Introdução
Em 2020, as escolas e as universidades foram mantidas fechadas ou com funcionamento parcial, devido à pandemia de Covid-19, a fim de garantir o isolamento social da população. Iniciamente, o ensino presencial se tornou inviável, e os professores precisaram se adaptar a uma nova lógica de ensino-aprendizagem, baseada no ensino à distância emergencial (BOZKURT; SHARMA, 2020) e regulamentado por portarias do Ministério da Educação (BRASIL, 2020).
Em 2021, as escolas retomaram suas atividades presenciais, com nova organização dos espaços das salas de aula, limitados pela necessidade de afastamento, uso de máscaras e incertezas em relação ao vírus e ao processo lento de vacinação. Diversas escolas passaram a adotar um modelo híbrido ou flex de ensino, o professor atende concomitantemente ou ao mesmo tempo dois grupos de alunos: os que estão no presencial na sala de aula e os que estão em casa, através da câmera de vídeo instalada na sala de aula.
Diante dessa realidade, este trabalho busca responder a seguinte questão: Que novas e antigas lógicas de ação transitam nas práticas pedagógicas dos professores no ensino remoto e/ou no modelo híbrido? Para isso, o texto analisa as práticas pedagógicas adotadas por professores, buscando reunir elementos para refletir sobre a inovação pedagógica e a reinvenção da escola durante e após a pandemia.
Longe de uma visão romantizada da profissão ou da ideia de um superprofessor, reconhece-se que os docentes possuem, como uma característica profissional, a capacidade de “agir na urgência e decidir na incerteza” (PERRENOUD, 2001), demonstrando resiliência para se ajustar a novas situações.
A resiliência, como apontam Barreira e Nakamura (2006), pode ser compreendida como a capacidade de um determinado sujeito ou grupo passar por uma situação adversa, superá-la e sair dela fortalecido. No entanto, Handerson e Milstein (2005) salientam que, para a promoção da resiliência no ambiente escolar, exige-se do professor um alto grau de desenvolvimento profissional, capaz de responder aos variados e crescentes desafios impostos pela profissão. Assim, será possível observar, nos dados analisados neste trabalho, que, mesmo diante do imprevisível e das diferentes condições de trabalho, a capacidade de resiliência do professor contribui para a busca por inovações em tempos de crise pandêmica. Destaca-se que, mesmo não sendo o foco deste trabalho um estudo sobre a resiliência docente, será possível observar, no debate sobre as lógicas de ação dos professores, essa capacidade inventiva.
Por outro lado, reconhece-se a força da cultura escolar dominante sobre as práticas pedagógicas dos professores e sobre a organização escolar que limita o processo de inovação e até de estruturação de novas lógicas de ação (BARROSO, 2006; DUBET, 1994). Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é identificar as novas lógicas de ação que foram impostas sobre o trabalho dos professores pelo ensino em tempos de pandemia e como eles reinventaram, ou não, as suas práticas pedagógicas, associando-as aos princípios de currículo, didática e objetivos (OLIVEIRA; PACHECO, 2013). Busca-se compreender como os professores passaram a responder as questões clássicas de “o que ensinar?”; “por que ensinar?” e “como ensinar?”, no ensino remoto emergencial ou na nova escola presencial. Por fim, o que se deseja observar é se tais experiências do trabalho docente contribuirão para uma nova escola no pós-pandemia.
Para a essa interpretação, o trabalho analisa dados provenientes de duas pesquisas quantitativas institucionais (FCC, 2020; GESTRADO, 2020), realizadas no ano de 2020, com cerca de 30 mil professores da educação básica de todo Brasil. Parte-se também da análise de dados qualitativos baseados nas observações de aulas remotas/híbridas de nove professores e de vinte videoaulas, disponíveis ao público na Internet, em 2020. Esses dados foram obtidos através da análise de vinte quatro relatórios produzidos por estagiários de um curso de pedagogia de uma universidade privada. As questões éticas foram levadas em conta durante toda a pesquisa, e o anonimato foi garantido aos professores e estudantes participantes.
O texto se estrutura em quatro partes: A inovação pedagógica e as lógicas de ação docente; Ensinar em tempos de pandemia: desafios e possibilidades; Novas lógicas para o trabalho docente; Considerações finais: Agir na urgência e pensar no futuro.
A inovação pedagógica e as lógicas de ação docentes
Refletir sobre a palavra inovação pedagógica nos exige pensar que não há um único conceito que a defina. Como alerta Koff (2009), “algo pode ser novo para um indivíduo e não para outros dentro de um mesmo sistema”. A sociedade contemporânea vem apresentando constantemente propostas nomeadas como inovadoras, tanto para a vida cotidiana quanto para a economia, a política e a educação.
Algumas das chamadas “soluções ou inovações pedagógicas” defendem reformulações curriculares e o uso de novas técnicas de ensino, principalmente baseadas no uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), e que ganharam cada vez mais espaço no contexto do ensino remoto emergencial.
Porém, é preciso interpretá-las e inseri-las nos contextos dos estabelecimentos de ensino, a fim de não se correr o risco de uma adesão acrítica de modismos pedagógicos. Questiona-se: Estaria a escola se reinventando e os professores modificando suas lógicas de ação a partir das experiências deste período pandêmico? Teremos uma nova escola no pós-pandemia? Para responder, é preciso ter claro que nem toda mudança gera inovação. Pacheco et al (2018) e Nóvoa (2021) apontam que a inovação pedagógica precisa estar associada a uma ruptura de paradigma do próprio modelo escolar, trazendo alterações tanto para o currículo quanto para o trabalho dos professores.
Assim, os conceitos e as práticas pedagógicas em relação à inovação precisam ser compreendidos a partir dos seus contextos históricos, tecnológicos e culturais. A partir daí, pode-se identificar novos objetivos para a escola, que nortearão a elaboração de uma proposta de inovação pedagógica em articulação com o indivíduo que se quer formar. Além disso, tem-se clareza de que as práticas pedagógicas, sejam elas inovadoras ou não, são mecanismos reais de alteração ou reprodução da cultura escolar no interior das escolas. Entende-se aqui cultura escolar,
um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização) (JULIA, 2001, p. 10).
Assim, a cultura escolar ao se consolidar configura o que chamamos de forma escolar, regida por esse conjunto de concepções e perspectivas que norteiam as práticas pedagógicas que compõem o processo de ensino (BARROSO, 2005a).
Seguindo nesse raciocínio, buscamos apoio nas ideias de Julia (2001), para pensar inovação e ruptura de práticas pedagógicas. Para o autor, é nos tempos de crise e de conflitos que podemos captar melhor o funcionamento real das finalidades atribuídas à escola (JULIA, 2001). Isso nos remete à situação de crise e desestabilização que as escolas do mundo inteiro tiveram que enfrentar nos anos de 2020 e 2021, diante pandemia da Covid-19. Tudo nos pareceu, e nos parece ainda, ser esse um dos momentos favoráveis à ruptura da cultura/forma escolar, ao surgimento de práticas pedagógicas inovadoras, de novos questionamentos, da revisão das certezas naturalizadas e, quem sabe, da consolidação de uma reinvenção da escola. Como aponta Canário (2006), é possível que a escola encontre o próprio caminho para sua reinvenção, desde que as diversidades e os possíveis problemas ou crises sejam usados como estímulo para criar soluções inovadoras.
Porém, antes de trazermos a empiria da pesquisa sobre as supostas práticas inovadoras dos professores em tempos de pandemia, o conceito de lógica de ação poderá ser de grande valia para as análises desses dados. De acordo com Barroso (2006), lógica de ação pode ser definida como a “a existência de racionalidades próprias dos atores que orientam e dão sentido (subjetivo e objetivo) as suas escolhas e as suas práticas no contexto de uma ação individual ou coletiva” (p. 179).
Para ele, o conceito de lógica de ação é frequentemente utilizado nos estudos sobre organizações para descrever e interpretar o modo como se organiza e se coordena uma ação coletiva. Segundo Barroso (2006), pensar a lógica de ação associada ao conceito de ação coletiva invoca, constantemente, nos sujeitos em ação, um compromisso com a ideia de justiça social, tomada como justificativa para uma série de ações que se consolidam e se cristalizam em uma instituição. A prevalência de determinada lógica de ação dentro de uma organização coletiva estaria associada à construção de um compromisso mútuo em torno de um objetivo comum e de “princípios de justificação e modos de legitimação” (BARROSO, 2006, p. 179). No entanto, mesmo que uma lógica de ação predomine em uma instituição, as diferenças individuais entre as concepções dos sujeitos indicam que diferentes lógicas de ação podem ser encontradas.
Dubet (1994), ao refletir sobre as combinações de ações que formam a experiência social de cada um, aponta que todos os sujeitos dominam uma diversidade de lógicas de ação. Ele estabelece que o conceito de experiência social diz respeito às condutas individuais e coletivas constituídas na própria heterogeneidade e no sentido de suas práticas e articulação entre lógicas de ação. Para Dubet (1994), esse cenário, é sempre marcado por disputas, hierarquizações e critérios comuns de justiça, como também apontou Barroso (2006).
Interessam-nos aqui, em ambos os autores, a submissão da ação dos indivíduos às múltiplas lógicas que a norteiam e a sua busca por constante justificação para as práticas que favorecem a manutenção da cultura escolar e do próprio estatuto da profissão docente. Para Dubet (2002), o trabalho docente é um ofício que envolve dilemas e combinações de lógicas de ação, baseado na própria subjetividade do professor, nos padrões impostos e nas estratégias selecionadas para lidar com o outro.
O que essas análises podem contribuir para compreender a inovação, ou não, das práticas pedagógicas dos professores no contexto da pandemia? A princípio, podemos supor que há um conjunto de lógicas de ação dos professores e das escolas que exercem um controle central na consolidação de mudanças e inovações, podendo ficar retidas nos discursos de justificação de antigas práticas. Mesmo que alguns discursos e expectativas até privilegiem a “modernização” das ações na escola, eles não conseguiriam promover mudanças significativas nas lógicas de ação dos professores estabelecidas pela cultura escolar dominante. Talvez esse possa ser um caminho analítico para compreender por que a reinvenção da escola, tão preterida e anunciada por muitos (CANDAU, 2000; CANÁRIO, 2006; NÓVOA, 2021), não se consolida de fato nas práticas pedagógicas das escolas.
Estaríamos vivenciando, neste tempo imposto pela pandemia, uma quebra nas lógicas de ação que norteiam as práticas docentes nas escolas? Apropriando-se do conceito de lógica de ação, se poderia supor que as chamadas inovações pedagógicas, adotadas em tempo de ensino remoto emergencial/híbrido, estariam apenas camuflando antigas práticas? Quais lógicas de ação norteiam as “novas” práticas observadas nas aulas dos professores no tempo de pandemia? Essas são perguntas que nortearão as análises dos dados produzidos neste trabalho.
Ensinar em tempos de pandemia: desafios e possibilidades
Esta segunda parte do texto apresenta análises quantitativas do impacto da pandemia da Covid-19 sobre o funcionamento das escolas e sobre o trabalho docente no contexto brasileiro. Como fonte de dados, este texto parte dos resultados de duas pesquisas institucionais (FCC, 2020; GESTRADO, 2020) que procuraram evidenciar as ações pedagógicas durante a pandemia de Covid-19 e as reelaborações sobre o trabalho docente.
A pesquisa “Trabalho Docente em Tempos de Pandemia” (GESTRADO, 2020), em parceria com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em educação (CNTE) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), contou com a participação de 15.654 professores atuantes na educação básica, nas redes públicas de ensino no Brasil. Os dados foram obtidos através de um questionário on-line aplicado em junho de 2020, cerca de três meses após a suspensão das aulas presencias nas escolas do Brasil.
A segunda pesquisa, “Educação escolar em tempos de pandemia” (FCC, 2020), desenvolvida pela Fundação Carlos Chagas, com apoio da Unesco e do Itaú Social, foi realizada no início de maio de 2020, com a participação de 14.285 docentes da educação básica, das redes públicas e privadas do Brasil. Nesse caso, foi aplicado um questionário on-line, composto por 24 questões fechadas e duas abertas.
Como dito, diante do fechamento das escolas pelos órgãos governamentais, em março de 2020, o modelo à distância se apresentou como a principal resposta para essa realidade, mas também o principal desafio para professores atuantes no modelo de ensino presencial. Segundo a Fundação Carlos Chagas (2020), 81,9% dos alunos da educação básica (cerca de 39 milhões) deixaram de frequentar as instituições de ensino.
A pesquisa do Gestrado (2020) identificou que grande parte dos professores (84%) continuaram a desenvolver atividades de trabalho de forma remota, durante o período de suspensão das aulas presenciais. Esse é um dado significativo, dada a diversidade das realidades regionais do Brasil, evidenciando que as atividades escolares se mantiveram. No entanto, cerca de 85% dos professores afirmaram que a o ensino remoto não garantiu a substituição das aulas presenciais. Os dados da Gestrado (2020) mostram que somente 14,3% dos respondentes concordaram totalmente com o fato de que a atividade à distância garante a não reposição das aulas, e 12,2% concordaram totalmente com o fato de o ensino à distância possibilitar a continuidade dos conteúdos que precisam ser abordados (GESTRADO, 2020, p. 13).
Outro dado que chama a atenção nas duas pesquisas, é que apenas a metade dos professores afirmou continuar interagindo com os estudantes. Os dados da FCC (2020) ainda identificam que os professores da rede privada consideraram que a maioria de seus alunos conseguiram realizar as atividades propostas, porém, apenas 24% dos docentes da rede pública municipal apontaram que a maioria dos seus alunos acompanhou as atividades on-line.
Esse dado evidencia os altos índices de desigualdade social do Brasil, reflexo da falta de acesso à Internet e aos equipamentos tecnológicos, por um número significativo de alunos das escolas públicas. Tal realidade distancia essa parcela da população do ensino remoto síncrono, estratégia adotada por grande parte das redes de ensino durante a pandemia de Covid-19.
Além disso, em 2021, mesmo com o retorno às aulas presenciais, parte desses alunos não voltou para as escolas, devido à defasagem na aprendizagem e ao desestímulo associado ao período de fechamento das escolas. Constataram-se, nesse mesmo ano, acréscimos nos índices de evasão escolar e de entrada de crianças e adolescentes no mercado informal de trabalho (BRASIL, 2021). Portanto, incluir a diversidade de condições sociais, garantindo aprendizagem para todos, se apresenta como o principal desafio do trabalho docente no Brasil, seja no fechamento das escolas ou no retorno ao presencial.
Ainda sobre a questão relacional, 84% dos professores constataram que houve perdas em relação à participação dos estudantes nas atividades propostas (GESTRADO, 2020). A pesquisa da FCC (2020) indica que as expectativas por parte dos docentes, tanto em relação à aprendizagem quanto à percepção de que seus alunos conseguem realizar as atividades propostas, estão próximas de 50%. Além disso, esses professores apontaram um aumento da ansiedade de seus alunos.
Temas como níveis baixos de participação e problemas emocionais dos alunos se ampliaram no contexto das aulas à distância na pandemia. Por outro lado, a relação entre a família e a escola parece ter se aproximado. Segundo dados de ambas as pesquisas, cerca de 70% dos professores disseram receber apoio das famílias nas atividades escolares (FCC, 2020, GESTRADO, 2020).
Sobre isso, o próprio papel do professor parece ter tido uma revalorização social, principalmente por parte das famílias, que passaram a ter que dividir com a escola a responsabilidade pela escolarização dos filhos em suas residências. Nesse contexto, as famílias parecem reconhecer nos professores as especificidades da profissão docente e dos conjuntos de conhecimentos que lhes confere distinção profissional (ROLDÃO, 2007) para exercê-la.
Na pesquisa da FCC (2020), através de uma questão aberta, os professores foram questionados se “o momento pelo qual estamos passando vai levar a uma valorização ou a uma desvalorização do trabalho docente?”. Nas respostas, há professores que apontaram que haverá valorização do trabalho docente pelas famílias, uma vez que pais e responsáveis passaram a sentir “na pele” a dificuldade de acompanhar as/os estudantes nas atividades que antes eram desenvolvidas no contexto escolar. Entretanto, outro grupo apostou em um aumento da desvalorização profissional, agravada pela forte presença das tecnologias aplicadas ao ensino on-line.
No que se refere à disponibilidade de recursos tecnológicos (Internet, banda larga, celular, computador), dos professores da rede pública participantes da pesquisa do Gestrado (2020), cerca de 83% afirmaram possuir recursos, em casa, para ministrar as aulas não presenciais, mas a metade compartilha os recursos com outras pessoas no domicílio. Ainda, 70% do total dos professores afirmou ter dificuldades para lidar com as tecnologias digitais, pontuando que não tiveram preparo para ministrar aulas não presenciais.
Quanto ao suporte recebido, técnico e/ou pedagógico, três em cada quatro desses professores possuíam plataformas ou aplicativos pedagógicos para a oferta das aulas remotas e receberam suporte pedagógico (GESTRADO, 2020). Na pesquisa da FCC, 70% afirmaram sentirem-se apoiados pela escola onde atuam. Essa foi uma realidade que se evidenciou no Brasil, pela contratação de diferentes serviços de plataforma digitais para organizar e transmitir aulas on-line, pelos órgãos oficiais das redes pública ou privada.
No que tange aos tipos de atividades desenvolvidas pelos professores pesquisados, ambas as pesquisas identificaram a concentração na realização de aulas remotas síncronas, na gravação de videoaulas e na produção e envio de material impresso aos alunos. A maior ou menor ênfase em cada uma dessas práticas variava de acordo com o segmento. Além disso, os docentes destacam, dentre suas novas atividades, o suporte dado aos alunos por meio de redes sociais e aplicativos de comunicação, bem como o aumento do número de participação em reuniões remotas com os membros da escola e o maior tempo dedicado para o planejamento das atividades pedagógicas.
O envio de atividades impressas aos alunos se tornou uma das principais opções adotadas pela rede pública de ensino, para minimizar a falta de acesso de parte dos alunos aos recursos tecnológicos. Nesses casos, o contato direto professor-aluno foi praticamente nulo, o que justifica que cerca de metade dos docentes tenham colocado, em ambas as pesquisas, que não interagia com os alunos durante a pandemia. Os professores destacaram que a principal preocupação, nesse formato, era organizar o tempo de estudo dos alunos e mantê-los engajados ao processo de ensino, mesmo com o distanciamento da escola.
Associado a esse conjunto de novas atividades desempenhadas pelos professores, evidencia-se um cenário de intensificação do trabalho docente advindo das demandas proporcionadas. Os professores informaram que o volume de atividades a serem elaboradas e corrigidas aumentou significativamente, além disso, necessitaram preparar e gravar videoaulas, participar de reuniões de replanejamento e adaptar as atividades para o ensino não presencial. Assim, as pesquisas evidenciam, que, na percepção da maioria dos professores, houve um aumento nas horas de trabalho, afirmado por 85% dos professores na pesquisa do Gestrado (2020) e 65% na FCC (2020).
Diante da apresentação desses dados (GESTRADO, 2020; FCC, 2020), cabe investigar as novas lógicas de ação norteadoras do processo ensino-aprendizagem que essas escolhas trouxeram. Quais mudanças nas concepções de ensino foram exigidas aos professores para se adaptarem a essa realidade? O que se manteve na cultura escolar norteando as “novas” práticas pedagógicas?
“Novas” lógicas para trabalho docente
O conjunto de dados analisados para refletir sobre as “novas” lógicas do trabalho docente foram os relatórios contendo registros de observações de aulas remotas/hibridas1 e das videoaulas produzidas por professores da educação básica. As observações ocorreram entre março e dezembro de 2020 e foram feitas por estudantes do curso de pedagogia de uma universidade privada durante o período de estágio.
Os estudantes-estagiários se encontravam matriculados nos 7º e 8º períodos do curso. Eles observaram remotamente aulas de nove professores, em nove turmas do 1º ao 5º ano do ensino fundamental, em três escolas privadas e uma pública. A universidade possuía convênio com essas escolas, onde esses estudantes realizaram estágios curriculares não remunerados, de acordo com as determinações legais. As vinte videoaulas observadas se encontravam disponíveis ao público na Internet.
Todo esse material foi debatido e analisado coletivamente nas aulas de supervisão, por duas turmas de estagiários de pedagogia (24 estudantes), ocorridas também de forma remota, durante os meses das observações. Depois, foram redigidos os vinte e quatro relatórios, um por cada estagiário, objeto de coleta de dados para as análises deste texto. Assim, entre as análises das evidências objetivas dos dados quantitativos e os elementos subjetivos da análise qualitativa, os próximos itens deste texto procuram apresentar o trabalho realizado pelos professores em tempos de pandemia no Brasil, as ressignificações realizadas, as práticas mantidas do modelo presencial e os processos de resiliência desenvolvidos para se adaptarem à adversidade.
Pode-se afirmar que a principal lógica de ensino do trabalho docente vigente nas escolas, antes da pandemia, adota o modelo presencial e expositivo da sala de aula: alunos enfileirados, quadro na frente, professores expondo os conteúdos e acompanhando as respostas dos alunos.
A pandemia quebrou essa forma escolar e outras lógicas da sala de aula do processo de ensinar e aprender. Onde está o quadro? O que fazer agora? Como ensinar nesse cenário remoto ou por via de material impresso? Como reconhecer que o processo de aprendizagem se efetivou? Como se relacionar com os alunos? Essas foram novas questões que se impuseram sobre as lógicas de ação do trabalho docente em tempos de pandemia.
Neste texto, pretende-se explorar quatro dessas lógicas: a lógica curricular, a lógica do tempo e espaço, a lógica do ensino-aprendizagem e a lógica relacional. Ao evidenciar a efetivação de novas lógicas de ação conduzindo a prática de alguns docentes, baseada no rompimento da cultura escolar predominante, o texto opta por nomear esses professores de “inovadores”.
Lógica curricular
Há quem aposte que a pandemia, a suspensão das aulas presenciais nas escolas e a necessidade de mudar o processo de ensino-aprendizagem trouxeram à tona o questionamento sobre “para o quê servem as escolas?”. Acusada de obsoleta por alguns, mas essencial para outros, o fechamento das escolas promoveu um debate intenso na sociedade sobre o papel das instituições de ensino. De transmissora de conteúdos à responsável pelo processo de socialização e de humanização, a escola na pandemia se viu tendo que reafirmar seus objetivos e sua própria função social.
Para que servem as escolas? Essa tem sido uma pergunta frequente nesses tempos de incerteza em que a possibilidade de um novo confinamento se anuncia. É uma pergunta que afeta toda a humanidade: em relação à saúde, porque somos um corpo, ou à educação, porque somos sociais e culturais (TEBEROSKI, 2020, p. 01).
Destaca-se que chegar a um consenso sobre para que servem as escolas nunca foi possível e nem parece ser esse o objetivo da própria escolarização. Não é desejável padronizar os modelos escolares em torno de objetivos universais e únicos, pois, como já afirmava Canário (2006), cada escola é única em sua especificidade e local de inserção, produtora de saberes e objetivos para atender aos interesses de quem a acessa. Diante dessa constatação, o objetivo aqui é identificar como os professores se colocaram diante desse debate, tendo como fonte empírica a observação de suas ações em tempos de ensino remoto. Analisando como os professores se posicionaram em relação aos currículos das escolas, respondendo sobre o que ensinar em tempos de pandemia e o que priorizar, é possível identificar como eles respondem à questão “para que servem as escolas?”.
Com base nas respostas de vinte três professores2 sobre as questões: “Em tempos de pandemia é possível manter o currículo planejado anteriormente? Quais conhecimentos devem ser ensinados/priorizados neste momento?”, foi possível problematizar algumas concepções e ações comuns em relação às escolhas dos conteúdos priorizados pelos docentes no período de pandemia.
Todos os vinte e três professores responderam que não era possível manter os conteúdos a ensinar e nem os mesmos objetivos e relataram a busca por novos temas que se adequassem à realidade, motivassem o aluno a aprender ou garantissem a manutenção das habilidades já desenvolvidas.
Na verdade, essa situação toda provoca uma reavaliação sobre o que é realmente indispensável trabalhar. Muito mais a qualidade do que a quantidade, o que é informação, e pode ser acessado de diferentes formas, e o que se transforma em conhecimento real e poderoso (Depoimento de professor da educação básica).
É necessário priorizar atividades e conteúdos que vão despertar no aluno um interesse com aplicabilidade prática e interativa no ambiente em que se encontram (Depoimento de professor da educação básica).
Esses dados nos levam a crer que esses professores atuaram como inovadores, ao se colocarem em uma posição de revisores dos currículos escolares, questionando os objetivos da escola diante do que eles evidenciaram como essenciais para o aluno aprender no momento de isolamento e da necessidade de traçar prioridades.
Porém, contradições também fazem parte das lógicas que regem o trabalho docente, seja no presente ou na história da própria profissão. Assim, na pesquisa da FCC (2020), cerca de 70% dos professores afirmaram que mantiveram os conteúdos do ensino, mesmo que cerca de 80% tenham afirmado adotar uma readequação dos modelos de avaliações e 100% terem adotado o ensino a distância. Os registros nos relatórios analisados também evidenciam essa manutenção do currículo escolar na prática da maioria dos professores.
Isso pode indicar uma desarticulação nas lógicas que norteiam o trabalho do professor, no que tange aos objetivos do ensino e aos conteúdos a ensinar, que compõem o currículo escolar e a forma de ensinar, entendido como a didática. Mesmo que não caiba neste texto debater o processo de interdependência entre esses campos de estudo, currículo e didática, é preciso afirmar que a escola na pandemia evidenciou contradições nas lógicas de ação docente, na estruturação dos currículos escolares. Como não rever conteúdos, uma vez que os objetivos se alteraram? Como manter a lógica curricular diante do formato de ensino remoto? Como modificar a forma de ensinar desarticulada da reflexão sobre conteúdos a ensinar?
Isso mostra que, ainda que se tivera uma reinvenção por parte dos professores em relação às suas estratégias didáticas para ensinar, uma reflexão mais densa precisa ser incorporada aos processos de desenvolvimento profissional, no que se refere às lógicas curriculares do ensino e aos objetivos da escola.
Lógicas de tempo e de espaço
Outras lógicas de ação dos professores que a escola em tempos de pandemia colocou em xeque foram as lógicas de tempo e de espaço, nas quais a estrutura organizacional da forma escolar se alicerça. O espaço da sala de aula se reconfigurou no modelo remoto, em que cada aluno ocupa uma pequena janela na tela do computador durante as aulas ao vivo. O fato de os alunos estarem reunidos fisicamente em classes e sob a gestão pelos professores deixou de predominar como elementos centrais do processo ensino-aprendizagem. Faz sentido se utilizar das aulas expositivas nesse formato? Como expor conteúdo no quadro, se ele não existe mais? Qual o tempo de concentração permitido na tela de um computador no isolamento de cada casa, seja para crianças ou jovens? O que valorizar nesses tempos de interação agora reduzidos?
Pode-se afirmar que um dos grandes desafios para reorganizar o tempo e o espaço das aulas por parte dos professores está na lógica que norteia a própria profissão docente. Os professores ministram as aulas com base na chamada hora/aula, que direciona toda estrutura temporal e organizacional das escolas.
Diante dos novos limites de tempo impostos pelas aulas remotas síncronas, ligados ao acesso aos recursos tecnológicos ou às novas dinâmicas de concentração dos alunos, alguns professores adotaram as videoaulas gravadas como forma de ensinar. Nesses casos, o caráter expositivo dos conteúdos prevaleceu, mas no relato de alguns estagiários, essa ferramenta, que perdia em interação, ganhava em liberdade por parte dos alunos de conduzir a própria aprendizagem, pois permitia que acionassem os vídeos em tempo e espaços diversos.
No entanto, constatou-se que outros professores apostaram em videoaulas mais interativas, com apoio de recursos tecnológicos que permitiam a edição dos vídeos, incluindo recursos audiovisuais modernos ou produziam videoaulas que exigiam ações síncronas dos alunos pelo comando do professor na tela. Porém, em nenhum desses casos havia a possibilidade de qualquer controle sobre as lógicas de tempo e espaço adotadas pelos alunos ao assisti-las. Além disso, dois fatores influenciaram essas ações mais elaboradas para promoção das videoaulas interativas: a disponibilidade de recurso e o conhecimento técnico por parte do professor.
Para lidar com as limitações de espaço - as aulas eram transmitidas direto das residências dos professores - identificaram-se duas lógicas nas observações das aulas remotas. A primeira, de busca pela manutenção da forma escolar, na qual os professores não renunciaram ao espaço escolar baseado no quadro e na exposição e, para isso, adaptaram seus espaços residenciais e improvisaram um “quadro” para exposição dos conteúdos. Observou-se o uso desde os azulejos da cozinha e uma caneta hidrográfica até o uso de lousa digital virtual que reproduziam o papel do quadro para exposição dos conteúdos, como também exposição das páginas do livro na tela do computador e apresentações de slides.
Por outro lado, mesmo que aparentemente contraditório, encontrou-se um conjunto de professores inovadores que conseguiram ampliar a lógica espacial da escola no meio virtual, mesmo no limite do ensino residencial. Para isso, utilizaram, principalmente, a criatividade aliada aos recursos digitais de plataformas on-line de natureza interativa. Constataram-se aulas ministradas em museus virtuais, plataformas de viagem espacial, mapeamento das estrelas em tempo real, jogos digitais educativos, enquetes ao vivo e atividades de escritas coletivas. Nesse cenário, a nova lógica de ação predominante se baseava em possibilitar condições para o desenvolvimento da autonomia e da autorregulação por parte do aluno, permitindo que diferentes e múltiplos percursos de aprendizagem individual se estabelecessem.
Segundo Dubet (2002), a maioria dos professores possui a crença da necessidade de controle de seu trabalho e, para isso, se sentem confortáveis com a homogeneização das práticas pedagógicas e com o acompanhamento coletivo do desempenho dos alunos, o que explicaria a dificuldade de adesão a uma nova lógica no processo de ensino-aprendizagem. Dubet (2002) chega a afirmar que a obsessão dos professores pela aprendizagem encerra os docentes em uma burbuja (bolha de ar), na qual acaba por ignorar as condições de vida das crianças. Assim, pode-se perceber que romper com lógicas de ensino naturalizadas é um dos grandes desafios da ação docente, mesmo que a realidade mostre novos contextos.
Ainda em relação ao tempo, os termos síncrono e assíncrono passaram a se inserir no vocabulário de professores e alunos e a nortear a organização do tempo dessa nova escola em tempos de pandemia. Os princípios do ensino híbrido (CANDAU, 2018) baseado em processos de ensino-aprendizagens múltiplos e, na maioria das vezes, revezando ações no presencial com o uso das mídias digitais, passaram a fazer parte do discurso dos professores. No entanto, as observações das práticas pedagógicas, registradas nos relatórios, mostraram ainda o distanciamento de uma real quebra da lógica do ensino transmissivo e expositivo nas novas salas de aulas, sejam remotas ou flex.
Por outro lado, outras formas foram encontradas para administrar as novas lógicas de espaço e tempo em uma das escolas observadas, rompendo com as fronteiras entre turmas e até séries, reorganizando o tempo dos professores nas aulas e permitindo interações entre os docentes de diferentes disciplinas, favorecendo o trabalho coletivo.
Lógica do ensino-aprendizagem
Uma das principais mudanças nas lógicas de ação dos professores para ensinar em tempos de pandemia se relaciona às novas formas de viabilização do processo ensino-aprendizagem, objeto de estudo do campo da didática. Assim, os professores se viram interrogados: Como desenvolver o processo de ensino-aprendizagem neste contexto de pandemia e de aulas a distância? Como ensinar? Qual a nova concepção de aula nesse formato?
Alguns princípios se evidenciaram nesse cenário, ao se constatar que os alunos precisariam deixar de ser sujeito passivo, que só recebe informações no processo de ensino-aprendizagem, e passa a ser concebido como participante ativo do processo. Nas observações dos estagiários, os professores inovadores demonstraram valorizar o aluno autônomo e aprendiz, criando estratégias de ensino que desenvolvessem esse perfil. Nunca motivar o aluno para aprender foi tão importante, ainda mais em um cenário novo, olhado com desconfiança e até desconforto por parte dos alunos.
Uma das estratégias observadas nas práticas de alguns desses professores se baseou no princípio da diversificação das atividades. Para sua efetivação, novamente, as aulas dos professores exigiram criatividade e diversidade do repertório metodológico, para manter e procurar consolidar a aprendizagem de alunos no ambiente virtual e a distância.
Outra característica evidenciada nas estratégias adotadas pelos professores inovadores e que dialoga com a lógica de tempo refere-se à ideia de envolver os alunos em um processo de aprendizagem contínuo. Mesmo em tempos de distanciamento, esses professores procuraram manter a continuidade dos trabalhos escolares, permitindo um ambiente de serenidade em meio ao caos da pandemia, sem pressões por resultados, mas com foco no bem-estar e no equilíbrio emocional de crianças e jovens. Foi o momento de formular novos objetivos para o ensino, baseados na humanização e indo além da preocupação com o conteúdo prescrito para ensinar.
É importante registrar que as observações das práticas pedagógicas, durante a pandemia, permitiram identificar a manutenção das lógicas transmissivas de exposição de conteúdos por parte de professores e a reprodução de lógicas organizacionais da escola presencial. Nesses casos, objetivos, currículos, avaliações e práticas de ensino se mantiveram inalteradas, foram apenas deslocadas para o cenário on-line. Crianças vestidas de uniforme na frente do computador, tempo organizado nos moldes do presencial com aluno na tela do computador por horas seguidas, uso do livro didático com principal estratégia de ensino, microfone desligado para garantir o silêncio absoluto para exposição do conteúdo, chat bloqueado para evitar interrupções e “conversas” paralelas são alguns exemplos de que o cenário do ensino em tempo de pandemia não trouxe rupturas da forma escolar hegemônica. Identifica-se que as lógicas que norteiam a cultura escolar são de difícil desnaturalização e reconstrução, mesmo diante de uma situação de conflito.
Como aponta também Flores e Gago (2020), as respostas rápidas e imediatas que os professores forneceram dentro de uma lógica de conformidade com regras e regulamentos externos podem reforçar visões mais instrumentais e estreitas do ensino. Para as autoras, essas respostas podem contribuir para a compreensão dos professores como meros executores ou implementadores, em vez de profissionais ativistas e comprometidos, cujas práticas e ações pedagógicas são baseadas em pesquisas.
A lógica relacional da docência
Pode-se constatar que a lógica relacional foi uma das que mais sofreu impacto e a que mais exigiu dos professores um processo de reinvenção. Sabe-se que a docência se caracteriza por ser um trabalho sobre o outro (DUBET, 2002), isto é, baseado nas interações humanas (TARDIF; LESSARD, 2005). Um fato que o ensino em tempos de pandemia evidenciou foi a necessidade de valorização dessa lógica relacional como condição para que o processo de ensino-aprendizagem se efetive. Contraditoriamente, a ausência/redução da dimensão relacional no processo de ensinar no formato a distância evidenciou sua necessidade e valorização.
Alunos e professores, ao serem indagados sobre o que mais sentiam falta na escola nesse período de isolamento ou o que dificultava a aprendizagem, destacaram a ausência ou redução das relações com os outros como principal impeditivo.
Como interagir no ensino não presencial? Se a escola é um lugar de relações, o que fazer quando retiram a sua essência? O que parecia ser de difícil resposta, encontrou algumas alternativas no trabalho de professores. As plataformas de ensino remoto ao vivo, associadas a um computador/smartphone com webcam, som, microfone e Internet, foram os primeiros recursos de interação acionados. Porém, a velocidade da Internet e o volume dos pacotes de dados passaram a regular desde as escolhas metodológicas de ensino até as formas de interações. Do dilema da câmera aberta ou da câmera fechada, ao silêncio do outro lado da tela, os professores se viram diante do desafio de como se fazer visto ou de como ver o outro no ambiente on-line.
Novas formas de interação foram surgindo, como o uso dos chats ao vivo durante as aulas remotas ou dos grupos de aplicativos de comunicação, os quais crianças e jovens, muitas vezes, adotaram como forma de interação mais espontânea. Professores descobriram novas formas de utilizar esses recursos em suas aulas como um aliado na garantia do processo de interação. Assim, as redes sociais e os aplicativos de conversas on-line se efetivaram também como recursos pedagógicos, às vezes até com os melhores resultados do que as plataformas educacionais remotas contratadas pelas redes de ensino.
Na volta parcial ao ensino presencial, as lógicas relacionais também se mantiveram questionadas. Por um lado, era preciso manter os alunos, no caso crianças, em seus lugares, de máscara de proteção e com poucas interações corporais entre eles. Por outro lado, ainda havia os alunos que continuaram no ambiente remoto e acompanhavam as aulas por uma câmera instalada na sala de aula. Professores e alunos lá e cá tentavam interagir, mas com pouco sucesso.
Tratava-se, nesse caso, de um cenário do campo do impossível, pois estavam em jogo duas lógicas de processo de ensino-aprendizagem diferentes, ensino remoto e presencial. Esse relato evidencia claramente como as lógicas de ensino presencial se mantiveram quase que intactas. Como seria possível para o professor conduzir dois processos de ensino-aprendizagem de princípios distintos, ao mesmo tempo, utilizando a mesma estratégia didática, o mesmo currículo e os mesmos objetivos?
Não se pode esperar aqui um relato sobre como os professores agiram e reinventaram essa realidade, pois o que se vê, nessas chamadas aulas flex, é um cenário de precarização do trabalho docente e de improvisação do “agir da urgência e decidir na incerteza”. Perrenoud (2001), ao formular essa frase, anunciou ser a docência uma profissão desafiante, com constantes chamados a reinvenções, mas indicou que não requer somente capacidade de improvisação, pois os princípios de uma aprendizagem efetiva precisam ser os estruturantes das ações pedagógicas. Agir com mera improvisação, sem base nos objetivos do ensino e na valorização do outro ou na naturalização de desafios impossíveis, não configura o papel da docência. Defende-se, como Perrenoud (2001), a importância de um repertório profissional docente que permita quebrar lógicas de ação dominante, mas com fundamentos educacionais sólidos, intelectualidade, criatividade, pesquisa e reflexão, inerentes a uma formação contínua do professor, permitindo prepará-lo para a complexidade, a diversidade e as situações profissionais que terá de enfrentar.
Considerações finais: agir na urgência e pensar no futuro
Este texto se desenvolve a partir de muitas perguntas, pois trata de um tempo novo, um tempo de rearranjos e de reflexões. Como afirma Freire (1985), perguntar faz parte de um jogo intelectual que permite viver a indagação, viver a curiosidade e se insere no movimento interno do ato de conhecer. Assim, ao buscar analisar as práticas pedagógicas adotadas pelos professores e responder à questão central, “que novas e antigas lógicas transitam nas práticas pedagógicas dos professores no ensino remoto e/ou no modelo híbrido?”, o texto foi se construindo pela reflexão e se desdobrando em novos questionamentos. Dentre eles, a maioria parece culminar em uma nova questão: Teremos uma nova escola no pós-pandemia?
Para responder, com base nos dados apontados, há elementos diversos que permitem uma resposta tanto positiva quanto negativa. Dizer que sim, teremos uma nova escola no pós-pandemia, é apostar em uma reinvenção da escola associada às inovações pedagógicas que foram identificadas em algumas práticas docentes e nas novas lógicas de ação impostas pelo novo contexto social da pandemia.
Porém, também pode-se dizer que não, a escola pouco rompeu a sua forma escolar, pois se identificou uma fragilidade estrutural por parte das inovações das práticas pedagógicas que pudessem sustentar a reinvenção da escola.
O principal entrave para essa ruptura está nas próprias práticas pedagógicas adotadas diante da crise, uma vez que parte delas parece vir desvinculada de uma ruptura da lógica curricular e de uma revisão dos objetivos da escola. O campo do currículo e da didática (OLIVEIRA; PACHECO, 2018) aponta que, para a escola garantir as mudanças de suas práticas pedagógicas no caminho da reinvenção, essas não podem estar desvinculadas de novos objetivos e da seleção de novos conteúdos a ensinar. Mudar apenas um desses elementos não repercutiria em uma reinvenção da escola, como defende Candau (2015), ou em sua metamorfose, como indicam Nóvoa e Alvim (2021).
Esse reinventar, já em pauta muito antes da pandemia de 2020, compreende construir uma escola que possa dar resposta aos desafios da sociedade em que vivemos e a convicção de que a educação escolar pode colaborar para processos de transformação estrutural da sociedade. Assim, reinventar a escola envolve novos currículos plurais e diversos, com novos arranjos de seus espaços, tempos, organização e didáticas.
Candau (2000) ainda destaca que, para reinventar a escola do século XXI, é preciso olhar para os elementos multiculturais, articulando igualdade e diferença, direitos humanos e cidadania, diversidade de saberes e autonomia. Como visto no debate sobre lógica de ação dos professores, a força dos princípios de justificação coletiva para determinadas práticas se associa a um discurso de justiça social igualitária, mas, muitas vezes, não adota uma perspectiva da educação verdadeiramente intercultural. A homogeneização e a padronização ainda marcam as escolhas das ações pedagógicas da maioria dos professores, pois os currículos ainda se mostram únicos e os processos avaliativos também, antes ou durante a pandemia.
As análises deste trabalho mostraram que, mesmo com a quebra das lógicas curriculares, do espaço e tempo, do processo ensino-aprendizagem e das relações trazidas pelo ensino remoto/híbrido na pandemia, a maioria das novas práticas pedagógicas adotadas não alterou as respostas para as três questões clássicas da ação docente, “por que ensinar?”; “o que ensinar?”; “como ensinar?”, e não incorporaram a pergunta “para quem ensinar?”.
Portanto, respondendo: “é possível supor que as chamadas inovações pedagógicas adotadas em tempo de ensino remoto emergencial estariam apenas camuflando antigas práticas?”. Sim, parte dessas inovações pedagógicas parecem camuflar antigas lógicas de ação de um ensino expositivo, conteudista, homogêneo, desigual e monocultural. Identifica-se uma variedade de estratégias pedagógicas digitais adotadas pelos professores no tempo de pandemia que não se via antes nas escolas. Porém, as lógicas norteadoras se mantiveram as mesmas, com poucas oportunidades de construção da autonomia dos alunos sobre o seu processo de aprendizagem, com os mesmos conteúdos, com a mesma organização das turmas, enfim, sem reinvenção da forma escolar dominante.
Com isso, o que se constatou foi a transferência do modelo do ensino presencial naturalizado e onipresente para o formato virtual. Como evidenciou o texto, os professores, quando se viram sem o quadro para ensinar, com muita criatividade, adaptaram os espaços para manter o ensino expositivo; utilizaram jogos e software digitais como ferramentas de memorização de conteúdo; apoiaram-se nas plataforma de videoconferência para “tomar conta” do aluno fazendo provas em tempo real; enviaram listas de repetição de exercícios para as residências; controlaram a gestão de classe e a indisciplina com o fechamento dos microfones e o bloqueio dos chat do ambiente virtual; mantiveram a padronização da organização do tempo nas horas/aulas.
Contudo, como aponta Dubet (2002), não se trata apenas de uma resistência na quebra das lógicas de ação vigentes no trabalho docente ou de uma simples substituição de concepções de ensino e de escola já consolidadas. Trata-se de um processo longo e necessário de reflexões, de questionamentos e de reelaborações, que toda profissão e instituição precisa passar diante de crise e quebra de paradigmas impostas pelo contexto histórico e social. Mesmo que, em um primeiro momento, as primeiras ações sejam de reprodução daquilo que lhe parece confortável, elementos novos não deixam de ser incorporados.
Construir novas lógicas de ação é sempre um desafio e envolve uma série de elementos pessoais, coletivos e institucionais. No entanto, o que também as análises das práticas pedagógicas dos professores nomeados como inovadores mostraram foram ações insurgentes que podem caminhar para uma reinvenção da escola. Destacam-se as práticas adotadas por esses docentes de incentivo a autorregulação dos alunos de seu processo de aprendizagem, de novas formas de organizar os conteúdos e o espaço-tempo, da promoção de trabalhos coletivos e interativos, da criação de novos espaços de interação professor-aluno, de substituição do ensino expositivo por possibilidades de múltiplos itinerário de aprendizagem, de ampliação do conceito de tempo de aula, da incorporação de novos conteúdos, novos objetivos e novas didáticas. Dessa forma, é possível agir na urgência e pensar no futuro.
Na verdade, como aponta Candau (2015) e Mesquita (2020), uma série dessas experiências insurgentes já existe nos sistemas educativos, apontando para outros paradigmas escolares. Portanto, é falso afirmar que não há inovação pedagógica nas escolas antes da pandemia - quem diz isso não vai às escolas. O que ocorre é a ausência de espaços de socialização dessas práticas que permanecem periféricas e não são adequadamente visibilizadas e nem fortemente apoiadas.
Assim, desde a democratização de acesso à escola e o advento de expansão das TIC, o trabalho docente já vem enfrentando os desafios de uma reinvenção profissional. Esse processo de redefinição esbarra em uma série de dilemas, envolvendo desde os objetivos da educação e a luta por justiça social pela escolarização até os impasses sobre o desinteresse dos alunos para aprender e o dilema da seleção de conteúdos a ensinar frente à multiplicidade de saberes. Nessa reinvenção da profissão, não se trata de buscar elementos em torno de uma padronização da forma de exercer a docência, mas de garantir uma autonomia pedagógica e uma intelectualidade alinhada com o compromisso da reinvenção da escola e da quebra de paradigmas da cultuar escolar.
Em tempo de buscar concluir as análises deste trabalho, é importante registrar que este texto tem por trás o objetivo de fazer um registro histórico. Como aponta Candau (2000), a escola é uma instituição que faz parte da história de vida de muitas pessoas e, portanto, todas as solicitações de reinvenção que lhe são cobradas fazem parte de um momento histórico e são resultado de mudanças na sociedade, no perfil do cidadão e nas demandas sociais, nos avanços da ciência e da tecnologia. Nesse sentido, as reflexões aqui propostas partem das experiências vividas em tempos de pandemia do Covid-19 e, com certeza, cumprirão seu papel de fazer história.