América Latina, espaço cultural e territorial de emergência da invenção coletiva da Educação Popular, nos interpela através de acontecimentos que confirmam as contradições da vida contemporânea que movimentam a história e nos lembram, mais uma vez, que os coletivos sociais e políticos continuam com plena potência de mobilização e resistência. Ante a afirmação interessada da finalização dos governos progressistas na região por parte de grupos que insistem nessa sentença condenatória, as eleições democráticas da Argentina, assim como as massivas manifestações populares do Equador, do Chile e da Bolívia, no caso deste último país diante do recente golpe de estado, demonstram que a força popular e democrática de nossa região ainda resiste e muitas vezes consegue dar voz e rumo a uma outra direção, bem distinta da marcada pelos governos políticos que encarnam na atualidade o ideário neoliberal e neoconservador em nossos países.
A imagem que circulou a fim de outubro deste ano nas redes sociais digitais, logo das eleições nacionais da Argentina, e que mostra a uma querida Mafalda abraçando à protagonista brasileira da Turma da Mônica, acompanhado esse gesto corporal carinhoso pela palavra “melhorará”, em alusão às possibilidades de uma mudança na difícil situação política brasileira, nos representa. Isso somos, isso é o sentimento fraterno e amoroso que encarna a solidariedade entre povos latino-americanos, espaço cultural e sociopolítico que produziu e continua recriando a Educação Popular. Apesar de intensas tentativas, nos mais de quinhentos anos que distam da brutal colonização que marcou o encontro trágico entre os povos originários deste continente e os colonizadores europeus, no século XV, esse sentimento de solidariedade latino-americana permanece, resiste e cresce. E, justamente, “A EJA em contextos de resistências e lutas: a garantia do(s) direito(s) à educação”, foi o título escolhido para a quinta edição do Encontro Internacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (V ALFAeEJA).
Nessa oportunidade, o encontro foi realizado em Porto Alegre/RS, do 12 ao 14 de novembro de 2018, com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que permitiu a participação de reconhecidos palestrantes nacionais e estrangeiros, e contou com uma Pré-abertura realizada os dias 22 e 23 de outubro, em Salvador, na Universidade Estadual da Bahia (UNEB), instituição criadora desse evento, que atualmente integra a agenda do campo educacional brasileiro.
Este dossiê é um dos resultados do V ALFAeEJA e integra o importante conjunto de publicações geradas a partir desse espaço1. A linha que articula e dá coerência aos trabalhos que aqui se apresentam se caracteriza pelo intenso diálogo entre a perspectiva da Educação Popular e a EJA. Assim, este número da Revista Educação inicia com dois artigos que analisam em perspectiva histórica a situação atual da EJA na Argentina e no Brasil: “Educación de Jóvenes y Adultos en Argentina. Historia reciente, sujetos, coyuntura y desafios”, de Esther Levy e “A Educação de Jovens e Adultos da classe trabalhadora sob o fogo cruzado da Pedagogia do Medo”, de Sonia Maria Rummert Correio. Ambos se derivam das conferências de fechamento e abertura desse evento.
Os cinco artigos seguintes reúnem a totalidade das palestras proferidas no espaço dedicado a retomar as contribuições de uma das obras de maior reconhecimento internacional de Paulo Freire, A Pedagogia do Oprimido, cinquenta anos depois de sua aparição. As leituras analíticas, simultaneamente retrospectivas e atuais desse livro, trazem importantes aportes para pensar a EJA. Assim, os autores desses artigos provocam reflexões e convidam por meio de suas ideias a revisitar essa obra, que influenciou e continua penetrando o pensamento educacional latino-americano. Conceição Paludo, Magda Gisela Cruz dos Santos e Paulo Eduardo Dias Taddei, em “Atualidade brasileira: a democracia substantiva e a Pedagogia do Oprimido” mergulham nas categorias freirianas de “opressão” e “educação libertadora” demonstrando as suas pertinências para analisar criticamente a conjuntura atual brasileira. Danilo R. Streck e Carolina Schenatto da Rosa, em “A Pedagogia do Oprimido como referência para a EJA e para a Educação Popular”, problematizam essa obra como referência permanente para a Educação Popular e para a EJA. Ivanilde Apoluceno, em “50 anos da Pedagogia do Oprimido: o legado de Paulo Freire na educação de jovens e adultos”, dá visibilidade à herança e à vitalidade intelectual do pensamento freiriano e, Valdo Hermes de Lima Barcelos, em “Pedagogia do Oprimido – um grito manso e de esperança”, reflete sobre a necessidade de aprofundar o estudo e a compreensão das ideias de Freire, no contexto brasileiro de surgimento de visões neoconservadoras que atacam o seu nome e tentam desprestigiar a sua obra.
Os artigos que dão continuidade a esse dossiê estão dedicados tanto a temas que registram uma importante acumulação de publicações, quanto àqueles que podem ser considerados emergentes. Tânia Regina Dantas, em “Formação docente em EJA: o que dizem os/as autores/as de artigos”, traça as tendências temáticas e teórico-metodológicas da produção acadêmica sobre a formação docente na EJA. Maria da Conceição Alves Ferreira e Julimar Santiago Rocha, em “As contribuições das pesquisas acadêmicas sobre Inclusão Escolar e Educação de Jovens e Adultos”, analisam o estado da investigação nos temas da inclusão e da EJA. Patrícia Lessa Santos Costa e Ediênio Vieira Farias, em “Gestão educacional compartilhada das políticas de Educação de Jovens e Adultos”, se debruçam sobre o estudo da complexidade da participação na gestão das políticas de EJA na rede municipal de ensino de Bom Jesus da Lapa, Bahia. Elenice M. C. Onofre, Jarina R. Fernandes e Ana Claudia F. Godinho, em “A EJA em contextos de privação de liberdade: desafios e brechas à Educação Popular”, abordam as tensões evidenciadas por essa perspectiva na EJA que acontece em espaços prisionais. Finalmente, Juliana da Cruz Mülling e Simone Valdete dos Santos, em “A presença de estudantes indígenas na educação profissional e tecnológica”, dão visibilidade aos modos de acesso e acolhimento aos estudantes indígenas que têm procurado pela educação profissional na Rede Federal do Estado do Rio Grande do Sul, a partir de um mapeamento inicial das instituições próximas a terras indígenas demarcadas.
É neste movimento de pesquisa e reflexão sobre o conhecimento acumulado e de renovação de temas, articulado à necessidade de continuar pensando as práticas educacionais, que o campo da EJA se renova e se atualiza. O V ALFAeEJA propicia isso. Ao participarmos do evento, pensamos, discutimos, aprendemos, trocamos e, crescemos intelectualmente, e também nos encontramos e compartilhamos experiências para continuar construindo a EJA e a Educação Popular.
Desejamos a todos uma boa leitura e agradecemos aos autores envolvidos na construção desse dossiê.