A memória e a história no campo da educação
Neste artigo procuramos pensar em articulações possíveis entre a história e a memória com os campos da educação e da arte, tendo como ponto de mobilização os espaços expositivos. Para isso, apresentamos algumas problematizações junto às noções de história e de memória. Para pensarmos a noção de história nos aproximamos de experimentações com a história da arte e com os museus. Para pensarmos na noção de memória apresentamos algumas experimentações nos espaços expositivos enquanto mobilizadoras da arte no campo educativo.
Com estas diferentes abordagens para estas noções pensamos a educação e a arte atravessadas por um tempo não linear, o que implica que a história e a memória se produzam de modo não cronológico, em que o presente adentra esta narrativa passada, fazendo dos espaços expositivos um lugar para a articulação com o mundo e a vida. Desse modo, abordamos os museus como espaços em que nos produzimos junto aos/as estudantes, na medida em que operamos a história por um tempo não cronológico e que permitimos algumas entradas em suas linhas pelos olhos contemporâneos de seus/as espectadores/as.
Assim, procuramos propor uma abordagem para a memória que se articule com o tempo como duração (BERGSON, 2005), problematizando como este pode contribuir para a interação com a arte. O tempo aqui serviu de mote para pensar em experiências nos espaços expositivos e seus atravessamentos na educação, desajustando o tempo/memória/lembrança que se conectam com as produções de imagens dentro do campo da arte e da educação.
Aproximamo-nos do tempo e da história a partir de uma abordagem do desajuste de sua linearidade, arranjando outros modos de abordar a história e a memória a partir de um tempo não linear, para assim articular um pouco de presente a esta narrativa do passado. Propomos que as memórias dos/as estudantes adentrem este espaço da organização do tempo para compor com a arte um aprender propenso à criação de alianças com a história e a memória, para dizer com a história aquilo que nos afeta contemporaneamente. Para Deleuze (2013), assim como para Pelbart (2015), o tempo pode se apresentar de maneira desarticulada da cronologia numérica do relógio ou da sucessão de presentes. Para ambos os autores este tempo não linear, que permite uma abordagem que implique o presente nesta narrativa passada, não está nas representações que apreendemos sobre a história, mas nas inserções que fazemos para dizer e pensar sobre nossos modos de existência.
Podemos nos aproximar do tempo de inúmeras maneiras, então é possível que em alguns momentos a contagem cronológica dê lugar à produção de relações não lineares com a arte, ao abordar um conteúdo seja da linha do tempo da história da arte ou de algum acontecimento de uma vida que está inscrito na linearidade de uma narrativa. Estes dois percursos aqui selecionados podem ser desarticulados desta flecha que delimita o percurso do tempo, para que possamos produzir alguns desvios em uma aula de artes.
Desse modo, procuramos operar uma abordagem de desajuste da história e da memória, ao propor que outros tempos habitem as aulas de artes, tempos para experimentações com as imagens da história da arte, com as memórias que carregamos, com os museus, para que estes campos ganhem espaço e potência nos espaços educativos.
Para tal, apontamos como metodologia de trabalho a cartografia, modo de pensar proposto por Deleuze e Guattari (2011) e que apropriado por outros autores é operado como método de pesquisa, no qual o percurso do/da pesquisador/a se torna importante para o processo investigativo. A cartografia permite a recolha de fragmentos e vivências de uma vida, daquilo que afeta e pede passagem no percurso de uma pesquisa, como um “desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem” (ROLNIK, 2006, p. 23). O método cartográfico se atém aos mapas que vão se constituindo neste processo, não como pontos fixos e localizáveis; suas experimentações ocorrem por conexões que não podem ser previstas ou repetidas como em experimentos controlados, já que se vinculam ao que se passa e acontece entre pessoas, por suas intensidades e singularidades.
Para uma escrita que busca movimentar-se em diferentes tempos, o método cartográfico contribui para produzir alguns atravessamentos entre história e memória, arte e educação, pois cartografar pode ser traçar uma linha que abrange elementos da memória, da história da arte, do tempo e das experimentações no campo da educação.
História entre a arte e o tempo
A história tem se apresentado nos espaços educativos como uma disciplina que nos conta sobre fatos passados, nos apresenta uma memória de acontecimentos elencados para compor a narrativa de uma sociedade, apresenta um conhecimento já constituído, a ser apreendido, repetido, salientando sua ordem sucessiva e cronológica. Mas podemos também nos aproximar da história - assim como Deleuze e Guattari (2011) propõem abordar a geografia - como um rizoma, que se pensa e se lança “em meio” e não em começos e fins, sempre buscando relações de vizinhança, não para definir novos conteúdos, mas propondo a produção de outros sentidos para o que já está posto. Nossa aproximação com a história e a memória pode se dar neste revezamento, ora nos organizando quando necessário pelos números do relógio ou pela linha da história, ora nos permitindo alguns escapes de seu percurso, afrouxando sua regulação.
Vemos nesta articulação com a história uma potente abordagem que nos permite não apenas trabalhar a narrativa da história pelos fatos elencados e selecionados nesta linha do tempo, mas que tenhamos uma aproximação diferente com o tempo e, portanto, com a história, acolhendo o que nos afeta e nos move a problematizar nosso presente, “em meio” a uma visitação a um museu ou em uma aula. Neste caso, a obra de arte que vemos nas paredes dos museus pode ser não apenas uma fonte para reconhecimento e identificação de conhecimentos adquiridos previamente em uma aula, mas também fonte de problematizações para os/as estudantes aprenderem com o passado, para então pensar acerca de nosso presente. Entre história e memória pode existir um percurso que inclua outras tramas com este conteúdo apresentado nos espaços escolares, propomos que a arte, e mais especificamente a história da arte, também possa incluir nesta aproximação, entre arte e estudantes, uma aliança pelo que cada um/a pode dizer, pensar, fazer com estes conhecimentos que se apresentam nos livros e nos museus.
Para que esta abordagem do tempo e da história ocorra necessitamos desorganizar sua cronologia, para que nela se inscrevam inúmeros outros percursos possíveis, além da flecha do tempo que organiza a história da arte. Nos aproximamos do tempo de modo a possibilitar o deslocamento de uma narração factual do passado para tempos que agora se enlaçam, pelo passado e sua história constituída nas paredes dos museus que apresentam uma história da arte e pelo presente e pela memória dos/as estudantes que nos contam de suas vontades e pensamentos a partir deste encontro.
O tempo e a história podem ser organizados nesse novo arranjo, passado, futuro e presente como etapas não separadas, mas que constituem um processo de coexistência de tempos (DELEUZE; GUATTARI, 2005). A história pode ser definida pelo acúmulo do passado, ao ser abordada enquanto representação de uma narrativa, mas pode também se aliar a elementos diversos, assim as imagens da história da arte que se apresentam imobilizadas nas paredes dos museus podem ser aventadas pelo presente, de modo a então colocar em suspensão o que atribuímos àquela imagem para produzir junto a ela outros sentidos, talvez mais contemporâneos. Este movimento de deslocamento do tempo possibilita composições singulares, criações com estas imagens, onde toda repetição, ou ainda, visualização de uma mesma obra de arte permite a produção de diferentes sentidos, que se estabelecem nas relações tramadas por cada estudante no momento daquele encontro.
Para realizar essa torção na história da arte, Didi-Huberman (2015) questiona a constituição dos conceitos de arte e de história. Em um primeiro momento o autor problematiza a história e o papel do/a historiador/a, pela recusa do anacronismo em sua constituição, pois a história se organiza em uma linha, a partir da definição de Kant. Esse entendimento é central para evidenciar que, ao deslocar este saber histórico para um tempo não linear, também se deslocam os acontecimentos no tempo, o que desorganiza as representações e conceitos já constituídos para o passado. Assim, também a noção de arte enquanto objeto estético e de apreciação nos espaços expositivos é problematizada nesta nova operação com o tempo; neste caso, a história da arte enquanto narrativa que conta destas obras de arte é desorganizada de sua linearidade.
Logo, quando nos aproximamos da história da arte de modo a apenas identificar o contexto histórico do artista, o movimento artístico a que pertenceu, e tentar elencar o que o/a artista quis dizer ou representar, para então consolidar um conhecimento apreendido sobre determinada temática, podemos nos afastar da aliança com o presente neste processo de aprendizagem com os/as estudantes. Ao ver uma imagem da história da arte em museus, galerias ou em um espaço urbano, nas ruas de uma cidade, essa imagem não nos diz tudo, ou não deveria dizer, pois pode vir a permitir a mobilização do pensamento de quem se aproxima da história da arte de modo a aprender com, em meio a ela.
Os espaços expositivos, tanto para as artes quanto para a história, se produzem como ambientes em que são alocados itens, obras, documentos, de valor histórico, social, cultural. Estes espaços, além de congregar e organizar estes itens, também elaboram uma seleção de uma narrativa do que estes espaços nos contam. Os museus guardam um pouco da nossa história e nos contam durante uma visitação o que uma sociedade elenca para representá-la, dando a ver seus esquecimentos e vazios, nos apresentam um processo de tempo que se faz em uma cronologia, pelos célebres artistas, pelos importantes documentos que possuímos.
As artes também elencam e selecionam obras que passam a compor os espaços expositivos e que representam uma comunidade. Nesse processo nos aproximamos da história destes objetos e obras a partir do que aprendemos em uma aula, durante uma visita guiada em um museu, através da rede mundial de computadores. Vemos que a relação entre arte e museu tem se pautado algumas vezes neste processo de reconhecimento e repetição de um conhecimento estabelecido. Neste sentido, a memória que passamos a contar diz respeito a algum livro ou sujeito que nos fornece tais informações, e este processo de aprendizagem pode não agregar as memórias, as percepções e os afetos de quem visita um museu.
Para Didi-Huberman (2013) a história da arte foi estruturada por certezas e definições, como uma disciplina que constrói um conhecimento sobre o objeto da arte. Neste sentido, Didi-Huberman (2013, p. 11) interroga estas definições que nos são apresentadas como saber para a história da arte, pois seus livros “sabem nos dar a impressão de um objeto verdadeiramente apreendido e reconhecido em todas as suas faces, como um passado elucidado sem resto”.
Ao abordar a história da arte, por esta perspectiva, no campo educativo, propõe-se que não haja mais nada a dizer sobre ela, que o passado está contado e estabelecido nos livros e nas seleções do que pode ser relevante para o seu processo de aprendizagem, tanto dos movimentos artísticos como dos/das artistas. Porém, apresentamos algumas possibilidades de abordagens para a história da arte ao ser desencarnada de suas verdades, nomeações, representações, ao ser assombrada (DIDI-HUBERMAN, 2013) pelo que não está visível na obra de arte, convocando seus intervalos, acontecimentos, como fantasmas que rondam as imagens e irrompem na encarnação singular de cada olhar.
Assim, pode ser na interrupção da narrativa histórica que podemos produzir algo novo com este conteúdo, entre imagens da história da arte e estudantes. Ao permitirmos esta brecha na história da arte, outras forças que escapam às representações se evidenciam, outras relações para além dos elementos formais da narrativa da história da arte se lançam a pensar e aprender com as imagens. No campo educativo, este desdobramento apresenta uma estratégia para dar movimento às imagens e a arte, a partir do tempo e da história.
Esse deslocamento possibilita que a imagem da história da arte seja destituída de suas representações, do que repetimos e apenas rememoramos sobre seu passado, para então dizermos e produzirmos com ela outros sentidos. Desse modo, podemos produzir algumas aberturas nos tempos da imagem, como sugere Deleuze (2013, p. 32), pois “é preciso fazer buracos, introduzir vazios e espaços em branco, rarefazer a imagem, suprimir dela muitas coisas que foram acrescentadas para nos fazer crer que víamos tudo”.
Abrir espaço para que os/as estudantes possam também dizer, pensar e fazer neste processo de aproximação com a arte é importante para dar vez ao que pode surgir neste encontro. Se já dizermos tudo sobre determinada imagem aos nossos/as estudantes, pouco ou quase nenhum espaço existirá para que criem suas próprias alianças e vizinhanças com a arte, os museus e a história. Para Pelbart (2015, p. 94) “o tempo regular é estreito demais para abrigar todos os acontecimentos”, logo, há muitos vãos e vazios para que possamos inserir no tempo, na história e na arte nossos afetos e pensamentos sobre estas imagens.
Este movimento de abrir espaço nestes conteúdos e conhecimentos para neles inserir um pouco de vida, do que nos afeta contemporaneamente, do que nos pede passagem (ROLNIK, 2006), se aproxima do método de pesquisa cartográfico. A experimentação com o território que estudamos, neste caso o campo da educação e da arte, é ponto central deste método, pois possibilita a entrada do campo social e subjetivo na investigação, na medida em que os afetos e deslocamentos que ocorrem durante uma pesquisa passam a compor com a escrita percursos variados. Pois, segundo Oliveira (2014, p. 289) “fazer uma cartografia é expor linhas e as possibilidades por elas inauguradas”. Neste sentido, a cartografia permite que cada um/a que entre em contato com estas imagens da história da arte possa constituir esse mapa próprio, singular, com suas intensidades, suas criações e suas forças.
A cartografia abrange um trabalho sobre a vida, sobre as linhas que organizam os modos de existência, e neste texto se evidenciam estas relações, apresentando como possíveis algumas novas tramas para que possamos constituir outras linhas - por isso é um método que cria mundos e territórios. Dessa forma, a cartografia permite que nesta pesquisa se criem tramas entre tempos, entre histórias da arte, de algumas das histórias que podemos contar e produzir com a arte, com algumas das narrativas que podem adentrar estes campos.
Quando abordamos esta relação entre história da arte e estudantes percebemos que inicialmente há uma aproximação de identificação e até mesmo de decodificação dos elementos que constituem tal imagem, ao apontar movimentos artísticos, contextos históricos, ou realizar análises destas obras de arte. O desajuste da história se dá por pequenas fissuras nestas imagens, em pequenos cortes, na supressão de alguns elementos, no acréscimo de outros, em uma conversa entre o que cada estudante pensa e desorganiza naquela imagem e o que cada um/a introduz de novo na sua criação.
Realizamos algumas experimentações com os/as estudantes e as imagens da história da arte para pensarmos em articulações entre passado e presente, em que estes/as selecionaram algumas imagens impressas de obras de arte muito conhecidas, de artistas como Salvador Dalí, Sandro Botticelli, Diego Velázquez, Edvard Munch, Edgar Degas, entre outros, para então intervir sobre elas, de modo a recortar fragmentos que os interessavam, abandonado outros elementos e incluindo partes antes não constituintes daquela imagem. Este exercício apresentado nas imagens abaixo ocorreu em uma disciplina da graduação em um curso de Licenciatura em Artes Visuais, logo, estes/as estudantes já haviam tido contato com estas imagens, já tendo estudado suas características e muitas vezes lhes atribuindo alguns significados dentro do componente curricular da história da arte.
O desafio lançado se deu pela provocação de trabalhar com estas imagens da história da arte de modo a produzir com elas outros sentidos, e a lhes fazer dizer de suas problemáticas e dilemas, a nos contar de suas memórias a partir daquela imagem. Este momento proporcionou uma experimentação com a história da arte em que sua aproximação não intentou apresentar o reconhecimento ou identificação da imagem, mas procurou criar uma imagem que apresentasse uma aliança entre passado e presente, história e museu.
Para Didi-Huberman (2013) a imagem da história da arte pode ser tomada por rasgaduras, ao racharmos suas definições e propormos fissuras em sua constituição, pois não interessa apenas a atribuição de significados a ela, mas o que podemos produzir com o que vemos. Neste sentido, segundo Didi-Huberman (2015), a imagem, ou a obra de arte, não é apenas com elemento imobilizado na parede do museu, mas apresenta um deslocamento anacrônico pelo tempo, pela história, ao dizer de nosso presente, ao estarmos diante dela como elemento de passagem, e que lhe dá força e movimento.
Propomos que o campo da educação e da arte possam também acolher em alguns momentos este novo enlace do tempo e da história, para que possamos produzi-lo a cada encontro entre estudantes e imagens da história da arte, para que outras imagens também adentrem esta narrativa e que possamos produzir com elas outros percursos.
Esse processo de desorganização das imagens da história da arte também desorganiza os tempos que parecem instituir a narrativa histórica e possibilita que se produzam outras histórias da arte, que não comporão livros didáticos ou acadêmicos, mas que podem ser importantes para que os/as estudantes possam criar suas próprias narrativas e imagens com suas memórias, entre tempos e histórias. Não procuramos abandonar a história, ou os conteúdos da história da arte, ou ainda as memórias de uma vida, a cronologia em sua totalidade, mas propomos que possamos, entre elas, realizar experimentações e atravessamentos com a arte e a educação.
Tempo como duração: memórias que atravessam espaços expositivos
Ao anunciar os atravessamentos entre história e memória, propomos pensar sobre a problemática do tempo que tem organizado estas noções. Desse modo, é pertinente adentrarmos as noções de memória a partir do tempo como duração junto a Bergson (2005). Quando pensamos o tempo como duração, encontramos a consistência para falar sobre memória e lembrança, e traçar uma linha do tempo não linear com um passado que não se coloca ‘atrás’, mas se faz sempre inédito, novo. A “duração é memória. E memória é consciência. A duração é, pois, o élan vital que faz com que o passado de um ser se prolongue em seu presente - sendo este apenas o momento mais contraído dessa memória” (SCHÖPKE, 2009, p. 225). Produzir-se em um tempo como duração é permanecer em constante mudança.
É a partir desta perspectiva que apresentamos algumas experimentações realizadas com a memória e a arte, que atravessaram diferentes espaços expositivos, mexendo com o tempo não cronológico, com a memória, com a arte e com a educação. Ao pesquisarmos acerca das questões que envolvem a memória e a arte, e seus atravessamentos, propomos que a educação possa acolher as singularidades e as narrativas dos/as estudantes, ao acionar suas memórias para contar de suas experiências neste encontro com uma obra. Esse processo engendra um movimento de produção constante; ao acionar as memórias do passado destes/as estudantes, produzimos outras narrativas e atualizamos memórias ao contar do que vivemos.
Desse modo, a memória adentra esta aliança com a arte e com a educação, na medida em que pensamos nos desdobramentos da memória nos espaços expositivos e educativos, como cada um/a se relaciona com estes objetos, seus afetos e histórias. As articulações desta experimentação com a memória, como elemento mobilizador da relação com o museu, proporcionaram algumas problematizações quanto ao que aprendemos com a arte neste processo, em que as memórias são acionadas e podem levar a algumas provocações quanto aos nossos modos de vida e ao presente.
Para tal, apresentamos algumas experimentações com a arte e a memória a partir de uma intervenção1 no espaço da universidade, que teve como finalidade constituir percursos imprevisíveis com a introdução de objetos inusitados nestes caminhos cotidianos, fabulando entre memórias de infância e reinvenções com trechos literários, a partir da obra de Carroll (2015). Elencamos aqui algumas das exposições realizadas a partir desta experimentação com o objeto das garrafinhas, em que suas fotografias foram compondo a memória deste momento de encontro, entre materialidade e espectadores/as.
A experimentação com a intervenção tinha como materialidade pequenas garrafinhas de vidro que lançavam um convite instigante: LEIA-ME. Estas foram espalhadas em alguns pontos da universidade onde aconteceu a experimentação, como banheiros, escadarias de diferentes prédios, bibliotecas e corredores. Os vidrinhos mediam em torno de quatro centímetros cada, e nem sempre foram vistos com facilidade, o que permitiu serem fotografados durante alguns dias, antes de serem capturados.
Era possível perceber que algumas dessas garrafinhas desapareciam de um lugar e eram encontradas em outros, o que permitia novas e inusitadas fotografias. Estes movimentos com a materialidade da experimentação vinham ao encontro do que continha dentro dos vidrinhos, que ao abrir, poderiam aguçar diferentes sensações naqueles que se permitiam “viajar” pelo tempo ao ler algumas das perguntas escritas naqueles pequenos pedaços de papel. Algumas delas eram: Você já teve um amigo imaginário? Que elementos fariam você viajar no tempo? O que levaria você para a terra do nunca? Além das perguntas, no papel continha um contato de e-mail para receber possíveis escritas daqueles que quisessem contribuir com a experimentação, mesmo que anonimamente. Uma dessas contribuições se apresentou como um respiro em meio a um dia atarefado, respondendo a seguinte questão: Que cheiros tem o entardecer para você? “O entardecer tem cheiro de ônibus lotado, de vontade de chegar em casa, de fim do dia e dever cumprido. Cheiro de descanso”. Outros relatos pareciam um desabafo protegido pelo anonimato, como: “Eu costumo usar a imaginação quando sinto medo de algumas situações. É a forma que aprendi para fugir do medo. Quando tenho medo que minha mãe nos abandone porque meu pai bebe, imagino que ela ficará mais um dia em casa. Só mais hoje e assim vou vencendo cada dia como se fosse mais uma batalha”.
Estas questões disparadoras serviam de movimento para pensar a noção de memória e do alargar/contrair do tempo como duração. “Tudo parte de uma certa ideia do movimento, que traz consigo uma contração dos corpos e uma dilatação de seu tempo” (DELEUZE, 1999, p. 63). Foi esse movimento que permitiu o ato de caminhar sobre a memória, o elo necessário para transitar entre estilhaços de tempo, utilizando do tempo como duração para atualizar memórias e potencializar criações no campo da arte.
Após esta experimentação, muitos registros ficaram guardados e passaram a compor uma seleção de memórias capturadas, que dizem deste percurso pela memória, do que fomos recolhendo e deixando pelo caminho, dando a ver uma outra organização destas imagens, acionando a produção de outras memórias ao percorremos seus registros. Assim, as exposições com estas fotografias foram sendo gestadas, os espaços expositivos foram se compondo de maneira móvel, flexível. A partir desses registros de imagens, foi-se produzindo o material fotográfico, composto também de imagens que levavam os/as espectadores/as a pensar sobre sua memória de infância, a partir de objetos como livros antigos de contos clássicos, pequenos jogos de xadrez, envelhecidas bonequinhas de pano e um pequeno carrossel de madeira. Dessa maneira, as exposições não tratavam somente de fotografias emolduradas, mas também de objetos que formavam distintas cenas cheias de convites sobre tempos passados, lembranças de infâncias, memórias que atravessavam os que se propunham a interagir com o ambiente.
A duração necessita movimentos de mudança. Se nada muda, não se constrói o novo e não é possível sua existência. Duração sem modificação não é duração. Precisa pulsar, viver, e, para Bergson, seria essa a própria natureza da mudança. Ao propor pensar o tempo como duração a partir de Bergson (2005), foi possível encontrar pontes pertinentes a partir destas experimentações nos espaços expositivos para problematizar a memória e a educação. Uma dessas exposições aconteceu de maneira dinâmica, em uma galeria de arte, onde as pessoas que ali estavam podiam remexer nos objetos, oportunizando a manipulação dos livros, a troca de lugares dos pequenos vidrinhos e uma observação mais sensorial dos/as visitantes. Esta exposição foi intitulada de “Jogo Coletivo para Inventar Histórias”, como mostrado na imagem a seguir, e permitia a interação entre obras e espectadores/as. A ideia desta exposição foi construir convites para acionar uma memória atualizada, rememorar cheiros, instantes, sensações que abraçavam estes/as visitantes, e depois diluíam-se conforme o próprio tempo em duração.
Quando falamos que a memória se contrai em duração é quando esta esforça-se para alcançar o mais novo presente, mas que ainda não é futuro. Já quando esta duração da memória se dilata, ela revisita um passado, mas não um passado que já foi, e sim aquele que ainda é. Portanto, segundo Deleuze (1999, p. 39) “há duas memórias, ou dois aspectos da memória, indissoluvelmente ligados, a memória-lembrança e a memória-contração”. Essas duas memórias aparecem para misturar instantes nesse tempo coexistente, que é a duração.
Deleuze (1999) apresenta a memória-lembrança e a memória-contração pela razão da dualidade na duração. Essas relações de dualidade são e estão em um “movimento pelo qual o ‘presente’ que dura se divide a cada ‘instante’ em duas direções, uma orientada e dilatada em direção ao passado, a outra contraída, contraindo-se em direção ao futuro” (DELEUZE, 1999, p. 39). Neste movimento de contração e dilatação foi produzida a intenção do encontro com as garrafinhas e os questionamentos presentes dentro delas, instigando possibilidades de retornos que contassem de um passado atual, reinventado, inédito.
Ao observar como cada pessoa se conectou com a materialidade da experimentação, podem-se visualizar as distintas relações que cada indivíduo estabeleceu com o seu próprio tempo, com suas memórias. Os retornos que chegaram através do e-mail foram importantes para problematizar a memória acionada nestes sujeitos a partir da experimentação. Estes retornos também respingavam nas exposições que eram produzidas, interferindo na montagem das imagens e dos objetos. Muitos dos retornos nos provocavam, como: “você está mesmo aí?”.
Quando apresentamos conexões com o tempo e a memória, estabelecemos relações que não se vinculam à linearidade e à cronologia, produzimos experiências singulares e que acionam a produção de um outro tempo e de uma outra memória. Os espaços expositivos nos permitem uma interação silenciosa com as pessoas, em que suas memórias são acionadas para contar do que cada imagem lhe afeta ou traz à vida, de suas histórias e narrativas que emergem com a arte. A materialidade aqui resgatada resultou em exposições que apresentaram a experimentação e os retornos daqueles que recolheram os fragmentos de escrita presentes nas garrafinhas. O próprio tempo de escrita deste artigo também perpassou pela duração, em tempos alargados pela memória que abraçava lembranças. Estas lembranças necessitavam vibrar no que ainda não tinha sido escrito e nem inventado, mas que estava na iminência de ser.
Ao explorar as imagens e retornos lançados a partir da experimentação, foi possível a produção de exposições que trataram do tempo e da memória como potencializadores das relações de aprendizado no campo da educação e da arte. A forma como a materialidade foi movimentada abriu possibilidades de pensamentos inexistentes, ainda por vir. “A simples sucessão afeta os presentes que passam, mas cada presente coexiste com um passado e um futuro sem os quais ele próprio não passaria” (DELEUZE, 2013, p. 52). A maneira como foram apresentados esses pequenos fragmentos a serem recolhidos possibilitou caminhar em uma memória como duração, com a finalidade de acionar diferentes tempos, territórios, fazendo com que estes coexistissem.
Dessa forma foi sendo traçada a linha do tempo como duração de uma experiência nos espaços expositivos. Como um cartógrafo, este texto foi construindo-se a partir das costuras sobre o tempo e as experimentações vivenciadas. A atenção cartográfica (KASTRUP, 2009) permitiu rastrear sensações que desacomodaram o momento de visita ao passado, lançando o tempo como duração em uma possibilidade por vir. Com a cartografia é possível ensaiar instantes de repouso em um tempo coexistente, onde recolhem-se elementos de diversas experiências e lugares, tanto na docência como na vida, para pautar o surgimento de novas superfícies, memórias atualizadas e no tempo como duração.
Das aberturas na memória e na história
Procuramos com este artigo apresentar algumas possibilidades de articulações entre arte e museu, história e memória, através de uma abordagem em que a história e a memória adentraram o campo da educação como potência para pensarmos um tempo que não diz apenas de outros/as, mas que inclui neste processo os atravessamentos e as memórias de quem lhe olha contemporaneamente. Assim, nem história nem memória se constituirão apenas pela narrativa dos grandes fatos, mas com eles poderemos produzir e dar a ver o que cada um/a aprende e constrói para si como conhecimento com a arte e a história.
As relações entre história e memória, história da arte e espaços expositivos percorreram este estudo de modo a mobilizar alguns atravessamentos com o campo da arte e da educação. Os dois pontos de deslocamento deste artigo se aliaram à problematização do tempo, a partir da história da arte e de algumas experimentações no campo educativo, e da memória como potência a partir do tempo como duração, para mobilizar os espaços expositivos e educacionais. Nesse sentido, apresentamos neste texto tanto possibilidades de alianças com a arte e os museus quanto de alianças com a história e a memória, para o campo da educação.
Assim, pensamos em algumas possibilidades de aproximação com o tempo, de modo a desarticulá-lo de sua linearidade e cronologia em prol de alguns desajustes no campo da educação e da arte. Apontamos que estes desajustes podem se dar entre a organização de uma aula, de uma vida, adentrando o espaço da educação formal e não formal como percurso possível para a aliança entre estudantes e imagens.
Desse modo, elencamos como possíveis algumas estratégias para acolher a história e a memória nos espaços educativos, pelas articulações com a história da arte e os museus. Esta organização não linear para a história e a memória desfaz também nossa relação cronológica com o tempo, tradicionalmente organizado pela regulação de uma flecha no tempo. Pensamos em possibilidades e deslocamentos entre seu tempo linear, de modo a propiciar que se abordem estes temas com ênfase em possíveis criações, para acolher o presente e a vida dos/as estudantes neste processo.
A cartografia possibilitou que este estudo se deslocasse entre os campos da história e da memória, operando alguns atravessamentos com a arte, para traçar algumas linhas de criação de novos territórios a serem explorados com a história da arte, com a memória e os museus.
Com estes atravessamentos vemos que é possível abordar a história e a memória a partir de uma aliança com o presente, de modo a trabalhar com a história da arte no campo educativo como mobilizadora de problematizações sobre o que os/as estudantes vivem, assim como abordar a memória e seus desdobramentos em experimentações nos espaços expositivos se torna potente para trazer suas narrativas e afetos para a discussão nos espaços educativos. As experimentações apresentadas aqui procuraram dar a ver algumas possibilidades de recolha de objetos, recortes de escritas, imagens e desajustes da cronologia do tempo, para talvez provocar a criação de novos territórios que este estudo possa vir a semear.
Atentamos para o que foi surgindo neste percurso e dando passagem aos afetos e narrativas que foram sendo produzidas, pois, “a ativação de uma atenção à espreita - flutuante, concentrada e aberta - é um aspecto que se destaca na formação do cartógrafo” (KASTRUP, 2009, p. 48). Assim, deixamos de lado a atenção seletiva, que normalmente prevalece no nosso funcionamento cognitivo, para estar à espreita do que movimenta um novo arranjo com a história e a memória.
Essa atenção diz respeito a como voltar o olhar para o que está contido nas experiências vividas, ditas antigas, mas que retornam de forma recente, com o intuito de durar, duração do tempo; assim como no tempo o qual não vivemos, na história da arte, e nas possíveis desordens que provocamos no relógio, na linha que organiza o tempo. Estivemos atentas aos desajustes que o tempo coexistente proporcionou na história e na memória, para perceber o que vibra a partir das alianças feitas em sala de aula, da produção de exposições, dos atravessamentos com a educação e com a arte.