Introdução
Ao longo da história, sob a ótica capitalista, cresceram e tornaram-se hegemônicas as concepções individualistas de sociedade - em detrimento do caráter social da humanidade (Harari, 2019) – fomentadas por uma amnésia histórica e impulsionadas pela saturação informacional dos meios de comunicação. O ser humano passou gradualmente a desconhecer-se como parte de um todo, distanciando-se da capacidade de compreender que suas ações individuais impactam no coletivo (Húngaro et al., 2017).
No Brasil, em tempos de pandemia de coronavírus, esse individualismo pungente traduziu-se em uma exacerbação da opinião pessoal e da experiência anedótica como fontes “seguras” de informação científica aliada a uma agenda política obscura. Bachelard (1996, p. 18) demonstra a necessidade de expurgarmos esse dualismo entre opinião e Ciência ao afirmar que:
A Ciência, tanto por sua necessidade de coroamento como por princípio, opõe-se absolutamente à opinião. Se, em determinada questão, ela legitimar a opinião, é por motivos diversos daqueles que dão origem à opinião; de modo que a opinião está, de direito, sempre errada. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. Ao designar os objetos pela utilidade, ela se impede de conhecê-los. Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a ser superado. Não basta, por exemplo, corrigi-la em determinados pontos, mantendo, como uma espécie de moral provisória, um conhecimento vulgar provisório.
Com base em Bachelard (1996), pode-se afirmar que a Ciência não se importa com a opinião infundada, ela necessita de fatos. Em contrapartida, argumentos antidemocráticos e falaciosos promovem, preferencialmente por meio das redes sociais, propagação de ideias negacionistas, explorando o medo da população, de modo a mimetizar a Ciência a fim de embasar suas falsas afirmações, ignorando os parâmetros da pesquisa científica e abandonando o rigor metodológico. Se ainda existe um campo fértil para o crescimento e disseminação de falsos conhecimentos, possivelmente é porque a sociedade brasileira tem falhado em educar as gerações tal que sejam capazes de distinguir entre a Ciência de qualidade e a pseudociência (Ruediger, 2021). Ao analisar afirmações populares sobre a covid-19, na rede social Twitter, o autor concluiu que a população tem pouco respaldo teórico para compreender o caos epistemológico criado pela enxurrada de falsas informações. A sociedade parece estar imersa em uma espécie de cultura da participação, na qual todos têm acesso às redes sociais, emitindo opiniões e criando conteúdos destituídos da rigorosa fundamentação científica ou de qualquer outro parâmetro a ela associado.
Segundo Popper (1980), o conhecimento científico é construído por intermédio do método científico, cuja principal característica é ser marcadamente falseável, ou seja, o método da Ciência é, em essência, crítico. Uma teoria científica é testada incansavelmente até ser aceita ou refutada. Uma teoria só pode ser revogada em face de uma outra que melhor explique a realidade estudada, também testada e comprovada repetidas vezes, continuamente. Portanto, a Ciência é falível/falseável e autocorrigível, enquanto as pseudociências são infalíveis/infalseáveis, constituindo-se quase como dogmas (Hawking, 2015).
Para Morin (2005), a teoria é o ponto de partida que traz a possibilidade de desvendar uma pergunta. Por essa caracterização, ela não é definitiva e tem no método a sua práxis. Teoria e método se retroalimentam de forma a estarem em constante modificação e/ou evolução. Aos olhos do senso comum, o caráter provisório das teorias científicas pode suscitar descrédito. Wiseman (2017, p. 315) explica a razão da aceitação do concreto (mesmo que falso) em detrimento do provisório: a capacidade do cérebro humano em enxergar padrões. Perceber padrões é importante para os seres humanos no que diz respeito a relacionar causa e efeito: “[…] fazemos relações entre eventos sem qualquer relação uns com os outros”. Pilati (2021, p. 15) acrescenta um outro fator, a saber: “[…] sistemas de crenças infalíveis são fundamentais para compreendermos nossa tendência em acreditar naquilo que queremos acreditar. Crenças infalíveis são aquelas que, por sua natureza ou estrutura argumentativa, não são possíveis de serem consideradas falsas.”.
Num plano mais geral, Pilati (2021, p. 16) tem em conta que “esses sistemas de crenças infalíveis se aliam a sistemas sociais que os fortaleçam, tais combinações podem levar a atos extremados para validação do que se acredita”. A crença em sistemas infalíveis seria uma característica psicológica do ser humano na tentativa de compreender a realidade, sendo ela própria um meio desencadeador de informações pseudocientíficas. Para a população em geral, a pseudociência é perigosa por diversos motivos, por exemplo: pessoas podem abandonar tratamentos convencionais para utilizar medicamentos alternativos sem comprovação científica; a descrença nas mudanças climáticas; o uso de métodos de aprendizagem ineficazes nas escolas, exercícios e dietas mirabolantes para emagrecimentos. Todos são filhos da desinformação causada por crenças pseudocientíficas (Piejka & Okruszek, 2020). Se os sistemas de crenças infalíveis estão entremeados em todas as esferas de nossa sociedade, como pensar em uma educação científica possível de blindar-se de seus efeitos deletérios de modo a não absorver ou promover práticas pseudocientíficas?
Considerando que a educação também pode se envolver com práticas pseudocientíficas, este texto se propõe a apresentar o discurso da pseudociência na sociedade e quais são os possíveis caminhos para uma educação científica crítica. Para tal, parte do seguinte itinerário reflexivo: 1) apresenta, introdutoriamente, o debate sobre a Natureza da Ciência (doravante, NdC); 2) expõe o discurso pseudocientífico; 3) descrever sobre uma educação científica crítica; 4) demonstra possibilidades de ensino da NdC na educação básica e, 5) conclusão.
Por se tratar de um ensaio, o presente trabalho se estruturou metodologicamente a partir de uma revisão bibliográfica de trabalhos que versam sobre a temática proposta. Tal movimento é realizado no intuito de ampliar o entendimento sobre a NdC, a pseudociência e suas possibilidades de inserção na educação básica. Acreditamos que o atual período pandêmico fortalece a necessidade desta discussão, tendo em vista a grande quantidade de informações falaciosas e tendenciosas que foram e são propagadas todos os dias acerca das práticas científicas.
A Natureza da Ciência
Podemos considerar, na esteira de Forato et al. (2012), Moura (2014) e de Krupczak e Aires (2018), que a NdC se configura como conjunto de componentes que se interessa pela gênese, construção e transformação do conhecimento científico a partir de elementos filosóficos (epistemológicos), metodológicos, históricos e culturais. Desse modo, “compreender a natureza da ciência significa saber do que ela é feita, como elaborá-la, o que e por que ela influencia e é influenciada” (Moura, 2014, p. 33).
De acordo com Bunge (1980) e Garcia e Bungenstab (2021), é no século XX que a discussão sobre o conhecimento científico se profissionaliza com os pensadores do Círculo de Viena, que buscaram sistematizar o conhecimento científico à luz de aspectos indutivistas e empiristas. Na crítica a esta proposta sistematizadora de Ciência, autores como Karl Popper, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend, Gaston Bachelard e Imre Lakatos desenvolveram pensamentos que assentaram noções filosóficas, históricas e culturais para a discussão sobre a NdC.
Segundo Moura (2014), é possível verificar duas visões sobre o que é a NdC. A primeira delas defende a presença de aspectos consensuais que se apresentam a partir de características comuns diante da construção do pensamento científico. Dentre os representantes desta vertente, destacam-se os estudos de Gil-Pérez et al. (2001). Os aspectos consensuais são: 1) a Ciência é mutável; 2) não existe método científico universal; 3) a teoria não é consequência da observação/experimento e vice-versa; 4) a Ciência é influenciada pelo contexto no qual é construída e, 5) os cientistas utilizam imaginação, crenças e outros recursos para fazer Ciência.
Já a segunda visão, sobre o que é a NdC, diz respeito ao conceito de semelhança familiar. Para os defensores desta visão, a Ciência se apresenta de maneira tão complexa que dificilmente seria possível organizá-la a partir de um conjunto consensual de aspectos já que “[…] nela temos áreas de estudo tão diversificadas que não podemos simplesmente acreditar que os aspectos consensuais da sua natureza descreverão adequadamente todas elas” (Moura, 2014, p. 35). Em contrapartida, os representantes desta visão, como Irzik e Nola (2011), acreditam que existem quatro categorias de semelhança familiar na NdC, são elas: 1) atividades práticas como observar, por exemplo, que se diferenciam de acordo com cada área científica; 2) objetivos e valores; 3) regras metodológicas (apesar de possuírem aspectos metodológicos semelhantes, cada área científica tem suas próprias regras metodológicas); 4) produtos (nem todas as áreas científicas possuem o mesmo produto).
Não é simples definir a NdC. Contudo, mais importante do que apontar as similaridades e diferenças entre as diversas concepções, talvez seja, reconhecer e compreender os principais pontos da NdC, com o intuito de evitar reducionismos e classificações equivocadas que possam servir como base até mesmo para o discurso pseudocientífico. Desse modo, para Moura (2014, p. 37), é fundamental compreender que o conhecimento científico se relaciona de modo sintomático com o contexto no qual é produzido de tal modo que “[…] estudar a natureza da Ciência significa compreender como o homem constrói o conhecimento científico em cada contexto e em cada época, tendo como base suas concepções filosóficas, ideológicas e metodológicas”.
Pseudociência: evolução cultural e disseminação
O que é pseudociência? Para Piejka e Okruszek (2020), é dito ser uma teoria que se apresenta como Ciência, mas que utiliza uma metodologia científica empobrecida (às vezes, nenhuma metodologia) e oferece evidências que não são confiáveis. Já a Ciência pode ser definida como:
[…] um sistema de cinco dimensões: um postulado ontológico que rejeita as explicações baseadas na tradição, senso comum ou no sobrenatural; um método baseado na formulação de hipóteses falsificáveis, obtenção e interpretação de resultados e sujeição a revisão por pares; um corpo sistematizado de conhecimento estabelecido pela comunidade científica e consiste na observação e reprodução dos métodos e teorias que não só explicam os fatos observados e suas relações uns com os outros como também preveem novas observações ao especificar as condições dessas observações; uma instituição estruturada ao redor de suas próprias regras, procedimentos e atores comandando a seleção e as relações entre esses atores por um lado e na outra mão as avaliações de suas pesquisas e publicações em todas as suas dimensões; e um constructo social que sempre busca incorporar a completude, mesmo em um estado de desenvolvimento constante, mas gradual e transitório. (Schiele, 2020, p. 6)
Compreendendo a Ciência nesta ótica, percebe-se a complexidade da construção do pensamento científico. A pseudociência, por sua vez, costuma se aproveitar desse sistema e geralmente está imbuída sob a autoridade de Ciência tornando-se confundível e de fácil aceitação (Piejka & Okruszek, 2020). Outra situação importante que se faz presente nesta discussão é que cientistas sérios, frequentemente, reconhecem as limitações de seus trabalhos e sugerem mais pesquisas para a confirmação ou não dos resultados. Cientistas desonestos exaltam as virtudes de seus trabalhos, escondem as inconveniências e apresentam seus resultados como verdades absolutas (Lifshitz, 2017). Pracontal (2004) denominou esse movimento pela expressão “Ciência falsa”, que implica uma metodologia científica desvirtuada. Para Pracontal (2004), as imposturas intelectuais estão presentes nos mais diversos campos do conhecimento, inclusive, naqueles em que há, supostamente, maior respaldo.
Como exemplo, Pracontal (2004) cita o caso de uma pesquisa publicada na revista Science no ano de 1993 pelo biólogo Dean Hamer. O artigo intitulado “Uma ligação entre marcadores de DNA sobre o cromossomo X e a orientação sexual masculina” disseminou a ideia de que Hamer tivesse descoberto o “gene gay”. A surpresa, segundo relata Pracontal (2004), foi o fato de tal descoberta ter ganho principalmente defensores de diversos setores da sociedade, impactando em ações no âmbito político, social e cultural e pouco debate sobre o seu conteúdo científico que, na verdade, pouco dizia e fazia mais especulações do que identificação sobre o suposto “gene gay”.
Os seres humanos têm a capacidade de diferenciar informações boas das ruins, verdadeiras das falsas de acordo com as suas experiências prévias. Porém, quando se fala da diferenciação entre Ciência e pseudociência, o cenário parece ser mais complexo e o exemplo dado por Pracontal (2004) é sintomático nesse sentido. A sociedade, de modo geral, tende a receber as informações científicas na base da crença ou descrença (Blancke et al., 2016). Pessoas que acreditam em teorias conspiratórias estão mais suscetíveis a aceitar informações falsas de outras teorias conspiratórias que estejam em consonância com suas próprias ideologias políticas e morais. Indivíduos com ideologias conservadoras estão mais propensos a não buscar informações seguras se a confiança na informação inicial que receberam é alta, como uma forma de preservar as concepções de mundo que cultivaram ao longo de sua existência. Esses indivíduos têm maior dificuldade em aceitar o novo ou o caráter provisório das teorias científicas (Piejka & Okruszek, 2020).
Informações que são facilmente relacionadas com as intuições e predileções intencionais são mais bem processadas e armazenadas na memória do que as complexas explicações científicas (Pilati, 2021). Por exemplo, entender o criacionismo pode ser mais simples do que compreender a evolução das espécies. Um ser criador que traz as espécies animais que a maioria conhece prontas desde o início é mais fácil de processar do que entender que a vida se iniciou de organismos unicelulares e foi sofrendo transformações ao longo de milhares de anos até chegar às espécies vistas hoje. Segundo Dawkins (2009), o tipo de pensamento simplista tem maior probabilidade de ser assimilado e transmitido culturalmente.
Como explicitado anteriormente, pensamentos pseudocientíficos são difundidos também pela mímica cultural da Ciência. Em que este mimetismo beneficia a pseudociência? Para compreender isso, Blancke et al. (2016) discutem três fatores: a exploração da vigilância epistêmica, o uso da Ciência como argumento e a negligência epistêmica. Ao explorar a vigilância epistêmica, os sistemas de crenças infalíveis tendem a se aproveitar da autoridade e prestígio da Ciência como um meio de pensamento mais elevado. Entretanto, para o público leigo, o método científico, que leva os cientistas a chegarem às suas conclusões, permanece obscuro. Assim, as pessoas tendem a enxergar apenas os resultados obtidos, atribuindo autoridade à Ciência pelo domínio do mundo que ela produz. É um entendimento da autoridade cultural da Ciência.
O uso da Ciência como argumento está fortemente ligado ao poder da persuasão. Blancke et al. (2016) apresentam este tema ligado à teoria argumentativa do pensamento, segundo a qual a função do pensamento (avaliação das razões e formulação de reflexões) não é para melhorar a qualidade do raciocínio, mas, sim, avaliar os argumentos que são propostos. O indivíduo que consegue transmitir um argumento mais conciso, mesmo que falso e travestido de conhecimento e formação científica, burla o sistema de vigilância epistêmica dos indivíduos receptores da informação.
Já a negligência epistêmica está ligada a um problema motivacional. Entender o uso da física quântica na vida diária ou a importância da evolução das espécies demanda um investimento de tempo e estudos que não é prático para a vida da maioria dos cidadãos. A população tende a ser imediatista de modo que o conhecimento se divide entre o que pode ou não ser “usado” na rotina. Como exemplo, os defensores da homeopatia usam publicações científicas duvidosas sobre os benefícios do tratamento para convencer o público de que suas alegações são confiáveis, mesmo que inúmeras revisões sistemáticas de estudos controlados aleatorizados sobre homeopatia digam o contrário. Nestas revisões sistemáticas, as conclusões são praticamente as mesmas: os estudos incluídos têm qualidade metodológica pobre, não há rigor e padronização na produção dos medicamentos homeopáticos, os resultados do uso desses medicamentos não são melhores do que o uso de placebo, não há evidências científicas suficientes que suportem o uso ou continuidade de pesquisas sobre o tema (Rada et al., 2013; Mathie et al., 2015; Hawke et al., 2018; Peckham et al., 2019).
Blancke et al. (2016) apontam ainda outros dois fatores psicológicos que conferem vantagem para a consolidação da pseudociência como mímica cultural da Ciência: viés de confirmação e antiespecialização. Como relação ao primeiro fator, há a tendência em acreditar nas informações que reforçam pré-concepções de mundo. A população ao longo de sua existência simplesmente escolhe os especialistas ou as teorias que confirmam aquilo em que já acredita. A antiespecialização é um movimento antiformação científica em que as experiências anedóticas têm mais validade do que o método científico.
Diante do exposto, observa-se que mimetizar a Ciência é uma ferramenta persuasiva eficiente e as pessoas tendem a confirmar suas preconcepções, sem motivação suficiente para investigar o porquê das afirmações a que são expostas. Mas, afinal, como combater a pseudociência rumo a uma educação científica crítica e emancipadora?
Em defesa de uma educação científica crítica
Historicamente, a sociedade foi levada a crer que determinados tipos de conhecimentos são reservados a parcelas bem específicas de especialistas. Ao resto da sociedade cabe apenas a tarefa de receber tais conhecimentos de modo que a explicação dos especialistas seja resumida e bem interpretada. À vista disso, internalizam-se ideias segundo as quais alguns conhecimentos não devem ser acessados diretamente pela sociedade, seja pela sua dificuldade de compreensão e/ou seja pelo seu demasiado caráter abstrato. É nesse bojo que o livro “Cosmos”, do físico Carl Sagan (1934-1996), se situa: como um trabalho de divulgação científica simples – porém não simplista – que não se limita aos astrônomos e físicos, senão, para a comunidade de modo geral. No capítulo 7, intitulado “A espinha dorsal da noite”, Sagan (2017) começa fazendo perguntas simples, mas que demandam respostas complexas: o que são as estrelas? quantos planetas existem? existem planetas que podem ser habitáveis? Antes de responder a essas perguntas, o físico se situa num momento histórico e, conscientemente, compreende que essas perguntas foram respondidas de diferentes maneiras por sociedades diversas. Segundo Sagan (2017, p. 225):
Somos, quase todos, descendentes de gente que reagia aos perigos existenciais inventando histórias sobre divindades imprevisíveis ou descontentes. Durante muito tempo o instinto humano de tentar compreender foi frustrado por explicações religiosas fáceis, como na Grécia Antiga no tempo de Homero, onde havia deuses do céu e da Terra, da tempestade, dos oceanos e do mundo subterrâneo, do fogo, do tempo, do amor e da guerra; onde toda árvore e todo prado tinha sua dríade e sua mênade.
Contudo, Sagan (2017) traz informações históricas importantes ao afirmar que foi na Jônia (aproximadamente entre 600 e 400 A.C) onde primeiro ocorreu um deslocamento do pensamento explicativo. Os jônios passaram a acreditar que o universo era passível de conhecimento, pois, na natureza, haveria regras e leis bem determinadas que permitiriam seu conhecimento. Pode-se considerar que é nesse momento histórico que se inicia o surgimento de uma visão científica do mundo. Segundo Sagan (2017), o primeiro cientista foi Tales de Mileto, autor de algumas descobertas científicas que séculos depois foram falseadas. Contudo, a importância de Tales não parece estar exclusivamente relacionada às suas descobertas, mas, sim, ao fato dele conseguir “secularizar” seu entendimento do mundo. Segundo Sagan (2017, p. 238):
Os grandes cientistas de Tales a Demócrito e Anaxágoras costumam ser descritos nos livros de história ou de filosofia como “pré-socráticos”, como se sua principal função fosse sustentar a fortaleza filosófica até o advento de Sócrates, Platão e Aristóteles, e talvez influenciá-los um pouco. Na verdade, os antigos jônios representam uma tradição diferente e bastante questionadora, muito mais compatível com a Ciência moderna. O fato de sua influência ter sido sentida com tanta força durante apenas dois ou três séculos representa uma perda irreparável para todos os seres humanos que viveram entre o Despertar Jônico e a Renascença italiana.
Sagan (2017) reflete sobre as possibilidades de conhecer e, também, as maneiras de se conhecer que, como mostrado em seu estimulante livro, transformaram-se ao longo da história. Mas, afinal, o que isso tem a ver com educação científica? Bunge (1980) afirma que só é possível falar em educação científica a partir também do entendimento sobre o que é epistemologia: um ramo da filosofia que estuda a investigação científica, seu produto e o desenvolvimento do conhecimento.
Segundo Rezer (2020), atualmente vivem-se tempos de epistemofobia (medo do conhecimento) e isso não apenas prejudica a formação humana, como também a educação científica. Rezer aponta dois problemas nesse desinteresse em estudar o “conhecimento pelo conhecimento”. O primeiro deles, relacionado ao recuo das teorias em pesquisas e o segundo, relacionado ao recuo do entendimento sobre os métodos. Recuperar a importância do olhar epistemológico também pode ser um exercício de dívida com as lacunas que foram construídas no passado. É bem verdade que Rezer (2020, p. 121) realiza um diagnóstico preciso e, ao mesmo tempo, triste. O desinteresse pelas discussões envolvendo o conhecimento tem levado pesquisas científicas a reduzir suas práticas como qualquer fazer no mundo, usando o esforço metodológico como “devaneio (inútil) fora do mundo real”.
Para Demo (2010), a noção de “educação científica” se intensificou no século XXI na medida em que a formação precisou atender as demandas da sociedade do conhecimento. Para Demo (2010, p. 19), a educação científica é tributo ao conhecimento científico; contudo, este último não pode ser classificado simplesmente a partir de princípios reducionistas e deterministas. O que Demo (2010) nos demonstra é a urgência de pensar em uma educação científica crítica e a justificativa para tal intento se dá por diversas razões: 1) recuperar o atraso na esfera da Ciência; 2) falta de professores de Ciências e matemáticas e desempenho pífio dos alunos nessas áreas. Assim, é “fundamental tomar educação científica como parte da formação do aluno” fazendo com que ele se eduque pela pesquisa e construa sua autonomia argumentativa. Segundo Demo (2010, p. 20):
Quando o aluno aprende a lidar com método, a planejar e a executar pesquisa, a argumentar e a contra-argumentar, a fundamentar com a autoridade do argumento, não está só “fazendo Ciência”, está igualmente construindo a cidadania que sabe pensar. Esta visão teria ainda a vantagem de procurar alguma distância frente às expectativas do mercado que, invariavelmente, não leva em conta o desafio da formação cidadã. Para o mercado, educação científica se reduz a estratégia de competitividade globalizada. Esta perspectiva permanece importante, porque seria tolo ignorar o mercado. Mas não se pode esquecer que estamos falando de “educação científica”, ou seja, de um processo educativo.
Uma educação científica como processo educativo auxilia também na qualidade de vida dos indivíduos fazendo com que eles não se insiram no tecido social meramente como consumidores e, consequentemente, consigam utilizar o conhecimento científico de maneira ética e cidadã. Tal educação poderá auxiliar na proteção de alegações pseudocientíficas. Blancke et al. (2016) discutem um importante mecanismo para blindagem: cultivar a vigilância epistêmica. Segundo Mermelstein e German (2021), os seres humanos são equipados com mecanismos psicológicos desde a tenra infância (essa capacidade foi verificada na literatura em crianças de quatro anos) para avaliar, filtrar e/ou refutar informações baseadas na experiência prévia. A essa capacidade se deu o nome de vigilância epistêmica, a qual tem a função de checar a plausibilidade da informação de acordo com a fonte e o conteúdo.
De acordo com Blancke et al. (2016), uma opção para manter a vigilância epistêmica é checar a confiabilidade da fonte, distinguindo especialistas de não especialistas. Assim, os autores propõem um sistema de cinco análises para distinguir o que é um bom especialista e uma boa fonte: 1) checar os argumentos que o especialista traz para a discussão; 2) verificar se e em que medida outros especialistas apoiam ou refutam as alegações do especialista em questão; 3) procurar pela formação do especialista (diplomas, especializações, etc.) e sua experiência de trabalho; 4) observar se há conflitos de interesses e vieses no julgamento técnico do especialista; 5) avaliar o registro histórico do especialista, ou seja, a chance dele estar certo novamente no futuro.
Essas cinco características podem servir como um guia para um iniciante na Ciência decifrar os bons dos maus cientistas, mas não são infalíveis visto que as práticas pseudocientíficas ainda persistem. Por exemplo, o desejo de fazer parte de um grupo que partilha dos mesmos conhecimentos culturais e ideológicos leva a população a aceitar as informações sem checar a fonte, a fidedignidade do conteúdo, dentre outras análises citadas anteriormente, comprometendo os mecanismos de vigilância epistemológica que a humanidade desenvolveu em sua evolução cognitiva (Blancke et al., 2016; Mermelstein & German, 2021).
Ainda abordando a questão da educação científica, vale a pena considerar as reflexões feitas por Santos (2009), quando a autora aponta um interessante caminho a se tomar que é considerar a Ciência como cultura. Essa perspectiva, segundo Santos (2009, p. 531), modifica o entendimento imperialista que a Ciência teve durante décadas e a coloca não apenas para reconstruir o ambiente natural e social, mas também para englobar “[…] mudanças na percepção do próprio eu”. Dessa maneira, a autora defende a inserção de uma educação científica escolar que leve em consideração os limites e possibilidades relacionados a técnica e a Ciência para que o educando, ao iniciar seu processo formativo, possa compreender a Ciência não apenas como conhecimento regulador, mas também como conhecimento que o faça se emancipar, condicionando-o de elementos para refletir sobre a sociedade hodierna. Fica claro, nesse contexto, que a educação científica defendida por estes autores não considera a Ciência apenas em seus termos técnicos e metodológicos, como também a partir da sua presença no cotidiano de modo a auxiliar o interesse coletivo, fazendo com que as pessoas tenham melhores condições de vida.
Tendo em vista as discussões até agora, observa-se que sociedade tende a ter um viés de confirmação muito enraizado e uma alfabetização científica deficiente, as informações pseudocientíficas conseguem burlar o sistema de vigilância epistêmica. Auxiliada por uma indústria cultural que exprime os desejos da classe dominante e do capital, a pseudociência é divulgada com impressionante rapidez e alcance. Ela consegue fugir aos mecanismos de controle de credibilidade de informações que os veículos de comunicação desenvolveram. Chassot (2003) entende que a educação para o pensamento científico em todas as suas esferas, principalmente nas séries iniciais, é um caminho para diminuir os efeitos deletérios causados pela enxurrada de informações falsas que a população e, até mesmo, a própria comunidade científica enfrenta. Nesse bojo, Ghedin et al. (2013, p. 45) afirmam que:
Na educação científica o professor não toma o papel absoluto da sala de aula, mas age como um professor aberto aos conhecimentos prévios dos alunos. Ele sempre questiona os alunos para assim, estimular a curiosidade destes. Se antes, a ordem para criança era cala a boca menino, você pergunta muito, na educação científica isso se reverteu, uma vez que o papel do professor hoje é justamente estimular o aluno a abrir a boca e perguntar intensamente sobre aquilo que o cerca.
É possível considerar a alfabetização científica como um caminho também para a inclusão social, visto que melhora o conhecimento de mundo da população permitindo-lhe exigir seus direitos. Por fim, essas são provocações que só podemos fazer e pensar caso tenhamos nos curados da fobia do conhecimento. Mais do que nunca, é preciso reiterar o discurso de que a Ciência pode salvar vidas e a educação científica também.
A Natureza da Ciência como possibilidade na educação científica crítica
Constitui uma das tarefas da escola ensinar não apenas a Ciência, mas também sobre a Ciência, nomeadamente seu desenvolvimento histórico, social e cultural. Segundo Moura (2014) e Krupczak e Aires (2018), ensinar sobre a Ciência na escola é fundamental, pois conhecer suas características externas auxiliam os alunos no entendimento mais amplo sobre os motivos e interesses por trás de alguns comportamentos ditos “científicos”.
No âmbito das pesquisas nacionais, diversos trabalhos têm sido produzidos com o intuito de contribuir para o ensino e aprendizagem da NdC na educação básica. Krupczak e Aires (2018), ao mapearam o número de trabalhos no Banco de Teses e Dissertações da CAPES que discutiam a NdC, encontraram 233 publicações: 149 dissertações de mestrado acadêmico, 25 de mestrado profissional e 59 teses de doutorado. Da totalidade encontrada, os autores perceberam que 37,85% discutiam a NdC a partir das estratégias didáticas; 35,06% referiam-se às concepções de NdC; 25,9% objetivavam estudar a formação de professores e apenas 1,2% discutiam sobre o currículo. Esses dados revelados por Krupczak e Aires (2018) são interessantes, pois revelam o interesse crescente em contribuir com a inserção da NdC na escola, sobretudo a partir da formulação de materiais didáticos e no auxílio na formação de professores para trabalhar com o desenvolvimento interno e externo da Ciência.
No que tange à formação de professores e às estratégias didáticas, podemos destacar os trabalhos de Forato et al. (2012), Arthury e Terrazzan (2018) e Machado et al. (2021). Forato et al. (2012) organizaram um projeto de minicurso para professores do Ensino Fundamental e Ensino Médio, com o intuito de instrumentalizá-los na tarefa do ensino da História e Filosofia da Ciência com foco nos aspectos da NdC. Alertaram os professores para o fato de não omitir informações importantes julgando que os alunos não teriam a capacidade de compreender. O aprendizado sobre a Ciência não deve ser descontextualizado do momento histórico em que determinado conhecimento foi estudado e construído. Além do entendimento segundo o qual o conhecimento precisa ser adequado à compreensão prévia dos alunos sobre os temas abordados.
Arthury e Terrazzan (2018) construíram um material didático, que objetivou ensinar o tema da Gravitação para alunos da disciplina de Física no Ensino Médio, a partir da utilização de vários recursos como vídeos, textos, atividades de ilustração e apresentações eletrônicas. Após a execução da proposta, os autores concluíram que, apesar da resistência diante das leituras, os alunos foram capazes de compreender e diferenciar os textos que são confiáveis daqueles que não são. Já Machado et al. (2021), através de experimentos de Física e discussões acerca do que é Ciência, demonstraram aos alunos do Ensino Médio, da cidade de São Borja, no Rio Grande do Sul, que o método científico é compreensível e mutável, sendo a melhor maneira que a humanidade descobriu, até agora, para afastar a pseudociência do cotidiano das pessoas. Desmistificar a pseudociência é um processo contínuo que envolve todos aqueles que apreciam a Ciência. Em suma:
[…] podemos dizer que há uma estreita relação entre natureza da Ciência e História e Filosofia da Ciência, principalmente quando se fala na discussão de propostas de se contextualizar a educação científica. Os conteúdos históricos e filosóficos têm sido utilizados como um potencial recurso pedagógico para trabalhar aspectos do desenvolvimento da Ciência, o que é corroborado pela significativa quantidade de trabalhos nesta interface. (Moura, 2014, p. 46)
A abordagem histórica da NdC tem sido apontada como um dos melhores métodos de ensino e aprendizagem da Ciência por permitir aos alunos incrementar seu aporte cultural, diminuindo o abismo entre os cientistas e a população em geral, contribuindo para o entendimento da relação Ciência e Tecnologia. Como ressalta Moura (2014, p. 40), é preciso reconhecer que a história da Ciência “[…] é intrinsicamente valiosa. Episódios importantes na História da Ciência e da cultura – a Revolução Científica, darwinismo, a descoberta da penicilina, entre outras coisas – deveriam ser familiares a todos os estudantes”.
Conclusão
Este ensaio objetivou analisar o discurso da pseudociência na sociedade contemporânea e descrever sobre as possibilidades de constituição de uma educação científica crítica. A partir do diálogo com a literatura, é possível concluir que: 1) o discurso pseudocientífico tem impactos que extrapolam os aspectos intrínsecos das disciplinas científicas. Suas consequências prejudicam a curto, médio e longo prazos a sociedade de um modo geral. Como bem salientam Bicudo e Teixeira (2022, p. 12), uma sociedade que estimula a desconfiança em cientistas e professores faz com que a confiança seja transferida para outros setores sociais. Desse modo, uma melhor compreensão sobre a Ciência “[…] pode ajudar a habilitar os cidadãos com ferramentas e critérios úteis para as decisões que todos nós temos que tomar nas sociedades contemporâneas e para as escolhas que temos que fazer em um ambiente democrático”; 2) A discussão propositiva sobre a Natureza da Ciência é fundamental dentro da escola para a superação do discurso pseudocientífico. À vista disso, é fundamental que continuem sendo elaboradas propostas didáticas que auxiliem na formação dos professores.
No ano de 2017, o Brasil investiu mais dinheiro público em práticas pseudocientíficas do que no Ministério de Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (Machado et al., 2021). Dado que que a Ciência brasileira é majoritariamente financiada com dinheiro público, esta situação corrobora para seu descrédito e, principalmente, a descontinuidade em pesquisas importantes para a sociedade. Se o próprio governo federal tem deixado de financiar a Ciência neste país, como a comunidade científica brasileira pode lutar com os parcos meios que possui contra a propagação da pseudociência?
Uma solução para esta questão é representada na necessidade de a comunidade científica brasileira intensificar suas pesquisas de modo a produzir trabalhos que, para além do caráter abstrato e complexo, possam também propor maneiras de incorporar o debate sobre a NdC na prática pedagógica de professores. Com efeito, desenvolver ações concretas parece ser um caminho viável já que a escola, enquanto local de socialização de conhecimento científico produzido pelo conjunto da humanidade, pode ser o ponto de partida para a divulgação científica. Afinal, discutir e combater a pseudociência é fundamental, pois ela pode contribuir para o surgimento de projetos autoritários que prejudiquem o exercício da democracia no Brasil.