Introdução
As lutas das mulheres brasileiras por direitos trabalhistas, participação e paridade tem no movimento sindical um espaço convergente de enfrentamento (Araújo & Ferreira, 1998; Leone & Teixeira, 2010). A conquista do percentual de cotas para mulheres nas diretorias de centrais sindicais revelou um posicionamento hostil à presença feminina em espaços de decisão e poder, sendo uma das principais causas da exclusão dessas lideranças (Delgado, 1996)[1].
Fausto (2006) aponta que, no Brasil, a urbanização e a industrialização tiveram seu início a partir de 1930 com a chegada dos primeiros empreendimentos fabris e o investimento em vias de escoamento de produção. Na década de 1970, ocorre a intensificação dos movimentos de trabalhadores organizados em sindicatos, influenciados pelos movimentos trabalhistas europeus e contextualizados pelos movimentos sociais brasileiros, que ganham força ao unificar os diversos segmentos de mão de obra na categoria “classe trabalhadora” visando à conquista de direitos coletivos.
Ainda no final daquela década, emerge o movimento conhecido como Novo Sindicalismo fomentado pela resistência à Ditadura Militar e pelo estreitamento da relação com as bases. Tal movimento assumiu uma postura mais combativa, possibilitando tanto a inserção das pautas das mulheres nos sindicatos, como o aumento da sua participação na militância sindical e política (Araújo & Ferreira, 1998; Soares, 2016). Mais tarde, o cenário da luta sindical brasileira ainda assistiria outra mudança em seus caracteres, inicialmente combativos, passariam, depois, a ceder espaços para temáticas voltadas à inclusão cidadã. Para Antunes e Silva (2015, p. 523), esse momento é definido nos termos de uma importante passagem “do sindicalismo de confronto ao sindicalismo negocial”.
Ao uniformizar a classe trabalhadora em unidade categórica, alguns segmentos tiveram suas demandas olvidadas em detrimento das conquistas do coletivo, como no caso do movimento de mulheres (Soares, 2016). Paralelamente, o processo de estratificação social por si só não estimulou a percepção de outras opressões existentes no interior da sociedade brasileira – determinantes para compreensão dos fatos – por gênero e raça. Nesse sentido, histórica e culturalmente, não apenas as relações sociais de trabalho foram capazes de hierarquizar o meio social, mas também o papel da mulher, em especial, da mulher negra na sociedade brasileira (Gonzalez, 1980).
Se as demandas das mulheres já eram urgentes, a realidade das mulheres negras impôs novos olhares à discussão: o preconceito de raça e as múltiplas violências enraizadas na gênese de um país colonizado por europeus, que traficavam homens e mulheres do continente africano para submissão ao trabalho escravo. A herança legada por esse período de três séculos estruturou relações e oportunidades sociais desiguais no Brasil, atravessado pelo preconceito de raça contra a população negra, que perdura até os dias atuais, constituindo-se no que se denomina racismo estrutural (Almeida, 2019).
Diante desse cenário, o objetivo do trabalho é analisar, sob prisma interseccional, as lutas feministas no movimento social brasileiro e seus desafios nos enfrentamentos por espaço, permanência e poder no movimento sindical, no qual se considerou a educação como fator central na agenda feminista e sindical.
Para proceder à análise indicada, entendeu-se como crucial abordar de forma interseccional as opressões que operam em relação a gênero, raça e classe social, pois são elas que explicam, em grande parte, os atravessamentos excludentes das mulheres - e sobretudo das mulheres negras - nos espaços de poder sindical. Interseccionalidade é um termo cunhado por Kimberlé Crenshaw (1989), que pressupõe categoria analítica que trate a multidimensionalidade das opressões incidentes sobre grupos sociais e historicamente excluídos. Lembram Guimarães-Silva e Pilar (2020), que se trata de uma ferramenta teórico-metodológica capaz de apreender opressões e torná-las visíveis no alcance da justiça social. Para tanto, é necessário contextualizar a temática a partir da história do movimento sindical, da diferença e da democracia na condição de aspectos inter-relacionados.
Os debates enfrentados não encerram a questão sobre o tema, mas informam caminhos de compreensão ampliada com potencial de elucidar os aspectos focais da luta feminina e feminista[2] por mais protagonismo no movimento sindical. Assim, o texto se estrutura em três partes. Primeiramente, segue-se o panorama histórico do movimento sindical no Brasil, delineando-se o prisma das lutas femininas e as dificuldades enfrentadas pelo país e pelas mulheres[3] nessa área. Em seguida, problematiza-se a divisão sexual do trabalho com ênfase nas múltiplas opressões e seus entraves na luta sindical feminina no Brasil, em paralelo à implementação da política de cotas pelas centrais sindicais e seus desdobramentos. Por fim, apresenta-se reflexão em torno do potencial da educação no mundo do trabalho para superação das desigualdades (Soares et al., 2018), intercruzadas por raça e gênero, com projeções que apontam o campo educacional como meio seminal rumo ao enfrentamento dos problemas expostos.
O movimento sindical brasileiro: aspectos históricos e o imbricamento da luta feminista
Em relação à Europa, considerada o berço do sindicalismo moderno (Rodrigues, 2009), o mesmo movimento em território brasileiro surge com uma diferença de cem anos, nas primeiras décadas posteriores ao advento da primeira República (Segatto, 1990). Não há consenso acerca do momento em que o sindicalismo toma forma e se institucionaliza no Brasil (Pinto, 2020), no entanto, na perspectiva de Segatto (2010), entre 1930 a 1945 estabelece-se uma legislação trabalhista complexa que rumina a estrutura sindical. Além disso, o intervalo entre os governos de João Goulart e Jânio Quadros observou articulação e crescimento dos movimentos sindicais urbanos e de greves operárias. Com o advento da Ditadura Militar de 1964, os sindicatos foram perseguidos e, constantemente, atrelados ao cenário político, entendidos como ameaça ao regime, quando mais de cem diretores sindicais foram presos e manifestações operárias foram suprimidas (Inácio, 2007). Apesar de não ter se observado a total extinção do sindicalismo nos anos do regime militar, suas articulações pouco dialogavam com os interesses dos trabalhadores, estando restritas à política vigente e aos interesses dos setores dominantes (Braga & Santana, 2009).
A partir dos levantamentos realizados na pesquisa que originou o presente trabalho, é perceptível que os estudos acerca do movimento sindical brasileiro guardam relação com a Sociologia do Trabalho, ressaltando relações de mão de obra e mais-valia e dedicando-se aos estudos e análises sobre classe social. Nota-se menor ênfase em discussões em torno do aspecto feminino e/ou feminista dentro dos movimentos ou, ainda, de uma perspectiva de análise racial ou interseccional nessa discussão. Assim, uma possível síntese acadêmica (Antunes & Silva, 2015; Braga & Santana, 2009; Delgado, 1996; Geroleti, 2019) percebida na pesquisa sobre o tema no Brasil o divide em dois grandes momentos: o Velho e o Novo Sindicalismo, tendo o segundo surgido a partir das agitações operárias no ABC paulista em 1978, que, dentre outros fatores históricos, culminaram no fim do regime militar em 1985 e na consolidação do sindicalismo que ali se pregava. Nesse ano, o Novo Sindicalismo também acompanhava as lutas do movimento negro, incentivando as denúncias contra o racismo (Ferreira, 2017). Com a redemocratização, portanto, amplia-se a discussão, na literatura e na práxis sindical, das questões de gênero e raça nos movimentos sindicais brasileiros (Castro, 1995; Delgado, 1996; Soares, 2016).
Acerca da história do movimento sindical no Brasil, menciona-se a atuação de mulheres e grupos que protagonizaram não só a luta sindical, mas também a propositura de debates para a participação e a garantia de direitos das mulheres. Como exemplo, a militância pioneira da advogada e sindicalista negra e nordestina Almerinda Farias Gama, representante classista na Assembleia Nacional Constituinte de 1934, e a única mulher a votar como delegada nessa ocasião, quando então presidia o Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos no Rio de Janeiro – cuja sede temporária instalou-se na Federação Brasileira para o Progresso Feminino, denotando um acúmulo histórico de lutas políticas e articulações feministas (Natusch, 2020).
Na Constituinte de 1987, destaca-se a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes – para além da atuação das parlamentares – cuja ênfase principiológica assenta-se na revogação de quaisquer classificações discriminatórias e na garantia da cidadania plena das mulheres, o que incluía a afirmação expressa de “reconhecimento da titularidade do direito de ação aos movimentos sociais organizados, sindicatos [...] na defesa dos interesses coletivos” e, especificamente, sobre o trabalho, a garantia de isonomia em relação aos direitos trabalhistas, previdenciários e à sindicalização (Valverde, 2014, p. 42). No mesmo período, em 1986, destaca-se a formalização da organização das mulheres junto à Central Única dos Trabalhadores (CUT), a partir da necessidade de enfrentar a realidade do trabalho feminino, ao lado da campanha pioneira “creche para todos” – que culminou na aprovação da data 12 de outubro pela CUT como o Dia Nacional de Luta por creche no I Encontro Nacional da Mulher Trabalhadora em 1988, demonstrando uma política de incentivo à participação feminina na luta geral da classe trabalhadora (Batista, 2016).
No tocante ao movimento sindical feminino no Brasil, este estruturou-se pela confluência de diferentes fatores elencados por pesquisadores. Para Kanan (2010), em estudo publicado sobre as novas organizações de trabalho e suas consequências para o estabelecimento das lideranças de mulheres, é possível listar três aspectos: (i) a taxa de fecundidade em declínio, (ii) o nível de instrução da população feminina em ascensão e (iii) o aumento do número de famílias comandadas por mulheres. Tais fatores fortaleceram a participação feminina no mercado de trabalho brasileiro e provocaram um aumento de mulheres trabalhadoras sindicalizadas.
Segundo Oliveira (2017), entre as décadas de 1930 a 1970 existiam poucos estudos sobre a participação das mulheres nos movimentos sindicais como um todo e um número menor ainda de investigações que se debruçaram na participação das mulheres nas direções desses movimentos. Para Cappellin (1994), a dimensão sexuada do trabalho é temática de reflexão feminista desde a década de 1970 e aponta alguns fatores essenciais para a estruturação da situação das mulheres trabalhadoras no Brasil desde então. Essa associação de aspectos sociais, políticos, institucionais e acadêmicos sofreu influência dos movimentos europeus e estadunidenses que pautavam gênero. A exemplo, em 1975 a Organização das Nações Unidas declarou o Ano Internacional da Mulher, propiciando a discussão da condição feminina no cenário global (Sarti, 1986).
A década de 1970 marcou um período de reflexão e articulação próprias do movimento de mulheres trabalhadoras urbanas e rurais contra a discriminação por sexo nos locais de trabalho, compreendendo a importância de superar os formatos assimétricos de poder dentro dos sindicatos (Cappellin, 1994). Surgiu a defesa de pautas específicas para mulheres, a exemplo do auxílio-creche, licença-maternidade remunerada e a luta contra o assédio praticado por superiores ou colegas de trabalho. Essas lutas só ganhariam tônus e espaço para serem pautadas diante de lideranças femininas que as defendessem e as fizessem ocupar espaço na discussão para sua defesa (Kanan, 2010). Daí, a necessidade de expor as condições específicas das mulheres dentro das cadeias de produção e a constante relação de subordinação nas relações de trabalho mobilizaram os movimentos sindicais femininos com uma pauta focal: exercício da representação das instâncias sindicais (Cappellin, 1994).
Vala destacar a relevância dos movimentos sociais urbanos no contexto de transformação do papel social atribuído ao trabalho da mulher, visto que não lhes foi conferido o devido protagonismo. Aqueles estruturaram-se em bases locais, enraizando-se na experiência dos moradores das periferias pobres, dirigindo suas demandas ao Estado como promotor de direitos (Costa et al., 1985). Organizados em torno de reivindicações de infraestrutura urbana básica, tais movimentos tiveram como parâmetro o mundo cotidiano da reprodução – a família, a localidade e suas condições de vida – que caracteriza a forma tradicional de identificação social da mulher. Justo em meio à discussão crescente de movimentos populares por direitos das mulheres institui-se a Ditadura Militar no Brasil. Para Goldberg (1989, p. 13):
[…] as condições políticas locais, geradas pelas peculiaridades da primeira fase do governo militar, não deram lugar à emergência de um movimento de liberação radicalizado, como os que mobilizaram mulheres da mesma geração e camada social naquelas sociedades, com trajetórias e questionamentos identitários semelhantes aos de muitas jovens brasileiras.
Neste cenário, outra dimensão começa a ser debatida: a divisão do trabalho doméstico e os cuidados com a família. Estas dimensões, até aquele momento, eram vistas como opostas à possibilidade de inserção da mulher no mercado de trabalho. A partir de então, ambos os papéis sociais passaram a ser discutidos não mais separadamente, mas sim, unificando-se em “movimentos de mulheres trabalhadoras”, exprimindo o interesse de unir papéis sociais que foram considerados por muito tempo como opositivos (Cappellin, 1994). Um marco na mudança desse cenário em favor das políticas de gênero foi a criação, em 1986, da Comissão da Questão da Mulher Trabalhadora (CQMT) – que se transformou em Comissão Nacional (CNMT) no início dos anos de 1990 e na Secretaria Nacional sobre a Mulher Trabalhadora em 2003 – órgão interno à CUT e de abrangência nacional (Batista, 2016).
A CQMT permitiu a articulação nacional de diversas sindicalistas que antes atuavam apenas localmente junto às suas respectivas bases (Kanan, 2010). A proporção alcançada permitiu que a luta pelos direitos das mulheres trabalhadoras se tornasse pauta de toda a categoria “trabalhadores”, ampliando-se a dimensão e a repercussão. Porém, ainda que décadas de lutas feministas tenham transcorrido e haja direitos conquistados, coloca-se como “[...] evidente que o seu acesso a posições de liderança ou de poder nas inúmeras organizações de diferentes domínios ainda não era um fato” (Nogueira, 2006, p. 57). Isso demonstra que os movimentos das mulheres contribuíram para avolumar o movimento sindical como um todo, mas sem assumir o protagonismo de suas demandas.
A política de cotas nos sindicatos e seus desdobramentos
Em 1996, Maria Berenice Godinho Delgado chamava atenção para a necessidade de se haver mais mulheres nas direções da CUT. Os empecilhos apontados pela autora ainda persistem, cabendo destaque para as formas de exclusão oriundas da ausência de políticas setoriais dirigidas para e por mulheres. Naquela década foi evidenciada pela autora, a mudança que ocorria internacionalmente no panorama da representação sindical feminina, proporcionada pelo grande aumento das mulheres no mercado de trabalho e das exigências e pautas que lhe decorreram. Dessa forma, “em muitos países a questão da mulher entrou na pauta de sindicatos e centrais sindicais e a presença feminina cresceu ao lado da persistência de mecanismos discriminatórios e do descompasso da representação dos gêneros” (Delgado, 1996, p. 139).
Acompanhando as exposições da autora na década de 1990, decidiu-se contextualizar a dinâmica da inclusão da mulher hoje, repetindo a mesma pergunta daquela época: por que cotas na CUT?
A CUT, de forma pioneira no Brasil, aprovou em 1993 uma medida que estabelecia um percentual obrigatório de no mínimo 30% e no máximo 70% de participação de cada sexo nas instâncias de direção da Central em âmbito nacional, estadual e regional. Essas medidas iniciais possibilitaram construir relações políticas igualitárias. A 6ª Plenária Nacional da CUT aprovou a cota como recomendação e, embora a aprovação como resolução só tenha sido efetuada quinze anos depois, na sua 12ª plenária nacional, em 2008, a recomendação conseguiu dar visibilidade à luta das mulheres no congresso do ano seguinte (Delgado, 1996).
No 5º Congresso Nacional da CUT, ocorreu a formação da primeira direção nacional, que teve 9 mulheres eleitas entre os 25 membros efetivos e 7 suplentes, com destaque para ocupação das Secretarias Nacionais de Formação e de Políticas Sociais. Dentre as mulheres que integravam a direção, 3 eram oriundas da CNMT, incluindo a coordenadora geral, visto como avanço da participação feminina na direção nacional da CUT, resultante das políticas de cotas (Delgado, 1996).
A construção histórica que seguiu a partir do estabelecimento das cotas demonstrou a relevância prática do previsto na resolução. Entretanto, o debate não se esgota na conquista de espaços: é preciso garantir o respeito às representantes mulheres e que suas demandas sejam pautadas com o mesmo valor e importância, compreendendo os aspectos de gênero, classe e raça. Após o movimento das cotas, outras questões emergiram face à redemocratização com o advento da Constituição de 1988 e dos direitos trabalhistas conquistados. Dentre elas, a necessidade da divisão do trabalho doméstico, os papéis de gênero atribuídos à mulher e a não divisão da categoria “mulher” e “mulher trabalhadora”, assumindo, portanto, que ambos pertencem à mesma dimensão (Soares, 2016).
Observou-se a criação de coletivos de mulheres dentro dos sindicatos e o empenho na participação da Assembleia Nacional Constituinte, cuja luta garantiu o artigo 5º, I, da Constituição Federal de 1988, que versa sobre a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações. Atribui-se ao período que sucede a Constituinte um caráter decisivo para a participação feminina nos sindicatos. Segundo Soares (2016), o foco da atuação da CNMT passou a ser a formação política de mulheres de modo a influenciar na tomada de decisão nos sindicatos, a preparação destas para os cargos de liderança e a luta pelas cotas mínimas de 30% de participação feminina em entidades sindicais. As cotas de participação em instâncias da CUT foram, com efeito, conquistadas em 1993 e tornaram-se outro marco no processo de constituição das políticas de gênero. A partir delas, aumentou significativamente a participação feminina em direções sindicais cutistas e a agenda de gênero foi incorporada de maneira decisiva nas políticas das centrais.
Entretanto, os desafios das mulheres pela permanência e exercício da liderança nos espaços sindicais estão nas relações de hierarquia social, racial e de poder, estabelecidas pelas múltiplas opressões que não cessam a partir da determinação das cotas (Santos, 2018). Em primeiro lugar, as opressões de gênero apresentam aspectos diferentes no tocante à raça (mulheres brancas e negras), classe social (mulheres periféricas ou pobres e não periféricas, de classe média ou elite) e dos formatos presumidos de família (mães, casadas, solteiras e avós), pois há diferentes posições assumidas a partir de tais marcadores sociais e das vivências prévias, constituindo seu lugar de fala, o que nem sempre permitirá dimensionar ou compreender as realidades de outros sujeitos (Ribeiro, 2017).
Em segundo lugar, as práticas “discriminatórias indiretas” (Leone & Teixeira, 2010, p. 4) no movimento sindical fizeram com que a ampliação da participação das mulheres nas direções sindicais, advindas da implementação das cotas, não alcançassem o propósito de inclusão e incorporação das demandas de equidade de gênero, pois a integração de mulheres nas diretorias se deu distante dos principais cargos de direção, os cargos deliberativos (Oliveira, 2017). Ademais, quando titulares nesse setor, o silenciamento frequentemente as inviabilizaram (Bertolin, 2012). Portanto, seria necessário garantir a cota junto a outras estratégias de paridade na busca de equivalência de posição e poder (Delgado, 1996).
Esses resultados obrigaram à reflexão acerca do significado, da efetividade e de como se deu o debate sobre cotas para mulheres dentro das organizações sindicais. Para alcançar a igualdade de gênero é necessário que as mulheres sejam atuantes frente aos grupos de opressão e, uma vez na direção, mantenham o compromisso e a responsabilidade de sua representatividade nos cargos de poder. Segundo Cappellin (1994), exige-se que tenham afinidade e habilidade com as demandas dos grupos para que, quando empossadas, se tornem agentes de interesse e representem as mulheres trabalhadoras. Porém, a ausência de oportunidades faz com que a representação de mulheres negras, por exemplo, ainda esteja aquém dos processos de debates sobre cotas (Castro, 1995).
De acordo com levantamento realizado pela CUT em 2014, mais da metade dos dirigentes da entidade são negros. No entanto, esse número ainda é deveras inferior quando se trata de mulheres negras, principalmente, devido à dupla discriminação sofrida por elas: o machismo e o racismo (Rosa, 2015). Apesar disso, a participação de mulheres em posições deliberativas nos espaços sindicais e a influência do feminismo entre elas têm contribuído gradualmente para superação das desigualdades de gênero e raça, assim como constituído protagonismo diferenciado, notável por sua capacidade e luta interseccional (Soares, 2016).
Há que se considerar que a participação das mulheres em posições deliberativas nos espaços sindicais se deve ao compromisso da Secretaria de Formação Sindical, pasta integrante da diretoria executiva da CUT, que estrutura a formação dos dirigentes sindicais nos estados. A atuação dessa pasta fortaleceu a implementação de programas que sustentem a formação para todas as mulheres no plano das políticas sindicais, bem como para homens e mulheres no plano de gênero, além da promoção de mudanças nas práticas do sistema organizacional referentes às formas de tratamento e relações entre homens e mulheres em diferentes espaços (Central Única dos Trabalhadores [CUT], s.d.).
Democracia, interseccionalidade e diferenças: a educação e a participação da mulher sindicalista
Os processos que culminaram em maior representação feminina nos órgãos sindicais requerem análise exógena que considere os aspectos da democracia, de sua cultura e da diferença, mais especificamente do papel da diferença na democracia e em como esta pode ser fomentada através da educação (Galter & Favoreto, 2020; Nobre & Mendonça, 2016). Como ensina hooks[4] (2020), a educação distante da democracia é utilizada somente para alcance de sucesso material, desfazendo-se do compromisso com a prática libertadora. A autora assevera que a educação das mulheres deve compor a agenda feminista, evidenciando a importância política da educação e seus múltiplos processos – oral, escrito, escolar e não escolar – a fim de abarcar a “massa” das mulheres, com habilidades de “traduzir” ideias para um público variado em termos de idade, sexo, etnia e grau de instrução (hooks, 2019, p. 165). No âmbito sindical, compreende-se que há também uma necessidade premente de promoção de uma educação sindical feminista interseccional.
De outra parte, coloca-se a advertência de Baquero (2008, p. 386), acerca do fortalecimento de uma cultura política cidadã ativa. Para o autor, permanecem “obstáculos para realizar os objetivos de igualdade e liberdade, pressupostos propostos pela democracia processual, produzindo-se em relação a essas instituições uma incongruência entre instituições formais e predisposições atitudinais negativas.” As instituições democráticas, assim, são essenciais para o desenvolvimento da cultura política e das diferenças nos países, instituições e demais organismos, entretanto, conforme demonstrado no meio sindical, assim como ocorre nas instituições da democracia direta, a “estabilidade procedimental” (Baquero, 2008, p. 390) tende a ocultar os elementos perpetuadores das desigualdades de acesso, levando as sociedades a acreditarem que estão vivenciando o ponto mais elevado de suas experiências democráticas, quando, na verdade, estão apenas reproduzindo – sob novas roupagens – velhas formas de exclusão (Baquero, 2008).
Como outras esferas nas quais se agitam democracia e diferenças, preponderam alguns motivos atrelados à desigualdade sindical de raça e gênero. O primeiro deles advém da ideia do espaço sindical enquanto lugar eminentemente masculino (Delgado, 1996; Oliveira, 2017), o que, de acordo com Alves (1999), faz com que as mulheres se sintam pouco habilitadas para disputar os espaços de poder. Aliado a isso, coloca-se a desigualdade da distribuição de trabalho doméstico entre homens e mulheres (Leone & Teixeira, 2010; Oliveira, 2018), o desconhecimento sobre o sindicalismo e a falta de oportunidades, além do racismo e machismo estruturais e o histórico de opressões sofridas pelas mulheres negras (Rosa, 2015).
As prioridades estabelecidas e, de certa forma, constituintes da razão de existir do próprio sindicalismo, como as lutas pelo salário-mínimo de categoria e condições dignas de trabalho, reivindicações que reiteram a noção universalista de uma classe trabalhadora homogênea, contribuíram para manter afastadas pautas relacionadas a gênero e raça nos espaços sindicais, como formação política-organizacional para mulheres (Ferreira et al. 2018; Soares, 2016), tornando-se necessário reivindicar o caráter heterogêneo da classe trabalhadora. Nesse sentido, o trabalho de Lobo (1991), dedicou-se ao estudo das relações de gênero dentro das organizações trabalhistas e movimentos sociais para apontar as diferenças de gênero, descortinando um universo das práticas produtivas que, acadêmica e socialmente, foram institucionalizadas por um modelo conceitual que relaciona o trabalho ao masculino.
O sindicalismo brasileiro herda com seu histórico de fundação e crescimento através dos movimentos sociais os intrínsecos formatos de opressão social (Lobo, 1991). Sendo assim, os movimentos de mulheres tiveram que enfrentar ao longo de sua história desafios inerentes às lutas de classe, somadas à histórica exclusão das mulheres no acesso a direitos básicos como educação – sobretudo, de mulheres negras, a subalternização e a exploração do trabalho doméstico e o violento processo de silenciamento, seja na defesa de pautas ou de status quo do protagonismo masculino.
Então, a educação no contexto das políticas de gênero no meio sindical possui papel fundamental para enfrentamento às iniquidades. Discute Delgado (1996) que apenas as cotas não surtiriam efeito e não corrigiriam a desigualdade de gênero nos sindicatos. Desta forma, foram criadas iniciativas paralelas voltadas à participação e permanência das mulheres no meio sindical, sendo elas: inserção das questões de gênero nas atividades sindicais; formação de militantes e dirigentes sobre a temática de gênero; e inclusão de diversidades nos materiais sindicais e campanhas (Delgado, 1996). Nota-se a centralidade dos processos educativos, vez que por mais que essas e outras medidas provocassem um aumento no número de mulheres em cargos decisórios da estrutura sindical, ainda há uma desproporção quando se trata dos cargos de presidente, vice-presidente, tesoureiros e primeiros-secretários (Soares, 2016).
Os espaços de formação, hoje dirigidos pelas Secretarias de Formação das Centrais Sindicais, serviam como porta de entrada para as mulheres no movimento feminista, corroborando para a ampliação de suas bandeiras de luta e servindo como espaços de reivindicação de direitos (Araújo & Ferreira, 1998). Ademais, a militância sindical proporcionou que diversas mulheres reconhecessem as múltiplas opressões que sofriam e serviu como ampliador de horizontes para a “reelaboração de suas ideias e atitudes de participação política e, principalmente, de reconstrução de si mesmas enquanto militantes, enquanto pessoas e enquanto mulheres” (Araújo & Ferreira, 1998, p. 74).
A interseccionalidade, termo inscrito e popularizado por Kimberlé Crenshaw (1989), objetiva compreender tais opressões considerando-as como parte da complexa máquina produtora de divisões e preconceitos legada pelo sistema colonial-positivista e perpetuada pelo capitalismo neoliberal. Trata-se de categoria analítica multifocal, capaz de concatenar opressões que atravessam grupos sociais e historicamente excluídos, a fim de desvelar problemas de injustiça social (Guimarães-Silva & Pilar, 2020).
Em Crenshaw (1989), vê-se como o movimento feminista se fragmenta ao se posicionar diante dos formatos de opressão existentes. Sexismo, racismo e classicismo são estruturas de opressão distintas, que atingem as mulheres de formas diferentes a depender da sua raça e classe social. Essas diferenças são observadas na presença das mulheres no movimento sindical brasileiro, onde a participação e a liderança de mulheres negras é minoria (Rosa, 2015). Como ferramenta teórico-metodológica, a interseccionalidade possibilita abordar as diferenças dentro da diferença (Crenshaw, 1989) e compreender a sobreposição de opressões sobre a mulher negra.
No âmbito da garantia de direitos, Bobbio (1992) aponta que há um caminho da diferenciação, isto é, são tratados e protegidos de maneiras diferentes a partir das especificações oriundas das necessidades dos “homens específicos”, não mais de “homens genéricos” (Bobbio, 1992, p. 34). Cury (2002), por sua vez, ao analisar o direito à educação, sob o prisma da igualdade e da diferença, pondera a necessidade de considerar gênero e raça, de tal modo que diferença e interseccionalidade configuram mais que conceitos teóricos exemplificativos acerca do debate democrático, trazendo consigo a práxis tanto no universo das lutas feministas e trabalhistas, como no campo da garantia de direitos, tal qual a educação. Como anteriormente mencionado, para que haja a diferenciação no tratamento dos direitos, faz-se necessária a especificação que, conforme Cury (2002), acontece quando são reconhecidos novos direitos.
No caso da história institucional da CUT, em sua jornada pela igualdade de gênero e racial, a educação precisou figurar como elemento motivador tanto para aqueles que dela puderam se conscientizar a partir de um local de fala crítico e ético (Ribeiro, 2017), quanto para os sujeitos materialmente atingidos pelas transformações advindas do acesso à educação. Nesse sentido, Cury (2002, p. 260) reitera que o acesso à educação é:
[…] um meio de abertura que dá ao indivíduo uma chave de autoconstrução e de se reconhecer como capaz de opções. O direito à educação, nesta medida, é uma oportunidade de crescimento cidadão, um caminho de opções diferenciadas e uma chave de crescente estima de si. Esta estima de si conjuga-se com a descrição feita por Bobbio (1992) em relação ao desenvolvimento dos direitos. Segundo ele, “a gênese histórica de um direito começa como uma exigência social que vai se afirmando até se converter em direito positivo”.
Chama-se atenção para a “estima de si” (Cury, 2002, p. 260) e o que ela desempenha no processo de autoconhecimento dos diferentes grupos étnicos e de gênero enquanto sujeitos capazes de falarem por si e para si nos espaços institucionais da política, o que para Rios et al. (2017, p. 43) tem, do ponto de vista normativo, “implicações importantes no que toca à quebra de estereótipos fundamentados em visões coloniais do poder, ou seja, expondo estereótipos identitários”.
Na CUT, nota-se que os processos de reconhecimento se instrumentalizam pelas vias das Secretarias de Formação, onde são trazidas as discussões sobre as divisões internas das direções sindicais, e não de fora para dentro, como operam os âmbitos estatais e do terceiro setor que, não raro, podem produzir dados pouco emancipatórios no tocante à superação das desigualdades de gênero e raça no mercado de trabalho[5]. Essa afirmação pode ser exemplificada a partir dos indicadores de gênero do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018), os quais mostram que mulheres ocupam 38% dos cargos de chefia no Brasil e que a diferença se acentua na medida em que aumenta a posição hierárquica, com o agravante de receberem uma remuneração até 40% menor que a dos homens. Nos cargos públicos, por sua vez, a lacuna cai para uma ocupação de 21%.
Esse tipo de produção se dá em um contexto marcado por pragmatismos semelhantes a manchetes econômicas como: empresas dirigidas por mulheres tendem a se destacar no mercado. Percebe-se que a superação das desigualdades não constitui uma problemática central, mas sim uma preocupação somente com geração de riquezas, levando ao questionamento se essas notícias não são criadas para sustentar a opinião de grupos específicos em uma ação ideológica (Sousa, 2000).
De volta ao espaço das centrais sindicais, é a sua educação, em especial motivada pelas Secretarias de Formação, que possibilita às mulheres não se omitirem frente às necessidades de reflexão sobre a normatização dos processos históricos e políticos que fomentam condições de subalternidade, objetificação, desacreditação da mulher e, consequentemente, a sua ausência nos espaços deliberativos (Oliveira, 2017). Logo, a educação dos dirigentes das centrais, antes de tudo, deve ser uma educação voltada à conquista de direitos que lhes assegurem justamente o acesso aos demais direitos, ao reconhecimento de novos e a diferentes níveis e esferas educativas, em um ciclo que se retroalimenta e que tem como efeito a superação das lacunas representativas femininas negras e, como efeito, das limitações da democracia formal para com a especificação das diferenças.
Conclusões
As dinâmicas de opressão expostas pelas autoras nas obras aqui abordadas, como Delgado (1996), Alves (1999), Rosa (2015) e Leone & Teixeira (2010), indicaram os principais desafios das mulheres sindicalistas para assumir cargos de liderança e participar ativamente das decisões coletivas dentro dos movimentos trabalhistas. A conclusão mais importante a que se chega é a de que as lutas das mulheres ainda enfrentam desafios para o exercício dessa liderança nas diretorias conquistadas, embora seu percurso histórico e afirmativo tenha ganhado força e espaço com o advento das cotas sindicais e, posterior, conquista da paridade nas centrais dos sindicatos. Para Soares (2016, p. 8), “a equidade e o pleno reconhecimento das diferenças de gênero estão longe de serem alcançados, mas entre sindicalistas há a percepção de que cresceram as reações ao preconceito e à discriminação contra as mulheres”.
Diante disso, observa-se a importância de se identificar as múltiplas opressões sofridas pelas mulheres e suas diferentes formas de expressão, para que se possa criar mecanismos efetivos de combate à desigualdade em suas diversas dimensões. Percebe-se, por exemplo, que a compreensão da dimensão racial na divisão social do trabalho se faz fundamental para criação de políticas específicas de inserção e permanência de mulheres negras nos movimentos sindicais, uma vez que sua participação, segundo Rosa (2015), é bastante baixa.
Destarte, a educação configura ferramenta essencial para a consolidação de políticas de enfrentamento à desigualdade de gênero no âmbito sindical e para a inserção das pautas coletivas das mulheres em seus meios (Delgado, 1996). Além disso, aponta possibilidades para contribuir na construção pessoal da concepção libertária tão cara às mulheres trabalhadoras, para que elas assumam seus papéis de liderança com outra perspectiva sobre si e o contexto de lutas (Araújo & Ferreira, 1998).
Por fim, salienta-se a importância das Secretarias de Formação das Centrais Sindicais e dos espaços de formação por elas promovidos no que tange à conscientização quanto às assimetrias de representação de gênero nesses espaços (Araújo & Ferreira, 1998). Com isso, pode-se ampliar o debate acerca da função dos sindicatos na democracia contemporânea e de seu papel enquanto novo agente promotor das diferenças (Rodrigues & Lima, 2007).