Introdução
No contexto da emergente necessidade de produção de conhecimentos e de organização de referências de pesquisas em Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER), ressaltamos a relevância da experiência formativa em termos de práticas e de instrumentos metodológicos em pesquisa para estudantes de iniciação científica e estágio interno complementar, particularmente na área de Educação - seja para aquisição de habilidades como professora e professor1, visando à prática em sala de aula, seja como futuras(os) pesquisadoras(es) na Pós-Graduação e, posteriormente, em suas instituições profissionais. Almejamos que esta reflexão possa estimular o investimento na formação docente, visto que a pesquisa sobre relações étnico-raciais é uma etapa fundamental. Desse modo, precisamos, por um lado, criar espaços e oportunidades de formação/experimentação no que se refere à organização de subsídios bibliográficos e documentais e, por outro, proporcionar a criação de práticas educativas, embasadas teórico-metodologicamente, que permitam identificar, registrar, documentar e preservar memórias, histórias, saberes e fazeres das populações afro-brasileiras e africanas no Brasil e em outras regiões da Diáspora Africana.
Discutimos como o exercício da iniciação científica, a produção de trabalhos de conclusão de curso, a organização e a participação em oficinas na Educação Básica ou no Ensino Superior podem organizar informações para que as estudantes construam conhecimento a respeito da pesquisa e da docência como elementos indissociáveis. Adicionalmente, questionamos como os saberes compartilhados e conhecimentos construídos nesse processo formam competências científicas e pedagógicas a serem usadas no exercício da docência na Educação Básica, a partir da compreensão de que o conhecimento construído na pesquisa precisa ser elaborado e mediado para que a(s) cultura(s) da academia e a(s) da escola possam dialogar.
Relacionamos três questões para refletir sobre o processo de formação em pauta: Como a pesquisa na formação de professoras(es) pode contribuir para uma educação antirracista? Como círculos de discussão e de pesquisa podem fomentar a apropriação e a produção de conhecimento por professoras negras formadas e em formação? Quais pedagogias são produzidas quando professoras negras formadas e em formação se reconhecem como sujeitos que aprendem e ensinam a partir de suas experiências educacionais?
Para conduzir essa reflexão, dividimos este texto em três seções. Na primeira, apresentamos uma breve discussão sobre a pesquisa na formação docente para o trabalho com relações étnico-raciais. Na segunda seção, discorremos sobre a relevância da iniciação científica na experiência formativa de estudantes negras e negros em termos de práticas e de instrumentos metodológicos de pesquisa que auxiliarão em suas atividades docentes. Na terceira seção, ressaltamos a experiência de pesquisa na formação de estudantes negras, para além do ensino-aprendizagem de técnicas e de métodos de coleta e de análise de dados, ao destacarmos a emergência de pedagogias negras gestadas no âmbito da pesquisa e seu potencial para problematizar o conhecimento existente e valorizar os saberes produzidos durante o estudo e dele resultantes.
A pesquisa na formação para as relações étnico-raciais
Observamos uma mudança positiva no cenário contemporâneo, em que a pesquisa vem sendo pautada como prática necessária à formação da professora e do professor, especialmente quando pensamos em uma/um profissional que seja capaz de lidar com as incertezas e mudanças frenéticas da contemporaneidade (LÜDKE, 2001, 2006; NÓVOA, 1992; ZEICHNER, 1992, 2001, 2008). Entretanto, precisamos ressaltar que, no campo da formação da ERER, ainda há poucos registros de experiências que ajudem a compreender a necessidade de pensar os contextos social, cultural e territorial, a fim de executar um trabalho mobilizador capaz de afetar os sujeitos integrantes do processo, seja no Ensino Superior, seja nas escolas da Educação Básica. Ainda persiste uma insipiência sobre a produção de conhecimento na área de relações étnico-raciais e como tem se dado a formação de professoras(es) para lidar com essa temática e suas questões no cotidiano.
No Brasil, tem sido produzida uma série de estudos relevantes, os quais discutem os desafios e as potencialidades da formação de professoras(es) para compreender e promover a diversidade na escola, a exemplo de: Candau (1998); Canen e Moreira (2001); Cavalleiro (2007); Fleuri (2000); Gomes (2012a); Gomes e Laborne (2011); Gomes e Martins (2006); Gomes e Silva (2011); Miranda (2013); Miranda e Riascos (2016); Miranda, Riascos e Quinonez (2016); Oliveira (2011); Oliveira e Sacramento (2016); Pereira (2016); Petit (2015, 2016); Silva (1995, 1999); Silva e Barbosa (1997); Silva e Petit (2014); Silva e Silvério (2003). Identificamos, nesse conjunto, pelo menos quatro grandes eixos de formação para a diversidade no Brasil, divulgados em revistas científicas e praticados por formadoras(es) de professoras(es): educação intercultural, educação para as relações étnico-raciais, pretagogia e pedagogia decolonial.
A educação intercultural considera a aprendizagem de mão dupla que pode haver entre diferentes culturas em contato, um processo dinâmico de relação e de comunicação. O intercâmbio não se restringe apenas ao conhecimento acumulado pelos grupos humano, mas também as suas práticas e aos seus modos de relações sociais. Um dos pontos cruciais para a educação intercultural é compreendermos como as diferenças podem ser usadas para justificar e sustentar desigualdades sociais, políticas e econômicas, compreendendo que o papel da educação é elucidar essas relações e, ao mesmo tempo, confrontá-las nos discursos e nas práticas escolares (CANDAU, 1998, 2003, 2007, 2008).
Quanto à ERER, tomamos como referência o Parecer CNE/CP No 3, de 10 de março de 2004, que traz as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004), definidas como processo de “[...] reeducação das relações entre negros e brancos [...]”, o qual “[...] depende [...] de trabalho conjunto, de articulação entre processos educativos escolares, políticas públicas, movimentos sociais, visto que as mudanças éticas, culturais, pedagógicas e políticas nas relações étnico-raciais não se limitam à escola” (BRASIL, 2004, p. 5).
A pretagogia é uma referência teórico-metodológica cuja proposta é organizar uma pedagogia capaz de potencializar os aprendizados da ancestralidade e o pertencimento africano, ao fundamentar suas práticas e reflexões teóricas em valores da cosmovisão africana: a tradição oral, o corpo como produtor de saberes, a valorização da natureza, a religiosidade, o território e o princípio de circularidade. Ela é descrita como uma proposta antirracista que permite negras/negros e não negras/negros cultivarem sua dimensão de africanidade. Nessa proposta, materiais e recursos didáticos, assim como os currículos, são abordados a partir de uma perspectiva afrorreferenciada, que permite ir além da aplicação das leis que sugerem ou obrigam o tratamento de relações étnico-raciais na escola e na formação de professores, apontando como docentes podem ampliar não só o horizonte temático, mas principalmente o metodológico, de compreensões teóricas e construção do conhecimento (PETIT, 2015, 2016; SILVA, 2013; SILVA; PETIT, 2014).
A pedagogia decolonial considera todas as formas de produção do conhecimento que não subalternize saberes de grupos sociais historicamente marginalizados e que promova a interrelação entre diferentes formas de conhecer, ser e fazer de forma igualitária. Nessa proposta, os conhecimentos e as práticas dos diferentes em relação ajudam a constituir formas de conhecer além da colonialidade do ser, do saber e do poder. Essas propostas educacionais, curriculares, metodológicas e práticas contrapõem-se à perspectiva eurocêntrica, presente nos currículos prescritos em documentos e leis orientadores e estruturantes da educação. A pedagogia decolonial não privilegia um grupo e seus conhecimentos e, por isso, ocorre na interrelação entre grupos sociais e em grupos cujas propostas educacionais alinham conhecimentos de diferentes origens (OLIVEIRA, 2018; OLIVEIRA; CANDAU, 2010; WALSH, 2008, 2011, 2014, 2017).
As quatro propostas, cada uma a sua maneira, enfatizam os processos diversos de ensinar e aprender em contextos de diversidade nos quais reconhecemos as diferenças constitutivas dos sujeitos expressos em seus modos de conhecer e de fazer. Por isso, propõem que esses indivíduos se apresentem a si mesmos como produtores situados em suas experiências e em seus contextos vividos. Para além de identificarem um campo amplo de processos educativos expressos em conhecimentos, patrimônios e objetos culturais, bem como conteúdos e práticas escolares como resultados de relações de poder nos quais os grupos subalternizados não logram expor seus modos de perceber e apreender o mundo, essas propostas são um convite a experimentar processos de formação que permitam a apreensão de processos de aprendizagem não lineares e não hierárquicos em que os sujeitos contribuem com suas diferentes experiências e compreensões de mundo nas relações de ensinar e de aprender. Essas contribuições não estão vinculadas aos programas e aos processos previstos nos currículos normativos, mas nas relações humanas criadas e vividas quando diferentes grupos são respeitados como sujeitos de conhecimento. Essa diversidade abre também caminho para processos criativos de ensinar e de aprender ao oferecer ao educador diferentes percursos metodológicos para subsidiar seu trabalho teórico-prático; desse modo, ao conhecerem a diversidade teórica, professoras(es) formadas(es) e em formação podem propor e executar práticas capazes de criar novas relações entre diferentes grupos socioculturais.
As aproximações com as quatro propostas têm nos instigado a pensar sobre como formar professoras(es) para trabalhar com relações étnico-raciais visando a uma educação antirracista, em uma perspectiva de criar constantemente processos capazes de possibilitar a autonomia de práticas e de pensamentos às(aos) estudantes em formação, reconhecendo suas potências. A pesquisa tem se apresentado para nós como um percurso de formação pertinente para dar conta dessas questões, porque, além da necessária constituição de pesquisadoras(es) negras(os), cujas pautas e interesses convergem, destacam-se temas outros na produção acadêmica que podem criar conhecimentos diversos e necessários à docência para o reconhecimento e respeito às diferenças. Temos a organização e a sistematização de modos de fazer capazes de produzir outros sentidos na prática escolar, encontrando caminhos para desenvolver os saberes próprios da docência direcionados ao trabalho com a diversidade étnico-racial.
Consideramos que a utilização da pesquisa na área das relações étnico-raciais na formação inicial e continuada de professoras(es) se constitui em uma ferramenta central de organização de informações e de planejamento de práticas educacionais e sociais, tanto quanto qualquer outra temática. Para além disso, possibilita preparar estudantes para observar e analisar a realidade sob o prisma do racismo e das desigualdades, violências e injustiças sociais, permitindo, portanto, planejar ações que, além de potencializar a aprendizagem de professoras(es)/pesquisadoras(es) em formação, promovam a conscientização acerca de conhecimentos e saberes desconsiderados pela cultura escolar eurocentrada.
Para que haja uma transformação nos currículos, nos conteúdos e nas práticas da escola básica que contemplem uma ERER e respondam às demandas dos sujeitos, devemos ter mais que uma concepção transmissiva de conhecimento. Mesmo que esses conteúdos e essas práticas estejam pautados em princípios de igualdade e de reconhecimento da diversidade, é preciso ensinarmos e aprendermos com a pesquisa, observarmos os sujeitos do processo, suas demandas e, assim, elaborarmos práticas ajustadas ao contexto social e territorial em que as relações se estabelecem. Entre as várias propostas que objetivam superar a concepção formativa transmissiva, a de formação da professora pesquisadora/do professor pesquisador é uma das mais significativas. Ela nos instiga a buscar caminhos, alternativas e, por isso, a criar processos nos quais conhecimentos são questionados e saberes e fazeres elaborados.
Nesse contexto, a formação de professoras(es)/pesquisadoras(es) competentes para trabalhar com relações étnico-raciais alinha-se às exigências da realidade e à complexidade do exercício da docência, por ser uma prática que ajuda a agir na realidade em movimento, ao possibilitar às(aos) estudantes a organização de competências para: (1) diagnosticar situações e problemas pertinentes ao contexto de cada comunidade escolar; (2) levantar hipóteses sobre fatos e fenômenos do cotidiano escolar cujas causas estejam assentadas em preconceitos e discriminações; (3) buscar fundamentação teórica a fim de compreender as soluções que outras(os) professoras(es) propuseram para situações semelhantes; e, por fim, (4) propor ações para transformar práticas e hábitos enraizados nos modos de agir da comunidade escolar.
Cochran-Smith e Lytle (1999) distinguem três concepções de aprendizado de professores que consideram a investigação e a prática do docente como formas de aprender a desempenhar as atividades inerentes à profissão do magistério: (1) o “conhecimento para a prática” (knowledge to practice), em que o professor não produz conhecimento nem é capaz de teorizar sobre suas ações: as questões enfrentadas no cotidiano escolar são solucionadas com conhecimentos e procedimentos aprendidos/memorizados na formação; (2) o “conhecimento em prática” (knowledge in practice), em que o docente desenvolve conhecimento sobre sua prática ou nas reflexões que faz sobre ela; e (3) o “conhecimento da prática” (knowledge of practice), em que o professor produz conhecimento localizado e interessado nas questões, nos temas e nos problemas pertinentes à sua prática cotidiana, sem desconsiderar a interação entre o lugar a partir do qual reflete e os temas políticos e culturais mais amplos da sociedade. Nessa perspectiva, a atividade docente mobiliza para a compreensão do contexto de ensino, em que é necessário refletir sobre onde, com quem, para quem, por que e como ensinar, direcionando a uma reflexão que questiona saberes, práticas e conhecimentos dispostos em currículos e propostas pedagógicas, pois é preciso saber se atendem às demandas da comunidade escolar. André e Pesce (2012), ao comentarem as categorias criadas por Cochran-Smith e Lytle (1999), ressaltam que o “conhecimento da prática” (knowledge of practice),
[ao] contrário das duas concepções anteriores [...] não faz distinção entre professor especialista e iniciante - ambos podem fazer um trabalho colaborativo de investigação. Também não diferencia em dois tipos distintos de conhecimento: um formal (produzido segundo as convenções da pesquisa social) e outro de ensino (produzido na atividade de ensino). O conhecimento produzido pelo professor surge da investigação sistemática do ensino, dos alunos e do aprendizado, assim como da matéria, do currículo e da escola. O papel do professor é de crítico na geração de conhecimento sobre a prática, conectado a grandes temas sociais, culturais e políticos. (ANDRÉ; PESCE, 2012, p. 42).
O conhecimento da prática exige uma professora pesquisadora/um professor pesquisador, pois há formação crítica na busca pela resolução de problemas que interage com os contextos socioculturais nos quais os grupos humanos estão inseridos. Professoras(es) em formação, e quando formadas(os), terão autonomia para realizar suas escolhas teóricas, metodológicas e políticas. Esse é o princípio para pensar professoras(es) proponentes de mudanças em relação às propostas de educação vigentes, pois tem-se uma professora/um professor que inventaria, analisa e pondera sobre propostas a ela(ele) oferecidas e, principalmente, cria a partir de sua experiência. Por isso, destacamos que a pesquisa na Licenciatura não deve se restringir à iniciação científica ou à elaboração de trabalhos de conclusão de curso. Ela deve ser parte da rotina acadêmica, desde o modo como as(os) estudantes buscam informações para seus processos de formação, passando pela postura de docentes e discentes nas disciplinas, até a participação em grupo de estudos e coletivos.
A pesquisa na formação de professoras(es) e seus pressupostos nos ajudam a pensar um processo de formação para a educação das relações étnico-raciais, no qual a pesquisa seja um meio de questionar pressupostos, produzir conhecimento engajado e, simultaneamente, reconhecer saberes, técnicas e conhecimentos das populações tradicionais; um desafio de constituir autonomia no agir e pensar no qual nos comprometemos e nos engajamos com a diversidade cultural. Como destaca Miranda (2013), é preciso ir além do nível das estruturas estatais, expressas em leis, currículos e diretrizes, para acessar o nível das práticas/políticas cotidianas do fazer/ser professora/professor, na formação. Em outras palavras, a autora sugere
[...] trabalho de campo, iniciação científica com foco nos/as estudantes e mediadores/as. Exige flexibilização e outras mobilidades físicas. Para além de viagens mentais, propõe expedições que recoloquem os saberes ancestrais como pauta e reflexão coletiva. As experiências de desaprender/reaprender devem ser compartilhadas e por isso podem ser consideradas interculturais e colaborativas por rejeitarem as hierarquias vigentes que influenciam o imaginário coletivo. (MIRANDA, 2013, p. 113).
Compreendendo o papel fundamental que professoras(es) na universidade podem desempenhar na formação de professoras(es) para atuar nas relações étnico-raciais, destacamos que há necessidade de se produzir reflexões que identifiquem e analisem mudanças no cenário atual referente aos modelos de formação docente em consonância com a lei que regulamenta essa área. Esse é um debate que exige outras leituras e direcionamentos, que não constituiu a proposta deste artigo, pois não estamos refletindo sobre como a formação deve ocorrer em contraposição ao que exige a lei. Formar para as relações étnico-raciais a partir da pesquisa exige novas posturas de todas(os) as(os) envolvidas(os). Professoras e professores com essa responsabilidade devem compreender seu papel de mediação ao viabilizarem experiências com potencial para reconhecer os saberes construídos pelos sujeitos e comunidades às quais pertencem no ato de viver e dar respostas às questões cotidianas. A partir desse posicionamento, a(o) docente certifica conhecimentos produzidos pelas(os) estudantes a partir de suas lógicas de organização e de encadeamento de informações, sejam ancestrais, sejam enraizados nos territórios de origem. Discentes devem assumir os desafios de se tornarem autoras(es) de seus conteúdos e de suas práticas, questionar e criar currículos nos quais conhecimentos são explicitamente engajados na resolução de questões pertinentes ao modo de vida, organização, relação com a natureza, entre outros aspectos.
Destarte, formar professoras(es) para a ERER requer o reposicionamento de pensamentos e de práticas para intervir nas estruturas de poder/saber vigentes. Se não é possível transformá-las no cerne, que seja possível criar ambientes e ambiências propositivos de outras relações de ensinar e aprender, possibilitando a “experiência com” e o “aprender com”. Nesse sentido, concebemos a pesquisa como uma situação de encontro na qual a formação teórico-metodológica resulta de uma práxis educativa na qual professoras(es), formadas(os) e em formação se reconheçam como produtoras(es) de conhecimento. A pesquisa desponta como processo reflexivo de produção de conhecimento, questionamento de metodologias e de criação de práticas.
Estratégias na formação de professoras(es)/pesquisadoras(es) negras(os)
Nosso propósito têm sido construir conhecimentos, resgatar saberes e valorizar práticas para o trabalho com relações étnico-raciais, tendo como ponto de partida fomentar a postura investigativa nas(os) estudantes de Graduação. Esse processo de formação compreende: o vínculo a projetos de iniciação científica, monitoria e iniciação à docência; as práticas vivenciadas em disciplinas que permitam a descoberta do processo de ensinar e aprender na diversidade; e uma análise crítica das trajetórias individuais na Educação Básica, a fim de compreender as estratégias de ingresso e de permanência nas instituições de ensino como parte das ações de famílias e de grupos negros para acessar a educação formal. Essas três frentes de trabalho têm em comum o fomento à postura indagadora que permite desnaturalizar relações de poder expressas em modos de ser e de saber reproduzidos em ambientes formais de educação e de pesquisa. Elas despontam como indissociáveis no desenvolvimento de dois projetos de pesquisa cujas equipes, apesar de possuírem abordagens metodológicas e objetivos diferentes, compartilhavam do desejo de formar e/ou se formarem para o trabalho com relações étnico-raciais.
Os projetos compreendiam o aprimoramento da prática de pesquisa na universidade, exercício necessário na construção de uma postura problematizadora que permite pesquisar/educar sobre relações étnico-raciais nas escolas. Considerando fundamental que todas(os) as(os) profissionais atuantes na Educação Básica sejam formadas(os) em uma ERER sob a perspectiva antirracista, torna-se indispensável que as percepções sobre o racismo, o preconceito e a discriminação na experiência de pessoas negras e não negras em suas trajetórias de vida e educacionais sejam reconhecidas e discutidas nos cursos de Graduação, com vistas a fomentar a pesquisa e a formação de educandas(os) e educadoras(es).
Essas experiências eram analisadas a partir das discussões organizadas no Núcleo de Pesquisa, para a aproximação e o aprofundamento de conceitos pertinentes aos projetos desenvolvidos, bem como para a organização e a execução de uma pesquisa engajada, na qual a reflexividade, a posicionalidade e o envolvimento com os sujeitos da pesquisa fossem considerados determinantes no processo de coleta e de análise de informações. Essa proposta leva em conta a necessidade de postura ativa de docentes formadas(os) e em formação no enfrentamento das questões raciais na educação e no ensino, pois as reuniões visavam dotá-las(os) de instrumental teórico-metodológico para reconhecer, avaliar e propor mudanças de atitudes e de conteúdos para promover uma educação antirracista.
Nessas reuniões de estudo, que conjugavam estudantes de Graduação, mestrandas(os) de Pós-Graduação, professoras do Ensino Superior e da Educação Básica, discutíamos temáticas relacionadas às relações étnico-raciais e à Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003 (BRASIL, 2003). Essa etapa é importante por ter se mostrado uma das mais significativas no processo, pois compartilhávamos experiências no acesso e na permanência na educação formal, mediadas pelas teóricas e pelos teóricos cuja discussão centrava-se no racismo e suas distintas escalas de atuação. Essas reuniões semanais em grupo de estudos permanecem até hoje como parte da formação das(os) estudantes, tendo sido adotadas pelas professoras universitárias como parte das etapas de desenvolvimento de seus projetos de pesquisa e de formação.
Nesses encontros, eram constantes os relatos sobre a incipiência do debate e das práticas para a ERER nas escolas onde praticavam estágio ou trabalhavam como professoras(es) regentes e nas experiências como estudantes do Ensino Médio Normal e do curso de Pedagogia. A partir dos debates, integrantes que atuavam como professoras na Educação Básica em três municípios do Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Nova Iguaçu e Itaguaí) levantaram questionamentos sobre a ausência ou pouca visibilidade atribuída ao trabalho com relações étnico-raciais nas escolas públicas, especialmente no uso regular e adequado dos livros identificados como paradidáticos que abordam temáticas étnico-raciais.
Esses debates e as questões apresentadas pela equipe resultaram na elaboração de um projeto de extensão que propunha oferecer oficinas de formação direcionadas a professoras(es) da Educação Básica, qualificando-as(os) para o trabalho com as relações étnico-raciais nas escolas por meio do uso de livros que tratam das culturas e das histórias africana e afro-brasileira como material de consulta e de recurso didático.
Inicialmente, foram realizados encontros entre as integrantes do grupo para mapear e selecionar livros paradidáticos que abordassem questões étnico-raciais e de gênero do ponto de vista das meninas, jovens e mulheres negras. Como havia no grupo de pesquisa alunas-professoras da Educação Básica atuando em redes municipais de educação do estado do Rio de Janeiro sempre trazendo questões relacionadas as suas experiências e dificuldades em trabalhar reflexões que abordassem as relações étnico-raciais, em particular racismo, preconceito e discriminação raciais na sala de aula e no ambiente escolar em um sentido mais amplo, envolvendo alunas(os), professores(as), gestoras(es), outros profissionais de apoio educacional, e familiares, passamos a priorizar discussões sobre os livros identificados como paradidáticos que essas alunas indicavam que possuíam nas salas de leitura de suas escolas.
Essas alunas relataram que tais livros não eram utilizados nas salas de aula e em alguns casos ficavam “escondidos” ou esquecidos em um canto ou armário, ou na própria caixa em que foram entregues para a escola por meio do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE). Eram livros que foram enviados para as escolas por meio do PNBE com base na implementação da Lei Nº 10.639/2003. Adicionalmente, utilizamos como referência livros comprados pelas escolas dessas alunas com recursos das Secretarias de Educação (cartões para compra de livros para seus acervos). As alunas-professoras relataram que esse era um recurso que as escolas utilizavam para comprar livros a partir dos quais era possível abordar a ERER.
Silveira (2015, p. 627) nos traz uma reflexão “[...] sobre como as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 influenciam no Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE)”, o qual foi estabelecido em 1990. Segundo a autora, o PNBE se constituiu em “[...] espécie de tentativa de responder à crescente demanda escolar por formação e ampliação do aparelhamento das bibliotecas escolares das escolas públicas, promovendo a leitura e o conhecimento de obras literárias entre professores e alunos” (SILVEIRA, 2015, p. 627).
Assim, diante dessas problematizações surgidas, pensamos de imediato como o grupo poderia ajudar as alunas-professoras na tarefa de construção de planos de aula voltados para trabalhar as questões étnico-raciais com os livros pertencentes às bibliotecas das escolas onde trabalhavam. Por tratar-se de professoras do Ensino Fundamental, os planos de aula foram elaborados de modo a poder contemplar qualquer área disciplinar. Nosso foco foi, assim, em selecionar livros que permitiam abordar questões de representatividade e autoestima de crianças negras, destacadas pelas orientandas como aspectos mais significativos a serem apresentados nas séries iniciais e que deveriam atender da Educação Infantil aos anos iniciais do Ensino Fundamental (do 1º ao 5º ano). Depois da escolha dos livros e dos conceitos com os quais trabalharíamos, as orientandas elaboraram planos de aula, cuja proposta era apresentar, a professoras e professores das escolas, materiais que permitissem explorar uma troca de experiências sobre o aprendizado da comunidade escolar com relação às temáticas abordadas.
Durante o processo de formação para a elaboração dos planos de aulas e organização das atividades de extensão, o grupo discutiu textos que abordavam a Lei Nº 10.639/2003 sob diferentes perspectivas, o que nos permitiu vislumbrar a relevância da participação e contribuição das populações africanas e afro-brasileiras na constituição da história2. Além disso, foi possível compreender e identificar limites impostos pelo preconceito e pela discriminação direcionados a esses grupos, assim como o processo de construção do apagamento e da invisibilidade da história dos africanos e de seus descendentes, dentro e fora das instituições escolares.
É crucial enfatizarmos que a responsabilidade em oferecer os meios e os subsídios para o ensino das histórias e culturas africana e afro-brasileira não deve ser imputado exclusivamente às escolas e a professoras(es) e pesquisadoras(es) negras(os), mas ao conjunto da sociedade e suas outras instituições, públicas e privadas, pois trata-se de uma proposta que deve ser entendida e conduzida como responsabilidade coletiva. Precisamos promover a sensibilização e a conscientização sobre o fato de que o racismo não se constitui como um problema exclusivo de pessoas negras no Brasil, mas do conjunto da sociedade, abrangendo integralmente todos os indivíduos, grupos e instituições. A vigência do racismo e dos preconceitos e das discriminações que o racismo alimenta foram estabelecidos (e são mantidos e reproduzidos) por meio de um “acordo social”. Nessa lógica, como afirma Almeida (2018, p. 38), “[...] ele é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares [...]; o racismo é estrutural”, de modo que “[...] comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção”. Por conseguinte, as respostas para seu enfrentamento devem necessariamente envolver o conjunto da sociedade, pois ele “é parte de um processo social” (ALMEIDA, 2018, p. 38).
Os resultados dessa experiência de organização das atividades de extensão foram bem-sucedidos. Um primeiro produto foi a realização de palestras-oficinas em 2017 para duas escolas: Escola Municipal Júlio Cesário de Melo (da 3ª Coordenadoria Regional de Educação, Zona Norte) e Escola Municipal São Domingos (da 10ª Coordenadoria Regional de Educação, Zona Oeste), ambas da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME-RJ). Um segundo produto foi o trabalho realizado, em 2018 e 2019, com estudantes normalistas e professoras(es) do Instituto de Educação Carmela Dutra, da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ). Consideramos que esse é um bom exemplo de como a pesquisa tem contribuído para a formação das orientandas também na esfera da prática de ensino e de aprendizagem em ERER.
Temos observado, portanto, que, ao participarem ativamente das etapas de desenvolvimento dos projetos de pesquisa - por exemplo, a condução das atividades do levantamento bibliográfico e documental, as discussões técnicas de sistematização do material selecionado, a formação do acervo e as reuniões do grupo de estudo -, as estudantes têm adquirido um entendimento de trabalho docente como um processo contínuo de elaboração e de coordenação de conhecimento que envolve um processo sistemático de coleta e de armazenamento de dados. Essa prática relaciona-se a dar às estudantes uma aproximação com o campo da pesquisa em educação a fim de compreenderem os processos de ensinar e de aprender como parte de um contexto mais amplo de coletar, organizar e analisar informações. Essas ações, quando realizadas sob um referencial teórico-metodológico que considera as relações desiguais entre sujeitos no acesso, na permanência e na conclusão da Educação Básica e do Ensino Superior e o questionamento sobre o “sujeito do conhecimento” e os grupos considerados “objeto do conhecimento”, permitem uma formação crítico reflexiva, pois a coleta e o armazenamento de dados implica saber quem produz, por que produz, qual a intenção da produção e quais grupos humanos usam e se apropriam desses conhecimentos.
Para as professoras orientadoras, a formação de um pensamento crítico e reflexivo passa pela necessidade de rever e criar propostas a fim de atender às expectativas de jovens estudantes em formação. Por meio do trabalho conjugado de investigação de pesquisa, do levantamento bibliográfico e documental e da prática de atividades de extensão, as orientandas têm conseguido compreender e refletir sobre as situações e as demandas vivenciadas cotidiana e historicamente pela população negra quanto à vivência com o racismo no ambiente escolar. Desse modo, elas têm a oportunidade de produzir discussões, pesquisas e práxis significativas para pensar e desafiar discursos e práticas escolares assentadas no racismo estrutural patriarcal heteronormativo. Nosso trabalho enquanto professoras orientadoras tem se principiado pelas referências de Nilma Gomes e Petronilha Silva (2011, p. 23-24) acerca do trabalho com a diversidade, definido como “[...] uma competência político-pedagógica a ser adquirida pelos profissionais da educação nos seus processos formadores, influenciando de maneira positiva a relação desses sujeitos com os outros tanto na escola quanto na vida cotidiana”. Adicionalmente, alinhamo-nos com Iolanda Oliveira e Mônica Sacramento (2016), as quais, em sua discussão acerca do diálogo teoria/prática na formação de profissionais do magistério no contexto das relações raciais e educação, ressaltam a importância de se estabelecer “[...] a relação entre Raça, Currículo, Didática e Práxis Pedagógica e seus possíveis efeitos na educação dos diferentes grupos étnico-raciais” (OLIVEIRA; SACRAMENTO, 2016, p. 259). E, ainda, enfatizam sobre a necessidade de o processo de formação de professores por meio do currículo contribuir “[...] para que os cursistas identifiquem a dimensão racial de sua atividade profissional e incluam na mesma os estudos sobre a população negra, com o propósito de reduzir a discriminação racial na educação” (OLIVEIRA; SACRAMENTO, 2016, p. 259).
As experiências formativas na pesquisa possibilitaram a construção de modos de fazer nos quais a produção de conhecimento na área das relações étnico-raciais pode relacionar-se diretamente ao desenvolvimento de “competências pedagógicas” para a proposição, a organização e a execução de atividades, práticas e projetos pertinentes que incidam no âmbito da Educação Básica. A experiência de pesquisa, individual e coletivamente, tem representado a possibilidade de desenvolver práticas de pesquisa/educativas responsáveis e éticas, inovadoras e criativas, pautadas na disciplina e na autonomia acadêmicas, aspectos que têm demonstrado a efetividade dos objetivos de nossos projetos de pesquisa no que se refere ao investimento na formação e na transformação de estudantes em professoras(es)-pesquisadoras(es) em educação no campo das relações étnico-raciais e de gênero.
Avaliamos haver um processo de coformação das(os) estudantes e das(os) professoras(es) responsáveis pelos projetos, pois aprendemos e ensinamos juntas(os), em um processo dialógico de construção de possibilidades de vir a ser uma/um profissional da educação competente para o trabalho com relações étnico-raciais. Acreditamos que a construção do conhecimento, seja para a pesquisa, seja para as práticas na Educação Básica, no âmbito das propostas desenvolvidas por nós, não pode ocorrer sem um diálogo permanente que vise garantir o respeito mútuo e o atendimento às necessidades dos sujeitos envolvidos no processo educacional, no Ensino Superior e/ou na Educação Básica. Trabalhar com relações étnico-raciais precisa, pois, ser visto como organização e descoberta de novos paradigmas na construção de conhecimentos, socialmente relevantes, politicamente engajados e sobretudo co-construídos, nos quais os sujeitos integrantes ensinam e aprendem mutuamente.
Como destaca Freire (2005), o diálogo é o principal elemento por meio do qual é possível construir um processo educativo em que as experiências, as expectativas e os desejos de todas as pessoas envolvidas estejam presentes e que exista respeito por elas. É um processo de co-construção de conhecimento e de si mesma e de si mesmo, pois não há sujeito que se cria individualmente, há um processo coletivo de ser e de vir a ser que envolve a transformação de cada uma/um e de todas(os).
O diálogo é este encontro dos homens, mediatizado pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que não a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito. É preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no direito primordial de dizer a palavra, reconquistem esse direito, proibindo que este assalto desumanizante continue. Se é dizendo a palavra com que, “pronunciando” o mundo, os homens transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. Por isso o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados no mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito ao outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes. (FREIRE, 2005, p. 45).
Exploramos, como parte da proposta de formação, o exercício de pensar as experiências formativas das estudantes antes e durante a universidade como um momento de descoberta de suas potencialidades e das potências que a Educação Básica pode alimentar entre professoras(es) e estudantes. O conhecimento construído coletivamente nos transforma em sujeitos educandas(os), por uma troca permanente de afetos que nos transpassam e mobilizam o ensinar e aprender de cada uma/um. Como professoras/intelectuais negras na universidade, aprendemos com as(os) professoras(es)/intelectuais em formação sobre como mobilizar, influenciar, intervir e arriscar propostas que movimentem graduandas(os), normalistas e docentes da Educação Básica na busca e no aprimoramento de processos de ensino e de aprendizagem antirracistas.
Foi produzido um documentário em um dos projetos para registrar as narrativas de estudantes do curso de Pedagogia (primeiro grupo de bolsistas da pesquisa e colaboradoras) sobre a formação vivida no curso da pesquisa, enfatizando a construção do conhecimento sobre relações étnico-raciais, tanto referentes aos processos de trabalho a serem desempenhados na Educação Básica, quanto à construção de si enquanto professoras/intelectuais negras. Nos relatos das estudantes mulheres, destacamos a relação que estabelecem entre a descoberta do ser pesquisadora e professora e, em certa medida, o reconhecimento da possibilidade de mulheres negras serem intelectuais, processos que veem como indissociáveis. Essa descoberta confronta as primeiras impressões sobre a formação para o magistério na Educação Básica, por suas expectativas iniciais não incluírem a pesquisa como um dos percursos possíveis de serem tratados/vivenciados, em especial quando associada ao magistério nas séries iniciais, que é marcado pelo peso do estigma como um processo exclusivamente de reprodução de conhecimentos e de ausência de reflexão crítica.
As “narrativas confessionais” (HOOKS, 2013) das estudantes são tratadas no documentário como parte da formação docente por meio da pesquisa, cuja criação coletiva resulta de novas perspectivas sobre o papel social das mulheres negras no magistério e de sua inserção na universidade. As falas relacionam trajetórias escolares e experiências na instituição de Ensino Superior, iluminadas pela construção de uma comunidade de aprendizagem com troca de informação e de criação de saberes na qual cada uma pode expressar livremente as motivações para a entrada, permanência e conclusão do curso de Ensino Superior. Das narrativas de ingresso no curso de Pedagogia, por ser uma continuidade da formação normal àquelas que apontavam o ingresso no curso de formação de professoras(es) como a única porta possível para acessar o Ensino Superior, pela pouca concorrência nos cursos de Licenciatura, observamos, simultaneamente, estratégias e táticas utilizadas para a conquista do direito à educação.
Quando as estudantes ouvem umas às outras constroem um repertório intercultural que as permite compreender as motivações de seus pares para estarem na universidade e organizar um repertório que as permitirá compreender os diversos modos como suas/seus futuras(os) alunas(os) negras e negros e suas/seus familiares significam o acesso e a permanência na Educação Básica. Ao ouvirem os relatos umas das outras, as estudantes veem-se como sujeitos diversos com repertórios e motivações distintas e, ao analisarem suas narrativas a partir de debates sobre formação de professoras(es) negras e negros para atuarem na educação das relações étnico-raciais, percebem que
[...] ligando narrativas confessionais às discussões acadêmicas para mostrar de que modo a experiência pode iluminar e ampliar nossa compreensão do material acadêmico. Mas a maioria dos professores tem que treinar para estarem abertos em sala de aula, estarem totalmente presentes em mente, corpo e espírito. (HOOKS, 2013, p. 35-36).
O diálogo nas experiências formativas dispostas pelos dois projetos (dada a dinâmica gerada e organizada durante sua execução) foi capaz de criar uma “comunidade aberta de aprendizado” (HOOKS, 2013, p. 18), pois dialogávamos sobre os projetos e as expectativas das(os) estudantes em relação ao que poderiam realizar individual e coletivamente no âmbito das pesquisas, em confluência com os planos de trabalho a serem seguidos. O desejo de participar, o sentimento de fazer parte do coletivo e a sensação de aprendizagem significativa não poderiam ser dadas exclusivamente pela organização das atividades propostas por nós, professoras universitárias. Foi uma construção coletiva de criar entusiasmo sobre o que, por que, com quem e como ensinar, tanto na relação entre nós no grupo de pesquisa e estudos, quanto nas oficinas realizadas com professoras(es) da Educação Básica e normalistas. Segundo bell hooks3 (2013, p. 18), as comunidades abertas de aprendizado são regidas pelo entusiasmo, um sentimento/modo de agir que implica posturas inovadoras de professoras(es) e estudantes no ensinar e aprender; por isso “para quem” ensinar é mais bem descrito por “com quem” ensinar e aprender, direcionando-nos a uma postura que prevê a revisão dos modos como falamos, escrevemos e pensamos diante de cada um dos grupos com os quais estabelecemos troca de informações e criação de conhecimento.
O esquema da Figura 1 ilustra, sucintamente, as atividades planejadas para a formação em pesquisa de estudantes no âmbito da Licenciatura em Pedagogia e como a atenção às expectativas das estudantes cria um processo que, mesmo estando associado à proposta inicial dos projetos, resulta em um ambiente de aprendizagem/formação no qual se constitui uma comunidade aberta de aprendizagem.
Por último, as narrativas destacam como o entusiasmo foi criado respeitando as expectativas de cada uma e do coletivo (composto exclusivamente por mulheres na época da produção do documentário) que ali se dispôs na formação de professoras/intelectuais. O processo descrito parece pertinente em um contexto de formação para a educação das relações étnico-raciais, porque, além da proposta de combater qualquer forma de preconceito e de discriminação, visava construir um modo diferente de criar e de organizar os conhecimentos. Estávamos atentas à construção de uma “pedagogia engajada” (HOOKS, 2013, p. 25), na qual o bem-estar estivesse colocado como princípio fundador. Dessa forma, podíamos efetivamente pensar na formação de professoras/pesquisadoras negras engajadas com as realidades nas quais atuarão como profissionais da área de Educação.
O engajamento nas ações e nas propostas dos projetos, bem como as proposições realizadas a partir dos planos de trabalho, considerava, sobretudo, a experiência das estudantes em suas trajetórias escolares e de vida. Ambas nos ajudavam a compreender sua escolha pela entrada e pela permanência no grupo de pesquisa, assim como os modos de engajamento de cada uma. Suas particularidades, em vez de serem suspensas, com vistas à produção científica supostamente neutra e legítima, eram compreendidas como trajetórias que deveriam ser integradas ao processo de formação para o trabalho com relações étnico-raciais. A criação da comunidade aberta de aprendizado mobilizou o pensar e o fazer que incidem no modo como as(os) estudantes percebem suas atuações na Educação Básica e como as professoras universitárias se relacionam com alunas(os) de Graduação, pois, além de implicar a atualização de conteúdos, descobre-se a necessidade de criar “estratégias alternativas de aprender e ensinar” (HOOKS, 2013, p. 30), sendo a própria comunidade aberta de aprendizado uma dessas estratégias. Essa experiência teórico-prática aponta a emergência de uma pedagogia engajada, denominada por nós de “pedagogias negras”.
Da emergência/insurgência de pedagogias negras
As pedagogias negras são, simultaneamente, relativas, criativas e democráticas. Relativas, porque dependem dos contextos em que são gestadas e dos) sujeitos em interação, pois não há uma única pedagogia negra, há múltiplas experiências de ensinar-aprender-criar situadas nos corpos e nas subjetividades, bem como nas objetividades. Criativas, porque temos observado no desenvolvimento de nossas práxis e de outras(os) colegas parceiras(os) no campo da formação de professoras(es) - na sala de aula, na pesquisa, e nas atividades de extensão - que as pedagogias negras têm se constituído em ambiências de experimentação de modos de fazer, pensar e ser capazes de transformar, questionar e problematizar conhecimentos e práticas já estabelecidos nas pedagogias ocidentais e nas próprias propostas gestadas no âmbito das práticas negras de ensinar e aprender. E, por fim, democráticas, por estarem abertas ao questionamento e à crítica, reconhecendo conflitos e contradições inerentes aos processos educativos, formais, não formais e informais que abarcam. Esse caráter democrático possibilita inovações permanentes ao alimentar a experimentação e a contextualidade, geográfica e histórica. As pedagogias negras emergem dessas situações de estar junto, com vistas a um objetivo comum, seja no movimento social, seja na formação universitária, pois o modo de estar junto do grupo de pesquisa examina as práticas correntes da universidade e reposiciona os sujeitos.
As pedagogias negras também se recriam e se reinventam porque a conjuntura sociopolítica, econômica, cultural e tecnológica se transforma. Predomina o diálogo e a experimentação de teorias e de práticas, conduzindo uma práxis de formação, científica e docente, complexa de ser organizada porque respeita as individualidades e as necessidades, revelando múltiplas potências ao criar, a partir de experiências negras, textos e leituras para outros sujeitos negros.
Essas experiências de pesquisa engajada, com foco na ERER, realizam uma transformação no modo de produzir e de lidar com o conhecimento que é a base de qualquer transformação curricular e de práticas pedagógicas que se pode produzir entre docentes e discentes. São mudanças que começam nos temas de pesquisa e nos modos como compartilhamos ideias, elementos que estão na base de qualquer transformação de significado. Essas experiências na universidade vão para a escola e adquirem a capacidade de autogestão de pesquisa e de busca de soluções para as questões do cotidiano escolar.
As pedagogias negras no processo de formação e no uso que se faz delas trazem à tona a necessidade de os sujeitos se reconhecerem como criadores de direitos. O direito à educação e o direito ao conhecimento são apenas dois dos direitos diretamente relacionados à escola. As pedagogias gestadas no processo de conhecer (como busca do conhecimento), de reconhecer (a si mesmo e a outros no campo das relações sociais) e de afirmar (uma identidade negra diversa) apontam para múltiplos direitos que cabe descrevermos, porque a ERER ultrapassa as fronteiras da educação formal, fazendo emergir um leque amplo de propostas, campos de atuação e arenas de debates. Gadotti (2006), ao tratar da educação para a cidadania, destaca que, quando esta ocorre, as(os) educanda(os) se tornam conscientes de seus direitos, civis, sociais e políticos, previstos na Constituição Cidadã (BRASIL, 1988)4, aos quais acrescentamos direitos culturais e direito à diferença:
direitos civis relacionados à liberdade e à integridade individuais, como o ir e vir, privacidade, propriedade e liberdade de culto;
direitos sociais que buscam igualar as condições de vida das cidadãs e dos cidadãos, como trabalho, salário justo, saúde, habitação, entre outros;
direitos políticos que garantem a participação das cidadãs e dos cidadãos na sociedade e no governo, experimentados na liberdade de expressão, de voto e livre organização política;
direitos culturais, acesso a bens e práticas criados pelas sociedades nos processos de organização e de reprodução da vida, reconhecidos como parte do patrimônio simbólico (material e imaterial) da humanidade;
direito à diferença, reconhecimento das múltiplas expressões ético-estéticas fundadas no corpo, expressão de saberes e fazeres, modos de organização socioterritorial e apropriação da natureza. Inclui ainda o debate sobre as relações de poder-saber fundantes do patrimônio oficializado institucionalmente e a representatividade da diversidade.
As pedagogias negras, campo teórico-prático de formação, assumem esses direitos como parte constituinte de seus processos educativos por visarem à organização de experiências formativas humanizantes e humanizadas que lançam outro olhar sobre a educação formal, possibilitando que a justiça cognitiva ocorra.
Segundo Santos e Meneses (2006), a justiça cognitiva diz respeito à ampliação da diversidade epistêmica e demanda repensar o conhecimento regular versus o conhecimento compreendido como emancipador. De acordo com Reis e Campos (2016, p. 112-113): “A justiça cognitiva significa [...] a percepção de cada conhecimento como contribuição possível ao processo social, sem ser desconsiderado a priori, numa perspectiva de complementaridade e interdependência entre os diferentes conhecimentos/experiências”.
Na esteira dessa discussão sobre os direitos reivindicados e mobilizados pelas pedagogias negras, a diferença surge como ponto fundamental, pois visibiliza o outro em suas particularidades - o corpo dos sujeitos, gestos, roupas, modos de falar e andar, entre outros aspectos - e aponta a necessidade de não só aceitar ou descrever suas especificidades, mas a importância de criar conteúdos, currículos, práticas e atividades nos quais o outro seja reconhecido e respeitado, bem como se reconheça e se valorize.
Segundo Gomes (2003), as diferenças podem ser entendidas de duas formas, como construções culturais e como resultado do processo histórico, sendo forjadas nas relações políticas e de poder. No primeiro caso, temos os modos como os sujeitos se organizam em sociedade e criam entendimentos sobre o mundo e a natureza à sua volta, um processo de reconhecimento das especificidades próprias de cada um, inclusive de si mesmo. No segundo, as relações entre diferentes grupos humanos em que o outro pode ser inferiorizado e subalternizado por causa de suas particularidades, sejam elas corpóreas, religiosas, linguísticas, raciais, geracionais, entre outras. Desse modo, a ERER não é um mero elogio às diferenças, pois “[...] representa não somente fazer uma reflexão mais densa sobre as particularidades dos grupos sociais, mas, também, implementar políticas públicas, alterar relações de poder, redefinir escolhas, tomar novos rumos e questionar a nossa visão de democracia” (GOMES, 2003, p. 75).
As pedagogias negras, ao articularem direitos em suas mais diversas expressões, promovem uma ERER que mobiliza sujeitos e criam saberes em movimento. Por não serem próprias da educação formal nem estarem nela restrita, apontam seguidamente para outros campos da vida social em que preconceitos e discriminações precisam ser denunciados e transformados. Contudo, quando essas pedagogias chegam à universidade/escola, nos ensinam a observar, descobrir, aprender delas e, principalmente, com elas sobre o leque diversificado de direitos que colocam em pauta. Suas demandas plurais requerem modos variados e mutáveis de pensar e fazer e exigem a criação de metodologias para o ensino das relações étnico-raciais, com o objetivo de atender aos direitos que lhes são próprios.
Um dos desafios das pedagogias negras ao se inserirem nos espaços de educação formal é significar e discutir a complexidade da vida social, as lutas, as conquistas e os desafios da população negra, em suas várias vertentes e frentes de atuação, em práticas inovadoras de transformação dos modos de fazer, de saber e de ser em uma Instituição de Ensino Superior. Nas pedagogias negras, gestadas nas práticas de pesquisa na formação docente, as demandas cotidianas das estudantes - desejosas de verem a si mesmas representadas nos temas de pesquisa e debate - são tratadas como tópicos de investigação para mobilizar o aprendizado na/sobre a pesquisa, traduzindo-o em novos códigos, a saber: metodologias e conhecimentos criados e reelaborados com fins de transformação das relações étnico-raciais. O processo de pesquisa motiva um grau relativo de autonomia das estudantes na construção do conhecimento, pois o que ensinamos nem sempre é aquilo que se aprende, mas o que se aprende é sempre algo dentro de um contexto de reconhecimento e conquista de direitos e de busca pela garantia destes.
A aprendizagem de negras e de negros em formação é um processo criativo de organização de saberes e de aquisição de habilidades que não se limita ao domínio de procedimentos contidos em normas instrucionais. Até os modos como nos posicionamos frente aos papéis que desempenhamos na qualidade de mulheres negras na universidade, quando nos relacionamos entre nós e com jovens negras, cursando Ensino Médio, se transformam, porquanto há o entendimento da necessidade de construir o acesso ao Ensino Superior e a permanência nele de forma coletiva, plural e respeitosa.
A reivindicação do respeito e do direito à diferença na universidade impacta os modos de produzir conhecimento, deixando de ser apenas figura de retórica para ser um princípio de revisão de pressupostos e crenças que fundamentam a formação acadêmico-científica. As questões étnico-raciais na formação de professoras(es) trazem à tona temas que desafiam a universidade a ser efetivamente democrática e criativa, quando aquelas assumem os conhecimentos, técnicas, tecnologias e práticas produzidos por negras(os) escravizadas(os) como meios e recursos que permitiram a sobrevivência na diáspora, e na atualidade fundamentam processos produtivos e de relação com a natureza pelos quais as populações negras diaspóricas se organizam e criam continuamente. Na universidade “moderna”, como instituição fundada no Iluminismo europeu, os pressupostos de conhecimento válidos para a humanidade são fundados no padrão eurocêntrico de produção de conhecimento. Como salienta Silva (2003, p. 46), “[o] desafio maior está em incorporá-los ao corpo de saberes que cabe, à universidade, preservar, divulgar, assumir como referências para novos estudos”.
As mulheres negras em movimento na universidade pela construção de outras práticas e saberes disputam outras narrativas sobre si e os seus no sentido de se verem nos temas e nas pesquisas, no que tange não apenas a uma revisão de relatos históricos, como também ao atendimento às demandas dos grupos aos quais pertencem. As pedagogias negras disputam a construção de outras teorias-práticas na universidade, cujos diversos modos de expressão e aparecimento (grupos de pesquisa, coletivos, projetos e interações universidade-escola, universidade-sociedade) podem produzir práticas socioeducativas emancipatórias, permitindo o despontar de estudantes negras e negros como produtoras(es) de conhecimento, bem como a valorização de saberes ancestrais, memórias e lutas por emancipação.
A organização de ambientes e ambiências de aprendizado teórico-prático com foco na manifestação das pedagogias negras é imprescindível para conhecer as lutas do movimento negro e das e dos negros em movimento por democracia, justiça social e contra o racismo e, sobretudo, para reconhecer negras e negros como produtoras(es) de conhecimento.
As pedagogias negras instituem um movimento de ensinar e de aprender no qual experiências e saberes são criados e socializados por sujeitos em movimento simultâneo de contestação e de inserção na universidade. Elas buscam processos emancipatórios de formação ao acreditarem na necessidade de rever práticas de ensino reprodutivas e apontar, criar e fazer emergir saberes complexos que permitam novos métodos de ensino-aprendizagem. Gomes (2011) ressalta a necessidade de organizar uma pedagogia das ausências e das emergências, nas quais, respectivamente, os saberes produzidos pelo movimento negro sejam reconhecidos e as condições de superação do racismo e das desigualdades, por este sustentadas, sejam criadas no campo da Educação. Assim, é fundamental reconhecermos os saberes acumulados pelos movimentos negros e pelas(os) negras e negros em movimento e a criação de alternativas na construção de conhecimento na universidade.
A tensão entre regulação e emancipação no campo educacional estabelece a produção de conhecimento como campo de disputas ao qual direcionamos nossos esforços. Não basta questionar os conteúdos produzidos pela universidade: é preciso saber como a conquista dos direitos básicos aqui listados podem ser construídos em uma instituição cuja organização impede a participação igualitária de suas partes e na qual as práticas são hierárquicas e hierarquizantes, dos saberes e dos sujeitos. É preciso questionar os temas das pesquisas, as metodologias e os resultados aos quais chegamos ao final dos processos. A tensão regulação-emancipação quando vista de dentro de uma comunidade aberta de aprendizagem significa a vigilância permanente das práticas e o reconhecimento das potências diversas dos sujeitos em movimento.
Considerações finais
A experiência de formação de professoras(es)/pesquisadoras(es) negras(os) ao longo do desenvolvimento de dois projetos de pesquisa possibilita compreender como são gestadas as pedagogias negras na universidade. Dá-se uma interação na qual professoras formadas e em formação aprendem, ensinam e criam práticas e conhecimentos coletivamente, sem perder de vista a autonomia de pensamento. Buscamos sintetizar tais experiências a fim de identificar, registrar e refletir sobre os processos de ensinar e de aprender no contexto de reconhecimento das relações étnico-raciais desiguais presentes nas instituições de ensino, especialmente na universidade e nos processos de formação pela pesquisa.
Destacamos que o diálogo entre diferentes sujeitos é primordial para a organização de comunidades abertas de aprendizagem (HOOKS, 2013), em que a troca de informações, o relato de experiências e a proposição de estratégias possibilitam o ato de gestar modos mais emancipadores de ensinar e de aprender. O diálogo na qualidade de prática pedagógica emancipadora possibilita que novos processos, sujeitos e objetos despontem como questões pertinentes no processo de formação. Em práticas de pesquisa, mesmo considerando a necessidade de uma metodologia bem-organizada e estruturada para a execução de um projeto, abri-lo ao diálogo, implicando questionamentos e problematizações, amplia seu alcance formativo e sua capacidade de dar conta das questões sociais mais urgentes. A reorganização dos projetos para atender às demandas de suas integrantes aponta a possibilidade de uma dialogicidade verdadeira ocorrer na universidade, considerando “[...] que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos” (FREIRE, 2007, p. 60).
A dialogicidade apresentada neste texto permitiu formar uma comunidade aberta de aprendizagem cujas discussões eram pautadas prioritariamente pelos conhecimentos e pelos saberes produzidos pela população negra brasileira; pela construção de suas identidades na universidade; pela autoimagem que fazem de si mesmas(os) quando lhes são dadas as oportunidades de se reconhecerem como sujeitos de pensamento e ação; e pelo aprendizado frente a diálogos de pesquisa no campo das relações étnico-raciais para formação de educadoras(es) antirracistas para atuar na Educação Básica. A comunidade de aprendizagem apresentada organiza-se dos desejos e das intenções de mulheres negras em formação acadêmica que, independentemente de suas titulações, se permitem ensinar e aprender.
A comunidade aberta de aprendizagem constitui uma experiência formativa fulcral para a organização dos modos de trabalhar de todos os sujeitos envolvidos, pois, ao abrir o diálogo, permite que novas perguntas, desejos e possíveis respostas se apresentem como pertinentes. Desse modo, professoras(es) universitárias precisam reorganizar seus calendários e propostas, conjugando suas orientações teórico-metodológicas com as demandas de aprendizagem de suas(seus) alunas(os). Estudantes, por sua vez, devem compreender a necessidade de posicionarem-se diante dos temas, dos conteúdos e das metodologias que vivenciam, passando a se sentir mais ativas(os) em seus processos de formação.
O processo construído entre estudantes e professoras(es) também é respaldado pelas diretrizes do Parecer CNE/CP No 3/2004 (BRASIL, 2004), que objetivam uma educação antirracista e se estruturam em três eixos a partir dos quais ações, projetos e temas podem ser tratados, a saber: a consciência política e histórica da diversidade; o fortalecimento de identidades e direitos; e ações educativas de combate ao racismo e às discriminações.
É crucial promovermos um processo de formação que permita às pessoas vislumbrar que as práticas e os conhecimentos produzidos pelos distintos grupos afrodescendentes refletem perspectivas e realidades em diálogo com eles próprios e com outros povos e culturas em distintos territórios dentro e fora do continente africano. Nesse sentido, precisam ser considerados como fontes importantes de produção de conhecimento sobre o mundo e sobre as relações entre grupos sociais e povos, em um sentido mais amplo. É preciso compreendermos, ainda, que seguir nesse caminho epistemológico, pautado na justiça cognitiva, nos permite (e permitirá) produzir análises relevantes sobre as relações humanas à luz de diferenças culturais e de distintas formas de conhecimento ainda subalternizadas pela predominância de modos eurocentrados de pensar e de organizar a práxis.
Por fim, um último ponto a ser destacado é a importância de as universidades manterem espaços que permitam o desenvolvimento de estratégias para assegurar a permanência de estudantes negras(os) até o fim do curso e o acesso a ferramentas que lhes permitam investir em suas trajetórias acadêmicas e profissionais durante a Graduação e, posteriormente, escolher seus destinos de forma equânime - ingressando no mercado de trabalho e/ou se inserindo na Pós-Graduação. Tomando emprestado as palavras de Gomes e Martins (2006, p. 9), estamos “[...] inseridos em uma comunidade acadêmica que ainda não se convenceu do quadro alarmante de discriminação e desigualdade racial que assola a população negra deste país [...]”; no entanto, nós, professoras e professores, devemos seguir “[...] acreditando que a universidade, sobretudo a pública, tem o dever político e social de intervir nessa situação” (GOMES; MARTINS, 2006, p. 9).
Quando trabalhamos dialogicamente e nos abrimos para a construção de comunidades abertas de aprendizagem, as pedagogias negras podem emergir dos processos de organização, de busca e de planejamento próprios das práticas educativas na universidade, muitas vezes atuando em processos de insurgência ou desobediência às normas estabelecidas que hierarquizam, classificam e restringem os sujeitos e seus saberes. As comunidades abertas de aprendizagem gestam pedagogias negras e são por elas gestadas, porquanto há um processo de mútua implicação, já que não seria possível criar modos de fazer e pensar engajados e propositivos de outras relações pessoais e institucionais na universidade sem ambientes abertos ao diálogo, aos conflitos e aos acordos necessários para a construção de outros modos de conhecer. Também não conseguiríamos criar círculos para compartilhar e conceber experiências emancipadoras sem desejar e exercer práticas pedagógicas referenciadas na vivência socioterritorial dos sujeitos: práticas que produzam métodos inovadores a partir de processos já estabelecidos, problematizem as proposições autorais e, por fim, reconheçam a superação de desigualdades como princípio educativo fundamental.