Introdução
Oscilando entre o luto de um pai e as obrigações de um soberano, o segundo imperador do Brasil, D. Pedro, consciente das dificuldades que poderiam ser enfrentadas por uma soberana mulher, em um país com pilares patriarcais, decide estipular como deveria ser a formação de Isabel e Leopoldina, herdeiras presuntivas do trono brasileiro. Os deveres de monarca somados aos do homem voltado para as letras, fazem com que D. Pedro II perceba a complexa tarefa que envolve transformar uma mulher em soberana presumida do trono brasileiro, rompendo com as resistências e superando as expectativas. Dessa forma, não obstante o trabalho dos mestres contratados, o Imperador percebe a necessidade de alguém que se encarregasse de supervisionar a importante missão da educação das princesas.
Empreendendo uma exaustiva busca para a escolha de uma preceptora, opta pela sugestão de sua irmã, a princesa de Joinville1, que lhe afirmava ser a Condessa de Barral, sua antiga dama de honor, a mais indicada para preparar suas filhas para as tarefas de uma monarca. Por cartas, ela informava ao irmão que a Condessa atendia grande parte das características almejadas, bem como as condições entendidas por ele em quase todos os requisitos impostos, uma vez que ela falava fluentemente o inglês, o francês e sua língua natal; atendia a idade estipulada; lia e escrevia corretamente e com desenvoltura e ainda, tocava piano muito bem.
Ao descrever as qualidades de sua antiga aia e sugerir sua contratação para gerir a educação das princesas Isabel e Leopoldina, a princesa de Joinville acaba por abrir portas a uma brasileira, para uma função até então exercida por estrangeiras2. Nascida em Salvador, na Bahia, em 13 de abril de 1816 e batizada como Luiza Margarida Portugal de Barros, era filha de um dos grandes homens do Império brasileiro, o visconde de Pedra Branca3, representante da nobreza reinante nas Províncias e senhor de engenhos de açúcar localizados no recôncavo baiano. Após a morte do irmão e da mãe, Luiza teve uma educação diferenciada, acompanhando o pai em muitas viagens diplomáticas, conhecendo vários países da Europa, embora grande parte de sua infância e quase toda a juventude fossem passadas na França, o que contribuiu, consideravelmente, para seu alto grau de cultura, destacando-a acima da educação feminina brasileira da época (FRANCISCO; VASCONCELOS, 2018, p. 3). O título de Viscondessa e, posteriormente, de Condessa de Barral é adquirido pelo seu casamento em 19 de abril de 1837, com o jovem Visconde de Barral4, futuro Conde de Barral, que era afilhado de Josefina, primeira esposa de Napoleão Bonaparte.
Depois de meses de negociações intermediadas pelo mordomo da Casa Imperial, Paulo Barbosa, e com a anuência dos termos estabelecidos, acordaram uma data para a chegada à Corte da preceptora que seria responsável pela educação e formação das princesas imperiais brasileiras. Conforme firmado, ela receberia uma casa a contento, bem mobiliada, uma carruagem da Casa Imperial, o salário estipulado e, depois de finda a educação das princesas, uma pensão de seis mil francos. Em relação a essas cláusulas estabelecidas, Magalhães Junior (1956, p. 13) pondera que a remuneração recebida pela Viscondessa de Barral, como preceptora das princesas, não era menor do que as de um ministro de estado com assento no Senado ou na Câmara. Complementando esse paralelo de valores, Aguiar (2015), analisando o livro de Pagamentos dos Servidores da Casa Imperial, informa que um médico recebia 153,846 réis por semana. Ela informa que “um médico que trabalhasse quatro semanas no mês receberia no máximo 615,384 réis, valor bem abaixo dos 1:000$000 acertados como ordenado da aia contratada” (AGUIAR, 2015, p. 100).
Após as devidas tratativas, em fins de 1856, Luiza Margarida Portugal de Barros, a Condessa de Barral, assume seu posto dando início a uma relação com suas pupilas que perduraria por muitos anos, mesmo após o término da preceptoria. Sua chegada, que não passou desapercebida no país, foi destacada nos jornais da época. No acervo do Museu Histórico Nacional, há o recorte do O Jornal5, de 1856, informando sobre a escolha e vinda de Luiza para cuidar da educação das princesas, com destaque de que ela reunia todos os requisitos necessários bem como os títulos desejáveis para que desempenhasse a missão que lhe havia sido confiada. Mereceu registro, também, no diário de Isabel: “Veio hoje, pela primeira vez, minha aia a Condessa de Barral, e dei com ela princípio ao estudo da língua francesa, dei lição de piano6”.
A análise dos diários de Isabel e Leopoldina bem como das cartas trocadas entre elas, a Condessa e os Imperadores descortinam um panorama muito mais amplo e claro sobre o cotidiano escolar das princesas imperiais brasileiras.
A Condessa buscou oferecer às suas pupilas os melhores mestres de que dispunha o Império e aproveitava qualquer oportunidade de lançar uma lição que viesse enriquecer a bagagem cultural delas. As atividades eram constantemente informadas, avaliadas e submetidas à ciência dos Imperadores, estando estes na Corte, ou não. Conforme preceitua Guedes (2004, p. 100), “A instrução dos príncipes constituía um assunto de interesse nacional, sendo frequente aparecerem artigos, nos periódicos da época, sobre os professores, as matérias de estudo e as capacidades dos alunos”.
Com olhar atento, vigilante e extremamente rigoroso, a Condessa passa a escolher mestres para conduzirem as disciplinas que seriam estudadas e a moldar, ainda, o comportamento das meninas de acordo com a etiqueta da Corte europeia, incluindo os hábitos da toalete. Tome-se como exemplo, a carta do dia 06 de novembro de 1859, em que a preceptora discorre para a Imperatriz sobre o cotidiano das meninas. Conta, em pormenores, da valentia de Leopoldina ao arrancar um dentinho e dos 11 banhos frios que Isabel tomara. Leopoldina tomara apenas nove pela perda do dentinho, pois a cissura precisava cicatrizar, justificava. Informava à mãe-Imperatriz, que sua menina estava mais gordinha, com linda cor e que estava “ficando bonitinha”. Quanto à Isabel, estava muito gorda, porém sua bondade e candura, cada vez mais, conquistavam seu coração. Certo é que logo após tecer os informes e comentários sobre passeios, lazer e sobre o desenvolvimento físico das meninas, o olhar da mestra voltava-se para discorrer aos Imperadores sobre o desenvolvimento da aprendizagem de suas pupilas e de como o tempo era aproveitado da forma mais otimizada possível: “A semana do Dr. Freire7 foi aproveitada para a botânica, e se as palestras não foram tão alegres como na Semana do Persiani, não deixaram de ser interessantes8”. Dias depois, datada de 11 de novembro de 1859, a carta de quatro páginas leva um pedido de ajuda, redigido em tinta preta. Preocupada com o comportamento não condizente ao de uma princesa, escreve à Imperatriz na esperança de que ela fosse sua aliada na tarefa de corrigir os maus hábitos da princesa Leopoldina, pois ao que parece, ela era mais arredia do que Isabel em atender às advertências e solicitações. No entanto, a Condessa destaca que embora fosse geniosa, a menina não era rancorosa.
Rogo a V. Mᵃ de instar com S. A. a Princesa D. Leopoldina para que se corrija do mau habito que tem de estender o lábio inferior, de coçar a cabeça e o nariz, e de vesgar os olhos quando escreve. Diga-lhe que espera achá-la sem esses cacoetes na Sua volta, para ver se Ela atende às minhas constantes advertências. - Não temos tido grandes tempestades de gênio, apenas alguns aguaceiros que passam, coitada, sem rancor 9.
Educadas para ascender a linha sucessória, foi-lhes oferecida uma educação tanto adequada ao que se concebia como uma boa educação feminina, como também composta por disciplinas consideradas imprescindíveis à formação de um futuro soberano. Destinadas a governar homens, as jovens princesas foram instruídas como homens. Aprenderam Latim, Grego, Física, Química, Zoologia, Botânica, Filosofia, Álgebra e Trigonometria. Foram Bacharéis em Letras (sem o diploma) e doutoras em Direito, com complementação em direito civil, administrativo e constitucional (BARRAL, 1977). Argon (2009, p. 102), pontua que “por determinação de D. Pedro II, a educação da princesa Isabel, na condição de herdeira do trono, deveria ser a mesma dispensada aos homens daquela época, mas aliada à das mulheres, que visava ao desempenho das atividades domésticas e ao bom comportamento nos salões”. À Leopoldina foi dispensada a mesma atenção, inclusive curricular, tendo em vista que Isabel inspirava cuidados especiais com sua saúde, e, na falta da irmã mais velha, a filha caçula passava a ser a herdeira do trono. O Imperador, por sua vez, desde o início já deixara claro que acompanharia de perto a educação das filhas, inclusive supervisionando algumas atividades.
A Revista Popular, no volume X, ano 1861, intitulando uma gravura com A Augusta Família Imperial, trazia o seguinte texto com referência a Condessa de Barral:
Pai extremoso, vela (o imperador) com o maior cuidado sôbre a educação da sua prole, sabendo, como profundo filósofo, que esta é a mais bela herança que lhe pode deixar. Como outrora Felipe de Alexandria, que se felicitava que lhe nascesse um filho em tempo de ser discípulo de Aristóteles, folgou o Imperador em encontrar na senhora Condessa de Barral uma hábil preceptora, que com raro talento forma o coração das jovens princesas.
Assim que assumiu suas funções e deu início às atividades da preceptoria, a Condessa tratou de encontrar uma auxiliar. Para a escolha da institutrice, trocou densa correspondência com a rainha Maria Amélia de Orléans, que acabou por lhe indicar Mlle. Victorine Templier. A indicação foi recebida de bom grado e ela encontrou na figura de Mlle. Templier a amiga e a aliada que necessitava. Dessa forma, ela tinha liberdade, inclusive, para viajar e ausentar-se por algum tempo quando necessário, embora fiscalizasse por cartas diárias o cotidiano das princesas.
Além de Mlle. Templier, outros professores auxiliaram a Condessa de Barral na educação das princesas. Jules Toussaint, como professor de dança; Joaquim Manuel de Macedo autor de A Moreninha e O moço Loiro, como professor de História e Victor Meirelles como professor de desenho. E a Condessa de Barral, o que ensinava? “Segundo um escritor da época, monsenhor Joaquim Pinto de Campos, várias vezes deputado por Pernambuco e autor da primeira biografia de Pedro II, à ‘respeitável Sra. Condessa de Barral cabia ensinar pedagogia’ (MAGALHÃES JUNIOR, 1956, p. 15).
Sempre que viajava para Europa, a Condessa de Barral desempenhava as funções de mensageira, na entrega de cartas e presentes. Além disso, sempre enviava “gulodices literárias” para o Imperador e suas pupilas, atendendo a todos os pedidos que eles lhe faziam. Certa vez, o Imperador chegou a desculpar-se por “tê-la convertido em sua livreira” (MAGALHÃES JUNIOR, 1956, p. 19), no entanto, as redes de sociabilidade da Condessa permitiam que quando era o Imperador a estar na Europa, ela fosse a encarregada de organizar os encontros dele com escritores estrangeiros famosos, aos quais o Imperador fazia questão de conhecer . Foi a partir daí que além de responsável pela educação das princesas ela tornou-se um membro atuante e indispensável nas questões relativas à Corte brasileira, passando a ter sua inteligência admirada e suas opiniões, via de regra, acatadas.
Percurso metodológico
A pesquisa histórico-documental tem como principal fonte farta documentação, contendo registros dos ensinamentos e conselhos para a educação das princesas, cartas e ego-documentos produzidos pela própria Condessa. Como referencial teórico-bibliográfico tomou-se os escritos de Vasconcelos (2005) para a educação doméstica, Bastos, Cunha e Mignot (2000), Blas (2003) e Gomes (2004) para a análise e estudo das cartas.
A análise e interpretação dessas cartas, diários e cadernos da Condessa e seus caminhos pedagógicos, foram analisados de acordo com Cunha (2007), ou seja, de que devem partir de um conceito de lugares de memória. Para a autora, esses registros de experiências pessoais eternizados pela escrita estão geralmente destinados à invisibilidade. No entanto, se protegidos em acervos pessoais,
conformam um corpo documental de inestimável valor como fonte histórica e podem fornecer informações e indícios sobre práticas cotidianas expressas em hábitos, costumes, valores e representações de uma época e, como tal, analisados a partir do conceito de lugares de memória (CUNHA, 2007, p. 45).
Inicialmente, o estudo abordou as concepções de educação para as princesas que a Condessa demonstrava em suas cartas, revelando o pensamento da aristocracia brasileira, durante a segunda metade do século XIX. Em um plano mais específico, apresenta-se a forma em que a preceptora desenvolvia as práticas de educação doméstica, em especial os caminhos como conduzia o que considerava adequado para a educação de suas pupilas, crianças nobres, futuras herdeiras do trono brasileiro. A partir daí, foca-se nas missivas da Condessa, atentando-se para o fato de que para além da formação cultural que as avalizaria como chefes de estado, havia uma preocupação singular voltada para um comportamento exemplar como mulher, boa esposa, boa gestora, boa mãe. Essa onipresença e esse controle absoluto de tudo que se passava na vida das meninas eram cuidadosamente observados pela Condessa, mesmo quando se tratava apenas de um final de semana longe das princesas. Atenta-se para os itinerários pedagógicos da preceptora, no que diz respeito ao dia-a-dia da educação das princesas observando-se que algumas dessas práticas já eram usadas pelas mestras que se diziam discípulas de Rousseau, que consistiam em levar o aluno a arrepender-se de sua falta diante da constatação do mal que havia causado.
Nos cadernos e lições, vestígios de práticas pedagógicas
Os planos de estudo ou de aulas, eram elaborados sob a supervisão austera e cuidadosa da Condessa, que os preparava semanalmente, com aulas de segunda à sábado. No arquivo Grão-Pará, no Museu Imperial, constam vários registros dos seus planejamentos semanais. A maioria é do ano de 1858 e os registros são feitos em um caderno simples, de tamanho pequeno pautado, que, atualmente, não apresenta capa. Nos planos de estudos elaborados, percebe-se que a Condessa fazia, na verdade, “indicações das lições”, o que sugere a possibilidade de não ser um planejamento engessado, ou seja, não obstante sua indicação do que deveria ser estudado naquele dia, seria possível haver uma troca de tema ou até mesmo de disciplina. Talvez por isso, ela tenha optado, de início, por estabelecer uma disciplina a ser estudada por dia (FRANCISCO, 2017).
Também no arquivo do Museu Imperial, no mesmo acervo, consta um conjunto de planos de estudos, escritos em francês, intitulado Etudes à Petropolis. Analisando esses planos de estudo de 1862, observa-se que, talvez, a Condessa tenha buscado ajustar sua prática pedagógica à idade e ao desenvolvimento cognitivo das princesas. Nesse ano, 1862, o plano de estudo passa a ser diário, com carga horária estabelecida para cada disciplina. Dessa forma, embora o planejamento continuasse semanal, os planos de aula passaram a ser distribuídos por carga horária.
É possível observar, ainda, que a Condessa registrava diversas observações e anotações nas margens desses papéis. De assuntos variados, ora versando sobre um horário de aula, ora sobre a visita de um professor, as que mais chamam a atenção são as relativas à princesa Leopoldina. Ao que parece, não era raro a princesa precisar refazer as lições por não atentar ao que lhe havia sido recomendado.
Ao planejar as aulas e os conteúdos de estudos, a Condessa estabelecia um rígido cronograma, cujos horários preenchiam os dias da semana de segunda a sábado, com início às 7h da manhã, perdurando até às 9h30min da noite, com pausas apenas para receber as visitas agendadas e aprovadas pela preceptora e pelos Imperadores, além das refeições e recreios. No inverno, devido às mudanças climáticas, os horários de algumas aulas sofriam pequenas alterações e eram ministradas na parte da manhã. Isabel e Leopoldina eram avaliadas continuamente e as notas eram dadas em francês. A preceptora anotava a avaliação das pupilas e suas notas classificadas em regular (M = moyen), bem regular (TM = trés moyen), suficientemente bom (AB= assez bien), bom (B= bien), bastante bom (BB= beaucoup bien), muito bom (TB= trés bien) e, como nota máxima, o Perfeito (parfait). Essas notas eram atribuídas aos vários tipos de exercícios: leitura, ortografia, ditado, gramática, análise, composição, tradução, sempre anotadas em folhas de papel separadas, nomeadas e que depois, eram submetidas ao crivo do Imperador.
Essa forma de avaliação estava tão sedimentada no cotidiano educacional das princesas que elas próprias passaram a usá-la quando precisavam valorar alguma atividade, fosse feita por si mesmas ou por terceiros. As cartas endereçadas aos pais eram extremamente caprichadas, em sinal de profundo carinho e respeito. Geralmente em papéis finos, bordados, com margem impressa com desenhos, com caligrafia desenhada, as palavras gentis iam informando aos “Caros Paes” os acontecimentos do dia-a-dia.
Sem requintes de luxo, capas de couro, bordas ou sem lombadas com monogramas, os cadernos de estudos conservados no Museu Imperial parecem, à primeira vista, anotações de qualquer aluno de escola dos dias de hoje. Todavia, os cadernos, invariavelmente, são encapados com papéis delicados de motivos florais, com desenhos feitos com aquarela. Alguns, no intuito de que sejam protegidos dos efeitos do tempo, estão envoltos em contracapas de papel pardo. O caderno de Ditado em Francês, da Princesa Isabel, datado de 18 de abril de 1857 por exemplo, é encapado com um papel transparente com flores vermelhas e amarrado, na lateral, com uma fitinha azul marinho. Possivelmente essa tarefa foi executada pela aluna dedicada, que contava então, com quase 11 anos de idade. Junto com a Condessa, Felix Emilio Taunay também lecionava o Francês para as filhas do Imperador que, vez ou outra, fazia observações quanto a grafia e tradução de frases, escrevendo a próprio punho nos cadernos frases de incentivo ou reprimendas pela pouca dedicação.
Outro ponto interessante a observar é que pelos registros de Saint-Georges (BARRAL, 1977), faltavam à época bons livros de História escritos em português. Como a Condessa queria conduzir da melhor forma o ensino da História de Portugal e do Brasil e julgando inapropriados os manuais dos quais dispunha, resolveu ela mesma redigir um manuscrito para ministrar seu curso para as princesas imperiais. De fato, muitos temas abordados no caderno fazem parte da História do Brasil e possivelmente eram vistos pela preceptora como tais. No entanto, os fatos ainda recentes para a segunda metade dos oitocentos eram encarados como pertencentes à história do país ao qual, até então, o Brasil era subordinado. Tal “manual” luso-brasileiro está catalogado entre os cadernos de estudos das princesas. Há dois cadernos de “História de Portugal”. O primeiro caderno, História de Portugal I, mescla a letra da preceptora e de D. Pedro II, evidenciando a parceria na feitura dos textos entre a Condessa e o Imperador. Vários temas são apresentados, em curtos capítulos, destacando os principais temas ocorridos em Portugal. O segundo, História de Portugal II, é o caderno de Isabel. Percebe-se que a princesa copiava os textos, ora acrescentando algumas frases, ora modificando uma palavra. Todavia, o conteúdo do texto e as informações contidas nele são respeitados pela pupila e caprichosamente reproduzidos no seu caderno.
Como já mencionado, a Condessa preocupava-se e estava sempre atenta às pessoas que se aproximavam das princesas e com as quais elas mantinham qualquer tipo de contato. Desse rol não estavam excluídos os professores, damas, amigas e auxiliares dos serviços nos Paços. Aprovadas pela Condessa, gozavam de sua confiança, não havendo registros de críticas dos serviços que prestavam. A preceptora acompanhava todas as aulas e como não poderia deixar de ser, o desenvolvimento destas por parte dos mestres e das princesas. Os cadernos eram constantemente avaliados pelos mestres, aos quais atribuíam notas às tarefas recomendadas. E ao final, tudo era conferido e avalizado pela Condessa.
Um dos professores de aritmética de Isabel e Leopoldina era Candido Batista de Oliveira. Analisando os cadernos de estudos e os exercícios desenvolvidos, nota-se que a metodologia adotada para o ensino das quatro operações básicas é o mesmo que perdura até os dias atuais. O ensino e a prática do somar, diminuir, multiplicar e dividir, com a prova real no lado direito da metade da folha, perdurou no decorrer dos anos, fazendo com que tais estudos sejam facilmente identificados com os desenvolvidos nos séculos XX e XXI. É interessante frisar que embora alguns cadernos apresentem escrita à lápis, os de aritmética estão a tinta, denotando uma tentativa de se exigir mais atenção das alunas, já que não era admitido, em hipótese alguma, rasuras ou borrões nas tarefas.
A Condessa dividia com Luiz Aleixo Boulanger (CERQUEIRA & ARGON, 2019) o ensino de Geografia. Contudo, ela o fazia em língua francesa. Sempre que as cópias dos textos vinham em francês, sabia-se que era atividade ministrada pela Condessa. Mas há que se notar que há vários desenhos de mapas, rios e planícies, metodicamente delineados e desenhados. Embora não tivesse o Desenho entre as disciplinas que ministrava, a Condessa dava atenção especial a essa habilidade e, sempre que possível, estimulava que as princesas desenhassem nas redações, cópias de textos, visitas e passeios, expressando através do desenho o que seus olhos registravam e a leitura de mundo que faziam. Entre os estudos avulsos de Geografia alocados em uma pasta de trabalhos escolares das princesas, no Museu Imperial, há um mapa desenhado pela Princesa Isabel, no dia 14 de março de 1858. A princesa contava com quase 12 anos de idade, mas já demonstrava traços firmes e precisos, reproduzindo parte do mapa mundi em riqueza de detalhes e organização espacial.
Isabel gostava muito de desenhar. E, de fato, seus desenhos e pinturas mereciam elogios e destaque. A princesa era capaz de olhar uma pintura e reproduzi-la exatamente igual, com perfeição de traços, detalhes e cores. Rezzutti (2018) destaca que entre os vários estudos realizados, é interessante notar que ao retratar alguém, geralmente o faziam em relação a crianças, mulheres, flores, paisagens ou animais. Raramente homens, tendo em vista que os detalhes da anatomia masculina eram vetados nas aulas de desenhos dadas às meninas de elite. Quando isso ocorria, geralmente apareciam em cópias feitas por elas de quadros ou de outros desenhos. Exemplo disso é um desenho feito por ela, a lápis, de duas mulheres sentadas ao piano. O desenho, pela riqueza de detalhes e perfeição no retratar, quase nos deixa escapar ser uma parte da pintura de Réseau Canopé, quando ressignifica através da pintura, o hino francês, La Marseillaise. Contudo, seja nas cópias seja no desenho livre, as princesas mantinham uma prática constante de aprimoramento. Marianno José de Almeida foi o professor de Desenho e Pintura durante o período da educação formal de Isabel e Leopoldina. Posteriormente, a Condessa influenciou, sobremaneira, na escolha de Victor Meirelles como professor de Pintura da Princesa Isabel. É importante lembrar que foi o artista que retratou o óleo sobre tela “Assinatura da Lei Áurea”.
Embora apontada como possuidora de um temperamento bem diferente de Isabel, a Princesa Leopoldina também apreciava o desenho e a pintura, fazendo sempre que possível o uso deles em seus estudos. Seus cadernos, desenhos, anotações são em menor número em relação aos de sua irmã. É fato que embora com o mesmo capricho, seus estudos são bem mais resumidos, sendo possível encontrar “justificativas” ou observações em cantos de páginas onde a princesa registrava seu desânimo em fazer atividades longas. Dona de um espírito breviloquente, fazia contraponto à irmã que era prolixa e detalhista em seus registros. Enquanto Isabel, ao que parece, se debruçava e procurava exaurir os temas estudados, Leopoldina se esforçava até o limite de cumprir seus objetivos, muito embora não deixasse a desejar no cumprimento de suas tarefas. Nada além do necessário para que demonstrasse que tivera aprendido satisfatoriamente, a lição.
A música também fazia parte da educação das crianças da elite. Sobre a questão da educação musical, Vasconcelos (2005) informa que a atividade de tocar o piano era de praxe no currículo da educação das elites femininas dos oitocentos. Muitos são os registros, em cadernos e fotografias, dos estudos de música de Isabel e Leopoldina. A Condessa, Fortunato Mazziotti e Isidoro Bevilacqua conduziram as aulas de música das princesas, considerada como parte da aprendizagem de prendas domésticas. Alzuguir (2014, p. 10) endossa a opinião de Diniz (2009) ao afirmar que “o segundo reinado representa mesmo a fase áurea de utilização do piano como instrumento musical”. Posteriormente, a Condessa também foi a responsável pela indicação de Carlos Gomes como professor de música de Isabel e, ainda, de sua indicação para a Academia Brasileira de Música. Como forma de assimilação das notas e da própria música em si, as partituras dos estudos também eram copiadas pelas alunas, que sempre vinham assinadas ao final. É possível observar o capricho e zelo nesses estudos e, vez ou outra, uma observação carinhosa ao final destes, como um estudo de 1857, em que Isabel escreve na última linha da partitura: “Por sua filha de coração. Isabel Christina”.
A Condessa tinha um temperamento forte, mas sua esmerada educação tornava-a capaz de dissimular atitudes que a desagradavam, especialmente nas princesas, observando o momento exato para corrigi-las, por vezes, utilizando a interferência dos pais. Esse traço de sua personalidade pode ser verificado em grande parte de seus escritos que contém aspectos autobiográficos, nos quais ela demonstra profunda capacidade de disfarçar suas emoções, utilizando sempre um tom cortês e altivo. Para as princesas era a “Condessinha”, amável, que se dedicava e tinha como fim último que elas tivessem uma boa educação, adequada ao lugar para o qual estavam destinadas. Ambas as princesas registram em seus diários que ela lhes despertava um amor filial. Provavelmente, um dos aspectos que contribuiu para essa relação estrita, é que a Condessa sabia delegar ao pai, o Imperador, a tarefa de chamar-lhes atenção, ainda que ela tivesse o controle de tudo e fosse a principal informante do que se passava no cotidiano do palácio.
Além da constante presença física da Condessa no dia-a-dia das princesas, desde que acordavam até a hora de se deitar, ela também enviava mensagens em cartas quando estava ausente. Essa onipresença e controle absoluto de tudo que se passava na vida das meninas era cuidadosamente observada pela Condessa, mesmo quando se tratava apenas de um final de semana longe das princesas. Utilizando uma de suas tantas estratégias psicológicas, nas quais procurava despertar remorso, vergonha, medo entre outros sentimentos nas pupilas, a Condessa tinha como corrente “pedagógica” algo muito em voga na época para substituir os castigos físicos, que eram os castigos morais. Tais práticas, muito usadas pelas mestras que se diziam discípulas de Rousseau, consistiam em levar o aluno a arrepender-se de sua falta diante da constatação do mal que havia causado. Assim, procedia também a Condessa, segura de que, para aquele tempo e contexto, essa era a melhor maneira de educar e formar pessoas “inteligentes”, “distintas”, “de grande merecimento”, “gente limpa e honrada”. Para tanto, não havia limites e a Condessa era capaz de se transformar numa “fadazinha” que tudo via e tudo sabia:
Minhas queridas Princezas
Disse que não escreveria hoje, mas sinto tantas saudades a estas horas que sempre passo aos Sabbados na companhia de Vossas Altezas, que não posso resistir ao dezejo de conversar um bocadinho com as minhas queridas Princezas. - Não vão pensar que fiquei no Rio, estam muito enganadas, meu coração partiu com Vossas Altezas e por lá anda. Hoje devo a esse proposito, lhes fazer uma grande confidencia e vem a ser, que: eu sou um ente encantado que tem intimas relações com uma fadazinha, essa minha amiga emprestou-me um anel que me torna invisível e é por isso que Vossas Altezas não me podem ver, e eu às vezes lhes adevinho os mais íntimos pensamentos - Ora hoje, por exemplo, eu tenho visto tudo quanto Vossas Altezas tem feito, e muito contente fiquei quando ao entrar do portão de Petrópolis Vossas Altezas olharam para minha casa e disseram uma para outra “Olha Mana, a casa da Condessa”. Quando entraram no Palacio lá acharam o Andrade Pinto o Dr. o Gorducho etc etc e já o Sr Bogario lhe tinha feito sua barreteada... É verdade ou mentira? Quando entraram pª nossa sala d’estudo ainda viram garatujas do Candido Baptista no tableau noir, subiram pª o quarto (mas eu que mesmo disfarçada não sou indiscreta) fiquei cá embaixo, mas sempre ouvi algum barulho, e parece-me que ambas as Princezas exigirão immediatamente com mil cousas impossíveis, e que foram resmelengando pª a Casinha. - Nessa casinha lembrarão-se outra vez da Condessinha e ella ficou tão contente! ! O Palacio está muito adiantado la grue trabalha com vigor, e o Jacob cuido muito nos jardins de S.S.A.A. não é assim? A fadazinha acaba de me dizer, que as Princezas gostam de paté de Regnaud e dessas bolachinhas pª roer amanhã no carro, vão pois bolachinhas e paté de Regnaud. Vossas Altezas não se esqueçam da promessa que me fizeram descrever o diário de sua viagem, não omittam nada, porque tudo me interessará vivamente. Eu também tenho meus projectos de patuscadas, e tudo contarei qdo voltarem. Queiram por mim beijar a mão de Papá e de Mamã e com affeto me recommendar a todas as minhas companheiras. Eu terei o cuidado de ir visitar a Snra. D. Ritta e tomára que ella queira vir passar um dia comigo.
Anunciando uma presença invisível capaz de ler os mais íntimos pensamentos das duas meninas, a Condessa impunha seus ensinamentos mesmo à distância, fazendo-as crer, ainda, que, envolta a fantasia das fadas, nada era possível de ser escondido da preceptora. Dessa forma, ela mantinha as princesas obedientes a suas determinações, ainda que estivesse distante.
Não há que se perder de vista que seria uma ilusão achar que é possível recompor cenas cotidianas do passado, pois cada uma delas contém inúmeros elementos, cores, linguagens, gestos que, caídos em desuso, escapam a capacidade de recriá-lo. No entanto, as cartas trocadas entre a Condessa e as princesas e a Condessa e os Imperadores permitem reviver uma ínfima parte do que se passava no cotidiano dos Paços Imperiais, suficiente apenas para se concluir que a história desses protagonistas seria outra não fosse sua convivência e aprendizagens recíprocas.
Considerações finais
A análise desses cadernos de estudos produzidos pelas princesas demonstra que os caminhos pedagógicos conduzidos pela Condessa estavam em estrita sintonia com a educação dos príncipes na Casa de Bragança, que se ocupava do ensino das línguas (português, francês, inglês e alemão), da música, da atividade desportiva (em especial, a equitação) e da aproximação a outras matérias científicas como ciências naturais (em especial a botânica e a zoologia). Ao passo que essas atividades regulares (se não diárias) eram praticadas em passeios, momentos de jardinagem e horticultura, colheitas de plantas, flores, borboletas, insetos e pequenas aves, em vários lugares de Lisboa, Sintra, Queluz, Mafra, Vila Viçosa, Estoril e Vidago (FELISMINO, 2019, p. 27), do outro lado do oceano, Isabel e Leopoldina desenvolviam as mesmas atividades e estudos, nos Paços Imperiais e passeios organizados pela preceptora. Um infinito número de egodocumentos, desenhos, partituras, cadernos, anotações, boletins e cartas, atestam que, ao final, essas atividades acabavam por materializar-se em pequenos estudos de entomologia, herborizações e cadernos de plantas, bem como num significativo conjunto de esboços, desenhos e apontamentos.
As cartas e documentos pesquisados evidenciam alguns nomes de mestres que, sob a supervisão da Condessa, contribuíram para a educação de Isabel e Leopoldina. Alguns autores famosos, outros, músicos em ascensão, outro, pintor de destaque, cada qual contribuindo na estratégia pedagógica planejada pela Condessa para que as futuras herdeiras do trono tivessem uma formação sólida e culturalmente prestigiada. Além dos mestres, a Condessa aproveitava toda a ocasião em que a Família Imperial fosse visitada por celebridades da época para que dessem “lições” às princesas. Um exemplo disso é a carta de 18 de dezembro de 1859, da Condessa para a Imperatriz, na qual é relatada a visita do padre Neville que, demorando-se três dias em Petrópolis, “deu ótimas lições de inglês10”. E ainda na mesma epístola: “Quando o Bevilacqua vem, para aproveitar seu tempo mando Suas Altezas tocarem a 4 mãos de noite as peças que sabem e isso serve de lição e vai desembaraçando-as alguma coisa”. Ao finalizar essa missiva, a Condessa demonstra que tinha consciência do papel que exercia e da aprovação dos Imperadores, quando afirma: “Faço meu possível para desempenhar bem a minha missão, mas nunca tanto quanto eu quisera11”.
Como visto, o Imperador empreendeu vários esforços para contratar uma preceptora para cuidar da educação das princesas, incumbindo para tal missão, a Condessa de Barral. A educação doméstica ganhou muitos adeptos no Brasil no decurso do século XIX. Sinônimo de status social e cultural, as classes mais abastadas da população contratavam preceptores para educar seus filhos no espaço domiciliar. No entanto, a educação doméstica já existia há tempos longínquos (VASCONCELOS, 2005), ora sendo adotada como único meio para educação de crianças e jovens; ora servindo de status social para que os membros da elite educassem seus filhos. A Imperatriz, também de origem europeia, trazia em sua bagagem cultural a educação solidificada por preceptores e mestres na casa. E foi nesse cenário que Luiza iniciou o que se propôs, educar as princesas imperiais brasileiras.