patamar de concorrência, como um ato de retratação da discriminação de fundo cultural e estrutural enraizada na sociedade. Por isso, o sistema de cotas é defendido por muitos autores como uma medida temporária (CONCEIÇÃO; QUEIROZ, 2018; DUARTE, 2014).
De acordo com Bonavides (2003), pelo princípio da igualdade material, o Estado se sujeita a interferir na sociedade para corrigir e minimizar as injustiças sociais. Somente dessa forma, o princípio da igualdade material pode se transformar em princípio jurídico. As políticas de Educação, de transferência de renda e de cotas, tão expressivas e imediatas nesse século XXI, são exemplos evidentes de igualdade material e de compensação das desigualdades (GUEDES, 2014).
Todo o processo de implantação desse sistema sempre gerou muita celeuma, inclusive em meio acadêmico. Silva (2010) afirma que diferentes segmentos e instituições da sociedade reagiram e se manifestaram, de acordo com os seus interesses e pontos de vista, para amparar ou impossibilitar a implantação dessas políticas.
Os defensores dessa política afirmavam que ela garantia igualdade de acesso ao ensino, devido à discrepância de qualidade do ensino básico público para o privado e um contexto histórico-cultural que desfavorecia o negro e o pobre na sociedade, além de proporcionar representatividade dessas classes no meio acadêmico, servindo de espelho para as gerações mais jovens (SILVA, 2010). O lado contrário ao sistema de cotas proclamava que ele desmerecia o esforço e o mérito dos estudantes que pleiteavam o vestibular e que, por terem uma nota de corte menor, os alunos cotistas não conseguiriam acompanhar os demais alunos e iriam reduzir o nível de qualidade dos cursos, por conta de seu despreparo intelectual. Contudo, segundo Silva (2010):
Não fosse às desigualdades sociais entre negros e brancos no Brasil, uma derivação do modelo racial aqui construído, não haveria necessidade de políticas afirmativas e reparatórias, fato amplamente denunciado pelos movimentos negros e comprovado pelas pesquisas de instituições insuspeitas como o IBGE e o IPEA. (SILVA, 2010, p. 52).
O acesso ao Ensino Superior público corrobora o direito à Educação, estabelecido na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), pois não é suficiente dizer que a educação é meio indispensável para a construção de uma sociedade menos desigual. Nesse sentido, a adoção da política de cotas nas universidades públicas emerge como mecanismo apto a promover o aumento da representatividade de segmentos étnico-raciais e de outros formadores da sociedade brasileira e, por conseguinte, responsáveis pelo desenvolvimento da sociedade.
O Resumo Técnico dos dados do Censo da Educação Superior 2017, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - Inep (2019) aponta que 36,5% (taxa bruta) e 18% (taxa líquida) da população entre 18 e 24 anos está matriculada no Ensino Superior; assim, depois de cinco anos do último Censo educacional, ainda temos dificuldade no acesso de jovens ao Ensino Superior. Na Bahia, esse percentual é de 13,3% de estudantes matriculados em IES. Ainda que os índices de acesso tenham aumentado, há de relacionarmos a outros marcadores, como escolarização e renda. Um dado que há de considerarmos é o nível de escolaridade dos pais. É um sistema que se retroalimenta, pois quanto maior a escolaridade dos pais, melhor é a possibilidade de aprendizagem, permanência e progresso de crianças e jovens no sistema educacional (LÁZARO, 2018). Lembremos que a meta do Plano Nacional de Educação (PNE) é que até 2024 a população de 18 a 24 anos que esteja no Ensino Superior alcance a casa de 33% (BRASIL, 2014).
Em 2015, a razão entre a escolaridade de negros e não negros era de 1:3, ou seja, cada ano de escolaridade de negros corresponde a três anos para não negros e guarda similaridade com as taxas das macrorregiões, com destaque para região Nordeste comparado com a região Sudeste (BRASIL, 2019). Esse mesmo relatório aponta que, ao longo de uma década, foi reduzida a desigualdade entre ambos os grupos, porém é necessária uma década mais para ser eliminada a desigualdade na escolaridade média entre negros e não negros.
O gráfico da Figura 1 mostra de forma evidente dados que comprovam as desigualdades sociais e raciais quando se compara os níveis de instrução entre jovens negros e não negros.
Fonte: Extraída da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2015).
A taxa de jovens negros nas categorias sem instrução, sem Ensino Fundamental e sem Ensino Médio é maior do que a dos jovens não negros. Isso comprova o quanto a variável raça/cor é importante para relacionar as desigualdades de instrução educacional, que ocasiona desigualdades no mercado de trabalho. Destarte, as ações afirmativas são fundamentais no sentido de oportunizar aos grupos “sub-humanos” (KRENAK, 2020, p. 6) o acesso à Educação Superior.
Cotista: o que significa sua entrada pensando nos currículos em cursos de formação de professores de Biologia
Que questões podemos pensar quando se trata de ponderar a articulação entre a entrada de cotistas no Ensino Superior, no caso deste artigo, e as questões sobre ensino de qualidade, direitos humanos e direito à educação? Inspirando-nos em Pereira (2010), perguntamo-nos: Quais esforços são empreendidos pela Uneb e pelo curso de Biologia na formação de professores de Biologia, vistos a partir do currículo para desenvolver capacidades, conhecimentos e competências, pensando a entrada dos grupos historicamente excluídos da sociedade assim como as transformações atuais da sociedade?
A entrada de grupos historicamente excluídos política e socialmente, com seus conhecimentos desmerecidos por uma sociedade que, apesar de todos os esforços dos diferentes movimentos sociais para denunciar essas exclusões, ainda não é o suficiente para descontruir a ideia de um modelo de ser humano, aquele que teria direito à educação. Enfim, ainda não assistimos a uma efetivação das questões sobre direitos humanos, direito à educação, pensando e problematizando a entrada de cotistas nas universidades públicas. O ingresso desses grupos é uma convocação à universidade pública pensar o direito à educação e problematizar os direitos humanos relacionados às desigualdades postas pela sociedade que, por muito tempo, retiraram a oportunidade de entrada dessas pessoas.
Compreendemos direitos humanos a partir do diálogo intercultural, dentro do qual Santos (2001) indica dois imperativos interculturais, sendo um deles:
Uma vez que todas as culturas tendem a distribuir pessoas e grupos de acordo com dois princípios concorrentes de pertença hierárquica, e, portanto, com concepções concorrentes de igualdade e diferença, as pessoas e os grupos sociais têm o direito de ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito de ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza. (SANTOS, 1997, p. 122).
A partir dessa perspectiva de direitos humanos, corroboramos a problematização sobre educação de qualidade feita por Candau (2012) no que se refere ao direito à educação:
Esta expressão, ao mesmo tempo em que explicita um aparente consenso, também admite distintas interpretações e encobre diferentes marcos conceituais e políticos de se conceber a educação, relacionando-a com o tipo de sociedade e cidadania que se quer construir.
Trata-se de uma expressão polissêmica, de um conceito socialmente construído e em constante reformulação, que suscita fortes polêmicas e debates entre os educadores e na sociedade em geral. Esta polissemia da expressão “qualidade da educação” pode ser evidenciada nos discursos cada vez mais frequentes que sentem a necessidade de acrescentar um adjetivo a palavra qualidade: fala-se de qualidade total, qualidade humana, qualidade social, qualidade cidadã, qualidade corporativa, entre outras. O que está em jogo e o confronto entre diferentes modos de conceber as relações entre educação, escola e sociedade. (CANDAU, 2012, p. 721).
O que está em jogo é conceber as complexidades entre universidade, educação e sociedade. Diante disso, partimos de uma lógica em que compreender as conexões entre direito à educação, direitos humanos e educação de qualidade, a partir da entrada de cotistas, está atrelada ao profissional, fazendo questionar quais os conhecimentos que farão parte da formação de professores. A educação como direito, como expressa Gomes (2012, p. 688), é aquela em que a “[...] formação foco central são os sujeitos sociais, entendidos como cidadãos e sujeitos de direitos”, sujeitos diversos em “raça, etnia, credo, gênero, orientação sexual e idade, entre outros”. Uma educação de qualidade é pensar uma formação igual para todos, não desconsiderando as diferenças que trazem consigo, marcadas em seus corpos e em suas histórias. Nesse sentido, a universidade pública é um espaço possível para afirmação da justiça social, democracia e acolhimento das diferenças pautada na igualdade.
Candau (2012), ao discutir o direito à educação e os direitos humanos, marca a questão da educação escolar, que, aqui, demarcamos essa educação para a formação de professores, de profissionais no Ensino Superior:
Educação escolar não pode ser reduzida a um produto que se negocia na lógica do mercado; nem ter como referência quase que exclusivamente a aquisição de determinados “conteúdos”, por mais socialmente reconhecidos que sejam. Deve ter como horizonte a construção de uma cidadania participativa, a formação de sujeitos de direito, o desenvolvimento da vocação humana de todas as pessoas nela implicadas. (CANDAU, 2012, p. 721).
Não podemos deixar de lado o direito aos conhecimentos científicos próprios da formação de cada área específica; desse modo, precisamos refletir também sobre a formação desses professores como sujeitos transformadores da sociedade. Assim sendo, este também não seria um caminho para construir o que seria uma educação de qualidade?
Apesar de comporem parte de grupos que, ao longo da história, foram e ainda são inferiorizados, esses estudantes têm o direito a condições iguais que os possibilitem uma formação profissional de qualidade. Contudo, ao mesmo tempo, é importante uma formação pensada a partir de princípios que não invisibilizem as diferenças desses grupos. Essa formação perpassa pelas condições estruturais da universidade e atravessa os planos políticos pedagógicos dos cursos, as aulas, as avaliações, enfim, toda a universidade que passa a ser repensada. Nosso entendimento é fugir, assim como Merladet, Reis e Süssekind (2020) apontam, de uma universidade idealizada, única, fruto de uma metanarrativa moderna em busca de justiça social/cognitiva como instrumento de luta nos muitos “territórios coloniais” a que estamos inseridos. O que estamos a dizer dialoga com o convite feito por Barzano (2016) aos envolvidos com o ensino e a formação de professores de Biologia, sobre a necessidade de considerarmos os sujeitos marginalizados na construção das políticas curriculares no ensino de Biologia.
Assim sendo, o que está posto é a discussão sobre o modelo hegemônico de universidade. Esses grupos, ao adentrarem a universidade, encontram, também, um modelo ainda monocultural, pois
[...] este calca-se naquilo que supõe-se como os conhecimentos necessários (por já serem consagrados) para uma formação de qualidade. Um modelo que baseia-se numa ciência em que seus conhecimentos se pensam como sendo auto-suficientes e que, portanto, não precisam de mais nada, se bastam [...]. No caso da universidade pública brasileira, essa dificuldade insinua-se com a impossibilidade da co-existência da dinâmica acadêmica - seu cotidiano, suas exigências, sua burocracia - com a presença de alunos trabalhadores, que tiveram um ensino diferente daquele dispensado às elites do país, daqueles que têm identificações culturais distintas ou são identificados pelo peso da sua condição histórica de cidadão de segunda categoria, como no caso dos negros e indígenas. As disciplinas, as tarefas acadêmicas tendem a ser oferecidas desconsiderando os alunos, ou, o que é pior, invizibilizando-os nas suas dificuldades, mas transformado-os, novamente, naqueles que não têm condições de frequentar aquela instituição e aproveitar da sua “qualidade”. Assim, universidade pública e as gentes que necessitam dela para tentar superar os processos de desigualdade, são, mais uma vez, acusados de seus fracassos e convidados a assumir uma “essencialidade” da falta. (PEREIRA, 2010, p. 3).
É importante atentarmos não somente para as dificuldades que muitos desses estudantes indicam, mas também para as que são colocadas pela própria universidade, que podem acabar por interferir em que professor/a de Biologia se pretende formar. Compreendemos a importância de olhar para essas questões no que tange à revisão dos parâmetros que possam estar enraizados nos planos pedagógicos dos cursos, os quais foram estabelecidos quando ainda não se tinha a política de cotas, e, também, revisar a própria dinâmica da universidade. Juridicamente, as universidades caminharam no sentido de reconhecer a importância da implementação das políticas de cotas; no entanto, essas mesmas universidades necessitam discutir suas próprias lógicas para que caminhem junto às reivindicações históricas que fizeram com que hoje possamos encontrar uma universidade mais inclusiva. Será que podemos utilizar tais dificuldades e desigualdades - a que esses grupos muitas vezes estão submetidos - como princípios norteadores de nossas ações pedagógicas, nossos currículos, especificamente, aqui, no curso de Biologia?
Discorrendo sobre a qualidade de formação, no caso deste texto, do professor de Biologia, que considerações podem ser feitas a partir das dificuldades oriundas de toda uma educação anterior, muitas das vezes fruto de uma desigualdade estrutural e semântica de diferentes vertentes (gênero, étnico-racial, econômica, deficiência, entre outras) e as dificuldades oriundas das dinâmicas do curso e da própria universidade? Uma das coisas a se pensar é sobre quem será ou serão esses “novos” professores de Biologia e de quais questões eles estarão a serviço na nossa sociedade.
Uma pesquisa publicada em 2015 teve como objetivo verificar o desempenho de cotistas e não cotistas ao longo de diferentes cursos da Universidade de Brasília (UnB): Direito, Medicina, Biologia, Engenharia Civil, Engenharia Elétrica e Engenharia Mecatrônica, Pedagogia, Letras e Química. O curso de Biologia foi colocado pelos autores como sendo um dos cursos de alto prestígio. A pesquisa revelou que o curso de Biologia foi o único que apresentou maior diferença significativa ao longo dos semestres entre os cotistas e não cotistas. Os autores concluíram:
A presença de diferenças significativas está concentrada na primeira metade dos cursos, evidenciando que, nas disciplinas que dão estrutura ao curso superior, os cotistas enfrentam dificuldades que indicam ser maiores que as dos não cotistas. Certamente provenientes de uma formação deficiente, ou mais deficiente do que a recebida pelos não cotistas na educação básica. (GARCIA; JESUS, 2015, p. 163).
Esses grupos (cotistas) muitas vezes trazem esse conhecimento deficiente de uma escola pública marcada por uma lógica de sucateamento do Estado. Professores desvalorizados, estrutura física muitas vezes precária, ausência ou precariedade de laboratórios de Ciências Naturais, são algumas das situações a que muitas escolas públicas estão submetidas. Interessa-nos pensar como essas “deficiências” podem ser compreendidas pelo curso de Biologia e pela própria universidade, não como algo que venha a marcar esses indivíduos como aqueles a quem falta algo, incidindo-lhes uma certa responsabilidade, mas, sim, como produto das desigualdades estruturais de nossa sociedade.
Percurso metodológico
Quanto à metodologia, tomamos as ideias de Demo (1998, p. 101) quando diz que “[...] ao mesmo tempo, uma pesquisa qualitativa dedica-se mais a aspectos qualitativos da realidade, ou seja, olha prioritariamente para eles, sem desprezar os aspectos também quantitativos. E vice-versa”. Consideramos esta pesquisa qualitativa, porém, ainda que possamos submetê-la a tratamentos estatísticos, não o faremos neste momento. Usamos como instrumento de coleta de dados um questionário estruturado para ser respondido sem a presença das pesquisadoras, conforme sugere Fontana (2018). O questionário continha 51 questões e foi elaborado a partir da escala Likert de cinco pontos (totalmente em desacordo, parcialmente em desacordo, indiferente, parcialmente em acordo e totalmente de acordo). Ele foi dividido em duas dimensões (entrada na universidade e entrada no curso de Ciências Biológicas da Uneb). O envio dos questionários por e-mail justificou-se pela dinâmica do isolamento social, dispensando a entrega física, o que possibilitou o uso eficiente do tempo (OLIVEIRA, 2011). Graças à virtualidade, os questionários digitais puderam ser respondidos de modo online e assincrônico e passou por um processo de validação antes de ser aplicado. O processo de seleção dos participantes efetuou-se pela oferta espontânea dos que se interessaram em contribuir com o estudo piloto, utilizado como critério de inclusão ser discente do curso de Ciências Biológicas da Uneb matriculado em 2019.2. O instrumento ficou disponível durante três semanas.
O projeto de pesquisa não foi submetido a nenhum processo de revisão ética. Contudo, atentas à importância de manifestar os princípios éticos da pesquisa, declaramos que o estudo realizado se orientou por estruturar um instrumento de coleta de dados embasado no respeito à história de vida e trajetória na universidade dos grupos que adentraram esse espaço por meio do sistema de cotas. Em se tratando de uma pesquisa na intenção de visibilizar como tem sido a vivência de estudantes cotistas no curso de Biologia do campus VII da Uneb, tivemos o cuidado de não estabelecer questões que de algum modo pudessem expor e colocar em situação de vulnerabilidade aqueles que historicamente já são submetidos a essas situações frente às diferentes políticas de Estado. Por fim, ao redigirmos e divulgarmos o estudo piloto, buscamos deixar transparente a nossa responsabilidade social como professoras do curso de Biologia, diante da diversidade de vidas humanas, pautando-nos na defesa de valores democráticos e de justiça. Para complementarmos os dados, entrevistamos uma professora que participou do processo de validação da autodeclaração e dos demais documentos comprobatórios de acesso ao sistema de cotas em 2019. Além disso, cumprimos as questões protocolares com a anuência dos participantes por meio da entrega do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), após a explicação completa e detalhada sobre a natureza da pesquisa, os objetivos, a metodologia, os benefícios previstos, os potenciais riscos e o incômodo que a pesquisa pudesse acarretar (LEMES, 2019).
Compreendemos que este estudo se configura como qualitativo, com escuta sensível e atenta das pesquisadoras, possibilitando extrair significados quando buscamos compreender a dinâmica e os processos que se revelam, seguindo o paradigma crítico (ESTEBAN, 2010). Segundo Chizzotti, (2006, p. 28), estudos qualitativos, “[...] usando ou não quantificações, pretendem interpretar o sentido do evento a partir do significado que as pessoas atribuem ao que falam e fazem”. Assim, percebemos o alargamento das concepções que uma investigação científica pode alcançar, em se tratando de sujeitos vivenciando seus processos histórico-sociais. Os dados obtidos foram analisados à luz da análise de conteúdo (BARDIN, 2011). Com essa proposta metodológica, debruçamo-nos para conhecer o que estava por trás das palavras, analisar o texto e o seu significado. Durante a pré-análise, efetuamos um recorte de quais questões fundamentariam a interpretação final. Com o universo demarcado, seguimos as regras da exaustividade e da representatividade a fim de elencarmos os elementos em categorias emergidas na pesquisa que se constituiriam em nossas unidades de registro. O critério das categorias seguiu a linha semântica. A partir das respostas, elaboramos três categorias: cognitiva, afetiva e social. Para efeito dessa comunicação, selecionamos algumas questões que nos pareceram relevantes para discussão.
Resultados e discussão
O processo de validação da autodeclaração e dos demais documentos comprobatórios de acesso ao sistema de cotas é uma etapa obrigatória e eliminatória para todos os cotistas. Na Uneb, as ações são realizadas de acordo com os documentos de orientação para a validação e as orientações da Comissão Central de Validação. Por ser um processo novo no âmbito da Uneb, iniciado em 2019, muitos ajustes ainda precisam ser feitos para receber de forma satisfatória os cotistas na universidade, principalmente os candidatos transexuais, travestis, transgêneros e com deficiência, revela a professora entrevistada. São necessárias algumas adaptações nos documentos para dar conta de particularidades das pessoas com deficiência. A professora cita, como exemplo, que um candidato cego pode necessitar dos documentos em Braile, ou um candidato surdo pode necessitar de um intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras). Um ponto positivo destacado pela professora é que, dessa forma, o processo de validação garante uma maior segurança e transparência, na medida em que as vagas dos cotistas estão sendo asseguradas e ocupadas por quem é de direito. Ela também destaca que há uma grande desinformação em relação às cotas e que, no momento da validação, os estudantes desconhecem que precisam ter cursado todo o Ensino Fundamental e o Ensino Médio em escola pública.
Responderam ao questionário 34 estudantes, 24 do sexo feminino e dez do sexo masculino. Destes, 12 alunos se autodeclararam cotistas, nove (75%) indicaram como critério de cota a “raça (preto, pardo ou indígena)”, e três (25%) marcaram a opção “aluno de escola pública com renda inferior a 4 salários-mínimos”. Quanto ao ano de ingresso na universidade (Tabela 1), temos cotistas que ingressaram entre os anos de 2014 e 2019.
Ano de entrada | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 |
---|---|---|---|---|---|---|
Número da amostra (N=34) | 2 | 4 | 1 | 12 | 8 | 7 |
Fonte: Elaborada pelas autoras, 2020.
Dentro da categoria social: dimensão socioeconômica, oito estudantes cotistas (66,7%)2 consideraram que a dificuldade financeira foi um motivo para o atraso de ingresso na universidade e no curso de Ciências Biológicas (Figura 2).
A qualidade das condições de vida (aspecto socioeconômico, saúde, lazer, entre outros) dos estudantes é importante para compreendermos o porquê das dificuldades de aprendizagem durante a licenciatura e como isso vai reverberar na sua futura prática docente. Muitas desvantagens sociais têm efeito na educação inicial e, posteriormente, na formação profissional, bem como na sua participação em outras formas de aprendizagem. Olhar para essas desvantagens sociais exige também o reconhecimento da reivindicação dos movimentos sociais de caráter identitário para que a “[...] educação considere, nos seus níveis, etapas e modalidades, a relação entre desigualdades e diversidade” (GOMES, 2012, p.688) Nessa perspectiva, é fundamental afirmarmos que, por exemplo, nos cursos de formação de professores, sejam fortalecidos espaços de discussão sobre como as desigualdades sociais têm impactado os processos formativos da diversidade dos sujeitos das políticas de ação afirmativa e suas implicações para a justiça social.
Mesmo sendo uma universidade pública, estudos como o de Barreto (2015) indicam que há gastos que os estudantes necessitam fazer para permancer estudando, como alimentação ou moradia. Além disso, a construção que começou a ser esboçada a partir da política de cotas com proposições para o enfrentamento das desigualdades históricas de acesso e permanência às universidades públicas deve levar em conta suas condições de raça, etnia, classe e gênero.
Para dez estudantes cotistas (83,3%), a ausência de restaurante universitário é considerada uma dificuldade para se manter no curso e na universidade (Figura 3), sendo uma questão que se relaciona diretamente com a descrita anteriormente.
Muitos estudantes do curso de Biologia do campus moram em cidades do Território Norte do Itapicuru (Jaguarari, Filadélfia, Campo Formoso, Andorinha, Ponto Novo) e outras cidades fora do Território (Caldeirão Grande, Saúde e Itiúba). Chegam à faculdade pela manhã e, muitas vezes, necessitam ficar para atividades de pesquisa. Além disso, às vezes, integram projetos de extensão e iniciação científica. Dessa forma, passam o dia todo na universidade para cumprimento da carga horária. Esse é o tipo de serviço assistencial prestado pelas universidades que tem forte impacto na vida dos estudantes, que vão desde a saúde (DUARTE; ALMEIDA; MARTINS, 2013; PEREZ et al., 2016) até economia de tempo, justificando a importância da presença de um restaurante universitário. Nesse sentido, a perspectiva Rawlsariana (PINDYCK; RUBINFELD, 2009) para o bem-estar social coincide no sentido de que o restaurante maximizaria a utilidade para pessoas de menor recurso, qualquer que seja ele.
Em relação à prática de fotocopiar material para estudo (Figura 4), nove alunos (74,97%) indicaram que se constitui em uma dificuldade. É verdade que os textos e alguns livros muitas vezes são disponibilizados em arquivo no formato PDF, na Internet, pelos professores, mas, ainda assim, esse é um hábito ainda muito presente, principalmente porque não dispomos de uma quantidade de livros de referência que possa suprir a necessidade de todos os alunos. Inferimos duas possibilidades que as respostas não conseguem esclarecer: se seria por falta de dinheiro ou pela ausência de uma reprografia no campus. Essa variável deverá ser ajustada e servirá de base para os próximos passos.
Quanto aos aspectos afetivos-emocionais, expor as ideias de forma oral, seja do conteúdo conceitual ou convicções pessoais, interfere consideravelmente para 66,7%, especialmente no primeiro semestre, quando ainda estão conhecendo colegas e docentes (Figura 5).
A dificuldade de expressão oral ou escrita pode ser decorrente da educação ofertada, como resultado das desigualdades, durante o percurso escolar e fora dele e de todo o sistema político que, muitas vezes, contribui para a construção de barreiras entre os grupos historicamente excluídos e os historicamente privilegiados. Essa integração, envolvendo a apreensão de códigos, habilidades, ações e comportamentos, seria fundamental em uma trajetória escolar de sucesso, e, com efeito, posteriormente para a inserção no mundo da docência, pois a expressão oral é parte de seu ofício. Nesse sentido, seria importante compreendermos se as políticas de acesso coadunam com políticas de permanência e assistência estudantil e se estão funcionando de forma a suscitar o processo de afiliação - institucional e/ou intelectual, destacado por Coulon (2008 apudHERINGER, 2018).
Para 50%, ou seja, metade da amostra dos cotistas, a expectativa de futuro é considerada uma dificuldade. Em pesquisa de Doutorado realizada com formandos cotistas e não cotistas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), do ano de 2014, a autora conclui que
[...] não foram observadas diferenças estatisticamente significativas entre cotistas e não cotistas, quanto às expectativas de inserção profissional, o que evidencia um impacto positivo da política de cotas, pois, a partir do momento em que o negro tem a oportunidade de ingressar na universidade, ele passa a ter as mesmas perspectivas de crescimento profissional dos demais grupos étnico-raciais. (SILVEIRA, 2016, p. 186).
Ressaltamos que uma pesquisa comparativa, por exemplo, com cursos considerados de prestígio social do campus, como Ciências Contábeis ou Enfermagem, poderia nos fornecer uma melhor explicação. Todavia, é importante destacarmos que o curso de Ciências Biológicas, a partir do seu plano pedagógico, forma estudantes para atuarem no campo da Licenciatura. A partir de conversas informais e durante as aulas no primeiro semestre e em outros, percebemos a não identificação de muitos estudantes com esse campo de atuação, o que talvez possa ser um indicativo de uma dificuldade na visão de expectativa de futuro que possuem. Inferimos que essa perspectiva com relação ao futuro seja uma consequência da baixa expectativa depositada nesses estudantes, ao longo do seu processo escolar, originando o descrédito de seu sucesso na vida (CARDONA MOLTÓ, 2006).
A Figura 6 apresenta três aspectos da categoria cognitiva reunidos. Para nove estudantes (75%), os conceitos básicos ligados à Biologia foram um entrave no curso e no primeiro semestre, seis discentes (50%) reconheceram que o conhecimento matemático é uma dificuldade, e oito deles (66,6%) sentiam dificuldades em realizar pesquisas. Se os estudantes chegam ao nosso curso com um nível distinto do que esperamos, como isso afeta o desenvolvimento da formação do curso e o resultado da aprendizagem para sua própria formação como docente?
No caso de realização de pesquisas, da apropriação de conhecimento biológico e matemático, compreendemos que essas são deficiências geradas na Educação Básica. Entendemos que a mobilização desses conhecimentos cognitivos exigidos nos currículos da Educação Básica e necessários à aprendizagem dos conhecimentos no Ensino Superior é transformada em dificuldade, fruto de um modelo de escola que reforça a exclusão, uma vez que todos esses estudantes foram oriundos de escola pública e que, quando comparados a escolas privadas, possuem recursos educativos escassos e instalações físicas precárias (CASTRO et al., 2017; MOTTA; LOPES, 2012). Corroborando as ideias de Motta e Lopes (2012), podemos dizer que alguns foram duplamente desfavorecidos, já que eles se encaixam no perfil de estudantes de escola pública e negros, sendo, dessa forma, submetidos a uma concorrência injusta (Figura 6).
Estudos mostram que as ações afirmativas de permanência precisam atentar para três dimensões: econômica, social e pedagógica no sentido de propiciar um ambiente de aprendizagem e sucesso acadêmico menos excludente e discriminatório (BARRETO, 2015; HERINGER, 2018). Nesse sentido, entendemos que o corpo docente do curso deve conhecer o estudante e quais são suas dificuldades para se engajar plenamente nos estudos, e que esteja apto a olhar esses estudantes sem preconceitos e com solidariedade para acolher.
Por último, queremos destacar, na Figura 7, os aspectos metodológicos do currículo do curso de Biologia. Nessa perspectiva, podemos ponderar qual o papel do curso em pensar metodologias e avaliações que sejam inclusivas, pensando em cotistas que adentram a universidade. A comparação dos nossos achados de cotistas e não cotistas seria muito válida, mas, para efeito dessa comunicação, escolhemos refletir somente a partir das visões dos cotistas.
As metodologias, para oito alunos, e as formas de avaliação, para sete alunos, usadas no primeiro semestre, foram um motivo de empecilho. Entendemos que tanto a metodologia quanto a avaliação devem ser formativas e permitam que todos os alunos desenvolvam habilidades e não sejam na forma de incentivar a formação docente baseada em uma aprendizagem mecânica. Nesse caso, refletimos que o grupo desfavorecido se coloca em mais esforço para entrar em equilíbrio do que o favorecido, por ausência de outras oportunidades. Barreto (2015) destaca que um dos motivos para a evasão em cursos de licenciatura é a reprovação por média ou por falta já no primeiro semestre. Cabe-nos, por conseguinte, recordar que o histórico escolar desses estudantes de escola pública justifica a dificuldade correspondente à compreensão de conhecimentos científicos mais complexos, também destacado por Motta e Lopes (2012). Assim, em que medida o corpo docente poderia ajudá-los de forma a promover o “nivelamento” como meio de suprir a ausência desses “pré-requisitos” e permitir o enriquecimento dos processos de ensino e de aprendizagem em Biologia?
Considerações finais
As ações afirmativas, a partir do sistema de cotas, são reivindicações históricas dos movimentos sociais, em especial do Movimento Negro, que compreende que as desigualdades sociais no Brasil estão atreladas também às desigualdades raciais. A Uneb é uma universidade importante nesse sentido, de estar na linha de frente em busca de corrigir desigualdades, fruto de uma longa história brasileira de subalternização de diversos grupos sociais. A entrada dos diferentes grupos excluídos por diferentes desigualdades estruturais protagoniza uma discussão importante sobre o modelo hegemônico de universidade pública, bem como o direito à educação de qualidade que essas pessoas possuem, pensado a partir de uma perspectiva de direitos humanos dentro de um diálogo intercultural. Em relação à validação presencial, a medida constituiu-se em um grande avanço no sentido de dar garantia a quem tem direito; entretanto, alguns ajustes devem ser feitos pelo campus VII da Uneb no sentido de prover o departamento de equipamentos específicos ou profissionais da área para atender, por exemplo, cegos ou surdos.
Visibilizar as dificuldades, ainda de forma inicial, que cotistas do curso de Licenciatura em Biologia possuem para adentrar e permanecer na universidade pública é um caminho para refletir as possibilidades das dinâmicas acadêmicas para a formação de professores de Biologia que dialoguem com a entrada dos grupos sub-representados. Com isso, este artigo inaugura uma consideração importante que é a de destacar essas dificuldades resultantes tanto das desigualdades quanto da própria dinâmica universitária como princípio importante para discutir o currículo de Licenciatura de Biologia da Uneb, não somente do campus VII, mas de toda as localidades onde existe esse curso de Graduação.
Todos os resultados obtidos contribuem para iniciar um entendimento sobre o processo de permanência dos cotistas na universidade, especificamente no curso de Biologia. As dificuldades pontuadas pelos/as cotistas em relação às questões do restaurante universitário e da fotocópia são fundamentais porque indica a urgência de a universidade implantar espaços fundamentais na permanência desses grupos. Os aspectos afetivos e emocionais indicam o quanto o curso e a universidade vêm ou não produzindo espaços de diálogos e de acolhimento com esses grupos. Além disso, esses estudantes podem não ter tido suas vozes valorizadas, dentro de uma educação pública muitas vezes sucateada, resultando na “dificuldade” em se expressarem de forma oral. Essa educação pública também produz a deficiência de conhecimentos científicos a serem utilizados no Ensino Superior. É importante que todas essas dificuldades sejam pensadas de forma em conjunto. A questão da expectativa de futuro ajuda-nos a perceber tanto o descrédito que os estudantes cotistas trazem sobre ser professor quanto as expectativas internalizadas resultantes de uma sociedade que os desmerece. As questões de metodologia e de avaliação são importantes para que planos pedagógicos, aulas, currículos sejam inspirados também por toda essa entrada de pessoas, as quais, com seus conhecimentos e suas histórias, têm imprimido um caráter menos monocultural à universidade
Como professoras do curso de Licenciatura em Biologia, assumimos que o estudo piloto possibilita o desdobramento em pesquisas maiores. Um dos desafios que propomos é o debate com o colegiado do curso para pensarmos, de forma conjunta, ações que visem a garantir o direito à educação de qualidade a pessoas que historicamente lhes foi negado tal direito.