O campo da educação superior tem atraído atenção sem precedentes em quase todo o mundo. Ora tomadas como as engrenagens do avanço tecnológico, ora criticadas pelo seu caráter elitista, as universidades se multiplicam, o que revela o quanto se espera dessa instituição secular (Collini, 2012). Novas demandas e funções são postas à educação superior na sociedade do conhecimento na medida em que seus serviços se tornam pilares do desenvolvimento (McCowan, 2019; Di Nauta et al., 2018). As universidades, assim, têm sido demandadas a mudar e a inovar, visando à contribuição para o crescimento econômico e a criação de riquezas a partir da formação profissional e da investigação científica.
Ao passo em que crescem as críticas à tradicional universidade "torre de marfim", também ganha força a reivindicação por uma universidade mais porosa às necessidades do contexto externo, que se envolva com agilidade nos problemas do mundo prático e forneça tecnologias ao setor produtivo (Etzkowitz et al., 2000; Coelho & Menezes, 2020, McCowan, 2019).
A Agenda 2030, adotada em 2015 a partir da mobilização da Organização das Nações Unidas, se estrutura em um conjunto de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), os quais mencionam explicitamente, pela primeira vez, o papel e a responsabilidade da educação superior (United Nations, 2015). Isso contribui para reforçar a importância de uma maior aproximação das universidades com a sociedade.
No contexto da crítica à universidade distante da sociedade emergiu o conceito da hélice tríplice, que diz respeito às relações entre universidades, indústrias e governos para o desenvolvimento de estratégias de inovação, de modo a gerar crescimento socioeconômico com base no conhecimento (Etzkowitz & Zhou, 2017). Há, também, propostas de conciliação desse modelo de inovação com a perspectiva do desenvolvimento sustentável, no contexto dos ODS (Zhou et al., 2019).
Ganham espaço, ainda, as ideias de universidade empreendedora e de empreendedorismo acadêmico (Clark, 1998; Klofsten et al., 2019). Trata-se de uma tendência observável em âmbito mundial, cujo engajamento por parte dos países ou regiões, contudo, precisa ser analisado à luz das idiossincrasias e desafios de ordem local. Ao se analisar a perspectiva da universidade empreendedora no cenário brasileiro, cabe considerar a extraordinária expansão do acesso ao nível pós-secundário de ensino, sendo que o grande responsável por isso tem sido o setor privado, mais especificamente, as instituições de caráter mercantil (Fioreze, 2023).
No final dos anos 1990, a educação superior brasileira foi se moldando em uma perspectiva de diversificação nas formas de organização acadêmica e categoria administrativa. A oferta privada foi incorporada como forma de induzir o crescimento das taxas de acesso. O ingresso de novos players – as instituições de educação superior (IES) privadas mercantis – desencadeou um acirramento da competição junto às sem fins lucrativos tradicionais, como as confessionais, as filantrópicas e as comunitárias, que até então operavam praticamente sem concorrência. Tais instituições foram historicamente estruturadas em uma realidade em que o comportamento empresarial era pouco expressivo e, de certa forma, condenado (Fioreze & McCowan, 2018; Schmidt, 2008).
É nesta conjuntura que se desenha, no âmbito da pesquisa universitária, um duplo desafio, o qual inaugurou as primeiras décadas desse século nas universidades privadas sem fins lucrativos brasileiras: de um lado, as demandas por inovação, no sentido da produção de conhecimento aplicado, útil ao setor produtivo, em uma perspectiva de aproximação universidade-empresa; de outro, a manutenção da ideia e concepção de universidade tradicional, com pesquisa desinteressada e valores acadêmicos.
O presente artigo analisa o comportamento de algumas instituições sem fins lucrativos brasileiras diante do novo contexto que se apresenta. Partindo do questionamento: "Quais as tendências na condução da pesquisa nas universidades comunitárias do sul do Brasil, diante de um cenário de novas exigências em termos de inovação e aproximação com as demandas do setor produtivo?", estuda os tensionamentos no âmbito desse tipo específico de instituição sem fins lucrativos, dada a sua expressividade dentro do setor privado, com aproximadamente metade das matrículas nos dois estados do extremo sul do Brasil.
Inovação, hibridismo e porosidade: a universidade em transformação na sociedade do conhecimento
Conforme Castells (2005), o processo global em voga se caracteriza como uma transformação estrutural, em que o uso de tecnologias de informação e comunicação generaliza-se e o conhecimento passa a ser cada vez mais relevante, ganhando posição estratégica, de modo a suplantar o capital físico na produção de riquezas. Com a emergência da globalização e da sociedade do conhecimento, a educação superior se torna ainda mais importante para um conjunto de aspectos, como a ampliação dos ganhos privados, o aumento da eficiência e da produtividade, a transferência de tecnologia, a geração de inovação e impacto, o desenvolvimento sustentável e a consolidação das instituições políticas. A relação desses objetivos, que sustentam o desenvolvimento econômico e social, levou ao imperativo da diversificação e expansão da educação superior em muitos países (Altbach et al., 2017). Nesse contexto a universidade, historicamente responsável pela produção e disseminação do conhecimento, se depara com novas funções e exigências (Collini, 2012).
A universidade tradicional, alheia ao seu entorno, é crescentemente criticada como uma torre de marfim e, paralelamente, demanda-se uma educação superior mais porosa às necessidades do contexto externo, capaz de inovar em sinergia com as necessidades do setor produtivo (Doin & Rosa, 2020; Coelho & Menezes, 2020). Fala-se em uma "segunda revolução acadêmica", a partir da qual a universidade se torna empreendedora, integrando a geração de conhecimento ao desenvolvimento, por meio de processos interativos que envolvem universidades, empresas e governos. Isto traz à tona as ideias de inovação e transferência de tecnologia, além de novos formatos organizacionais, tais como as incubadoras e os parques tecnológicos (Audy, 2017; Etzkowitz & Zhou, 2017).
Slaughter e Rhoades (2004), analisando o cenário, reconhecem a emergência do que denominam de "capitalismo acadêmico na nova economia". Compreendem que, no transcurso de uma economia industrial para uma economia assentada no conhecimento, as instituições de educação superior passam a desempenhar papel preponderante e as fronteiras entre universidade, mercado e Estado tornam-se menos nítidas. Neste processo, as universidades vivenciam o deslocamento de um regime de produção do conhecimento do bem público – caracterizado pela valorização do conhecimento como um bem público associado às demandas da cidadania e predominante nas universidades antes das mudanças societárias decorrentes do contexto da economia do conhecimento – para o regime de produção do conhecimento do capitalismo acadêmico. Neste, o conhecimento é tido como matéria-prima comercializável e a pesquisa é valorizada desde essa perspectiva. As universidades assumem comportamentos de mercado, mas também há medidas adotadas pelo Estado, tais como políticas de propriedade intelectual e registros de patentes, que abrem caminho para que o capitalismo acadêmico se instaure.
Autores como Mowen (2000) e Jongbloed (2015), por sua vez, trabalham com a compreensão de que a universidade que emerge nesse novo contexto é uma universidade híbrida. Essa é, para Mouwen (2000), a universidade do século XXI. As universidades se tornam organizações híbridas na medida em que, diante da redução da interferência governamental na condução e financiamento da educação superior, são impelidas a buscar novas fontes, estratégias e relações que as aproximam do mercado, o que está diretamente relacionado com o estímulo à inovação e às parcerias com o setor produtivo (Mowen, 2000; Jongbloed, 2015).
Jongbloed (2015) destaca, nesse sentido, a proeminência da terceira missão da universidade, colocada ao lado do ensino e da pesquisa, já tradicionais. A terceira missão é uma designação utilizada especialmente no contexto universitário europeu, para caracterizar as novas exigências ligadas à inovação e à transferência de conhecimento e, nesse sentido, à nova função da educação superior no fornecimento de apoio tecnológico para o desenvolvimento. Conforme o autor, a terceira missão é incentivada por meio de políticas governamentais e conduz as universidades ao desenvolvimento de negócios ligados ao conhecimento, os quais geram retornos financeiros. A busca por rendas adicionais e novas fontes de financiamento tem sido um motor para a adesão das IES a essa tendência, já que os subsídios governamentais têm sido reduzidos em todo o mundo.
O chamado processo de hibridização produz efeitos no que tange a uma redefinição das instituições universitárias tradicionais, de pesquisa (Jongbloed, 2015). Nesse sentido, cabe recorrer ao enquadramento de McCowan (2019), que propõe que as IES sejam compreendidas a partir de três dimensões-chave: valor, função e interação. Isto é, as IES se caracterizam (a) em termos de justificativa para sua existência, o que envolve o valor atribuído ou que motiva a universidade – aí reside a ideia de valor da educação superior; (b) no que diz respeito ao leque de atividades que desenvolvem e seus papéis, como por exemplo oferta de ensino, de pesquisa, de serviços, etc. – onde se encontra a dimensão da função da universidade; e (c) no que respeita a seus níveis de porosidade com o mundo exterior – isso representa a dimensão da interação. Interessa, aqui, especialmente, a última dimensão.
Observa-se que mesmo as instituições tradicionais de pesquisa, historicamente menos porosas, são agora chamadas a ampliar a interação com o mundo exterior. No contexto da crítica à universidade como torre de marfim, mais porosidade pode ser positivo, na medida em que significa maior sensibilidade às necessidades da comunidade, representando, assim, aderência às novas exigências postas à educação superior no cenário contemporâneo.
A busca por maior porosidade com a sociedade por meio do investimento em pesquisas em parceria com o mercado, capazes de gerar retornos financeiros, consiste, segundo Jongbloed (2015), em um processo de interação permeado por barreiras e tensões, uma vez que as dinâmicas internas de campos como mercado e academia e as formas de recompensa valorizadas em cada um são distintas. Por exemplo, a lógica da pesquisa acadêmica é a da publicização dos achados, enquanto a lógica industrial é a de mantê-los em segredo pelo maior tempo possível. Ainda, a academia tende a não entender a comercialização da pesquisa como parte de seu trabalho e, somado a isso, muitos pesquisadores das universidades não possuem as habilidades empreendedoras para tal; outro obstáculo está ligado à agenda de pesquisa, ou seja, enquanto existe o tradicional interesse das universidades no desenvolvimento de pesquisa básica, há também o interesse do setor econômico por pesquisa aplicada, cujos benefícios são de mais fácil apropriação, gerando um tipo de substituição que ameaça a produtividade da pesquisa e coloca em risco sua capacidade de inovação no longo prazo.
Collini (2012) e McCowan (2019) trazem argumentos que seguem em direção parecida. Collini (2012) identifica um paradoxo entre a natureza da instituição universitária, de um lado, e as necessidades da sociedade, de outro. Isto é, as universidades podem ser inevitavelmente problemáticas para suas sociedades, pois, por natureza, são compelidas a extrapolar qualquer enquadramento de funções que a sociedade pretenda definir. E é exatamente nisso que reside "uma das maiores forças da universidade e uma das chaves para sua notável longevidade", qual seja, "ao servir a outras necessidades, isto simultaneamente fornece um ambiente que dá suporte para a busca incessante da mente humana pelo conhecimento pleno" (2012, p. 27). Então, o caráter aberto e inacabado das atividades fundantes da instituição universidade pode levar a formas de investigação contrárias ou distintas dos objetivos daqueles que as financiaram ou apoiaram.
McCowan (2019), por sua vez, reconhece que a sobrevivência da instituição universidade depende da preservação de certo grau de autonomia com relação às demandas da indústria e do governo. Isso leva a refletir que a "agenda do impacto", cada vez mais em voga, mina a prática da investigação, uma vez que a exigência instrumental de produzir impacto pode eliminar uma pesquisa mais livre, cujos resultados não são previsíveis ou imediatamente aplicáveis – ou necessariamente aplicáveis. Argumenta, assim, que um nível de insulamento da universidade se faz necessário, para permitir que ela faça o que lhe é central, no sentido de que se preserve o espaço da reflexão profunda, essencial para fazer avançar a ciência.
Soma-se, ainda, a observação de Stiglitz (1999), ao discutir o bem público e o bem privado na educação superior. Segundo ele, há determinados tipos de conhecimento que não poderão ser apropriados privadamente nem patenteáveis, como, por exemplo, pesquisas básicas, investigações que tratam do desenvolvimento social e econômico ou na área das humanidades (Stiglitz, 1999, p. 318). Trata-se de conhecimentos que não são (e talvez nunca venham a ser) protegidos por um regime de propriedade intelectual e, para que sejam mantidos, precisam de suporte público, pois podem deixar de existir caso só sejam reconhecidas como válidas aquelas pesquisas que geram um produto comercializável ou um resultado aplicável.
Assim, muito embora a exigência por maior porosidade esteja sendo assumida pelas universidades, faz-se necessária certa medida de cautela. McCowan (2019) alerta que, em um cenário de porosidade excessiva ou hiperporosidade – exigência que muitas vezes parece estar por trás das críticas à universidade –, as fronteiras entre sociedade e universidade são, em última instância, levadas a desaparecer. A hiperporosidade, um risco associado aos processos de mercantilização e comercialização, pode levar a própria instituição universidade a desintegrar-se. A autonomia – que nesse caso significa um grau de insulamento – é fundamental, na medida em que garante independência, tanto do controle do Estado, quanto do controle do mercado.
A condução da pesquisa nas universidades comunitárias: quais tendências?
As instituições comunitárias de educação superior (ICES) caracterizam-se como privadas sem fins lucrativos. Trata-se de instituições de direito privado, com finalidades públicas, cuja principal fonte de financiamento reside no pagamento de mensalidade por parte dos estudantes. As ICES de caráter regional, objeto desse estudo, surgiram na segunda metade do século passado, predominantemente nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e representam o resultado da mobilização de suas comunidades regionais, com o apoio de lideranças e entidades locais, em prol da interiorização da educação superior em um cenário de ausência do poder público. Organizadas em estruturas multicampi, possuem como marca de origem o compromisso com o desenvolvimento social, econômico e cultural das comunidades nas quais estão inseridas. (Schmidt, 2010; Neves, 1995; Vanucchi, 2013).
Essas instituições, porém, entram em crise a partir dos anos 2000, com a chegada das IES privadas mercantis como novos players, o que levou ao acirramento da competição e à busca por reposicionamento no novo mercado da educação superior (Bertolin & Dalmolin, 2014; Morosini & Franco, 2006). Assim, diante de um cenário marcado por novas exigências de aproximação com as demandas do setor produtivo por meio da inovação, e pela crise de financiamento acirrada pela concorrência mercantil, é pertinente que se compreendam quais são as tendências assumidas na condução da pesquisa nas universidades comunitárias do sul do Brasil.
Isto posto, são apresentados e analisados, na sequência, os dados oriundos de investigação de campo, desenvolvida entre 2016 e 2017, junto a uma amostra composta por quatro universidades comunitárias regionais do Rio Grande do Sul, de um total de nove. Os dados foram coletados por meio de entrevistas aplicadas com doze sujeitos que, em seu cotidiano, pensam e desenvolvem a gestão de suas universidades. Assim, em cada instituição foram entrevistadas três pessoas, sendo dois gestores e um pesquisador sobre o tema das IES comunitárias. A definição da quantidade de entrevistados considerou os critérios de complementaridade e reincidência das informações. A Tabela 1 apresenta a caracterização geral dos entrevistados, identificados por meio de numeração – de 1 a 12.
Universidade comunitária regional | Características dos 3 entrevistado de cada IES | ||
---|---|---|---|
Universidade 1 | Entrevistado 1: Professor gestor da administração central | Entrevistado 2: Professor gestor de departamento, área ou curso | Entrevistado 9: Professor não gestor, com trajetória em pesquisas sobre universidade comunitária |
Universidade 2 | Entrevistado 3: Professor gestor da administração central | Entrevistado 4: Professor gestor de departamento, área ou curso | Entrevistado 10: Professor não gestor, com trajetória em pesquisas sobre universidade comunitária |
Universidade 3 | Entrevistado 5: Professor gestor da administração central | Entrevistado 6: Professor gestor da administração central | Entrevistado 11: Professor não gestor, com trajetória em pesquisas sobre universidade comunitária |
Universidade 4 | Entrevistado 7: Professor gestor da administração central | Entrevistado 8: Professor gestor da administração central | Entrevistado 12: Professor não gestor, com trajetória em pesquisas sobre universidade comunitária |
Fonte: Sistematização dos autores.
O tratamento dos dados referencia-se na análise de práticas discursivas proposta por Spink e Medrado (2000). Spink e Medrado (2000, p. 45) definem práticas discursivas como "linguagem em ação", ou seja, "as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas". Significa compreender que os discursos acontecem em determinados contextos, em relação aos quais as pessoas se posicionam. Os discursos dos sujeitos indicam tanto as regularidades e os consensos, quanto a variabilidade e a polissemia, o que, porém, não impede que se reconheçam tendências à hegemonia.
Inicialmente cabe demarcar que os dados evidenciam, de forma bastante clara, que os caminhos que a pesquisa percorre na universidade comunitária estão diretamente relacionados com o cenário desenhado pela escassez dos recursos financeiros. Nesse sentido, é representativa a fala do Entrevistado 8 que, reconhecendo que o grande desafio atual é o financiamento, conclui que "as IES comunitárias precisam encontrar outros caminhos para financiar a pesquisa" (Entrevistado 8, comunicação pessoal, 28 ago. 2016). A necessária busca por novas fontes converge com uma tendência de aproximação da universidade comunitária com o setor produtivo, sendo possível perceber esforços nessa direção em todas as IES estudadas. As manifestações abaixo são elucidativas dessa tendência:
Então nós estamos direcionando, também, a pesquisa para a resolução de problemas mais concretos das empresas. Para que se busque sustentabilidade também …, nós estamos buscando parcerias com as empresas para que o pesquisador também se insira na pesquisa, que busque um retorno imediato concreto, seja através de uma patente que possa ser comercializada ou o desenvolvimento de uma pesquisa de um problema concreto de uma empresa, e que ele possa se financiar nesse projeto. Vamos migrar para isso. (Entrevistado 7, comunicação pessoal, 2 jun. 2016).)
… então uma empresa dá 1 milhão de reais e os professores fazem a pesquisa, no fundo é venda de serviços. Tem até patente e fazem tudo, e até tem uma política de que esse professor até ganha um pequeno percentual do ganho daquele projeto, aumenta melhor o salário, do dinheiro que entra, é até um estímulo …. E a reitoria pressiona, evidentemente, que a pesquisa traga dinheiro também para as instituições. (Entrevistado 9, comunicação pessoal, 6 jun. 2016)
Fica evidente, nas entrevistas, a crença de que a celebração de convênios com empresas e governos para a realização de pesquisas direcionadas às necessidades desses parceiros tornará a atividade autossustentável nas universidades comunitárias, o que corrobora a análise de Jongbloed (2015) de que uma das principais motivações para que a universidade se torne empreendedora é a busca por novas fontes de receitas.
A narrativa apresentada nas entrevistas torna perceptível o quanto os parques tecnológicos se delineiam como uma nova forma de estabelecer relações com a sociedade e gerar impacto, correspondendo com isso às exigências por uma universidade mais porosa (McCowan, 2019) e constituindo-se, na expectativa dos entrevistados, como estratégia de diferenciação diante da concorrência. Os depoimentos que seguem são representativos disso:
Nosso compromisso é comunitário, é o público, essa é a nossa vocação. Acho que as demandas de empresas através de parques tecnológicos, é uma novidade dos últimos anos, é uma boa novidade de um modo geral. … Eles vão demorar a amadurecer, não é um processo rápido, mas eu acho que esta é uma novidade. (Entrevistado 10, comunicação pessoal, 8 jun. 2016)
… o movimento de estar participando do Parque Científico Tecnológico, parceria que fizemos com o governo do estado … Eu entendo que tudo isso vem dentro de um conjunto que nos coloca em um cenário diferenciado perto das instituições meramente mercantilistas, elas não oferecem isso. (Entrevistado 5, comunicação pessoal, 23 maio 2016)
Os discursos dos entrevistados, no geral, revelam diversas nuances da nova tendência. São recorrentes, em suas falas, menções a parcerias universidade-empresa-governo, ao incentivo à criação de patentes e construção de parques tecnológicos, aos incrementos salariais para pesquisadores, ao estímulo à capacidade de inovação da comunidade acadêmica e ao desenvolvimento do espírito empreendedor dos professores e estudantes. A introdução da nova terminologia na gramática da universidade comunitária remete à lógica do capitalismo acadêmico na nova economia, expressa por Slaughter e Rhoades (2004), a qual passa a ser parte da própria forma de pensar a universidade.
Nesse mesmo sentido, identifica-se a assimilação de um ethos da pesquisa direcionada para o mundo prático e capaz de gerar resultados tangíveis, em detrimento de pesquisas mais descompromissadas, as quais, em um contexto de crise, passam a ser vistas com certa desconfiança, como expressa a fala a seguir: "Talvez, no período passado, o pesquisador teria o seu projeto de pesquisa e poderia passar todo o período dele, dentro da instituição, olhando apenas para o seu projeto de pesquisa, sem que isso trouxesse nenhum resultado à instituição" (Entrevistado 5, comunicação pessoal, 23 maio 2016). O entrevistado 10 corrobora este olhar. Segundo ele: "Aliás, não sei se pesquisa movida pela curiosidade ela é importante, eu tenho minhas dúvidas porque há devaneios. A curiosidade muitas vezes permite que a pesquisa não tenha compromisso com nada" (Entrevistado 10, comunicação pessoal, 8 jun. 2016).
Também se observa que as parcerias de cooperação não são desencadeadas por decisões unilaterais, exclusivas das ICES, ou bilaterais, envolvendo universidade e empresa. Há um esforço paralelo, com políticas governamentais que induzem as parcerias. Nesse sentido, é comum encontrar, nos discursos dos entrevistados, falas referindo-se a "parcerias com o governo para a instalação de parques científico-tecnológicos" (Entrevistado 10, comunicação pessoal, 8 jun. 2016), "editais públicos para oferta de recursos para pesquisas em áreas estratégicas de desenvolvimento" (Entrevistado 4, comunicação pessoal, 13 set. 2016), ou "políticas de fomento que fazem com que as IES exijam do pesquisador uma postura mais proativa" (Entrevistado 5, comunicação pessoal, 23 maio 2016), entre outras.
Muito embora a inovação e os parques tecnológicos sejam colocados, na opinião dos entrevistados, como uma alternativa para os problemas de financiamento e de posicionamento das IES comunitárias, eles também reconhecem que há obstáculos importantes. Nesse sentido, as falas apontam barreiras cuja origem encontra-se no fato de que se está tratando de lógicas distintas, dadas as diferentes naturezas das instituições envolvidas. Nesse sentido, parte dos entrevistados levanta esta percepção, demonstrando a desarmonia que existe entre, de um lado, o perfil empresarial e, de outro, o perfil dos pesquisadores na universidade comunitária:
Muitas vezes os nossos pesquisadores não têm perfil para se aproximar de empresas, os tempos são diferentes, as expectativas das empresas às vezes são de resultados rápidos. Então tem a ver com o perfil do empresário que vem propor ou que é sensível à ideia de aproximação, e tem também o perfil dos professores. Acho que estamos gatinhando um pouco nisso, temos iniciativas, mas limites, limites claros nessa aproximação. (Entrevistado 10, comunicação pessoal, 8 jun. 2016)
Eu sei da dificuldade que é isso dentro do espaço da universidade, porque na maioria dos casos o professor não é empreendedor, e se ele não é empreendedor, ele não consegue passar ao seu aluno exatamente, despertar nele o sentimento do espírito empreendedor. Então isso me parece que está faltando, é algo que nós precisamos correr atrás … (Entrevistado 5, comunicação pessoal, 23 maio 2016)
O depoimento a seguir, por sua vez, coloca ainda outra nuance das dificuldades da academia, relacionada à dimensão burocrática e estrutural para que a transferência de conhecimento possa fluir, destacando os desafios jurídicos e contábeis existentes:
… nós estamos com uma dificuldade de natureza jurídica. A gente não sabe exatamente como fazer isso. Existem empresas que querem bancar, inclusive, o próprio estudante, mas querem fugir da criação de vínculo. E nós estamos, inclusive, contatando com outras instituições como a X, que é bastante avançada nesse sentido…. Então, o nosso pessoal da contabilidade acha muito difícil de como contabilizar isso sem haver incidência de tributos nisso. Então isso de alguma forma nos complica, embora existam interesses em se formalizar isso. (Entrevistado 3, comunicação pessoal, 27 jun. 2016)
São constatações que corroboram a percepção de Jongbloed (2015) a respeito das barreiras existentes no processo de integração entre a lógica acadêmica e a lógica empresarial. Apesar da tendência de investimento na pesquisa aplicada, para a qual caminha a pesquisa nas universidades comunitárias, os dados também evidenciam preocupação, por parte de alguns entrevistados, com a agenda da pesquisa nas IES. Apresentam-se, assim, discursos que reconhecem a necessidade de preservação de uma pesquisa mais livre, básica e não necessariamente comercializável, como condição para salvaguardar a própria ideia de universidade. As falas a seguir representam essa preocupação:
… há alguns anos, observamos também a pesquisa livre convivendo com a pesquisa induzida, convertendo-se nesse último caso, num serviço e num produto de venda que a universidade disponibiliza ou procura para sua manutenção. Esse último caso é evidenciado nos enfoques crescentes nos parques tecnológicos e na produção de inovação, muito mais associados às hard sciences do que nas sociais, sociais aplicadas e humanas … (Entrevistado 8, comunicação pessoal, 28 ago. 2016)
Isso tem seu lado positivo, é importante, porque pesquisas aplicadas, quando bem-feitas, elas podem trazer e têm trazido historicamente resultados indispensáveis…. Mas o problema é que isso é feito dentro do próprio modelo da economia global de mercado e que tem, entre outros, dois grandes inconvenientes aí, ou dois grandes limites, um deles é que é feito dentro da lógica da acumulação de capital…. não vai ter um investimento numa pesquisa em que o empresário, ou quem investir, não vá querer tirar mais do que investiu. Então não há uma gratuidade ali nesse sentido, é feito dentro desse modelo aqui, e aí vai predominar mais onde? É a lógica do dinheiro, onde se investe e onde vai ter mais retorno. (Entrevistado 11, comunicação pessoal, 2 maio 2016).
Os depoimentos anteriores trazem o problema do tipo de conhecimento que tende a ser privilegiado pela pesquisa comercializável, que exclui os conhecimentos que não podem ser apropriados privadamente nem patenteáveis ou, ainda, nas palavras de um entrevistado, um tipo de conhecimento "que não tenha compromisso com nada" (Entrevistado 10, comunicação pessoal, 8 jun. 2016). Esses, para que sejam mantidos, precisam ser assumidos por uma perspectiva pública, sob pena de sua supressão em ambientes nos quais são priorizadas pesquisas que geram algum tipo de produto comercializável, de resultado aplicável ou de impacto (McCowan, 2019; Stiglitz, 1999). Nesse sentido, cabe citar Collini (2012), que chama atenção para as amarras que a pesquisa comercial coloca na liberdade essencial da instituição universidade, bem como McCowan (2019), que alerta para os riscos de uma porosidade excessiva entre universidade e sociedade, o que, em última instância, compromete a sobrevivência na universidade como tal.
Uma saída sensata, no caso das universidades comunitárias, parece estar no conselho de um entrevistado, que recomenda localizar-se "fora dos extremos" (Entrevistado 8, comunicação pessoal, 28 ago. 2016), em um equilíbrio que acolhe ambas as perspectivas de pesquisa – básica e aplicada. Esta pode ser uma alternativa saudável para a preservação da própria universidade comunitária, na medida em que garante um certo nível de insulamento que coloca freios no processo de crescente porosidade.
A ideia de se transformar em uma universidade empreendedora, que inova e que transfere tecnologia ao setor produtivo por meio de parcerias que geram retorno financeiro, tem sido uma espécie de "canto da sereia" para a universidade comunitária, no sentido de constituir-se em uma saída altamente atraente, facilmente acolhida pelos que pensam e conduzem essas instituições, que têm a premência de reinventar o modelo para dar a volta por cima na crise.
Uma vez que as IES comunitárias têm como marca de origem o compromisso com o desenvolvimento da comunidade regional, a criação dos parques tecnológicos e a ideia de se estabelecer parcerias para transferência de tecnologia junto ao setor produtivo caem como uma luva no atual cenário, constituindo-se como nova estratégia de relacionamento com a comunidade. Pode-se afirmar, assim, que a natureza mais porosa das instituições comunitárias desponta como um elemento facilitador. Todavia, há de se considerar que, nesse caso, se está falando de uma "comunidade" bastante restrita, correndo-se o risco de se prescrever uma submissão ao mercado que conduz à hiperporosidade, o que acaba por fragilizar excessivamente a autonomia da universidade e, nesse sentido, por apagar a identidade do modelo comunitário.
Conclusões
As universidades comunitárias seguem uma tendência observada internacionalmente e, nesse sentido, apresentam um percurso de aproximação com a pesquisa comercializável, o que é visto como forma de responder ao desafio do financiamento, tão premente no modelo comunitário diante do acirramento da concorrência.
Dentro da tendência posta, os chamados parques científicos e tecnológicos passam a ser uma novidade nas universidades analisadas, o que precisa ser compreendido desde a sua inter-relação com um fenômeno mais complexo, marcado pela indução de políticas públicas a esse tipo de prática junto às IES e empresas, o que denota a influência do contexto externo. Em um cenário de crise, como o vivenciado contemporaneamente, as parcerias e investimentos realizados para a instalação dos parques revelam esses espaços como a "menina dos olhos" do modelo comunitário, na medida em que carregam a promessa de uma guinada inovadora das universidades, com a pretensa vantagem de ser, ao mesmo tempo, possibilidade de diferenciação face à concorrência no mercado e solução para os desafios do financiamento.
Cabe destacar, ainda, o reconhecimento das IES de que a aproximação universidade-empresa-governo, uma tendência global, pode significar, no caso das IES comunitárias, uma atualização de seu compromisso originário, de contribuir para o desenvolvimento das sociedades locais.
Embora exista, como demonstrado, um deslocamento para uma pesquisa de caráter comercial nas universidades comunitárias – o que talvez, por enquanto, ainda seja mais um desejo do que sua efetiva concretização –, não se observa que essa tendência deva, na visão das ICES, se tornar exclusiva. Evidenciou-se, outrossim, mesmo que com menos entusiasmo, a necessidade de preservação da pesquisa desinteressada. Manter-se no tensionamento, equilibrando ambas as perspectivas, apareceu como alternativa para o modelo comunitário diante dos desafios do financiamento e das demandas provenientes da sociedade como um todo. De outra forma, o risco maior é de as ICES caírem em uma espécie de canto da sereia da inovação e da pesquisa comercial, distanciando-se do necessário nível de insulamento que a instituição universidade necessita para cumprir sua missão, em direção a uma arriscada hiperporosidade com o mercado, aproximando-se de um modelo que pode ferir de morta sua natureza acadêmica.