Introdução
O artigo socializa uma análise das concepções de gestão educacional no Brasil e no Chile no contexto das reformas educacionais ocorridas na América Latina que interferem nas políticas desse setor adotadas em ambos países. Considerou-se que a gestão educacional é um percurso para a construção de uma escola pública de qualidade e de um espaço de cidadania e que existem diferentes concepções e formas de praticá-la.
Para a consecução desse objetivo, realizou-se uma pesquisa bibliográfica e documental com vistas a desvelar a concepção de gestão educacional construída no Brasil e no Chile. Assim, abordou-se o constructo histórico que influenciou ambos países na constituição de sua respectiva gestão educacional.
No caso brasileiro, a partir da década de 1990 ocorreu um processo de disputa por uma concepção de gestão da educação que tem se expressado até hoje e ganhou centralidade em programas oriundos da União que buscam a modernização do Estado e dos processos de gestão educacional. Esse processo vem adjetivando a gestão educacional ora como estratégica e/ou gerencial, ora como compartilhada, e apresenta postulados da qualidade total da educação (FERNANDES; ALVES; ALVES, 2014).
No caso do Chile, um dos pioneiros na articulação entre a política e a gestão educacional e os princípios gerenciais do mercado, resultou na promoção das políticas sociais, que deixaram de ser responsabilidade exclusiva do Estado, repassando a sua execução para a sociedade civil. As reformas empreendidas na década de 1980 seguiram as orientações emanadas do pensamento neoliberal, defensor de que o Estado deveria repassar a responsabilidade das políticas sociais para a esfera privada. Esse processo resultou em um caráter privado regulado pelo mercado para a gestão educacional.
O artigo está estruturado em duas partes. Na primeira, trata-se sobre o ajuste neoliberal na América Latina a partir de processos de reformas que delinearam para os países latino-americanos, em especial, Brasil e Chile, que experienciaram governos neoliberais com profundas implicações para a educação e para a gestão educacional. Na segunda parte, apresentam-se aspectos específicos da conjuntura brasileira e chilena e as concepções de gestão educacional delineadas em cada país.
As políticas neoliberais na América Latina
O neoliberalismo na América Latina, assim como na Europa, é fruto da crise do capitalismo, e “[...] seu surgimento está delimitado pelo esgotamento do Estado de ‘Bem- estar Social’ – onde ele chegou a se configurar – e, principalmente, pela industrialização substitutiva de importação, ao estilo da CEPAL3” (SADER, 1995, p. 35). Para David Harvey (2008, p. 80), as práticas de neoliberalização possuem características próprias em cada país e exibem uma “[...] dinâmica evolutiva da neoliberalização [que] tem agido de modo a forçar adaptações que variam muito de lugar para lugar e de época para época”. No Chile, por exemplo, a instauração do neoliberalismo ocorreu com “[...] um golpe militar apoiado pelas classes altas tradicionais (assim como pelo governo norte-americano) seguido pela cruel repressão de todas as solidariedades criadas no âmbito dos movimentos trabalhistas e sociais urbanos que tanto ameaçavam seu poder” (HARVEY, 2008, p. 49).
Sader (2013) aponta que alguns países da América Latina – Brasil, Chile, Uruguai, Argentina – vivenciaram ditaduras que impediram as lutas dos movimentos populares. A região concentrou o maior número de governos neoliberais mais radicais que “[...] repetiu, à sua maneira, o ideário neoliberal, com governos ditatoriais, como Pinochet, ‘nacionalistas’, como Carlos Menem, ou social-democratas, como Fernando Henrique Cardoso” (SADER, 2013, p. 136).
A adoção dos países da América Latina ao ajuste neoliberal ocorreu na década de 1980, com reformas financeiras. Contudo, foi a partir do final desse período e início da década de 1990 que a maior parte deles desenvolveu as reformas neoliberais. Para Soares (2009, p. 24), o modo como eles introduziram o neoliberalismo como projeto de sociedade deu-se de forma distinta e com caráter diverso, desde aqueles que “[...] possuem um caráter mais ‘doutrinário’ ou mais ‘puro’, no qual se aplicam estritamente os princípios do liberalismo econômico, até aquelas de tipo mais ‘pragmático’, afeitas ao ritmo e à gradualidade determinados pelos interesses dominantes em cada país”.
O Chile, tido como o país pioneiro do ciclo neoliberal, iniciou o processo de ajuste ao neoliberalismo na década de 1970, com Augusto Pinochet (1915-2006), por meio de desregulação, desemprego, repressão sindical, redistribuição de renda em benefício da classe mais favorecida, bem como privatização do serviço público. A inspiração teórica foi Milton Friedman, ao invés de Hayek.
As trajetórias políticas e econômicas que impulsionaram a reforma do Estado sob a perspectiva neoliberal em 1970 no Chile e em 1990 no Brasil tiveram como diagnóstico a crise do Estado, tanto de caráter administrativo quanto orçamentário, bem como a má gestão do público. Era necessário reformar o Estado, com vistas a um novo padrão de intervenção estatal. O mecanismo de intervenção proposto limitou o Estado a gerir as questões econômicas.
No Chile, o ajuste começou no final de 1970, por meio de ditadura civil-militar, e por isso mesmo serviu como laboratório para o conjunto de países latino-americanos. Há que se registrar que o caso chileno foi a experiência mais radical de ruptura com seu passado e que se deu em um contexto de ditadura militar.
O Brasil teve uma entrada tardia ao projeto de ajuste neoliberal em comparação aos demais países da América Latina. Ganhou mais força ao final de 1990, por ser o país a oferecer maior resistência às políticas de desregulamentação financeira e abertura comercial irrestrita (SOARES, 2009).
O surgimento da proposta neoliberal deu-se no Brasil, de um lado, pelo agravamento da crise econômica nas décadas de 1980 e 1990, e, de outro, devido ao esgotamento do Estado Desenvolvimentista, em decorrência de uma crise financeira provocada pelo endividamento externo e interno.
Pelo exposto, a perspectiva do ajuste neoliberal para as políticas sociais é cortar os gastos com as questões públicas sociais. Essa proposta é tratada sob o ponto de vista de reformas que provocaram, na América Latina, o desmonte dos incipientes aparatos públicos de proteção da questão social. A natureza e o resultado do ajuste neoliberal mencionado indicam mudanças significativas nos padrões de garantias e manutenção dos direitos sociais.
Entendemos que tais escolhas, impressas pelos autores, remontam a mudanças empreendidas tanto no Brasil quanto no Chile e demais países da América Latina, que compactuam com a agenda imposta pelo Estado neoliberal. Tal agenda requer um Estado forte, porém mínimo, eficiente e focado na garantia de liberdades individuais e de mercado.
Entretanto, como analisa Gentili (1996, p. 15), a América Latina contribuiu com o avanço neoliberal, não apenas por meio da experiência chilena: “[...] durante os anos 80, e no contexto das incipientes democracias pós-ditatoriais, o neoliberalismo [...] [chegou] ao poder, na maioria das nações da região, pela via do voto popular”, como aconteceu no Brasil. Para Sader (1995, p. 37), o triunfo do neoliberalismo advém, sobretudo, pela “[...] incapacidade da esquerda, até aqui, em construir formas hegemônicas alternativas para sua superação”.
A partir da década de 1990, os projetos traçados para os países latino-americanos, que objetivaram garantir a ideologia neoliberal, se fundamentaram em programas de ajustes estruturais, principalmente por meio de reformas dos Estados, impondo a reformulação de políticas sob a orientação dos princípios da descentralização, da privatização e da focalização das ações, de bens e serviços público-estatais. A implicação desse processo foi o rearranjo público-privado do Terceiro Setor, rol no qual encontram- se o Brasil e os outros países da América Latina.
Os preceitos neoliberais ainda resistem ao tempo e estão enraizados nas políticas desenvolvidas tanto pelo Brasil como pelo Chile e implicam na concepção de gestão educacional construídas em ambos países. A predominância do ajuste na consecução das políticas educacionais se expressa na obstaculização no que concerne à elaboração e à execução das políticas sociais, bem como à materialização do direito à educação.
A centralidade do mercado na concepção de gestão educacional no Chile
O caso chileno apresenta características singulares frente ao Brasil no que se refere à concepção de gestão educacional. Trata-se de um Estado centralizado e que concede recursos ao mercado para a provisão e a participação na educação. De acordo com Souza, Gouveia e Díaz (2015, p. 137), “[...] ainda que o Estado chileno garanta o direito fundamental à educação, trata-se de uma provisão básica, sobre a qual opera massivamente o mercado [...]”. A educação está localizada no âmbito privado com o direito de escolha da família e ao Estado cabe a tarefa de proteger a liberdade de escolha.
Tais iniciativas foram instaladas no país na década de 1980 com a ditadura militar sob a perspectiva das teorias do quase-mercado. A reforma educacional reorganizou o sistema escolar chileno em todas as áreas, desde os processos que envolviam o modelo de financiamento por aluno (vouchers4) até a gestão das instituições escolares (DONOSO- DÍAZ, 2005). A gestão da educação foi descentralizada, transferida do Estado central para os municípios.
Assim, o Estado deixou de atuar como provedor para se constituir um subsidiário e regulador das políticas públicas. Tal processo provocou mudanças na área da educação e, sobretudo, para a gestão educacional, ao longo de três décadas, com uma política orientada pela privatização de inspiração neoliberal.
A reforma educacional chilena é um exemplo paradigmático de privatização na América Latina. O processo de reforma da educação iniciou-se pela substituição da gestão pública para a regulação do mercado, por meio de um Estado subsidiário, e, com isso, promoveu a inserção de princípios de mercado no sistema escolar. As principais medidas tomadas pelo governo nesse período foram:
i) incentivar la libre entrada de instituciones privadas a la educación (incluidas aquellas con fines de lucro); ii) transferir la administración centralizada de los establecimientos públicos a los municipios; iii) sustituir un financiamiento estable de las escuelas por uno competitivo por alumno (voucher) y equiparar el subsidio del sector privado al de las escuelas fiscales; iv) cambiar el estatus docente de funcionario público a un régimen de empleado que negocia individualmente sus condiciones; v) crear una prueba nacional estandarizada. Lo anterior transcurre en una atmósfera de represión política y control curricular. (FALABELLA, 2015, p. 703).
Como se pode perceber, essas transformações impactaram na concepção de gestão educacional e a ideia de gestores como agentes transformadores das organizações públicas em falência constituíram-se como recurso para os governos que buscavam e ainda buscam reconfigurar os serviços públicos. Essa nova linguagem de gestão “[...] conseguiu impregnar apresentações governamentais, documentos sobre políticas e até mesmo manifestos de partidos políticos, além dos relatórios e diretrizes do Banco Mundial e outros órgãos” (NEWMAN; CLARKE, 2012, p. 361).
Logo, a lógica do neoliberalismo tornou-se elemento fundante e orientou programas nacionais e reformas do Estado. Essas alterações podem ser sentidas no modo como as organizações públicas passam a ser organizadas sob a perspectiva do quase- mercado, com a introdução de novas formas de gestão embasadas em princípios gerenciais: controle de resultados, autonomia de gestão, responsabilidade individual na prestação de serviços públicos baseados em metas de desempenho, eficiência e eficácia na gestão, avaliação dos programas e medidas de incentivos aos administradores para melhorar a gestão. Dessa perspectiva surge a figura do gestor como principal agente de desenvolvimento e responsável pelos resultados das instituições escolares.
Com mais de três décadas vivendo com a regulação do mercado, o Chile tem enfrentado diversas mudanças, porém mantendo os eixos centrais em suas reformas. Com a retomada da democracia, após anos de ditadura, o país sofreu modificações nos distintos governos de centro-esquerda e de direita, todavia, com uma política de continuidades e não de rupturas. Essas mudanças afetaram significativamente as políticas educacionais chilenas e, sobretudo, os processos de gestão educacional.
A década de 1990 foi marcada pela volta do país à democracia. O período ficou conhecido por La Concertación, e perdurou por cerca de 10 anos (1990-2000). Os governos que assumiram o poder nesse período pertenciam a partidos de coalizão à ditadura militar. Mesmo assim, não romperam com o paradigma anterior; mantiveram-se como fio condutor políticas de privatização, descentralização e competição.
Os anos de 2000 a 2009 foram marcados pela consolidação do chamado Estado supervigilante (FALABELLA, 2015) e da chamada Nova Gestão Pública, imbuída da perspectiva do gerencialismo. Esse período esteve marcado pela aprovação de instrumentos legais, como a Lei de Subvención Escolar Preferencial (SEP), Lei n. 20.248/2008 (CHILE, 2008), que aumentou o financiamento em colégios que atendiam estudantes socioeconomicamente vulneráveis e estabeleceu critérios para a atribuição de recursos referentes ao rendimento acadêmico.
A Revolta dos Pinguins5, em 2006, no Chile, foi um movimento estudantil que impulsionou a discussão da nova lei da educação, marcou a reforma chilena que pretendia um novo pacto educacional para o país e uma crítica extensiva ao esquema neoliberal herdado da ditadura militar. A pauta de reivindicação desse movimento contava com as seguintes reivindicações: “[...] gratuidade do exame de seleção para a universidade, passe escolar grátis e sem restrições de horário para transporte municipal, melhoria e aumento da merenda escolar e reforma das instalações sanitárias em mau estado em muitas escolas” (ZIBAS, 2008, p. 202).
Em 2009, a Ley Orgánica Constitucional de Enseñanza (LOCE) (CHILE, 1990), inscrita sob a Lei n. 18.962/1990, foi substituída pela Lei n. 20.370/2009, a Ley General de Educación (LGE) (CHILE, 2009), que conserva o esquema de mercado e “[...] crea una nueva matriz institucional – la Superintendencia y la Agencia de la Calidad de la educación –, que conlleva un sistema de evaluación, inspección, clasificación de los establecimientos según su nivel de desempeño y de difusión de los resultados” (FALABELLA, 2015, p. 712).
Um dos enfoques da LGE (CHILE, 2009) foi o estabelecimento da gestão orientada por resultados, com pressupostos voltados à concepção de uma escola eficaz. Assim, no caso chileno, a lei do SEP (CHILE, 2008) e a LGE (CHILE, 2009) determinam que, quando um estabelecimento não obtém resultado satisfatório, os responsáveis pelos alunos são comunicados da situação e orientados a mudar seus filhos de instituição escolar.
No período de 2010 a 2014, assumiu o poder um governo de centro-direita. Em 2011, houve a aprovação da lei que consolidou o Sistema de Aseguramiento de la Calidad (SAC), um modelo de responsabilização por desempenho mais complexo do que o mencionado anteriormente (SEP). Tal instrumento legal classificava os estabelecimentos escolares por meio de incentivos associados aos resultados do Sistema de Medição da Qualidade da Educação (SIMCE).
Em 2011, novas manifestações sociais retomaram a pauta do movimento de 2006, ampliando os debates, ao propor uma educação pública, gratuita e de qualidade. Houve um sintoma de crise do paradigma neoliberal e uma reorientação da discussão pública, bem como mudanças da agenda do governo durante a campanha de Michelle Bachelet em 2013, tendo em vista uma sociedade em busca de transformações.
Em 2014, ao tomar posse, a presidente Michelle Bachelet assumiu, em seu programa de governo, uma mudança de paradigma na educação, diminuindo o financiamento privado e aumentando os gastos e as ações do Estado. A reforma para tirar o mercado da educação escolar chilena requereu algumas ações: “[…] dejar de financiar con recursos públicos escuelas privadas con fines de lucro, hacer gratuitas las escuelas que el estado financia […], prohibir las prácticas discriminatorias de selección de alumnos, y crear un nuevo sistema de administración de la educación pública” (BELLEI, 2016, p. 234). Essas ações tiveram o propósito de destinar os recursos públicos à expansão e às melhorias na educação pública.
Em outubro de 2017 foi aprovada a Lei n. 21.040/2018, Lei que criou o Sistema de Educação Pública, de suma importância pelos avanços que consegue institucionalizar (CHILE, 2017). Apesar dos avanços representados pela criação desse dispositivo legal, a “[...] versión sancionada difiere sustantivamente del proyecto inicial, dando cuenta de las tensiones y transacciones políticas tanto intra-coalición gobernante (Nueva Mayoría) como también respecto de las fuerzas opositoras (Chile Vamos)” (DONOSO-DÍAZ, 2018, p. 29). A aprovação da referida lei foi resultado de um conjunto de reformas educacionais propostas pelo governo de Bachelet e dos movimentos estudantis de 2006 e 2011.
Donoso-Díaz (2018), ao analisar a nova lei, afirma que se trata de uma reorganização da educação chilena e não de um novo desenho de educação pública com um projeto político integral de país. E ainda, a nova legislação fortalece a perspectiva centralizadora da gestão educacional, pois é “[...] una nueva ‘recentralización’ de la gestión educativa, con problemas severos de articulación con la institucionalidad nacional hoy vigente” (DONOSO-DÍAZ, 2018, p. 44).
O caso chileno tem como indicativo o processo de privatização da educação, que perdura há cerca de 30 anos e vem “[...] alterando de forma profunda el marco institucional, político y discursivo de la educación y, en consecuencia, condicionando fuertemente cualquier intento de reforma o modificación” (VERGER, et al., 2017, p. 32). Tal afirmação reforça a ideia defendida de que a privatização provoca alterações na gestão da educação, bem como no direito à educação para o contingente da população no país.
Como se pode perceber, a concepção de gestão educacional está alinhada à lógica neoliberal, cujo imperativo encontrou sustentação ao longo dos governos. Tal situação desvela que no Chile, mesmo com governos com um viés democrático, a educação não deixou de ser pensada pelo setor privado e o Estado não assumiu a educação no país.
A concepção de gestão educacional no Brasil
Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988), o país inicia legalmente o período democrático e consagra o federalismo tripartite, conferindo à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios, aos menos formalmente, a autonomia política, fhinanceira e administrativa. A constituinte de 1987 foi marcada pela ampla participação popular e pela garantia dos direitos sociais universais, entre eles a educação.
Porém, em 1990, o Brasil nem havia iniciado a consolidação das garantias constitucionais e já procedeu com o seu desmonte através da adesão ao modelo neoliberal de governo. Esse período foi caracterizado pela tentativa de integrar o país ao mercado mundial, pela busca da estabilidade da moeda, pelo ajuste fiscal e pela privatização de empresas estatais. Foi apenas a partir de 1995, com a ascensão de Fernando Henrique Cardoso (FHC) à direção do país, que as reformas do Estado brasileiro ganharam corpo e se consolidaram como parâmetro de governabilidade. Misoczky, Abdala e Damboriarena (2017) alertam que:
[...] tratar o neoliberalismo meramente como um programa de políticas e como um projeto monolítico constitui uma falácia que obstaculiza a compreensão do processo continuado de reformas do aparelho de Estado, que vêm ocorrendo desde o processo coordenado por Bresser- Pereira e que teve como marco o Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado de 1995. Falar do neoliberalismo como algo que passou e que ressurgiu após o golpe parlamentar de 31 de agosto de 2016, nega as evidências de que ele organizou, de maneira ininterrupta, práticas de governo, práticas no mercado e práticas sociais no sentido mais amplo. (MISOCZKY; ABDALA; DAMBORIARENA, 2017, p. 185).
O modelo gerencial foi adotado como sinônimo de modernização estatal e busca da eficiência e eficácia na prestação de serviços públicos. Neste primeiro momento, a combinação das reformas neoliberais e gerenciais resultaram, para a educação, na descentralização da oferta, focalização do financiamento, fortalecimento das avaliações em larga escala, tentativas de unificação e controle dos currículos, privatização do ensino superior, aumento das parcerias públicos-privadas e interferência dos organismos internacionais na condução da política educacional do país.
Com a expansão do ideário neoliberal/gerencial, a palavra de ordem era “descentralização”. Na educação, isso significou a transferência de atribuições no âmbito da oferta da Educação Infantil e Ensino Fundamental para os municípios. Esse processo foi induzido pela criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), cuja característica focal deixou a Educação Infantil e o Ensino Médio sem previsão de um financiamento mais equânime, contribuindo para o aumento das desigualdades educacionais no território brasileiro.
Diante de sua baixa capacidade financeira e administrativa em lidar com as demandas impostas pela descentralização, os municípios buscaram os mais variados arranjos, desde as parcerias com os grupos privados para atender a oferta até a compra de pacotes educacionais com foco na gestão e nos processos didáticos pedagógicos. Essas parcerias permitiram a entrada de ideias mercadológicas na educação, tais como: estabelecimento de metas, avaliação e controle dos resultados, competição, desempenho, responsabilidade individual e centralidade na figura do gestor em detrimento da gestão democrática.
Em 1990, com a criação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), ainda amostral, e sua generalização em larga escala em 1995, estabeleceu-se um mecanismo de monitoramento e controle de resultados baseado no desempenho dos alunos. A divulgação dos resultados e o estabelecimento de ranqueamento promoveram a competição e a responsabilização dos atores educacionais. Os estabelecimentos escolares do país começaram a se enxergar, classificar e julgar a partir das avaliações externas. Os sistemas de ensino passaram a perseguir como meta a melhoria dos índices de avaliação muitas vezes apresentados como sinônimos de qualidade. A cultura da responsabilização atingiu todos os profissionais da educação, especialmente os gestores, que passaram a responder pelo fracasso ou êxito dos resultados obtidos nas avaliações externas.
A implantação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), no final dos anos 1990, configurou uma tentativa de padronização dos currículos e homogeneização da educação. Embora estes figurassem com o status de referenciais para a construção dos currículos locais, os elementos presentes nos PCNs eram objetos das avaliações em larga escala, induzindo os entes federativos a adotarem tal composição em seus currículos. Na essência da proposta existia a crença de que homogeneização dos currículos combateria as desigualdades educacionais e contribuiria para melhoria da qualidade da educação, uma vez que permitiria o acesso igualitário da escolarização entre os sujeitos e a justa competição. Assim, os indivíduos seriam os únicos responsáveis pelo sucesso ou fracasso de sua escolarização e a meritocracia liberal seria a métrica com que os sujeitos se julgam, retirando o elemento social do cálculo.
Na primeira década do século XXI, especificamente no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), o cenário político sofreu mudanças que refletiram diretamente numa postura mais aguda do Estado na promoção do desenvolvimento econômico e social. Mesmo conservando aspectos ortodoxos na gestão macroeconômica, a economia foi transitando para um “desenvolvimentismo” vinculado a um crescimento social, o que alguns autores denominaram de estratégia “social desenvolvimentista” ou até mesmo de “novo desenvolvimentismo”. Essa postura defendia medidas estatais de estímulo e aceleração do crescimento econômico, geração de emprego e renda, bem como o acesso ao consumo de massa e a consequente redução das desigualdades, uma espécie de círculo virtuoso.
Na área educacional houve uma espécie de resgate do protagonismo do Estado na condução das políticas educacionais em nível nacional através da coordenação federativa da União. No primeiro mandato de Lula (2003-2006), o momento mais marcante foi a aprovação do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), que ampliou o financiamento para as três etapas da educação básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio).
Porém, no segundo mandato (2007-2010), especificamente em 2007, Lula criou o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e o Plano de Ações Articuladas (PAR), instrumentos pelos quais o governo federal realizou a gestão e o planejamento educacional no país. O PDE reunia uma série de programas oferecidos às unidades subnacionais por meio do PAR e visou imprimir uma racionalidade técnica no planejamento das políticas educacionais baseada na eficiência e eficácia na prestação do serviço público. Tal racionalidade estava presente na construção de diagnósticos, estabelecimentos de metas, na avaliação, na premiação e na responsabilização dos atores educacionais.
Em 2007 também foi implementado o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), que se tornou para o governo uma referência para medir a qualidade da educação básica e induzir comportamentos nos entes federativos. Por meio do PAR, as unidades subnacionais realizavam um diagnóstico da situação local em quatro dimensões: a) gestão educacional; b) formação de professores e dos profissionais de serviço e apoio escolar; c) práticas pedagógicas e avaliação; d) infraestrutura e recursos pedagógicos. A partir desse cenário, o Ministério da Educação oferecia apoio técnico e financeiro através dos programas desenhados e previstos no PDE.
O Planejamento educacional visava a melhoria dos indicadores do IDEB através do estabelecimento de metas e cobrança de resultados. A divulgação e ranqueamento dos resultados operavam como um mecanismo de prestação de contas para a sociedade, vista como clientes, além de funcionar como instrumentos de responsabilização dos atores educacionais, especialmente os gestores, pelo fracasso ou sucesso nos resultados.
Na tentativa de responder ao clima de cobrança e competição, o ambiente escolar foi afetado: a busca por melhores performances nos indicadores de avaliação tornou-se o centro dos esforços dos educadores e os gestores foram colocados como peças-chave neste processo. Ao diretor foram atribuídos o papel de monitorar, avaliar e controlar o desempenho da escola nos indicadores das avaliações externas, além de conduzir o trabalho educativo na direção do crescimento desses. Parente (2017), ao analisar o papel do diretor escolar no contexto do gerencialismo, conclui que
[...] o desencadeamento dos processos de gestão da escola, seguindo a tendência gerencialista, estão fundamentados na avaliação de desempenho medida por meio de índices estatísticos. A utilização desses dados como única forma de análise do desenvolvimento da escola desconsidera os elementos subjetivos de uma instituição educacional, que não conseguem ser captados por um processo tão técnico e racional. (PARENTE, 2017, p. 276).
Ao coordenador pedagógico, devido a sua proximidade com o corpo docente, foi atribuída a função de articulação entre a secretaria de educação e os professores na produção de um éthos tecnocrata e performático ligado aos princípios do gerencialismo. De acordo com Landim e Borghi (2020), o professor coordenador
[...] passa a ser aquele que cativa seus pares, construindo uma relação de confiança e reciprocidade, pois a conquista dessa força de trabalho garantirá que se cumpram os resultados esperados. Ele é o líder das transformações que só serão possíveis se o professor acreditar que são possíveis, acreditar na figura de liderança do Professor Coordenador. (LADIN; BORGHI, 2020, p. 34).
No governo de Dilma Rousseff (2011 a 2014), a gestão e o planejamento educacional apresentaram elementos de continuidade presentes no PDE e no PAR com o aumento do protagonismo da União na formulação e indução de programas educacionais e, contraditoriamente, a ampliação privatização “na educação” e “da educação”. A privatização endógena na educação se fortaleceu pela produção de uma cultura educacional baseada em princípios mercadológicos. O gerencialismo e a performatividade, aos moldes apresentados por Ball (2005), tornou-se o éthos do profissionalismo tecnicista educacional que privilegia a competição, o controle, a avaliação, a padronização, o estabelecimento de metas, a racionalidade técnica, a busca por resultados e a responsabilização individual.
Em 2016, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o seu vice, Michel Temer, assumiu o poder, cujo governo foi marcado por um viés conservador, elitista e privatista, com foco no ajuste fiscal através da Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016 (BRASIL, 2016a), que impôs um teto de gastos para a área social. Já o privatismo se consolidou com a venda dos ativos da Petrobrás, especificamente os poços de petróleo do pré-sal.
Na área educacional, seu governo ficou marcado pela reforma do Ensino Médio através da aprovação da Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (BRASIL, 2017) e pela intuição da BNCC para o Ensino Fundamental, em 2017, e para o Ensino Médio, em 2018. Os novos marcos regulatórios do Ensino Médio prescrevem a ampliação da carga horária e mudanças significativas no currículo, conferindo-lhe um caráter prescritivo, tradicional e padronizador. Essas reformas imprimiram na educação brasileira um caráter pragmático e neotecnicista baseado no neoprodutivismo e na teoria da empregabilidade. A incorporação de competências e habilidades para o trabalho no século XXI é o objetivo principal dessas reformas que buscam adaptar os sujeitos à nova sociabilidade do capital. A BNCC visa a induzir uma padronização dos currículos em detrimento da autonomia didático-pedagógica da escola. Para tal, utiliza-se das avaliações externas para classificar e ranquear as escolas e responsabilizar os gestores e professores pelos índices alcançados. Por trás desta padronização existe a crença na meritocracia liberal de igualdade de oportunidade. Sendo assim, todos têm o mesmo direito de aprendizagem, acesso à mesma educação; então, se o aluno não aprende, é sua responsabilidade e dos atores educacionais envolvidos, desconsiderando todos os elementos externos à escola. Freitas (2017, s/p) destaca que:
A intencionalidade da atual base é padronizar para poder cobrar da escola. Quando dizem que a BNCC garante direitos dos mais pobres, querem de fato significar que agora a escola será penalizada se não ensinar os pobres (ou os ricos) de acordo com tudo que a BNCC diz que têm direito – independentemente de terem ou não condições concretas para poder desempenhar seu trabalho. Para isso se está fazendo o ENAMEB – Exame Nacional do Magistério do Ensino Básico e realinhando os exames nacionais à BNCC. Portanto, a BNCC não pode ser examinada isoladamente, mas como a base de toda uma política de pressão sobre a escola e seus profissionais, que conduzirá à privatização e destruição da escola pública. (FREITAS, 2017, s/p).
Vale ressaltar o caráter autoritário com que essas reformas foram introduzidas no cenário educacional nacional. Em 22 de setembro de 2016 foi editada pelo Governo Federal a Medida Provisória n. 746 (BRASIL, 2016b), propondo um novo desenho para o Ensino Médio. Desde 2014 a BNCC estava sendo discutida e formulada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em diálogo com a sociedade, porém, em 2016, sofreu interferências diretas dos reformadores empresariais presentes no MEC que resultaram na renúncia coletiva do Conselho. A nova composição do CNE formulou a BNCC alinhada aos anseios mercadológicos e às proposições da frente liberal conservadora. Em 2019, tal viés autoritário presente no planejamento educacional se radicaliza com a ascensão de Jair Messias Bolsonaro à presidência da República.
O governo de Jair Messias Bolsonaro representou a chegada do conservadorismo reacionário de viés teocrático ao poder. Seu governo se propôs a ser conservador nos costumes e liberal na economia. Na educação, empreendeu uma guerra cultural contra a dita “ideologização comunista”, que ele chamou de “marxismo cultural”, e buscou eliminar dos currículos educacionais toda referência à diversidade étnica, racial e de gênero.
A “guerra cultural” empreendida no âmbito do MEC provocou um desgoverno intencional na pasta e a queda de três Ministros da Educação. A descontinuidade e a incompetência em gerir tecnicamente o planejamento educacional no país ampliou espaço para a privatização da educação. A proposta de transferir a oferta da educação para o setor privado através dos vouchers aparece constantemente nos discursos governamentais alinhados à qualidade na prestação dos serviços.
No dia 9 de setembro de 2021, o Presidente da República editou a Medida Provisória n. 1.061, que cria o Programa Auxílio Brasil em substituição ao Bolsa Família (BRASIL, 2021). O Auxílio Brasil integra num só programa as políticas de assistência social, saúde e educação. O artigo 6º da referida Medida Provisória prevê o pagamento de auxílio financeiro para crianças aptas a frequentar a educação infantil em creches privadas sem fins lucrativos: “O Auxílio Criança Cidadã será concedido, para acesso da criança, em tempo integral ou parcial, a creches, regulamentadas ou autorizadas, que ofertem educação infantil, nos termos do regulamento” (BRASIL, 2021)
Num primeiro momento, a Medida Provisória abre espaço para o crescimento da malha de escolas religiosas que, na visão dos conservadores, são as guardiãs dos “bons costumes” e da formação do “cidadão de bem”. O seu pano de fundo é o desfinanciamento da rede pública através dos vouchers e a criação de um mercado educacional que acesse diretamente os recursos públicos.
A perseguição às Universidades Públicas, presente no discurso governamental, é uma tentativa de desqualificação para legitimar um projeto de privatização frente à sociedade. A crítica à autonomia administrativa e didático-pedagógica das universidades públicas e a desconsideração da lista tríplice na nomeação dos reitores das instituições federais de ensino é expressão máxima do desrespeito à gestão democrática consagrada no artigo n. 206 da Constituição Federal. O projeto Future-se foi a tentativa do governo federal de ampliar a privatização das Instituições de Ensino Superior (IES) Federais através da parceria público privada na gestão e empresarial nas pesquisas.
É notório que desde o governo de Michel Temer o gerencialismo presente na administração pública radicalizou-se através de um viés autoritário e tecnocrata. Mas foi no governo Bolsonaro que o planejamento educacional se afastou totalmente dos anseios e interesses sociais servindo apenas ao mercado e ao conservadorismo reacionário teocrático cristão.
Considerações Finais
O trabalho objetivou analisar as concepções de gestão educacional no contexto das reformas educacionais ocorridas na América Latina, especificamente nas políticas adotadas no Brasil e no Chile. Tal análise foi possível ao considerarem-se os contextos históricos pós ditadura militar que marcam os dois países.
Observou-se que, no período em que os países da América Latina buscavam o fim da ditadura militar, ocorreu em âmbito internacional o aprofundamento das políticas de orientação neoliberal. Essas políticas influenciaram os governos ditatoriais desde a década de 1970, por meio da defesa da privatização dos direitos sociais, do Estado mínimo para o social, bem como da influência dos organismos internacionais na consecução das políticas públicas de caráter social.
As implicações das políticas neoliberais são observadas no modo como os países constroem suas políticas públicas com um forte apelo à privatização da educação e à gestão gerencial em substituição a uma gestão educacional com viés democrático, tal como se evidenciou no Brasil e no Chile.
No Brasil, iniciou-se um processo de reabertura democrática a partir de um repensar do público, do Estado, com a participação efetiva da sociedade. Por um lado, percebe-se um avanço no acesso à educação, na elaboração de constructos legais de garantia da gestão democrática da educação, mas, por outro, há um avanço na consecução de políticas de caráter privatizador e gerencial, além de uma naturalização das perdas da democratização da educação.
No Chile, observou-se um processo de privatização da educação pública por meio da continuidade de políticas de caráter gerencial desde o período ditatorial sustentadas ao longo dos governos. Nos últimos anos, os movimentos sociais reivindicaram mudanças nos paradigmas educacionais, mas, apesar dessas reivindicações, ainda prevalecem mecanismos de mercado.
Ressalta-se, contudo, que embora as políticas educacionais e a gestão educacional no Chile resistam à ofensiva neoliberal, a sociedade chilena tem convivido com processos de elaboração de uma nova Constituição e de abandono da atual Carta Magna elaborada no período Pinochet. O Brasil, ao contrário, embora garanta em seus princípios constitucionais o direito a uma educação pública, gratuita, laica, tem, principalmente após 2016, com o golpe de Estado jurídico, midiático e parlamentar e com o governo Bolsonaro, um aprofundamento de políticas autoritárias, contrárias ao caráter público das instituições e um aprofundamento das políticas de privatização.