Introdução
Este artigo é fruto de duas pesquisas-formação na cibercultura realizadas no GPDOC1, a saber: sala de aula no contexto da cibercultura: formação docente e discente em atos de currículo (RIBEIRO, 2015) e formação de formadores no contexto das novas demandas sociais, culturais, pedagógicas e políticas na cibercultura (SANTOS, R., 2015), nas quais os dados foram construídos mediante contato direto, implicado e interativo dos pesquisadores com a situação de estudo. Os dados das pesquisas que produzimos são resultantes de diálogos dos saberes plurais engendrados nas relações vividasentidas pelos praticantes culturais nos ambientes on-line, sendo, portanto, a Educação Online um dispositivo na formação do ciberautorcidadão, noção cunhada em contexto e, por isso mesmo, opção de abordagem neste artigo.
A discussão sobre a formação docente no contexto da cibercultura vem se ampliando no meio acadêmico, sendo notória nos cursos de graduação e pós-graduação, nas conversas informais de professores, nas interações das redes sociais a percepção da necessidade de se pensarfazer2 práticas formativas que potencializem as aprendizagens com os usos das tecnologias digitais nos espaços formativos acadêmicos e escolares. Essa demanda traz para o campo da pesquisa em educação questões diversas e complexas se diferenciando em função dos contextos e contingências em que se encontra cada pesquisador.
Inspirados em perspectivas de produção de conhecimento com o método da pesquisa-formação na cibercultura multirreferencial e com os cotidianos, nos autorizamos ao respeito à pluralidade, ao encontro com as diferenças, ao entretecer saberesfazeres acadêmicos com saberesfazeres do cotidiano. Como investigadores ativos, produzimos dados em/nas redes com docentes e discentes que colaboram com a interpretação dos fenômenos de pesquisa que estudamos, dos quais somos sempre sujeitos em processo de formação.
Com essas inspirações movidas pela razão/emoção/desejo/implicação apresentamos neste artigo a noção do ciberautorcidadão, cunhada em Ribeiro (2015), como processo de uma tessitura de conhecimento fundado na bricolagem interpretativa de narrativas produzidas no cenário da pesquisa na relação com o saber científico, trazendo a cena a ideia de que “o pesquisador deve circular sempre em dois mundos - aquele dos atores e aquele da teoria social” (MACEDO, 2010a, p. 59).
Diante do exposto, propomos nesse artigo discutir as possibilidades de uma formação docente e discente tendo como referência uma relação pedagógica viabilizadora do ciberautorcidadão. É necessário para essa formação situar os atores envolvidos como praticantes culturais no contexto da cultura contemporânea do digital em rede, na qual os sujeitos, em suas singularidades e heterogeneidades, exercitam a própria aprendizagem da autorização e da alteração.
O artigo está organizado em três partes. Na primeira apresentamos nossas inspirações epistemológicas e metodológicas na tessitura da pesquisa-formação na cibercultura. No segundo momento, apresentamos a noção do ciberautorcidadão como postura em devir que se atualiza em função de dispositivos autorais e da implicação com nós mesmos e com os outros em ambiências formativas on-line (RIBEIRO, 2015). Por fim, apresentamos um dispositivo autoral de pesquisas-formação com docentes da Pós-Graduação em Educação da UERJ (SANTOS, R., 2015). O texto aqui apresentado se constitui como um espaço de reflexão para um pensarfazer pesquisa com um rigor outro, na qual somos sujeitos autores capazes de produzir inteligibilidades e interpretações referenciadas na experiência.
Maria Luiza Oswald
11 de junho de 2013 · Rio de Janeiro
Tude Oswald - irmã querida - muito obrigada por me incentivar a lembrar aqui o aniversário da Mari. Sem mamãe - que nunca a esquecia - e com o tempo corrido que não deixa mais que a gente converse e lembre dos nossos queridos, a lembrança da Mari poderia ficar só entre nós duas. E quando formos velhinhas e nossa memória estiver fraca, Mariana enfim morreria. Assim não, quanta gente veio aqui e lembrou dela (apesar de tanto tempo passado) e mesmo quem não a conheceu soube que existiu uma menininha muito, muito querida. O gesto que você fez hj no Skype de botar as mãos no rosto e chorar chamou a atenção de duas moças que estavam ao meu lado no restaurante. Como eu estava sozinha e meus olhos se marejaram, elas foram solidárias e eu pude dividir com ambas um pouquinho da história da Mari. Saí de lá com o coração tranquilo, vim pra casa, tirei uma foto de uma das poucas que ficaram dela, coloquei aqui (no Facebook) e veja o que aconteceu: todas essas pessoas amadas vindo aqui me ajudar a lembrar da minha menina bonita. Como sou sortuda por ter vc e por ter tantas e tantos amigas e amigos do peito. Bjs pra vc e pra tod@s (OSWALD, 2013).
Começamos esta pesquisa demarcando que esta se inscreve no contexto da cibercultura e a iniciamos dialogando com a narrativa da professora-formadora Maria Luiza com seu post no Facebook. Sua narrativa implicada e implicante constitui sua própria história em formação na medida em que eleva a experiência formadora (JOSSO, 2004) à condição de referência para as pessoas que, refletindo-a, também se formam.
Ao trazer a formação do ciberautorcidadão como objeto desta pesquisa, compreendemos que todo ato de ensinar e toda criação curricular passam necessariamente pela preocupação com a formação como experiência social, política, acadêmica e afetiva.
Assim, uma epistemologia de formação precisa ser reinventada a partir das mudanças socioculturais demandadas pelos usos das tecnologias digitais em rede e nos inspira a pensar a docência em novos espaços de interação e de aprendizagem, em uma perspectiva menos centralizadora, mais interativa e horizontal.
Entender a formação como processo em que o docente constrói o seu caminhar, pelo seu fazer fazendo-se, se apresenta como um ato dinâmico de vivências subjetivas, percepções, opiniões e singularidades criadoras coletivas. A palavra “formação” carrega consigo uma grande variedade de significados e sentidos. Reconhecida como necessária para o exercício de uma profissão, ela também faz parte da evolução da nossa história de vida. O que é vivido por aqueles que refletem sobre o que acontece de formativo em suas vidas constitui uma via de acesso à compreensão do conceito de formação.
A narrativa de Maria Luiza revela que a formação do formador se dá a partir das redes que ele habita, dos signos que produz e das relações estabelecidas com as redes sociotécnicas, com as coisas e com as pessoas. O enredamento permanentemente percebido nos processos de formação e nos sentidos e práticas docentes influencia e tece, simultaneamente, discursos e práticas que nos ajudam a perceber os contextos que envolvem a formação. Uma apropriação de discursos e valores nos indica a articulação entre tais contextos e mesmo a interferência de outros que nos atravessam nos processos formativos. Alves (2010; 2015a; 2015b) desenvolve a ideia de que esses múltiplos contextos extrapolam o contexto da formação acadêmica e remete-se a espaçostempos que também podem atravessá-la.
Em Santos, E. (2014), os saberes da docência on-line são espaços vividos e construídos no devir da cibercultura. Para a autora, cada vez que um novo praticante se conecta ao ciberespaço, uma nova rede de relação se constitui, e é nessa relação que dinâmicas e processos são articulados nos espaçostempos de formação.
Juntos, professoras-formadoras, alunos, grupos de pesquisa com seus objetos técnicos e artefatos culturais criam e inspiram conteúdos diversos, dispositivos coletivos, colaborativos e em rede, e nessa criação precisaremos repensar os currículos em tempo de cibercultura e suas novas potencialidades comunicacionais. E que esse repensar possa ser possível a partir de pesquisas e projetos que nos façam compreender como uma epistemologia de formação pode ser forjada também nesses outros espaçostempos de aprendizagem.
A autoria cidadã no contexto da Ciberpesquisa-formação: inspirações teórico-metodológicas
Em nossos estudos e pesquisas, a bricolagem, a inventividade e criação, a reflexão, o estranhamento, a ampliação e ressignificação de sentidos, por meio de saberes-fazeres da/na pesquisa-formação na cibercultura têm sido potência para a autoformação e formação referenciados na experiência. Formar enquanto se forma nos aproxima, permanentemente, de uma postura implicada com processos formativos de aprendermos junto com o outro, ampliando o olhar sobre nós mesmos e sobre a nossa prática (RIBEIRO; SANTOS, 2017).
O que precisamos é de pesquisas que, por meio da tessitura de saberes acadêmicos e experienciais, tradicionais, de autoformação potencializem a nossa capacidade de pensar problemas complexos e os desafios da sociedade. Uma postura que precisa ser tecida entre professores e alunos no processo formativo.
Em cada pesquisa-formação que realizamos atualizamos o nosso contexto profissionalformativo articulando processos plurais de compreensão da realidade impossíveis de serem percebidos por procedimentos metodológicos que se fundamentam em pressupostos do pensamento reducionista (SANTOS, E., 2005; 2014; MACEDO, 2010a; 2010b). Criamos dispositivos autorais, intencionais e engendrados de sentidos pelos praticantes culturais que interagem nos espaços multirreferenciais de aprendizagens na relação cidadeciberespaços.
Nossos estudos se fundam na noção de etnopesquisa, porque tecidos na relação com pessoas e suas culturas e não sobre as pessoas. Dessa forma, um dispositivo não pode ser visto como eterno e acabado, mas como dinamismo, movimento, algo se fazendo, uma vez que entendemos, como Macedo (2010a), que a verdade é produto de um encontro. Encontro entre as diferenças, no qual os sentidos plurais se apresentam em meio às narrativas dos sujeitos/atores/pensantes que interpelam, agem, atuam, resolvem questões no cotidiano a partir de suas redes de conhecimento.
Em Macedo (2010b), encontramos a discussão da origem da palavra dispositivo que deriva do latim dispositum, relacionada ao “o que prepara”. A palavra na contemporaneidade ganha sinônimo de agenciamento, método, procedimentos. Optamos assim, pela noção de dispositivo como um método aberto, que se faz em ato com a experiência de sujeitos em movimento. Nessa perspectiva, os dispositivos de formação vão se constituindo nos diferentes espaçostempos de pesquisa que realizamos a partir de experiências refletidas e significadas por meio da negociação de sentidos, percebidas inclusive nos dilemas que emergem da/na relação entre os sujeitos/atores sociais da pesquisa. Em Santos, E. (2014), há a afirmativa de que não existe pesquisa-formação desarticulada do contexto da docência. Assim, a docência on-line é contexto, campo de pesquisa e dispositivo formativo na cibercultura.
A pesquisa com um rigor outro nos coloca no cenário de uma tessitura metodológica que, como nos diz Macedo (2010a) ao se referenciar ao método da etnopesquisa-formação, é “caminho optado, ação refletida e formação” (p. 14), condição para a coparticipação e para a construção de conhecimento implicado e engajado. Não fazemos pesquisa sobre o outro ou sobre o fenômeno estudado, mas nos implicamos com nós mesmos e com o outro como partes estruturantes do fenômeno estudado.
Em Ribeiro e Santos (2017), apresentamos a noção de bricolagem como potência epistemológica e metodológica de ampliação dos métodos de pesquisa e construção de uma modalidade mais rigorosa de conhecimento sobre a educação. Kincheloe (2007), diz que a palavra Bricoleur, de origem francesa, remete aos “elementos inventivos e imaginativos da apresentação de toda a pesquisa formal” (p. 15), ou ainda sugere “um faz tudo que lança mão das ferramentas disponíveis para realizar uma tarefa” (p. 15). De natureza eclética, a bricolagem tem o desafio de se mostrar como alternativa metodológica, cuidadosa em manter a coerência teórica e a inovação epistemológica.
Um Bricoleur é assim, aquele que se aventura na improvisação criativa (KINCHELOE, 2007) diante das demandas e desafios heurísticos. Como artesão de/na sua própria formação, o Bricoleur é um transgressor responsável que trai a ordem estabelecida, instituindo outros caminhos, outros cenários formativos, sempre em favor da emergência de novos autores, de outras autorias.
Contrária à lógica cartesiana e positivista de fazer ciência, a bricolagem problematiza a ideia de purificação da ciência, nos alertando para o fato de que toda investigação científica é precária até certo ponto. A inventividade, a ação ativa na construção de dispositivos da/na pesquisa-formação se dá em processo na relação com os sujeitos da pesquisa, evitando roteiros e diretrizes preexistentes, que muito mais enquadram a realidade sem levar em consideração a variação em cada contexto.
Na Figura 1 Ribeiro e Santos (2017) apresentam, adaptado de Ribeiro (2015), a perspectiva de bricolagem que realizamos em nossas pesquisas.
Produzimos nossos dados de pesquisa na imersão dos/nos contextos formativos, habitando os espaços da cidade e dos ciberespaços; no caso específico deste artigo, produzimos os dados da pesquisa com professoras formadoras de formadores da Pós-Graduação em Educação da UERJ. Criamos atos de currículo3, negociando sentidos e procurando nos envolver com um “certo jeito de ver”, diferente do enquadramento e das premissas do instituído, com o desejo de aprender a olhar para nós mesmos enquanto olhamos para os outros objetossujeitos da pesquisa.
Forma-se assim um contato permanente consigo, com o outro e com o mundo, numa ambiência de diversidade e heterogeneidade ineliminável. A ecoformação envolve a dimensão formativa do meio ambiente material, ou seja, a relação entre o humano e o ambiente. É na dinâmica entre a auto-hetero-ecoformação que entendemos estar a complexidade constitutiva da (trans)formação docente/discente nos atos de currículo.
Na bricolagem da pesquisa-formação produzimos dados em/nas redes, criando dispositivos para uma formação horizontalizada, interativa, colaborativa e autoral. A teorizaçãoreflexão acontece na tessitura de saberes referenciados na experiência, ou seja, junto com os dados produzidos na relação cidadeciberespaços.
Ciberautorcidadão: os sentidos constituídos em/nas práticasteorias tecidas em rede
As transformações sociais e culturais advindas do fenômeno do digital em rede, ocorridas principalmente nas últimas décadas, têm afetado a maneira como nos comunicamos e produzimos informações nas redes. Com o polo da emissão livre, todos nós podemos ser autores, uma vez que pronunciamos a nossa subjetividade para o mundo, cocriamos, remixamos, compartilhamos. Mas que autoria é essa? Como se constitui a autoria cidadã na cibercultura? Quais dispositivos engendram práticas formativas autorais na cibercultura?
Os sentidos da pesquisa-formação que desenvolvemos nos contextos de formação docente e discente na cibercultura nos encaminham para a formulação da noção do ciberautorcidadão. Nossa contribuição tem como perspectiva pensar esta noção na relação com a formação docente e discente no ensino superior. No entanto, entendemos que esta noção, enquanto postura, em permanente devir, autoral, crítica, multiletrada, plural, imersiva e implicada com/na cibercultura, pode ser pensada na formação de todos os praticantes culturais deste contexto (RIBEIRO, 2015).
Chegar a essa noção foi possível por meandros metodológicos não quantificáveis. Em nossa pesquisa, os sentidos se constituem em/nas práticasteorias tecidas em rede pelos dizeresfazeres que se manifestam por meio de fazeres (CERTEAU, 2012). Perspectiva de pesquisa, essa, muito bem expressa por Macedo (2010a, p. 10), ao dizer que:
Os atores sociais não falam pela boca da teoria ou de uma estrutura fatalística; eles são percebidos como estruturantes, em meio as estruturas que, em muitos momentos, reflexivamente os configuram. Sua criticidade está na desconstrução filosófica das epistemologias normativas e na convicção de que não há ciência imparcial.
Com essa postura de fazer pesquisa, permitimo-nos a tessitura de um conhecimento em que as “regularidades, contradições, paradoxos, ambiguidades, ambivalências, assincronias, insuficiências, transgressões, traições, etc” (MACEDO, 2010a, p. 11) engendram significado social de sujeitos/atores em cena, em ato.
Buscamos inspiração para a criação da noção do ciberautorcidadão nos estudos de Barbosa e Hess (2010), quando discutem e propõe a formação do autor-cidadão; Ardoino (1998), com a perspectiva da autoria e do conhecimento plural e heterogêneo; Boaventura Santos (1995; 2004), com a contribuição da indissociabilidade entre o epistemológico e o político na tessitura de uma sociedade mais justa e democrática e ainda, na sociologia das ausências e das emergências, ocasião na qual destacamos o potencial emancipatório (OLIVEIRA, 2010) dos atos de currículo que desenvolvemos como possibilidade de inspiração para outros saberesfazeres na docência presencial e on-line. Também foram fontes Oliveira (2010; 2012) e Alves (2010), com as noções de praticantespensantes e contextos de formação; Edméa Santos (2014), com a perspectiva do praticante cultural imersivo na cibercultura; Rojo e Moura (2012) e Cope e Kalantzis (2006), com a ideia de multiletramentos, com destaque para os novos letramentos emergentes na sociedade contemporânea, os quais implicam considerar as tecnologias digitais em rede e a diversidade cultural na relação ciberespaçocidade.
Essas perspectivas entrelaçadas com as/nas inteligibilidades das práticasteoriaspráticas4, enredadas nos atos de currículo expressos pelas/nas conversas-imagens-narrativas dos sujeitos/autores/praticantes da pesquisa-formação na cibercultura, dão sentido à noção do ciberautorcidadão, ou seja, nos referimos a uma cidadania em ato na cibercultura.
Tecemos essa noção nos processos de fluxos vividossentidos no confronto com as diferenças, incertezas, angústias, desconfortos, ruídos, frestas, brechas, idas e vindas, mas também prazeres, afirmações, constatações, mesmo que provisórias, dos/nos saberesfazeres produzidos nos espaços de aprendizagens das/nas pesquisas que realizamos, a saber: sala de aula presencial e on-line (Moodle, Facebook e Blog) na relação cidadeciberespaço (RIBEIRO, 2015) e formação de formadores no contexto das novas demandas sociais, culturais, pedagógicas e políticas na cibercultura (SANTOS, R., 2015).
A postura do ciberautorcidadão ganha potência nas práticas cotidianas de interatividade via redes sociais. Quando nos comunicamos nos espaçostempos on-line, seja em conexões síncronas ou assíncronas, temos a responsabilidade de pensarmos os sentidos do que comunicamos e a responsabilidade social e educativa desse ato, ou seja, fazer valer a nossa subjetividade não implica negar os sentidos do outro, ou ainda, como diz Castoriadis (apud BARBOSA, 2012), é preciso exercitarmos sempre a diferenciação de nós mesmos e do outro, como verdadeiro outro e não como um exemplar de si. Nas redes sociais tem-se evidenciado cada vez mais a ausência de urbanidade e a falta de ética nos diálogos permeados por temáticas diversas, sejam no campo da política, da economia, de questões de gênero etc.
Discutimos (RIBEIRO, 2015) que uma das questões centrais na formação do ciberautorcidadão consiste em pensarmos: como a autoria se faz presente nas facetas da atividade educativa dos sujeitos ao longo da vida? Ou seja, qual a condição de expressão, de fala, de dizer de si e do que se passa para si no contexto da cultura digital em rede?
A formação cidadã e autoral na cibercultura, ao mesmo tempo em que ganha força nos espaçostempos de interlocuções mediadas por computadores - redes sociais, plataformas de ensino, blogs, etc., confronta-se com o “fantasma” da desautorização da escola, da sociedade, da vida. Com isso não negamos as táticas dos praticantes e as mil maneiras de fazer no cotidiano (CERTEAU, 2012), mas nos referimos aos valores hegemônicos culturais, sociais e econômicos típicos da racionalidade racionalizante que está na base do pensamento moderno e que resiste pari passu às práticas instituintes.
Pensar a formação docente e discente no ensino superior envolve uma rede de saberesfazeres plurais, expressos em aprendizagens de conteúdos específicos da docência, postura política na vida, multiletramentos para uma interação autônoma e autoral na relação com os diversos suportes textuais/midiáticos que possibilitam o acesso e a criação de informação e de saberes.
A formação docente e discente atenta à cultura contemporânea do digital em rede precisa favorecer a criação de ambiências para a ampliação de sentidos na relação com as interações mediadas por computadores nos ciberespaços, ou seja, no lugar de incentivar usos instrumentais da internet, é preciso ampliar os espaços para a participação cidadã em tempo real, em espaços plurais de comunicação síncrona e assíncrona.
A formação do ciberautorcidadão não se constitui em um modelo pedagógico no qual seja possível definir formas de se fazer a priori, em que, inclusive, não acreditamos, uma vez que situamos a formação nas demandas dos sujeitos/praticantes/autores enredada pelo/nos seus contextos de vida e entendemos, por isso, que ela é múltipla, é plural, é caminho que se tece nos atos de currículo.
Atos de Currículo: dispositivos para a formação em devir do ciberautorcidadão
Muitas questões atravessam a pesquisa sobre formação. Tantas outras atravessam a pesquisa sobre formação na cibercultura. O que nos propusemos a fazer quando enveredamos pelo caminho investigativo do ciberautorcidadão foi tentar compreender como o contexto da cibercultura vem estruturando também a atuação docente universitária. Na investigação sobre os usos desses praticantes culturais nas redes sociais da internet, temos percebido uma espécie de organismo hiperconectado, coletivamente construído e altamente complexo. Diante de tais alterações, Jensen (2010) reflete sobre a questão do suporte e da interação diária dos usuários, argumentando que a comunicação em rede deve questionar não só o que a rede social faz com as pessoas, mas também o que as pessoas fazem com ela. O que interfere hoje nesse processo, e que produz mudanças diretas no conceito de convergência midiática, refere-se ao grau de interatividade e/ou participação dos praticantes culturais nos processos comunicacionais estabelecidos nesse contexto de convergência.
Se antes as tecnologias serviam apenas para distribuição de conteúdos midiáticos, hoje servem, sobretudo, para a criação e compartilhamento de conteúdos, formatos, práticas sociais e processos de subjetivação. Acompanhamos esse processo conversando com a professora-formadora Stela Guedes sobre os seus usos das tecnologias digitais em suas itinerâncias formativas. A professora-formadora, aproveitando-se das potencialidades do digital em rede, organiza um evento5 junto com seus orientandos no seu grupo de pesquisa on-line. Eles criam um blog6 e uma página no Facebook para divulgar e organizar o evento. Stela e seu grupo trazem para a coletividade a possibilidade de fazer um trabalho da maneira que desejam e em que acreditam; vejam sua narrativa na página do evento:
Stela Guedes Caputo
Queria dizer que acho que estamos construindo um encontro lindo. Basta ver o que está acontecendo. Basta olhar o blog, a página. Quando olho a página e vejo os posts das pessoas que irão se encontrar quase nem acredito. Quando penso que Hertz e Verk estarão juntos com Carlos Moore e Vanessa Soares, nem acredito. Fico olhando vári[as] horas e não acredito. Acho que o processo desse encontro serviu para muitas coisas e tantas que ainda nem vislumbramos. Estamos construindo um encontro dentrofora (rsrsrs) mais foradentro dos parâmetros acadêmicos. Sei que está difícil, mas tudo valerá a pena com o que já estamos aprendendo e aprenderemos. Uma das coisas importantes (e que sempre repito) é o Tempo e a necessidade de respeitá-lo. Sem esse respeito não fazemos um artigo BOM, de fato, uma dissertação ou tese boas, um encontro bom. Tudo fica na correria e uma correria que estraga tudo porque elimina a experiência. Não temos a relação ideal com o Tempo pelas tantas exigências e demandas das vidas de cada um. Mas o que vimos é que o Tempo era necessário para cada coisa que fizemos. Para construir a ideia do encontro, os contatos, as pessoas que viriam o projeto, ...para que tudo fosse ficando lindo. Os encontros com os apoiadores exigi[ram] isso: Tempo. O primeiro telefonema, o primeiro email, a visita, a disposição de “gastar sapato” como diz André Porfiro. Alguns sabiam (porque foram descobrindo) que seria assim, muitas visitas e solas gastas para consegui[r] 200,00 ou nada. Isso vale e muito! Mas para isso era necessário essa percepção, valentia e coragem sobre as quais falamos desde o início. Não sabemos muita coisa e fomos aprendendo no fazer. Fomos descobrindo. O não-saber, para muitos aqui não significou paralisia, ao contrário, significou ousadia e isso, acho, foi o que de melhor aconteceu. Agora, penso, não vale a pena desesperar. Pelo contrário, se desesperarmos iremos perder a NOSSA experiência que deve ser de prazer em fazer esse encontro, do contrário, não vale tb. É hora, como sempre, de iniciativa (que todo mundo sabe o que é). As listas de entidades estavam postadas aqui desde o século XV. Era pegar [e] ir. Ir e voltar. Ir outra vez. As atividades tb. [Das] comissões (tiradas no séc. XV) nenhuma funcionou. Mas o esforço individual salvou e está salvando o evento. Agora é hora da calma (que não significa paralisia). Porque o desespero vai prejudicar o processo. Acredito, de verdade, que estamos dentro do prazo e conseguimos MUITO. É pegar o que falta, as entidades que faltam, as coisas que faltam e fazer. Deixar o que está correndo bem acontecer e somar porque ainda dá Tempo. O folder tá lindo, o blog, o cartaz, a página... tá tudo lindo. Ao final, uns estarão mais exaustos que outros. Mas, com certeza, isso também será uma experiência que levaremos todos e todas para não só o próximo Fela...mas para a vida dentro e fora disso que se chama universidade (CAPUTO, 2015).
O relato de Stela nos possibilita ver que esse movimento começa na rede e depois se materializa na universidade. O seu grupo ao elaborar o I Seminário “A Educação, os movimentos sociais e a África que incomoda” divulgando o evento em sua página no Facebook e no Blog, promove o debate sobre questões complexas e necessárias para a reflexão sobre o nosso papel em um mundo em constante transformação. No diálogo com os convidados, discutem a literatura divergente, o feminismo e a questão racial. As atividades culturais tinham como objetivo compreender o papel da arte na nossa sociedade, em especial da cultura afrobrasileira. Assim, criam atos de currículos e trazem possibilidades para um trabalho realizável, um caminho que pode ser tentado na busca da articulação entre a universidade/cidade/redes sociais.
Stela e seu grupo não apontam modelos, mas indicam que há dentrofora outras formas de trabalho para a pesquisa acadêmica e a prática pedagógica. Nessa pesquisa-formação pudemos perceber como esses momentos podem ser formativos. Os momentos difíceis ao organizar o evento, as possibilidades de serem debatidos, compartilhados e assistidos, capazes de formar redes de docência e aprendizagem. Abaixo segue uma imagem do Seminário criado na página do evento:
Vimos na autoria implicada de Stela como esta é encorajada pelos usos dos dispositivos móveis e das redes sociais. Podemos afirmar que tanto o conteúdo quanto as formas através das quais nossas ações cotidianas são desenvolvidas têm como características a multiplicidade de elementos constitutivos do nosso contexto de atuação. E é preciso que nele cheguemos não para assistir, observar, analisar de fora, mas para habitar e criar atos de currículos como dispositivos de experiências formativas.
Ao narrar seus usos das tecnologias digitais, a professora-formadora nos mostra como essas tecnologias ampliaram as formas de criar, obter, compartilhar, gerenciar informações e transformá-las em conhecimentos. É possível editar textos, criar imagens, buscar e compartilhar informações, enfim, materializar as produções e comunicar-se com o mundo de maneiras diferentes. Uma gama de possibilidades emerge trazendo à tona características da cultura digital. Por que esses dispositivos fascinam cada vez mais seus usuários? Porque para eles convergem jogos, vídeos, fotos, músicas, textos e, ao mesmo tempo, é possível para eles manter uma comunicação ubíqua com seus contatos via aplicativos de redes sociais. Não são mais simplesmente dispositivos que permitem a comunicação oral, mas sim um sistema de comunicação multimodal, multimídia e portátil, um sistema de comunicação ubíqua para leitores ubíquos7, leitores para os quais as interfaces são espaçostempos de aprendizagem.
Antes dos dispositivos móveis, nossa conexão às redes dependia de uma interface fixa, os computadores de mesa (desktop). A entrada nas redes implicava que o usuário estivesse parado à frente do computador. Agora, ao carregar consigo um dispositivo móvel, a mobilidade se torna dupla: mobilidade informacional e mobilidade física do usuário (LEMOS, 2007). Para navegar de um ponto a outro das redes informacionais, nas quais se entra e se sai para múltiplos destinos, YouTube, sites, blogs, páginas etc., o usuário também pode estar em movimento. O acesso passa a se dar a qualquer momento e em qualquer lugar. Acessar e enviar informações, transitar entre elas, conectar-se com as pessoas, coordenar ações em grupos, compartilhar arquivos, marcar e organizar eventos. Assim, o ciberespaço fundiu-se de modo indissolúvel com o espaço físico, criando o que Santaella (2007, p. 183-187) chama de espaço intersticial, híbrido e misturado.
Assim, a cultura digital encontra-se hoje em plena era da mobilidade, constituída por uma rede móvel de pessoas e de tecnologias nômades que operam em espaçostempos diversos. O evento repercutiu em várias redes sociais e na mídia de massa. A dinâmica e as potencialidades da interface do Facebook permitiram à professora-formadora superar a prevalência da pedagogia da transmissão. Stela propõe desdobramentos, arquiteta percursos, cria ocasião de engendramentos, de agenciamentos, de significações (SILVA, 2010). Ao agir assim, a professora-formadora convida seus orientandos e cada participante a fazer o mesmo, criando a possibilidade de cocriar o evento usando tudo o que foi possível contar. Essa dinâmica de participações exigiu da professora uma postura comunicacional. Para Silva (2010, p. 67), esses professores encontram-se diante do inarredável desafio de ter uma prática docente preocupada com a materialidade da ação comunicativa. De guardiões e transmissores da cultura, eles assumem a postura comunicacional que cria oportunidades de múltiplas experimentações e expressões, que disponibiliza uma montagem de conexões em rede, que permite múltiplas ocorrências, que provoca situações de inquietação criadora, que arquiteta colaborativamente percursos hipertextuais e mobiliza a experiência do conhecimento.
Salientamos ainda que, ao colaborarmos com a professora-formadora na organização do evento, cocriando junto com o seu grupo de pesquisa em cada etapa, divulgando nas redes sociais, opinando, participando, percebemos que na cibercultura os praticantes culturais não são meros informantes: são praticantes dos próprios processos formativos, são ciberautorcidadãos. O pesquisador não entra no campo para coletar dados; a imersão na rede é feita para produzir conhecimentos, vivenciando, cocriando, e nesta vivência temos as narrativas que o pesquisador chama para dialogar. Não há pesquisa-formação desarticulada do contexto da docência, ou seja, as inquietações, os problemas, as questões de pesquisa sempre emergem dos dilemas docentes. Esses dilemas, por sua vez, contribuem para a ciberpesquisa-formação (SANTOS, E., 2005; 2014) propiciando a autoria de seus participantes.
Considerações finais: educação on-line como dispositivo formativo do ciberautorcidadão
Situadas no cotidiano (ou nada fará sentido), tecemos nossas pesquisas e produzimos conhecimento em rede junto com alunos, professores e tantos outros pares de caminhada profissionalpessoal. Fazer pesquisa, (trans)formar nossas práticas, implicarmo-nos cada vez mais com o cotidiano, beber de todas as fontes, aguçando os nossos sentidos para tocarmos e sermos tocados pelo diferente, pelo ainda não dito e ainda não sentido, virar de ponta-cabeça para termos a humildade de perceber os tantos limites das teorias já dadas e também os nossos tantos limites de compreender a complexidade e a riqueza de cotidianos plurais, heterogêneos e ricos, porque tecidos das/nas redes educativas de tantos diferentes praticantespensantes (ALVES, 2015b), é postura, é devir de quem se implica com/nas práticas formativas emancipatórias.
As pesquisas que realizamos se concretizam no encontro com nós mesmos e com os outros sujeitos da pesquisa, criando atos de currículo potencializadores de aprendizagens docentes e discentes na cibercultura. Neste artigo, apresentamos opções epistemológicas e metodológicas da ciberpesquisa-formação a partir da criação de dispositivos em ambientes on-line junto com professores-formadores da Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
A criação de atos de currículo nos espaços formativos com o uso das tecnologias digitais nos tem mostrado a ampliação dos multiletramentos, da autoria e de aprendizagens plurais e coletivas de alunos e professores, não como algo imediato, mas como projeto de formação de si, na relação com os outros e com o mundo, sempre em processo, em devir.
Nossas pesquisas têm mostrado que a Universidade, em seus processos formativos na relação dentrofora do espaço físico acadêmico, é potência formativa do ciberautorcidadão. Mill (2013, p. 16), ao discutir a relação educação e tecnologias na contemporaneidade, diz da importância da emancipação e da capacidade crítica ao acessarmos e interagirmos com as tecnologias digitais: “Essa emancipação e esse criticismo passam pela formação do cidadão, que, prioritariamente, se dá pela escolarização”. Uma escolarização que não mais separa os conteúdos escolares da cultura cotidiana, uma vez que os sentidos se ampliam em uma relação híbrida dentrofora do espaço acadêmico.
Os professores, da educação básica à pós-graduação, utilizam, cada vez mais, dispositivos digitais e móveis para potencializar as aprendizagens e vivências interativas nas redes. Com isso, criam ambiências formativas favoráveis à ampliação de sentidos na relação com as interações mediadas por computadores no ciberespaço, ou seja, no lugar de incentivar usos instrumentais da internet, ampliam os espaços para a participação cidadã em tempo real, em espaços plurais, de comunicação síncrona e assíncrona, favorecendo uma participação colaborativa, interativa, autoral e corresponsável na cibercultura, condição para a formação em devir do ciberautorcidadão.