Introdução
O movimento internacional de renovação do ensino de matemática, conhecido como Movimento da Matemática Moderna, que teve o seu auge nos anos 1970, repercutiu em mudanças de perspectivas tanto no que tange à concepção de Matemática, como em relação a metodologias de ensino.
O Movimento da Matemática Moderna tem sido tema de interesse de pesquisadores em História da Educação Matemática (BÚRIGO, 1989; SOARES, 2001; MATOS; VALENTE, 2007; OLIVEIRA; LEME DA SILVA; VALENTE, 2011, dentre outros). Com base nesses estudos, percebemos que esse movimento trouxe para as salas de aula do ensino secundário, em um primeiro momento e, posteriormente para o nível primário, a presença de uma “nova” concepção de Matemática pautada na perspectiva do grupo Bourbaki1, bem como na inserção de práticas de ensino voltadas para a valorização do papel do aluno, frente ao processo de ensino e aprendizagem. Essa “nova” concepção de Matemática, orientada pelas ideias estruturalistas do grupo supracitado, tinha como princípio norteador a
[…] valorização da Álgebra e da Geometria vetorial, com a correspondente desvalorização da Geometria de Euclides, na orientação axiomática dada ao estudo da Matemática, e numa valorização da linguagem e simbologia matemáticas (GUIMARÃES, 2007, p. 32).
No que diz respeito às orientações para as práticas de ensino, as perspectivas desse movimento de renovação, foram embasadas principalmente pelos estudos no campo da psicogenética de Jean Piaget. Os estudos de Jean Piaget sobre a gênese do número na criança remetiam à ideia de que há uma correspondência entre as estruturas do pensamento da criança e as estruturas matemáticas sendo que, “se o edifício da Matemática assenta sobre estruturas, que correspondem além do mais às estruturas da inteligência, é então sobre a organização progressiva dessas estruturas operatórias que é preciso estar baseada a didática da matemática” (PIAGET, 1955 apudVALENTE, 2008, p. 585).
As propostas metodológicas para o ensino de matemática defendidas pelo Movimento da Matemática Moderna partiam da valorização da centralidade do aluno, que deveria participar ativamente da construção do conhecimento, pois “[…] aprender matemática é aprender a ‘fazer matemática’” (BÚRIGO, 1989, p. 84). Assim, as práticas de ensino tinham por objetivo estimular a autodescoberta do aluno, mediante à realização de atividades voltadas para instigar uma postura investigativa, levando-o à experimentação, inclusive com a presença de materiais concretos.
O presente texto é fruto de uma pesquisa (SILVA, 2019) que tomou como objeto de investigação um curso de especialização denominado de Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária, ofertado no Instituto de Educação General Flores da Cunha, localizado em Porto Alegre, durante o período de 1966 a 1972. O Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária foi proposto com o intuito de atualizar os professores, em sua maioria, professoras primárias, acerca dos ideários do Movimento da Matemática Moderna.
O aporte documental considerado para a realização deste estudo foram os documentos pertencentes ao acervo do Laboratório de Matemática do Instituto de Educação General Flores da Cunha. Atualmente, esses documentos estão alocados no Instituto de Matemática e Estatística da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde passam por um processo de organização e de higienização para fins de inventário. Além dos registros escritos, também constituíram nosso acervo documental as entrevistas realizadas com duas participantes do Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária, Mônica Bertoni dos Santos2, ex-aluna do curso, e Esther Pillar Grossi3, uma das criadoras, que coordenou e lecionou no mesmo.
Por trata-se de um estudo acerca de um passado que não podemos tomar na sua plenitude, mas que temos a intenção de investigar pelo acesso a fontes de diferentes naturezas, nos aproximamos da perspectiva da História Cultural. Essa perspectiva, situada no campo da História Nova, defende a ampliação dos documentos históricos, cujo respaldo de fonte histórica é dado a todo e qualquer resquício que remete à ação de mulheres e homens. Nesse sentido, nos aproximamos dos estudos de Le Goff (1990), ao considerar todo documento como monumento, ou seja, o documento é fruto da produção humana e, portanto, é repleto de intencionalidade e subjetividade. Nas palavras do historiador,
O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa (LE GOFF, 1990, p. 545).
Neste cenário, cabe ao pesquisador em História da Educação Matemática o movimento constante de tatear pistas, rastros, sinais e indícios que nos possibilitem trazer elementos do passado de modo a interrogá-lo e compreendê-lo. Assim, a metodologia aqui abordada buscou aproximar-se daquela utilizada pelo “detetive que descobre o autor de um crime […] baseado em indícios imperceptíveis para a maioria” (GINZBURG, 1989, p. 145).
Atrelado à postura detetivesca para com os documentos históricos, também é necessário a arte de interpretá-los. E, como nos coloca Carlo Ginzburg, essa interpretação deve centrar-se “sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores […], pormenores normalmente considerados sem importância, ou até triviais” (GINZBURG, 1989, p. 149-150). Ou seja, além de tatear as pistas para termos acesso a um período passado, é preciso examinar com atenção as minúcias, o não visto e o não dito. Esse processo revelou-se valioso e possibilitou a investigação do objeto de estudo em pauta, o Curso de Especialização em Didática da Matemática Moderna na Escola Primária, ofertado no Instituto de Educação General Flores da Cunha de Porto Alegre, entre 1966 e 1972.
Primeiros sinais de um processo de renovação
Para compreendermos as circunstâncias que levaram o Instituto de Educação General Flores da Cunha a sediar um curso de especialização sobre a Didática da Matemática Moderna, precisamos entender o percurso histórico dessa instituição, acerca do ensino de matemática lá ministrado. O Instituto de Educação (IE) foi a primeira instituição gaúcha a formar professores ainda no Império, em 1869. Estudos apontam que o IE se constituiu em uma instituição com uma trajetória que se destaca pelo pioneirismo e pela inovação pedagógica sendo o “[…] ensino ali ministrado e o perfil profissional proposto a base de orientação para os demais cursos normais do Rio Grande do Sul” (LOURO, 1986, p. 28).
O estudo de Rheinheimer (2018) sinaliza que, nos anos 1920, discussões fundamentadas nas ideias escolanovista desencadearam ações de renovação no ensino de matemática no IE, em que o imperativo pelo renovar, reformular e modernizar se fez presente.
Nos anos 1940, observamos uma mobilização das professoras do IE acerca de como o ensino de matemática estava sendo abordado na instituição. Essa mobilização materializou-se por meio dos estudos realizados pelas professoras que ensinavam matemática no IE, lideradas pela professora Odila Barros Xavier4. Nestes estudos, pelo que consta nos relatórios e textos localizados no acervo do Laboratório de Matemática do IE, o grupo de professoras aproximou-se de autores estrangeiros, a exemplo de William A. Brownell, mediante à leitura de seu artigo “O Papel da Significação no Ensino da Aritmética”. Em 1949, a obra de Catherine Stern, Children Discover Arithmetic, também foi estudada pelas professoras do IE, instigando provocações e anseios pela renovação do ensino de matemática para o nível primário. Nesse mesmo período, a professora Odila deparou-se com a literatura de Jean Piaget, que trazia uma linguagem nova, “[c]orrespondência, correspondência unívoca, correspondência biunívoca, conjunto, estruturas matemáticas, topologia, geometrias não euclidianas, a representação espacial na criança é topológica antes de ser projetiva e euclidiana” (RELATÓRIO, 1968, p. 2), que foi mencionada em relatórios, por lhe chamar atenção, antevendo a necessidade do domínio desta moderna matemática que surgia e que precisava ser aprendida, para então ser ensinada às futuras professoras primárias.
Os anos 1950 dão continuidade a esse movimento em prol da compreensão sobre o aprendizado da matemática e da renovação de seu ensino na instituição. Neste contexto é criado, em 1956, o Laboratório de Matemática do IE. Esse laboratório constituiu-se em um espaço destinado para o estudo e o ensino de matemática para o nível primário. No final dessa década, no Laboratório de Matemática do IE nasce o Círculo de Estudos, um espaço “[c]om o objetivo de instrumentalizar os professores, com leituras e discussões sobre a realidade das escolas primárias, eram realizados estudos e produções de materiais estruturados” (DALCIN; BONFADA; RHEINHEIMER, 2018, p. 15).
Em 1957, ocorre em Porto Alegre/RS o II Congresso Nacional do Ensino de Matemática. Nesse congresso, as professoras do IE apresentaram o trabalho intitulado “Sugestões para Programas em Cursos de Aperfeiçoamento de Professores Primários”, oriundo das experiências, em desenvolvimento há três anos (iniciadas em 1954), no Curso de Aperfeiçoamento de Professores Primários.
A partir dos anos 1960, intensificam-se as reuniões de estudos realizadas pelo Círculo de Estudos, e verifica-se uma aproximação das professoras do IE com os docentes das universidades da capital gaúcha, em especial com a professora Joana Bender5 da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para quem “a Matemática Moderna é a reformulação e o enriquecimento de conteúdos (Teoria de Conjuntos e Teoria das Relações) e consequentemente apresentação que exige o aparecimento de novas Técnicas, Terminologias e Simbolismo” (LABORATÓRIO DE MATEMÁTICA, 1967, p. 1). Segundo o Relatório das Atividades do Laboratório de Matemática do Instituto de Educação (1965), no primeiro semestre de 1965, sobre o tema “Alguns aspectos da Matemática atual”, a professora Joana Bender coordenou um curso composto por oito encontros no Laboratório de Matemática do IE.
Podemos inferir que, esse conjunto de contextos e ações desencadeados no IE, corroboraram para um cenário favorável para a criação do Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária.
O curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária
Fruto do Círculo de Estudos – através da participação da professora Odila Barros Xavier – coordenadora, juntamente com a professora Esther Pillar Grossi, o Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária iniciou suas atividades em 11 de abril de 1966, no Laboratório de Matemática, sala 70, do Instituto de Educação General Flores da Cunha. Esse curso, destinado aos professores primários, pré-primários e de didática da matemática, foi proposto com o intuito de:
Oferecer aos professores a oportunidade e atualização em matemática através da abordagem científica e didática dessa ciência, capacitando-o a orientar a organização da aprendizagem do aluno de modo a conferir à mesma, dimensão que possa ascender do quotidiano ao interplanetário.
Garantir a vivência de técnicas de trabalho adequadas à compreensão da Matemática Reformulada (PLANEJAMENTO DO CURSO DE DIDÁTICA DA MATEMÁTICA MODERNA NA ESCOLA PRIMÁRIA, 1968, p. 5).
Segundo o documento que trata do planejamento do Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária, datado de 1968 para ser executado em 1969, ele foi estruturado para ter a duração de 260 horas, distribuídas em um período de dois anos, ou seja, quatro semestres letivos. Entretanto, segundo o certificado de conclusão de curso da ex-aluna Mônica Bertoni dos Santos, datado do ano de 1972, observamos que a modalidade por ela cursada teve duração de 1 ano, com uma carga horária total de 240 horas.
Com o propósito de atualizar os professores acerca dos “novos” conteúdos matemáticos, bem como das novas técnicas de trabalhos, as proponentes do Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária partilhavam da concepção de que “[…] a Matemática [era o] instrumento indispensável à interpretação da evolução científica, tanto pelos conteúdos que a integram quanto pelos processos mentais que pode desenvolver”. Mediante essa visão da matemática, o curso foi organizado a partir de sete disciplinas: Matemática, Didática da Matemática, Lógica Simbólica, Psicologia, Filosofia, Sociologia e Artes.
O Quadro 1 ilustra os conteúdos propostos para serem abordados em duas turmas do respectivo curso no ano de 1967. Esse quadro também nos permite identificar as docentes responsáveis pelo ensino.
Turma 711 A | ||
Data | Professora | Conteúdos |
19/04 | Esther Pillar Grossi | Síntese panorâmica da Matemática atual e sua contribuição ao mundo de hoje. |
24/04 | Léa da Cruz Fagundes | Teoria de Conjuntos; Noção de conjunto; Criação de conjuntos; Determinação e representação de conjuntos. |
26/04 | Léa da Cruz Fagundes | Conjunto unitário; Conjunto par; Conjunto Universo; Relação de pertinência; Simbolismo da relação de pertinência. |
Turma 711 B | ||
20/04 | Léa da Cruz Fagundes | Estudo e início do Planejamento Cooperativo. Visão histórica da Matemática. |
28/04 | Léa da Cruz Fagundes | Teoria de Conjuntos; Noção de conjunto; Noção de elemento; Relação de pertinência; Símbolos; Determinação e representação de conjuntos. |
05/05 | Léa da Cruz Fagundes | Conjunto unitário; Conjunto par; Conjunto Universo. |
26/04 | Helenita de Souza Rodrigues | Técnica de anedotário |
Fonte: Dados retirados do documento Relatório de atividades do Laboratório de Matemática no ano letivo de 1967.
Conforme podemos identificar no Quadro 1, os conteúdos indicados para serem abordados nos possibilitam conjecturar que o Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária valorizou o estudo de tópicos da Teoria de Conjuntos. Essa valorização também é percebida ao analisarmos o rol de provas do curso, em que tal conteúdo é abordado para contemplar outros saberes matemáticos, tais como os saberes topológicos. Na seção seguinte apontaremos essas percepções ao buscarmos identificar os princípios norteadores do curso.
Matemática, Lógica e Didática
O princípio norteador, no que diz respeito à abordagem dos conteúdos matemáticos, fundamentou-se na concepção estruturalista defendida pelo grupo Bourbaki. Isso porque, segundos os documentos que tratam do respetivo curso, dentre eles as avaliações, percebemos o papel central da Teoria de Conjuntos, atrelado à valorização da lógica e sua simbologia, tomados como ferramentas para dar unidade à matemática. As Figuras 1 e 2 nos permitem inferir o papel central dado aos conteúdos da Teoria de Conjuntos.
Fonte: Provas do Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária, [entre 1966 e 1972], p. 5
Fonte: Provas do Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária, [entre 1966 e 1972], p. 2.
A Teoria de Conjuntos se faz presente por meio dos saberes e conceitos topológicos, ao explorar os conceitos de regiões interna e externa, conforme ilustra a Figura 1. Também por meio da linguagem simbólica percebemos conexões entre os conceitos e os conectivos lógicos. Corroborando nossas inferências, Mônica Bertoni dos Santos recorda dos conteúdos matemáticos estudados no respectivo curso, tais como “as estruturas algébricas, o monoide, grupos, semigrupos, até espaço vetorial, […]. A gente trabalhou com teoria dos conjuntos” (SANTOS, 2018).
Autores como Jean Piaget, George Papy e Zoltan Paul Dienes foram adotados como referência para ensinar às professoras-cursistas a como ensinar a moderna matemática. Importante salientar que, a teoria Psicogenética de Jean Piaget havia sido tomada, pelos proponentes do Movimento da Matemática Moderna, como uma justificativa para a modernização do ensino de matemática (GUIMARÃES, 2007).
Segundo a fala de Mônica Bertoni dos Santos acerca das aulas do curso, “a gente trabalhou com metodologias que hoje são chamadas de metodologias ativas, mas que nós chamávamos de trabalho com material concreto e as famosas Seis Etapas do Processo de Ensino e Aprendizagem, do professor Zoltan Paul Dienes” (SANTOS, 2018, informação verbal)6.
Cabe salientar que, para Zoltan Dienes, a aprendizagem em Matemática se daria em seis etapas, sendo que a primeira é a fase do jogo livre – momento de ambientação da criança com o objeto de estudo em questão, pois “[…] toda a aprendizagem equivale a um processo de adaptação do organismo ao seu meio” (DIENES, 1972, p. 2). A segunda etapa corresponde ao jogo estruturado, momento em que a criança desenvolve sua percepção acerca das características que compõe o jogo, ou seja, suas regras. A terceira etapa – jogo de dicionário ou isomorfismo, trata da identificação, por parte do aluno, das estruturas comuns aos jogos aos quais ele já praticou. A quarta etapa consiste no exercício da representação que o leva a alcançar à abstração, “[t]al representação lhe permitirá falar daquilo que a abstraiu, olhar de fora, sair do jogo ou do conjunto dos jogos, examinar os jogos e refletir a respeito deles” (DIENES, 1972, p. 5). A quinta etapa do processo de aprendizagem, trata-se da avaliação da representação construída pela criança. “Em uma representação, pode-se facilmente perceber as propriedades principais do ente matemático que se acaba de criar” (DIENES, 1972, p. 5). Nessa etapa, a criança deve ser capaz de criar e dominar uma linguagem, bem como descrever aquilo que é representado. Essa criação, domínio e capacidade de descrever tal linguagem possibilita a compreensão de um sistema de axiomas. A sexta e última etapa do processo de aprendizagem em matemática se dá após o aluno criar e testar a linguagem por ele criada. Essa etapa, a etapa teorema de sistemas, trata do momento em que o aluno passa a compreender e interagir com a linguagem matemática – estrutura matemática.
Em conformidade à fala de Mônica Bertoni dos Santos, localizamos questões de provas do respectivo curso que abordam as Seis Etapas do Processo de Ensino e Aprendizagem de Dienes. A Figura 3 ilustra uma questão que propõe uma situação de sala de aula em que é solicitado da professora-cursista o reconhecimento da etapa a qual o exercício faz referência.
Fonte: Provas do Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária, [entre 1966 e 1972], p. 2.
A Figura 4 traz o enunciado de uma questão de prova do curso, datada do ano de 1969, em que podemos observar uma tentativa de aproximação entre a teoria de Piaget e as etapas do processo de aprendizagem de Dienes.
Questões dessa natureza, que articulam a teoria de Piaget às propostas metodológicas de Dienes, constituem-se em indícios de que as organizadoras do Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária buscaram aproximar-se dos referenciais e modos de pensar o ensino e o aprendizado que circularam durante o Movimento da Matemática Moderna.
É possível perceber que a obra de Dienes, As Seis etapas do Processo de Aprendizagem em Matemática, teve um papel relevante no processo de circulação do Movimento da Matemática Moderna no IE, pois, segundo a fala de Mônica Bertoni dos Santos, esse texto foi amplamente estudado na disciplina de Didática da Matemática, pois “[…] a Léa [uma das docentes], por exemplo, trabalhava com as Seis etapas maravilhosamente bem, era ela que dava essa disciplina” (SANTOS, 2018, informação verbal)7. A memória de Mônica Bertoni dos Santos, ao salientar que era a professora Léa que ministrava a disciplina que tratava dos estudos de Dienes – As Seis etapas do Processo de Aprendizagem em Matemática –, trata-se de mais um traço, mais um indício de que o Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária tomou como uma de suas referências os estudos desse autor. Estes estudos, por sua vez pautavam-se na experimentação matemática, no exercício de operar a partir do manuseio de materiais, de modo a chegar-se na compreensão das estruturas matemáticas.
Indícios de que a metodologia adotada pelo Curso apostou na experimentação do aluno pode ser observado pela presença de enunciados de questões de provas do curso, tais como o ilustrado na Figura 5, em que se esperava das professoras-alunas o conhecimento acerca da relevância da experimentação para a compreensão dos alunos no que diz respeito aos saberes matemáticos.
Com o objetivo de viabilizar a experimentação do aluno, o uso de materiais concretos também era valorizado pelas proponentes do Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária. Em outra questão de prova do curso, Figura 6, podemos observar a presença da manipulação de materiais, com o intuito de proporcionar a autodescoberta do aluno através da experimentação. Além disso, essa questão, assim como aquela ilustrada na Figura 3, também solicita das professoras-alunas o conhecimento sobre as etapas de aprendizagem da matemática, na perspectiva de Dienes.
Conforme podemos observar na Figura 7, o uso de materiais estruturados também fazia parte das aulas do curso. Dentre esses materiais, localizamos no acervo do Laboratório de Matemática do IE, blocos lógicos e o material de Cuisenaire.
Divulgado por Dienes na década de 1950, os blocos lógicos constituem-se de 48 peças, divididas entre as seguintes características: forma (quadrados, triângulos, círculos, retângulos), cor (azuis, vermelhas, amarelas), espessura (grossas, finas), tamanho (grandes, pequenas). O material é utilizado para explorar o raciocínio e a lógica de crianças em idade escolar, uma vez que possibilita o uso de classificações, segundo as características de cada peça.
O material Cuisenaire é composto por uma série de barras coloridas de madeira, sem divisão em unidades e com tamanhos variados de modo a representarem de uma a dez unidades. Cada tamanho corresponde a uma determinada cor. A Figura 8 ilustra esse material.
A valorização desse material também é perceptível em duas questões de uma prova do curso, Figura 9, em que o uso dele é contextualizado para explorar propriedades matemáticas.
Fonte: Prova do Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária, [entre 1966 e 1972], p. 1.
Ao analisarmos as provas do curso, temos indícios de que o processo formativo das professoras-cursistas envolvia a simulação de situações de ensino, em que as professoras-cursistas eram orientadas a agir de modo a dirigir o processo de descoberta dos alunos. Neste sentido, a postura das professoras-cursistas era, de certo modo, também objeto de ensino, uma didática a ser aprendida e praticada em sala de aula.
Dinâmica do Curso
A dinâmica de trabalho desenvolvida no Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária, se deu de forma semelhante ao que ocorria nas reuniões do Círculo de Estudos que aconteciam no Laboratório de Matemática do IE. Reunião de estudos, produção de material para as aulas do curso, discussões sobre o trabalho docente. O Quadro 2 apresenta o nome das professoras que atuavam no curso e como era organizada a carga horária desse grupo de professoras.
Professora | Dia | Hora | Turma | Reunião |
Carmen Silvia S. Fagundes | Quarta | 17h - 18h30min | 722 | |
Sábado | 10h - 11h30min | 722 | ||
Segunda | 10h-12h | Lab. | Labor | |
Esther Pillar Grossi | Segunda | 10h-12h | – | Labor |
Terça | 8h15min - 10h | 741 | ||
Sexta | 8h15min - 10h | 741 | ||
Helenita de Souza Rodrigues | Segunda | 10h-12h | Labor | |
Terça | 8h15min - 10h | 741 | ||
Quarta | 17h - 18h30min | 721 | ||
Sexta | 8h15min - 10h | 741 | ||
Sábado | 10h - 11h30min | 721 | ||
Léa da Cruz Fagundes | Segunda | 10h-12h | Labor | |
Quarta | 17h - 18h30min | 722 | ||
Sábado | 10h - 11h30min | 722 | ||
Regina Rocha do Valle | Segunda | 10h-12h | Labor | |
Quarta | 17h - 1830min | 721 | ||
Sábado | 10h - 11h30min | 721 | ||
Zely Lahorgue Nunes | Segunda | 10h-12h | – | Labor |
Sábado | 8h - 10h | Anexo |
Fonte: Dados retirados do Relatório das atividades do Laboratório de Matemática, 1968, p. 3.
Observa-se no Quadro 2 que havia, na carga horária de cada professora, um espaço em que todas se encontravam no Laboratório de Matemática do IE, a saber, nas segundas-feiras entre 10 e 12 horas. Provavelmente, esse horário era destinado a reuniões, em que eram discutidas questões pertinentes ao desenvolvimento do curso.
Durante o período de existência do Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária nasce, em setembro de 1970, o Grupo de Estudos sobre o Ensino da Matemática de Porto Alegre (GEEMPA). Não foi possível identificar se houve relação entre o Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária e a criação do GEEMPA. Segundo a professora Esther Grossi, a criação do GEEMPA contou com a participação de professores que também atuaram no Laboratório de Matemática do IE, dentre eles a professora Odila Barros Xavier (GROSSI, 2018). No livro de comemoração aos 30 anos do GEEMPA, consta que
O GEEMPA foi organizado por um grupo de 50 professores presentes à assembleia de sua fundação, realizada a 10 de setembro de 1970, na sala do Laboratório de Matemática do Instituto de Educação General Flores da Cunha. Nos moldes de uma organização não governamental, sem fins lucrativos, o GEEMPA reunia profissionais decididos a investir em pesquisas e ações voltadas para a melhoria do ensino da Matemática, segundo o estatuto das suas vinculações com a formação e o desenvolvimento da inteligência, na perspectiva do construtivismo piagetiano (GEEMPA, 2000, p. 4).
O GEEMPA, amplia para além dos muros do IE os estudos e as vivências com o Movimento da Matemática Moderna dos professores fundadores e traz contribuições importantes na época, impulsionando a divulgação do Movimento da Matemática Moderna e a circulação de livros sobre o movimento. Entre os anos de 1971 e 1972 não identificamos se houveram interseções entre as atividades do GEEMPA e do Curso de Didática da Matemática Moderna para a Escola Primária.
O Curso de Didática da Matemática Moderna para a Escola Primária, como dito, foi organizado para dar um suporte às cursistas em relação à renovação do ensino de Matemática, a partir de situações de jogos, de manipulação de materiais concretos, bem como o aporte teórico em relação aos conteúdos matemáticos.
As memórias de Mônica Bertoni dos Santos nos possibilitam entender de que forma ocorreram as aulas do Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária:
Era aulas assim oh… Vou te dizer, tinha um tanto de expositiva, mas tinha muita coisa prática. Vamos dizer que elas não trabalhavam ainda uma matemática que tu começavas construindo e depois sistematizado, uma aula de trás pra frente, como se diz. Mas nós fazíamos muito trabalho em dupla, muito trabalho em dupla. A minha dupla era a Dalva Oliveira, nunca mais vou me esquecer [..]. Nós sentávamos juntas, todos os trabalhos nós fazíamos praticamente juntas, de três ou de duas. Não fazia aqueles grupos de 4. Que depois quando a Esther começou, a Esther nunca trabalhou em dupla, sempre em grupos. […] E aí elas sistematizavam no quadro. Me lembro como se fosse hoje a Janice sistematizando.
A Léa já usava mais textos, mas, por exemplo, a Janice começava trabalhando com blocos lógicos, ou com outros materiais, muita representação, muita representação. E depois elas iam para o quadro. Então, quer dizer, era uma aula expositiva dialogada, mas não era uma aula absolutamente expositiva (SANTOS, 2018, informação verbal)9.
O aprendido era experienciado nas escolas, pois, como nos coloca a professora Esther Grossi, “a maioria das professoras-alunas do Curso eram professoras primárias em exercício e, portanto, elas levavam para os seus respectivos locais de trabalho o que apreendiam no curso” (GROSSI, 2018, informação verbal)10.
Embora o curso não contemplasse a prática de estágio ou algo do gênero, atividades de caráter experimental ocorreriam em algumas disciplinas. E essas experiências, por sua vez, constituíam-se em um retorno para as professoras do curso a respeito de como a Matemática Moderna estava sendo abordada nos espaços escolares, primário e/ou pré-primário, em que as cursistas atuavam. Além disso, as professoras visitavam as cursistas nas escolas e auxiliavam no processo de planejamento das atividades pedagógicas.
Não sabemos o porquê do Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária ter sido encerrado em 1972. No entanto, percebemos que ele deixou marcas nas memórias de Mônica Bertoni dos Santos e de Esther Pillar Grossi que, através de suas respectivas participações no curso deixaram transparecer a importância da formação lá desenvolvida.
Considerações finais
O Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária ao que nos parece, foi fruto de uma ação conjunta entre o Círculo de Estudos – criado e ministrado pela professora Odila Barros Xavier, e pela professora Esther Pillar Grossi. Esse curso, estruturado de acordo com os pressupostos do Movimento da Matemática Moderna, também foi um irradiador desse movimento no Rio Grande do Sul, uma vez que, percebemos que alguns personagens que se fizeram presentes no respectivo curso, envolveram-se também na criação e atuação no GEEMPA, sendo a professora Esther Pillar Grossi, a porta-voz. Além disso, de acordo com as memórias de Mônica Bertoni dos Santos, esse curso foi, para ela e certamente para muitas de suas colegas, o primeiro contato que as professoras primárias tiveram com os conteúdos e os métodos de ensino abordados pelo Movimento da Matemática Moderna.
Podemos perceber que as metodologias de trabalho propostas pelo Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária propiciaram às cursistas que se aproximassem dos pressupostos do Movimento da Matemática Moderna, tanto em relação aos conteúdos matemáticos, bem como das metodologias de ensino.
A presença dos estudos de Jean Piaget e de Zoltan Dienes, bem como a valorização de atividades com materiais concretos e de jogos, nos permitem conjecturar que os pressupostos do Movimento da Matemática Moderna estavam amplamente contemplados pelas práticas pedagógicas realizadas no respectivo curso.
Por fim, no diálogo com os documentos do acervo do Laboratório de Matemática da instituição e as entrevistas, constatamos que o Curso de Didática da Matemática Moderna na Escola Primária contribuiu para a divulgação e legitimação da Matemática Moderna no Rio Grande do Sul.