Introdução
Na atualidade, a educação escolar indígena luta por uma proposta intercultural, bilíngue e diferenciada, que surgiu como um contraponto ao projeto colonizador da escola tradicional imposta a esses povos em meados da década de 1970 (Luciano, 2007). Com a revolução em termos políticos, promulgada pela Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), a política indigenista oficial e a educação escolar indígena passaram por grandes transformações. A nova realidade da educação indígena também acontece por meio de um longo processo histórico de mobilizações de vários setores da sociedade, com reivindicações dos povos e de suas organizações, lutando por garantias de cidadania indígena, de educação, e amparo na legislação.
Luciano (2007) demonstra que a concepção mais adequada quanto à educação escolar indígena é aquela promovida a partir da escola tendo como fundamentos as metodologias e os princípios geradores de transmissão, produção e reprodução de conhecimentos socioculturais específicos de cada etnia indígena, garantindo o fortalecimento dos sistemas próprios da comunidade, em complementação com os conhecimentos científicos e tecnológicos. Assim, existe a necessidade de se pensar na alimentação indígena também como uma ferramenta de valorização dos saberes tradicionais, visto que a educação indígena não se restringe apenas a questões referentes à sala de aula e aos professores, mas a todo o entorno que envolve a escola e sua cultura.
Segundo Proença (2010, p. 43), “a alimentação constitui uma das atividades humanas mais importantes, não só por razões biológicas evidentes, mas também por envolver aspectos econômicos, sociais, científicos, políticos, psicológicos e culturais”. O alimento descreve os saberes da sociedade de que fazem parte, propiciando a sobrevivência dos indivíduos e a preservação de uma cultura, ou seja, o alimento tem um poder imensurável sobre as ações dos indivíduos na sociedade.
A educação intercultural da escola indígena converge com a perspectiva histórico-cultural proposta por Vygotsky, pois considera as questões socioculturais como fatores contribuintes para os processos de ensino e aprendizagem, entendendo que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores é produto de um processo permeado pela cultura, fundamental para o entendimento da natureza humana na história.
Nesse sentido, este artigo objetiva discutir sobre a teoria histórico-cultural e sua aproximação com a escolarização indígena paranaense, permitindo a compreensão da abordagem vygotskyana e sua contribuição para a continuidade na valorização dos saberes alimentares kaingang. Inicialmente, apresentamos a proposta de educação intercultural da escola indígena, mostrando a possibilidade de se promover os saberes tradicionais também por meio da escola; em seguida, abordamos brevemente sobre a cultura e os saberes alimentares indígenas, buscando reconhecer a riqueza cultural dos povos kaingang; por fim, discutimos conceitos fundamentais na concepção histórico-cultural de Vygotsky, como cultura, mediação, entorno, signo e outros, os quais permitem uma relação com o ensino escolar indígena e o desenvolvimento dos sujeitos.
O desenvolvimento da criança, mediado pela cultura, se apresenta como produto da história, sendo determinado pelas condições concretas da existência humana, ou seja, o homem não somente produz cultura, mas também é fruto das relações sociais que nela perpassam, sendo internalizadas e expressas sob a forma de funções psíquicas (Vygotsky, 1995).
A interculturalidade na educação escolar indígena
Por mais que a educação escolar esteja inserida nas comunidades indígenas do Brasil há cinco séculos, ela sempre apresentou um projeto integracionista, visando à união nacional, expropriação dos territórios, sujeição e regulamentação da força de trabalho indígena. Com uma ideologia colonial, a escola em território indígena se torna muitas vezes uma das ferramentas de divulgação dos valores ocidentais, centrados na lógica de mercado, além de se apresentar como mais um aparato de dominação.
Através de relatos históricos, verifica-se que a educação escolar indígena perpassa por ambientes de luta e resistência. Os povos reivindicaram e ainda lutam por direitos à vida, à educação, saúde, terra, contrariando as ideologias e os projetos hegemônicos. Com o apoio de movimentos próprios, também avançaram, adquirindo maior visibilidade a partir da década de 70, e articulados com demais movimentos sociais (Ramos, 1983), foram influenciando e mudando as políticas públicas e educacionais. Com a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), significativas alterações foram proporcionadas nos direitos educacionais indígenas, possibilitando a construção de uma educação escolar intercultural e bilíngue, reconhecendo a humanidade e os direitos dos povos tradicionais.
Até antes da Constituição de 1988, a relação do Estado com os indígenas era marcada pela intenção da integração, visto como um bem que o Estado podia oferecer aos índios. A política integracionista era antes de tudo individualista, pois pretendia integrar o índio à comunhão nacional […]. A Constituição, além de perceber o índio como pessoa, com direitos e deveres assim como qualquer outro cidadão, o percebe como membro de uma comunidade, ou seja, como parte de uma coletividade que é titular de direitos coletivos e especiais, […] a velha prática da assimilação cedeu lugar a uma nova prática de convivência e respeito na diferença. Após quase cinco séculos de política integracionista e de intolerância frente à diversidade étnica, social e cultural própria das sociedades indígenas, estas têm reconhecido o direito de se perpetuarem como tal e de terem suas manifestações culturais protegidas e respeitadas. (Grupioni et al., 2001, p. 89)
Nesse contexto, a interculturalidade ganha espaço, sendo um dos requisitos da educação escolar indígena. No entanto, Faustino (2006) ressalta que, até os anos de 1990, a interculturalidade se apresentava sem nenhuma relação com a política educacional formulada no Brasil, e se justifica como tendo sido fruto das demandas dos movimentos indígenas. Assim:
A escola, neste processo, deixou de ser instrumento de imposição e assimilação, para se tornar instrumento de afirmação de identidades diferenciadas. Para tanto, postula-se que ela deve ser específica e diferenciada, intercultural e bilíngue. Atualmente, esse modelo alternativo foi encampado pelo Estado, e assim tornou-se oficial. Passou de local a nacional, de informal a formal, de algo reivindicado a algo a ser oferecido pelo Estado. Ao tornar-se oficial está virando outra coisa: está se tornando política pública, a ser desenvolvida por técnicos governamentais e contando com recursos oficiais. (Grupioni, 1997, p. 184)
Vale ressaltar que por mais que a interculturalidade se refira ao reconhecimento oficial da existência de grupos culturalmente diferentes e à valorização de seus costumes, devemos prevenir para que essa ideia não seja usada como uma falsa teoria na política neoliberal, onde parceiros distintos culturalmente permanecem em conflito, uma vez que afirma pautar-se no diálogo entre as culturas, mas desconsidera os desdobramentos da sociedade.
Portanto a concepção sobre a proposta educacional e intercultural do contexto indígena converge com a ideia do multiculturalismo crítico proposto por McLaren (1997), em que a ação deve ser situada através de uma agenda política de transformação, sem a qual corre risco de se reduzir a mais outra forma de conformismo à ordem social vigente. Por essa ótica, compreendem-se as diversas representações de raça, gênero e classe como resultado de reivindicações sociais repletas de signos e significações.
A perspectiva intercultural deve:
[…] promover uma educação para o reconhecimento do “outro”, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos socioculturais nas nossas sociedades, […] capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente integradas. (Candau, 2006, p. 9)
Com isso, o conceito de interculturalidade na escolarização indígena se encontra em consonância com a construção de uma sociedade democrática, plural, humana, que articule políticas de igualdade com políticas de identidade. A interculturalidade é:
Un proceso dinámico y permanente de relación, comunicación y aprendizaje entre culturas en condiciones de respeto, legitimidad mutua, simetría e igualdad; un intercambio que se construye entre personas, conocimientos, saberes y prácticas culturalmente distintas, buscando desarrollar un nuevo sentido de convivencia de éstas en su diferencia; un espacio de negociación y de traducción donde las desigualdades sociales, económicas y políticas, y las relaciones y los conflictos de poder de la sociedad no son mantenidos ocultos sino reconocidos y confrontados; una tarea social y política que interpela al conjunto de la sociedad, que parte de prácticas y acciones sociales concretas y conscientes e intenta crear modos de responsabilidad y solidaridad; una meta por alcanzar. (Walsh, 2005, pp. 10-11)
A importância dessa discussão implica a valorização legal da pluralidade cultural e da garantia das representações identitárias nos diversos campos sociais, incluindo o educacional. Ressalta-se que na educação e na formação docente, o papel dos discursos e das práticas curriculares de preparação de professores e de futuras gerações ainda enfrenta desafios quanto à apreciação da diversidade cultural e de preconceitos ligados a determinantes de gênero, raça, religião, padrões culturais e outros (Canen et al., 2001).
Em relação à emergência de pesquisas com a temática intercultural ou multicultural:
Hoje já temos bons programas de pós-graduação em educação multicultural, currículo e formação de professores na ótica da diversidade cultural. O nosso temor, em 1998, de que um projeto de educação multicultural no Brasil ficaria comprometido se dependesse da produção acadêmica nacional, na época insuficiente, foi se dissipando em consequência do aumento do número de pesquisadores que têm se voltado para o tema. (Gonçalves & Silva, 1998, p. 40)
A educação escolar indígena, intercultural e interdisciplinar, propõe uma escola em conformidade com a territorialidade dos povos indígenas, ou seja, uma escola que não será colonizadora, mas que constrói suas próprias regras de atuação, currículos e projetos, não se conformando com a gestão padronizada delineada pelo Estado, mas exercendo sua autonomia nas tomadas de decisões frente às políticas educacionais (Gehrke et al., 2019).
A legislação vigente permite (de certo modo) que as comunidades indígenas, de acordo com suas realidades socioculturais, busquem elaborar proposições de seus currículos e projetos pedagógicos, contemplando seus etnoconhecimentos e valorizando seus saberes tradicionais. Nesse sentido, possibilita-se a promoção dos saberes alimentares dos indígenas kaingang também por meio da educação escolar. A educação escolar indígena tem um papel muito importante na consolidação dos valores comunitários, que luta por uma educação diferenciada, conforme suas vivências.
Saberes culturais e etnoconhecimentos alimentares kaingang
O estado do Paraná possui, de modo geral, três povos indígenas que compõem parte de sua população: os Guarani, os Kaingang e os Xetá. Essas três etnias vivem em cerca de 17 terras indígenas, sendo em grande parte comunidades produtoras de roças de subsistência e criação de animais de pequeno porte. A renda é complementada por subsídios de programas do governo, aposentadorias, produção e venda de artesanatos, além do salário recebido por serem alguns funcionários públicos, principalmente professores (Almeida, 2014). Com relação à propriedade da terra, esta é de uso coletivo, e todo o território constitui espaço de caça e coleta sem que essa exploração exija direito sobre a propriedade (Rocha, 2008).
Pertencentes à família linguística Jê, os Kaingang se encontram dispersos em vários subgrupos na zona oeste dos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (D’Angelis & Veiga, 2003). Sua etnia é dividida em duas metades tribais, Kamé e Kairu [1] , as quais definem os papéis de cada um dos indivíduos nas atividades sociais (Pinheiro, 2013). Sobre as tradições Kaingang, elas são transmitidas, em sua grande maioria, pela oralidade (Fagundes & Farias, 2011).
A Terra Indígena Rio das Cobras, localizada no município de Nova Laranjeiras, é o território com o maior percentual de indígenas no Paraná, contando com cerca de 19,9% dos habitantes. Segundo dados de 2010, lá residem aproximadamente 2.239 indígenas Kaingang e Guaranis Kaiowá, conforme relata o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010). No município de Espigão Alto do Iguaçu, residem 465 indígenas Guarani Kaiowá, ou seja, 5,8% da população total do município. Ao todo, na Terra Indígena Rio das Cobras residem 2.704 indígenas.
Sobre a cultura alimentar dos kaingang, esta é vivenciada no dia a dia, transmitindo uma rica diversidade em seus hábitos alimentares, composta por uma variada fonte de alimentos, provenientes da fauna e da flora. Os saberes tradicionais alimentares dessa etnia também são verificados por meio de alguns ritos, como por exemplo, a festividade do kiki, uma bebida produzida pela fermentação do mel silvestre e depositada dentro de um tronco de pinheiro, sendo utilizada numa espécie de festa religiosa que interliga as coisas terrenas com o cosmo (Crestani, 2014).
No entanto a manifestação cultural presente na atual sociedade globalizada e capitalista do século XXI passa por um processo de massificação sociocultural, interferindo no cotidiano e na alimentação dos povos, não apenas dos indígenas, mas de todos os grupos sociais. Fellows (2006) contribui para esse debate mostrando que a cultura alimentar está se transformando devido às mudanças no estilo de vida das famílias, que procuram cada vez mais alimentos de preparo rápido e fácil. Essas mudanças exercem grande influência nas indústrias alimentícias e, nesse sentido, muitos reflexos desfavoráveis surgem, por vezes enaltecendo um sistema capitalista, aumentando as desigualdades e diminuindo a saúde dos consumidores.
Na contemporaneidade, a economia capitalista faz parte do cotidiano da realidade encontrada nas terras indígenas kaingang do Paraná. Isto não significa que o indígena abandonou suas raízes, mas transformou seus conhecimentos e posturas frente ao mundo moderno. Portanto, é necessário compreender essas novas configurações do espaço sociocultural dos indígenas contemporâneos e promover seus costumes tradicionais por entre as gerações (Porto Alegre, 2008).
Falar sobre a cultura alimentar kaingang implica considerarmos que algumas práticas e hábitos, antes tradicionais, muitas vezes, já não podem ser realizados, pois o contato do indígena com o homem branco e o sistema produtivo vigente trazem transformações irreversíveis. Quanto à alimentação total kaingang, não existe uma uniformidade, pois, pelos registros históricos, verifica-se que os recursos e o ecossistema nem sempre eram os mesmos, o que reverbera na atualidade (Crestani, 2014).
A alimentação kaingang é variada, sendo representada pelos três reinos naturais. Entre os alimentos animais, registram-se a carne de diversos tipos, provenientes da caça, pesca ou colheita (larvas e insetos) e o mel de abelha silvestre; entre os vegetais, há grande variedade de frutos e raízes resultantes da colheita, e também os produtos provenientes do plantio incipiente de mandioca, da abóbora, do milho etc. Também se somam à dieta kaingang as bebidas fermentadas (Becker, 1976).
Referente à caça e pesca, esses alimentos se fazem presentes no cardápio alimentar tradicional dos kaingang, mas não são as principais fontes alimentares, e sim elementos secundários. Em muitas ocasiões, a caça serve de banquete aos indígenas em períodos de escassez de frutos e raízes (Crestani, 2014). Ainda sobre a caça, Becker (1976, p. 179) cita que ela se dava pela captura de “[…] mamíferos de pequeno porte, de fácil apreensão, animais de porte regular como anta ou tapir, o veado, o pecari […] e os mais variados tipos de aves”. Vale ressaltar que hoje, em muitas terras, os hábitos da caça e pesca são praticamente extintos, devido às transformações ambientais, degradação das florestas e matas, poluição de rios, entre outros fatores prejudiciais ao autossustento indígena.
Na alimentação kaingang também há a presença de alimentos plantados pelos próprios indígenas nas aldeias, como arroz, milho, mandioca, batata-doce, feijão, entre outras plantas. Segundo Becker (1976, p. 202), “a dieta vegetal é enriquecida pelo milho verde que apreciam muito, pela abóbora, batata-doce, amendoim que comiam assado ao borralho […]”. O milho e o pinhão possuem papel fundamental na alimentação kaingang, sendo a base da alimentação tradicional na sua forma mais pura, sem contato com o homem branco, sem agrotóxicos e sem impurezas. Para os kaingang do Paraná, “o milho é tão importante como o trigo é para os europeus” (Becker, 1976, p. 178).
A alimentação kaingang proveniente do milho possui sua importância rotineira, sem muita cerimônia, diferentemente de outros hábitos, como a caça ou a fabricação de bebidas, que passam por processo de fermentação:
[…] e comem o milho seco torrado - entô - debulhado nas brasas donde vão retirando de grão em grão com uma lâmina de taquara em tenaz - kapen - que, com um manejozinho rápido, jogam o grão na outra mão, e também com a mesma agilidade, num fecha e abre a fim de livrá-lo da cinza aderente, é impulsionado, de distância de 30 cm, mais ou menos, à boca. E a mulher se ocupa a socar no pilão o milho assim torrado para o pixé (farinha) e da parte grossa fazem quirera pixé-fuih […]. (Becker, 1976, pp. 204-205)
Um dos alimentos base da cultura alimentar dos kaingang é o “emi”, uma espécie de pasta, ou como os kaingang chamam, bolo feito com milho indígena fermentado. Analisando a composição nutricional do milho, se verifica que é um alimento de componentes diversificados, sendo rico em carboidratos, proteínas, fibras e lipídeos em menor quantidade. Também apresenta baixo valor de ácidos graxos e gorduras trans, contendo ainda minerais, como ferro, cálcio, magnésio, fósforo, potássio, além de vitaminas A e B, segundo a Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (TBCA) (Universidade de São Paulo [USP] & Food Research Center [FoRC], 2020). Assim, podemos dizer que o emi é um alimento que possui grande diversidade nutricional.
Deste modo, notável é a existência de uma riqueza cultural e nutricional na alimentação kaingang, ou seja, ela é um patrimônio dos povos, devendo ser valorizada no decorrer dos tempos. Para isso, salienta-se a possibilidade de valorização desses saberes alimentares, sobre os componentes presentes, e também sobre os aspectos históricos inerentes à alimentação, também por meio da escolarização kaingang. Com esse viés, a escola atua como uma ferramenta de transformação e afirmação das especificidades indígenas, uma vez que crianças e jovens aprendem desde pequenos sobre suas essências, e cabe, portanto, à escola dar continuidade nessa transmissão.
Constituindo um ambiente de aprendizagem e compartilhamento de experiências, e não mais como um espaço cujo objetivo é apenas impor a cultura ocidental (escola colonizadora), serão socializados os saberes tradicionais kaingang, fazendo com que os alunos aprendam por meio de seus próprios costumes, criando neles a responsabilidade de valorizar a sua história:
Uma solução é fazer com que os alunos busquem sua ancestralidade. Quando a gente se percebe continuador de uma história, nossa responsabilidade cresce e o respeito pela história do outro também. É preciso trazer a figura dos antepassados para dentro da escola. Trazer suas histórias, seus comprometimentos, suas angústias, sua humanidade. (Munduruku, 2002, p. 42)
Como destaca o autor, precisamos buscar a ancestralidade, seguir uma história e comprometer a escola com esse trabalho, que abrange as experiências vivenciadas pelos indivíduos, suas relações sociais e suas interações culturais. Essa é a prática concreta da interculturalidade aplicada à educação. Um exemplo é o projeto de educação intercultural indígena que vem sendo desenvolvido em uma comunidade Guarani Nhandewa, no norte do Paraná, a partir do ano 2011, com a Escola Estadual Indígena Yvy Porã, Terra Indígena Pinhalzinho. Trata-se de um Programa de Educação Intercultural inédito e único no estado, planejado pelos próprios indígenas e que partiu da iniciativa da comunidade, representada por suas lideranças, que decidiram colocar em prática os direitos à educação diferenciada e intercultural. Para a realização de uma proposta como esta, é necessário, inicialmente, que a gestão e administração da escola sejam indígenas, para que o engajamento da comunidade e dos professores da escola seja facilitado. No caso da Escola Estadual Indígena Yvy Porã:
Sob a coordenação dos professores Jefferson Gabriel Domingues e Lares Lourenco, na construção da escola indígena intercultural os professores realizaram estudos em grupo, pesquisas de campo, diálogos com os mais velhos, visitas pedagógicas em diferentes setores da comunidade, casas de famílias, Casa de Reza, rios, matas, nascentes, roças… a partir dos quais coletaram informações e produziram registros a serem incorporados aos planejamentos pedagógicos interdisciplinares e interculturais que, no conjunto, passaram a constituir uma proposta curricular diferenciada. (Domingues, 2020, pp. 9-10)
Nesse sentido, a valorização dos saberes kaingang também pode ser um debate da educação escolar indígena no estado, pois parte das discussões e necessidades da realidade indígena e pode envolver todas as disciplinas de um currículo intercultural. Mas para se concretizar, essa proposta deve ser amplamente divulgada entre os setores político-educacionais, fundamentando-se pelas orientações das Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena (Brasil, 1994), e também pelo Referencial Curricular Nacional para a Educação Indígena (Brasil, 1998).
Nesse ínterim, para essa tarefa deixar de ser apenas uma quimera e passar a situar o campo das possibilidades, são imprescindíveis o apoio e financiamento do Estado, o engajamento da comunidade local, a gestão escolar indígena e a formação inicial e continuada para professores indígenas e não indígenas, além da compreensão sobre a lógica da educação escolar indígena pela perspectiva histórico-cultural deixada pela abordagem vygotskyana.
A abordagem histórico-cultural de Vygotsky e o ensino escolar indígena
Entendemos que a história humana está fundamentada pela existência de indivíduos concretos que, na luta por sobrevivência, são capazes de se organizar no trabalho, criando regras entre os sujeitos e a natureza. Nesse processo, se destaca o sistema de desenvolvimento de mecanismos tanto psicológicos quanto biológicos, fato que diferencia o homem dos animais (Vygotsky, 2007).
Na medida em que se transforma a natureza, também o homem se transforma, sendo esse o pensamento dialético evidenciado nos estudos de Lev Vygotsky. A exemplo de Marx, o pensador fundamenta que é pelo coletivo e por meio das interações com o entorno (meio) que são estabelecidas as relações entre os indivíduos e a realidade vivida, impulsionando assim o seu desenvolvimento.
Seus estudos apresentam o desenvolvimento das complexas formas culturais de comportamento, orientando suas investigações pela perspectiva dialética da totalidade, referente às funções psíquicas, e afirma que a reflexologia “[…] é obrigada a levar em conta, também, os pensamentos e a totalidade da psique se quiser compreender o comportamento” (Vygotsky, 1996, p. 11). É evidente a necessidade do entendimento de que os fenômenos ocorridos no desenvolvimento do ser humano ocorrem em constante movimento e mudança, sendo que “El todo y las partes se desarrolan de modo paralelo y conjunto” (Vygotsky, 1983, p. 122).
Pensando sobre as relações entre cultura e o desenvolvimento dos processos psicológicos presentes na escola, Vygotsky trouxe grandes contribuições para o âmbito pedagógico, afirmando que os pesquisadores, até então, haviam estudado de modo unilateral o processo de desenvolvimento cultural na educação, pois só procuravam descobrir como o desenvolvimento por meio de instrumentos dependia de funções naturais, e não como a internalização desses instrumentos transformava tais funções naturais. Desse modo, com a abordagem vygotskyana, percebemos que a cultura se objetiva nos signos ou instrumentos culturais, dispostos sob a forma de mecanismos materiais e psicológicos. Ancorado na perspectiva do trabalho transformador dos seres e da natureza, Vygotsky entende a cultura como um aspecto essencial para o desenvolvimento do homem (Martins & Rabatini, 2011).
A respeito da passagem do estado biológico do homem ao cultural, ou seja, ao trânsito entre estados que dizem respeito à relação entre natureza e cultura:
A história do homem é a história dessa transformação, a qual traduz a passagem da ordem da natureza à ordem da cultura. Ao colocar a questão da relação entre funções elementares ou biológicas e funções superiores ou culturais, Vygotsky não está seguindo, como fazem outros autores, a via do dualismo. Muito pelo contrário, ele está propondo a via da sua superação. As funções biológicas não desaparecem com a emergência das culturais, mas adquirem uma nova forma de existência: elas são incorporadas na história humana. (Sirgado, 2000, p. 51)
Dessa maneira, percebe-se que ao analisarmos as categorias social e cultural, pode-se notar que ambas possuem seus significados permeados pela história, expressando a natureza social do psiquismo humano como resultado de relações internalizadas pelos indivíduos e convertidas em funções psíquicas. Nesse sentido, podemos dizer que o universo social é condição e também resultado do aparecimento da cultura, por ser uma produção humana, ou seja, uma obra coletiva (Sirgado, 2000).
A cultura, então, mostra-se como um produto da vida social, e ao mesmo tempo, é atividade social do homem. Esse entendimento ressalta que o desenvolvimento da conduta dos indivíduos ocorre aliado à internalização de signos. Para Vygotsky (1995, p. 150), “[…] toda função entra em cena duas vezes, em dois planos, primeiro no plano social e depois no psicológico, ao princípio entre os homens como categoria interpsíquica e logo no interior da criança como categoria intrapsíquica”.
A cultura é um produto da sociabilidade dos indivíduos, internalizada por meio de signos, ou seja, instrumentos cognitivos utilizados para modificar o ambiente e controlar a natureza. Dentre esses instrumentos estão a linguagem e os vários símbolos que fazem parte da ancestralidade e identidade de uma comunidade, os quais interferem no desenvolvimento do homem e são transformados por meio da interação social. Assim:
[…] a forma de pensar, as maneiras de se comportar, a linguagem, são resultados da apropriação de formas culturais específicas nas quais cada sujeito está inserido. A criança ao interagir com os adultos (família, parentes, amigos), aos poucos e de forma espontânea, se apropria da cultura vivida em seu meio (histórias contadas, objetos, utensílios domésticos, a língua falada, brincadeiras, interações, formas de comunicação…). A interiorização dos elementos que formam a cultura, na qual a criança está inserida, determina o desenvolvimento mental dela, formando assim a memória, a atenção e os conceitos. (Menezes & Faustino, 2019, pp. 110-111)
Da mesma maneira, a criança, ao ingressar na escola, continua a se desenvolver, num processo de criação de consciência, e assim, a internalização da cultura mediada por signos é de grande importância. Essa seria uma das aproximações da abordagem histórico-cultural de Vygotsky e o ensino escolar indígena, pois ambos se pautam no entendimento de que a criança ao ingressar na escolarização procede de uma sociedade repleta de tradições, conceitos, símbolos e linguagens, que são historicamente construídos.
Neste momento um adendo deve ser feito, uma vez que a perspectiva histórico-cultural se desenvolve em uma relação dialética e com suas dicotomias, em conformidade com uma racionalidade ocidental e hegemônica. Portanto, devemos ressaltar que de um lado, existe essa racionalidade regida por uma ciência, cuja epistemologia se baseia no mundo observável pelos humanos, pautada em dicotomias, na objetividade e no universalismo; e de outro, o fato de que as epistemologias indígenas precedem de uma compreensão de realidade e são relacionais, tendo como premissas as interações com o mundo espiritual, onde homem e natureza não são elementos que se separam.
O conhecimento indígena não se estrutura por meio de conceitos e muito menos se desenvolve a partir deles, mas este processo é amplo e permite a reflexão de diferentes e novas abordagens para se pensar a educação escolar indígena, preconizando por metodologias interepistêmicas e contra-hegemônicas. A criança indígena se desenvolve de maneiras distintas, brincando, acompanhando a família na coleta e preparo dos alimentos, pescando, caçando, convivendo em comunidade, viajando para as cidades para venda de artesanato, ouvindo as histórias e os ensinamentos contados pelos mais velhos, entre outros. É nesse sentido que vislumbramos a transmissão dos saberes alimentares dos kaingang paranaenses, pensados enquanto uma ferramenta da aprendizagem e do desenvolvimento.
Conforme citam Martins e Rabatini (2011, p. 350), a mediação para Vygotsky ocorre pela “interposição que provoca transformações, encerra intencionalidade socialmente construída e promove desenvolvimento, enfim, uma condição externa que potencializa o ato de trabalho, seja ele prático ou teórico”. Ressaltamos aqui a importância dada pelo autor ao ato instrumental da mediação realizada por meio dos signos. Assim, esse processo modifica o comportamento, uma vez que, entre a resposta da pessoa e o estímulo do ambiente, se interpõe o novo elemento designado signo, operando como um estímulo cultural, atuando sobre as funções psíquicas e transformando as expressões espontâneas em volitivas.
Podemos observar a concreta relevância dos signos e instrumentos simbólicos no processo do ensino escolar indígena. Vygotsky descreve que o signo é “todo estímulo condicional creado por el hombre artificialmente y que se utiliza como medio para dominar la conducta - propia o ajena” (Vygotsky, 1983, p. 83). Quanto aos instrumentos, o autor cita que são “las herramientas como medios de trabajo, como medios que sirven para dominar los procesos de la naturaleza” (Vygotsky, 1983, p. 92). Os instrumentos são atividades externas pelas quais o homem modifica a natureza, sendo que, ao transformar a natureza, o homem também transforma a si mesmo. Os signos são os meios pelos quais se busca a solução de tarefas, sendo uma atividade interior que faz com que os seres modifiquem a si próprios (Menezes & Faustino, 2019).
Desse modo, percebemos que a educação escolar indígena, uma vez que propõe uma visão intercultural do ato de ensinar e aprender, permite uma aproximação com a perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano. O ensino precisa ser organizado com ferramentas e mecanismos pedagógicos que sejam realmente necessários à criança. A aprendizagem é uma “atividade cultural complexa” e, portanto, deve apresentar um significado para as crianças” (Vygotsky, 2007, p. 144).
Inserida nas práticas comunitárias e se envolvendo com o grupo nas ações de produção da vida, a criança se apropria do patrimônio cultural imaterial (conhecimentos, valores e comportamentos), produzido, ressignificado e escolhido como válido por suas gerações anteriores. Deste modo:
[…] cada geração começa sua vida num mundo de objetos e de fenômenos criados pelas gerações precedentes. Ela apropria-se das riquezas deste mundo participando no trabalho, na produção e nas diversas formas de atividade social e desenvolve assim as aptidões especificamente humanas que cristalizaram, encarnaram nesse mundo. (Leontiev, 2004, p. 284)
Participar da vida social e cultural permite à criança o desenvolvimento pleno de suas potencialidades, e na medida em que vão se complexificando as relações de produção da vida, complexificam-se também as interações e trocas. A humanidade em sua história desenvolveu símbolos, códigos e sistemas que compreendem conhecimentos universais provenientes dessas trocas e relações realizadas por diferentes culturas, mas que não se aprendem naturalmente, sendo necessários elementos de mediação, como materiais, metodologias e professores. Nesse sentido:
[…] a escola tem então, na teoria Histórico Cultural um caráter prático pois representa um espaço organizado por meio do qual a criança, jovem, adulto ou idoso podem aprender, de forma intencional e consciente, os conhecimentos produzidos pelo conjunto dos grupos que compõem a humanidade, avançando a partir do que conhece por meio de seu grupo cultural. (Faustino, 2012, p. 73)
Vygotsky (2007, p. 126) descreve que o ensino deve “fundamentar-se nas necessidades naturalmente desenvolvidas pelas crianças e na sua própria atividade”, rompendo com uma prática educacional puramente tecnicista, que apesar de ser o caminho para a aprendizagem, não atinge objetivamente seu fim. A criança indígena, ao ingressar no ensino infantil, passa por inúmeras experiências, desenvolvendo aprendizagens significativas que possibilitam a melhora de suas estruturas intelectuais, mas este tipo de aprendizagem não é um processo simples e também não ocorre da mesma forma para todas as pessoas em suas culturas (Menezes & Faustino, 2019).
Os povos indígenas possuem suas próprias maneiras de ensinar e aprender, as quais são fundamentadas na cultura, em seus princípios tradicionais, que vão desde os modos de se organizar socialmente, de dividir o trabalho, de brincar, interagir com a comunidade, até também de produzir e consumir seus alimentos. “Enquanto a criança aprende, ela começa a pertencer a um grupo e à sua tradição sociocultural e a se identificar como membro desse grupo” (Paradise, 2012, p. 12).
A situação externa da criança, categoria denominada por Vygotsky como entorno, ou também conhecido como meio, é de fundamental relevância para o desenvolvimento do intelecto. No que diz respeito à aprendizagem no contexto indígena, verificamos que o entorno, aliado à experiência emocional (parezhivaniya) da criança, é capaz de influenciar significativamente no processo de ensino:
La experiencia emocional (parezhivaniya) que emana de cualquier situación o de cualquier aspecto de su entorno determina qué clase de influencia ejercerá sobre el niño esta situación o este entorno. Por tanto no es ninguno de los factores mismos (si se consideran sin relacionarse con el niño) lo que determina cómo influirán ellos en el curso futuro del desarrollo de él; sino los mismos factores a través el prisma de la experiencia emocional (parezhivaniya) del niño. (Vygotsky, 1983, p. 4)
Assim, compreendemos que uma aprendizagem mediada por elementos simbólicos, como a cultura alimentar, é capaz de trazer sentidos e significados para as crianças indígenas, proporcionando maior exatidão quanto ao estabelecimento dos fatores que explicam a influência do meio no desenvolvimento psicológico, assim como no desenvolvimento da personalidade consciente e de suas experiências emocionais (parezhivaniya).
De acordo com Russo et al. (2020), a teoria de Vygotsky agrega grande contribuição para os estudos em contextos interculturais, pois defende um constructo teórico em que a cultura é a grande fomentadora da transformação em relação ao comportamento humano. Os sujeitos, ao usarem instrumentos e técnicas culturais, promovem atividades para além das funções psicológicas inferiores, considerando que diferentes contextos históricos são capazes de produzir diferentes formas de pensamento, mostrando que a dimensão cultural é um dos elementos fundamentais para o entendimento sobre a mente humana (Vóvio, 1999).
Sobre o ensino escolar indígena enquanto uma proposta intercultural aproximada do viés histórico-cultural, Cigolini e Silva (2020), ressaltam a importância do cotidiano dos indivíduos no processo de ensino-aprendizagem, uma vez que a experiência pedagógica nos mostra que o ensino direto de conceitos é impossível e pedagogicamente estéril. A relevância da abordagem histórico-cultural de Vygotsky para o processo de ensino-aprendizagem permite refletir sobre novas metodologias interepistêmicas, aproximando a valorização dos saberes alimentares kaingang (cultura) com a educação escolar indígena, contribuindo para a concretização de uma aprendizagem significativa, considerando os elementos culturais e as interações sociais inerentes à vida dos indivíduos que vivem em uma comunidade.
Considerações finais
A escolarização indígena aproximada da perspectiva intercultural permite que as comunidades, de acordo com suas realidades, construam currículos, projetos e atividades pedagógicas em consonância com seus saberes culturais, antropológicos, medicinais, filosóficos e alimentares, em contraposição ao projeto colonizador e hegemônico de educação baseado na realidade ocidental e capitalista.
Assim, são possíveis a compreensão e o fomento dos saberes alimentares indígenas durante o desenvolvimento dos indivíduos, como retratado nesse estudo por meio da realidade kaingang paranaense. A educação escolar indígena tem um papel muito importante na consolidação dos valores comunitários, na luta por uma educação diferenciada, valorizando sua ancestralidade e suas vivências, concepção de mundo e filosofias.
Um exemplo importante relacionado a essa prática educacional é o projeto inédito e único elaborado na Escola Estadual Indígena Yvy Porã, situada na Terra Indígena Pinhalzinho, estado do Paraná, em que escola e comunidade uniram-se para a construção de um currículo e de práticas pedagógicas mais condizentes às necessidades emergentes da comunidade guarani nhandewa, no norte paranaense.
A perspectiva da teoria histórico-cultural apresentada por Vygotsky, quando relacionada ao processo de ensino-aprendizagem, ganha notoriedade pelo fato de considerar a existência humana e seu desenvolvimento como resultado do processo de interação sociocultural. Com isso, a cultura, produto da história, do entorno, e da atividade internalizada pelo homem, faz parte de um complexo processo de mediação, interação, significados e experiências que transformam os seres e o ambiente em que vivem.
Portanto, essa abordagem, ao valorizar o social e o cultural no desenvolvimento do homem, aproxima-se da concepção da educação indígena, contribuindo no sentido de subsidiar, teórico e metodologicamente, com elementos que promovem a socialização dos saberes tradicionais de um povo, fazendo com que alunos aprendam cada vez mais, por meio de seus próprios costumes, buscando e revitalizando sua história e ancestralidade.