1 Introdução
A pesquisa parte do contexto histórico e da concepção de liberdade em Freire. Aborda-se o contexto em que o pensamento freireano se desenvolveu, apresentando os aspectos da vida do autor que influenciaram na sua construção pedagógica. Busca-se experiências vivenciadas por Freire que ajudaram na construção de sua teoria e de sua visão de mundo. Para tanto, o problema da pesquisa compreende qual a importância e atualidade da pedagogia freireana na consolidação de sociedades humanizadas? O objetivo consiste em analisar de forma reflexiva a pedagogia freireana, sua importância e atualidade em provocar no ser humano a capacidade de superação da opressão por meio da formação de consciência crítica e humanizadora. Para a problematização do estudo, segue-se o método hermenêutico-dialético a partir do referencial teórico freireano. A pesquisa hermenêutico-dialética (Flickinger, 2010) pressupõe que o sujeito assume de maneira ética e responsável a própria ação em vistas da sua constituição integral. A dimensão hermenêutica exige do sujeito pesquisador e da perspectiva pesquisada uma investigação que potencialize a crítica transformadora da formação e promova a compreensão dialógica entre os atores do processo educativo.
Primeiramente, situa-se o leitor a partir do contexto histórico percorrido por Paulo Freire. Dialoga-se com a ótica de constituição do ser humano enquanto sujeito histórico e inacabado, sendo este o ponto essencial na formação de consciência propulsora da superação da opressão. O ser humano situado culturalmente e historicamente, com capacidade criativa e crítica interage e intervém na realidade. Os seres humanos têm lutado contra as forças de dominação e opressão, “toda vez que se suprime a liberdade, fica ele um ser meramente ajustado ou adaptado” (Freire, 1980, p. 42). É exatamente a quebra do paradigma de adaptação em vistas do olhar crítico, que o autor estimula os sujeitos a transformação das realidades em que se encontram. Com a formação da consciência crítica abrem-se horizontes de elucidação dos elementos que colocam o sujeito numa situação de dominação, fazendo-o movimentar-se para superá-la.
Problematizando sobre o conflito entre o opressor e o oprimido apresenta-se a humanização como caminho pelo qual os sujeitos podem chegar a ser conscientes de si mesmos, desenvolvendo uma forma própria de atuação e pensamento para intervir e transformar o mundo e, por fim, a superação da opressão e a possibilidade de ser mais, elucidando a práxis como conceito potente que coloca o sujeito numa condição de intervenção e transformação das realidades. Entende-se a humanização não como um dado ou processo garantido, mas como uma vocação, que pode ser negada na injustiça, na opressão e na exploração, mas é afirmada “no anseio de liberdade, de justiça, de luta pela recuperação de sua humanização roubada” (Freire, 1987, p. 30).
Os princípios de relações injustas recusam a humanização e liberdade como tarefa humanista. A liberdade é subjetiva e não uma possibilidade de realizar todos os desejos, almejando-a acima de qualquer limite. O pensamento contemporâneo a apresenta em dois aspectos: primeiro a vontade ilimitada, negadora de outras vontades e rigorosamente de si (dos donos do mundo, dos egoístas). A liberdade não se opõe às coisas alheias, nem termina quando começa a do outro, mas se realiza com indivíduos na luta pela liberdade todos. Segundo, nem todos os nossos desejos são verdadeiros ou autênticos, considerando que realizar um desejo não é conduzir a liberdade, mas alienar a existência inautêntica. Para tanto, “só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos” (Freire, 1987, p. 31). Na obra Pedagogia do Oprimido, fica explícito que a liberdade é uma conquista que se alcança na medida em que se luta pela libertação de si, do outro e do mundo. Na pedagogia freireana encontra-se de forma clara e objetiva a tese de uma educação comprometida com a humanização, com a liberdade e com o respeito à historicidade dos sujeitos.
2 Contextualização Histórica
O propósito consiste em iniciar com uma contextualização histórica para melhor compreender e situar a relevância do pensamento freireano no desenvolvimento desta pesquisa. Paulo Freire nasceu no dia 19 de setembro de 1921, no Recife, Pernambuco. Desde o princípio de sua vida cresceu em um ambiente imbuído de dominação, opressão e pobreza. Filho de uma família de classe média, sua família sofreu forte impacto com a crise de 1929 que teve abrangência no mundo todo. No ambiente em que vivia havia pessoas analfabetas, as quais lhe foi negada a oportunidade de obter o conhecimento1 da leitura e da escrita. Na concepção freireana este aspecto facilita o processo de dominação.
No ano de 1946 começou a trabalhar no Departamento de Serviço Social (SESI), tendo a oportunidade de manter um diálogo com o povo, conhecendo sua realidade e os seus problemas sociais, educacionais, econômicos, entre outros. O primeiro contato direto com a sociedade em geral e com a realidade do povo foi na instituição do SESI, que segundo Gadotti:
Após a experiência de docência no mesmo estabelecimento de ensino em que havia estudado, foi ser diretor do setor de Educação e Cultura do SESI, órgão recém-criado pela Confederação Nacional da Indústria através de um acordo com o governo Vargas. Aí teve contato com a educação de adultos/trabalhadores e se sentiu o quanto eles e a nação precisavam enfrentar a questão da educação e, mais particularmente, da alfabetização. Freire ocupou o cargo de Diretor desse setor do SESI de 1947 a 1954 e foi superintendente do mesmo de 1954 a 1957 (Gadotti, 1996, p. 33).
Freire administrava o setor educacional no SESI, estando mais próximo das escolas primárias, cujas crianças eram de famílias operárias. Permaneceu lá por dez anos. Espantou-se ao conhecer a realidade das famílias das crianças. Diante desta situação passa a dialogar com as classes trabalhadoras, buscando entender sua linguagem, entender o que Ele mesmo intitulou de “malvadeza do sistema capitalista”, com os indivíduos que viviam em condições desumanas e em estágio de abandono.
No contato com os operários, foi conhecendo aos poucos a opressão, a alienação e as dificuldades enfrentadas por aquele povo. O diálogo é essencial para a pedagogia freireana. Na obra Conscientização, teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire, propaga ter aprendido com seus pais a arte do diálogo: “Com eles aprendi o diálogo que procuro manter com o mundo, com os homens, com Deus, com minha mulher e com meus filhos” (Freire, 1980, p. 13). O diálogo oportuniza uma relação próxima com os trabalhadores.
Na direção do Setor de Educação do SESI estabeleceu encontros intrarrelacionais entre as famílias e a escola, aproximando as famílias da escola e vice-versa. O método de ensino era o tradicional e logo percebeu os castigos físicos aplicados pelos pais aos estudantes e que os professores eram autoritários e dominadores em suas práticas educacionais. Vivenciando esta realidade, Freire foi em busca de alternativas que ajudassem os estudantes que estavam sendo oprimidos no seu processo de ensino e de aprendizagem. É importante ressaltar que buscou uma alternativa no campo prático do cotidiano, observar o comportamento das crianças nas famílias, na escola e a forma como eram tratados e como os professores exerciam a sua função. O método educacional freireano é conhecido e adotado no Brasil e no exterior, bem como nos movimentos e organizações populares e nos conselhos de comunidades vendo na aplicação do método possibilidades de humanização. No Movimento de Cultura Popular (MCP), envolve-se pedagogicamente com os círculos de cultura e a partir daí passou a ser visto como uma ameaça e um perigo aos olhos dos opressores.
Sua pedagogia continha a percepção clara da cotidianidade discriminatória da nossa sociedade até então preponderantemente patriarcal e elitista. Apontava soluções de superação das condições vigentes, avançadas para a época, dentro de uma concepção mais ampla e mais progressista: a educação como ato político. Tudo isso era no Brasil que ainda reproduzia, impiedosa e secularmente, a interdição dos corpos dos desvalorizados socialmente, que, assim, viviam proibidos de ser, ter, saber e poder (Gadotti, 1996, p. 36).
No Brasil o índice de alfabetizados crescia cada vez mais, com isso, Freire era visto como uma ameaça. Em setembro de 1964 sentiu-se ameaçado com o Golpe Militar teve que deixar o País e foi exilado para a embaixada da Bolívia. Em seguida deixa aquele país e vai para o Chile. Mais tarde vai para os EUA e, então, para Genebra, onde atua como Consultor Especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas. Conheceu a África, Ásia e Oceania sempre em defesa dos oprimidos, desfavorecidos e dominados da sociedade. Em agosto de 1979 retorna ao Brasil e, mesmo enfrentando resistências, retoma seu trabalho de educador popular. Freire ficou exilado por quase 16 anos, pela sua compreensão e luta que a educação deveria ser um bem acessado por todos os brasileiros, possibilitando-lhe a leitura da palavra a partir da percepção de mundo.
Percebe-se que a pedagogia freireana está voltada às classes populares visando à conscientização e a alfabetização numa perspectiva de dar ao ser humano a possibilidade de expressão cidadã, ou seja, a formação de sujeitos preparados para a leitura de si e do mundo, tornando-os sujeitos críticos e conscientes.
3 O ser humano histórico e inacabado
O ser humano é um sujeito histórico e inacabado que se constrói em relação. Ao cogitar que o ser humano é inacabado percebe-se a necessidade de educação e de liberdade. Não somente o ser humano é inacabado, mas os animais também o são. A distinção está no fato de que os sujeitos são pensantes e conscientes de sua inconclusão. É exatamente por esta diferença que se instaura a educação humana, levando em conta que os sujeitos têm a capacidade de desenvolver seu próprio processo educacional. O sujeito constituído de racionalidade passa a ter consciência de que é um ser inacabado a partir do momento em que passa da educação bancária para a educação problematizadora, sendo que o ponto de partida é o caráter histórico do ser humano:
A concepção e as práticas “bancárias”, imobilistas, “fixistas”, terminam por desconhecer os homens como seres históricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do caráter histórico e da historicidade dos homens. Por isto mesmo é que os reconhece como seres que estão sendo, como seres inacabados, inconclusos, em e com uma realidade que, sendo histórica também, é igualmente inacabada. Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da educação mesma, como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a educação um quefazer permanente. Permanente, na razão da inconclusão dos homens e do devenir da realidade (Freire, 1987, p. 72-73).
O ser humano é um sujeito em construção e se educa por reconhecer-se inacabado. Por ser racional tem a possibilidade do “cogito” sobre si mesmo, instaurando-se nas realidades e constituindo-se no meio em que se encontra. A educação conecta-se na constante busca do “ser mais” a fim de que o sujeito não se encontre como um objeto, mas sujeito de sua própria educação e história. Experimentando-nos enquanto seres culturais, históricos, inacabados e conscientes deste inacabamento, vislumbra-se o reconhecimento da desumanização existente na realidade sofrida pelos sujeitos:
Constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente, reconhecer a desumanização, não apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade histórica. É também, e talvez sobretudo, a partir dessa dolorosa constatação que os homens se perguntam sobre outra viabilidade - a de sua humanização. Ambas, na raiz de sua inconclusão os inscrevem num permanente movimento de busca. Humanização e desumanização. Dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão (Freire, 1987, p. 30).
As realizações que se constituem no encontro com o outro, proporcionam um estado de relação. Diante da perspectiva de relação, afirma-se que a educação acontece a partir da mediatização do mundo. Sabendo que “ninguém educa ninguém e nem se educa sozinho, os homens se educam em comunhão” (Freire, 1987, p. 69). A inconclusão do sujeito é própria de seu processo natural, este tem que ser o ponto de partida natural, considerando que a experiência vital do inacabamento possibilita a abertura de horizonte conscientizador, ou seja, “a invenção da existência a partir dos materiais que a vida oferecia levou homens e mulheres a promover o suporte em que os outros animais continuam, em mundo. Seu mundo, mundo dos homens e mulheres (Freire, 1996, p. 50). A relação de inacabamento permite a constituição dos sujeitos e do mundo de forma permanente.
Seguindo esta lógica de o ser humano se apresentar como inconcluso e em constante processo de construção de sua originalidade, vislumbra-se que o sujeito desde o nascimento enfrenta desafios, por estar inserido em uma sociedade mutável que o possibilita ser mutável. É no mundo e com o mundo que o ser humano se reconhece incompleto. A existência de um ser humano envolve a cultura, a linguagem e a comunicação em níveis mais profundos e complexos. Dentro desta liberdade se inscrevem seres humanos como seres éticos que visam uma sociedade justa, igualitária e democrática. O estado de ser mais pode ser cultivado na medida que as pessoas estiverem conscientes da realidade em que está vivenciando, para tanto, isso passa a ser um fenômeno humano da educação:
A educação problematizadora, que não é fixismo reacionário é futuridade revolucionária. Daí que seja profética e, como tal, esperançosa. Daí que corresponda à condição dos homens como seres históricos e à sua historicidade. Daí que se identifique como seres mais além de si mesmos - como “projetos”-, como seres que caminham para, que olham para frente; como seres a quem o imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para trás não deve ser uma forma nostálgica de querer voltar, mas um modo de melhor conhecer o que está sendo, para melhor construir o futuro. Daí que se identifique com o movimento permanente em que se acham inscritos os homens, como seres que se sabem inconclusos; movimento que tem o seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objeto (Freire, 1987, p. 73).
Na obra Ação cultural para a liberdade (1981), discute-se mais amplamente o sentido profético e esperançoso da educação (ou ação cultural) problematizadora. Profetismo e esperança que resultam do caráter utópico, tornando assim a utopia uma unidade inquebrantável entre a denúncia e o anúncio. Denúncia de uma realidade desumanizante e anúncio de uma realidade em que os sujeitos possam “ser mais”. Anúncio e denúncia não são, porém, palavras vazias, mas compromisso histórico.
Contudo, não somente o sujeito é incompleto, mas também a realidade, estando sujeito e mundo em permanente relação. O ser humano é capaz de comparar, ajuizar, intervir, romper, escolher, ressignificar grandes ações no mundo, também é capaz de impensáveis exemplos de baixeza e indignidade: “Só os seres que se tornam éticos podem romper com a ética” (Freire, 1996, p. 52). O mundo é mais que um suporte natural, é a existência cultural histórica. Por este aspecto, o mundo é o meio de encontro dos sujeitos entre si, sendo mediados pela natureza.
Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco, irrevogável que sou ou serei descente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu “destino” não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja feitura não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a história em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insisto tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade (Freire, 1996, p. 52-53).
Fazer história é uma característica que está integrada ao ser humano, como também a capacidade de consciência e de relação. Isso faz com que o sujeito não se sinta um objeto e sim ativo na elaboração de um mundo mais humano e melhor para todos. A consciência do inacabamento faz com que haja crescimento compartilhado nas sociedades.
4 O conflito entre opressor e oprimido
Ao encontra-se no mundo e com o mundo os seres humanos expõe-se como sujeitos de relação. Na pedagogia freireana instituem-se dois pontos essenciais: a humanização e a desumanização. A humanização é o caminho pelo qual os sujeitos podem chegar a ser conscientes de si mesmos, desenvolvendo uma forma própria de atuação e pensamento com a capacidade de uma visão ampla. Pela forma de atuar e de pensar desenvolvem a percepção de si mesmos e de outrem. Numa sociedade em que os indivíduos estão alienados e obrigados a pensarem somente de um determinado modo, estão convertidos em meros objetos, simples instrumentos de produção de riqueza. Com isso, quer-se dizer que ao constatar que existe humanização, também afirma-se a existência da desumanização. Porém, somente a humanização é vocação enquanto horizonte que orienta a atitude humana na busca do “ser mais”, livre da opressão e da brutalidade. Todavia, a desumanização é uma possibilidade que infelizmente se tornou real na história. Nesta perspectiva,
[...] se ambas são as possibilidades, só a primeira nos parece ser o que chamamos de vocação dos homens. Vocação negada, mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta, dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada (Freire, 1987, p. 30).
A vocação à humanização é negada no momento que o sujeito é oprimido e dominado, mas é assegurada na busca pela justiça e pela liberdade. Diante da realidade de oprimido e de opressor, o sujeito tem condição de buscar incansavelmente a humanidade que lhe foi roubada. A desumanização pode ser verificada nos que vivem a desumanização e também naqueles que a roubam. Os que roubam a vocação ontológica de “ser mais” dos outros sujeitos são tão desumanos quanto eles. Para que a vocação histórica do sujeito tenha sentido, faz-se necessário quebrar o paradigma de desumanização do sujeito desumano, que desumaniza o sujeito que teve a sua humanidade roubada. Sem isso, lutar pela humanização, “[...] pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, não teria significação. Este somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato da história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores e, esta, o ser menos (Freire, 1987, p. 30).
Ao aguçar a percepção referente ao conceito de “ser menos”, tem-se como horizonte a elucidação do conceito de “ser mais”. Busca-se esclarecer que, cada estado de ser, subsidia o sujeito explorado a colocar-se em movimento de contraposição daqueles que tem como objetivo a manutenção do “ser menos”. Esse passo abre caminho para a emancipação e vislumbra a importância da tomada de consciência do contexto e da situação que o sujeito se encontra, em vistas da garantia de processos de humanização. Explicita-se que o “ser menos” é uma condição contrária a essência da natureza do ser humano. A recuperação da humanidade tem como proposição a não reprodução da opressão, ou seja, de o oprimido tornar-se opressor. A proposta consiste em restabelecer a humanidade dos dois. E aí está a grande tarefa histórica dos oprimidos - libertar-se a si e aos opressores (Freire, 1987, p. 30). É por meio da força e poder que nasce do oprimido que pode superar a dicotomia existente entre opressor e o oprimido, considerando que se for um empreendimento tomado pelo opressor certamente será uma generosidade alimentada pela morte e pela miséria2, afastando-se assim da real possibilidade de extinção da opressão.
Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela (FREIRE, 1987, p. 30).
Para tanto, por meio da luta e revolução das minorias oprimidas das sociedades é que surge a possibilidade latente da conquista da liberdade. A luta pela liberdade está associada a garantia da dignidade humana de forma subjetiva e intersubjetiva. Isso quer dizer, libertar-se de maneira individual e coletiva. A ação e reflexão expressas pela práxis do “ser mais” é um exercício ativo, de pessoas que se colocam em movimento transformador. A liberdade exige tomada de consciência para que o sujeito oprimido não se torne um sujeito opressor, havendo uma inversão de posição, considerando que, Freire deixa-nos o alerta desta probabilidade. Essa tendência evidencia-se pela referência de ideal que o oprimido cria, de forma ilusória, de que para manter o status quo e garantir o sucesso, o opressor manipula, explora e aproveita-se de outrem, distanciando assim, a possibilidade de liberdade. Desse modo, obtém-se uma visão de sujeito individualista: “A sua aderência ao opressor não lhes possibilita a consciência de si como pessoa, nem a consciência de classe oprimida” (Freire, 1987, p. 33). Diante desta exposição, observa-se que o sujeito que se encontra oprimido e dominado busca sua libertação, não visando uma universalidade, mas uma possibilidade de dominação.
Além da problemática de introjeção do opressor, o oprimido vive o medo pela liberdade: “’O medo da liberdade’3, de que se fazem objeto os oprimidos, medo da liberdade que pode conduzi-los a pretender ser opressores também, quando pode mantê-los atacados ao status de oprimidos, é outro aspecto que merece igualmente nossa reflexão” (Freire, 1987, p. 33). Apresenta aqui a posição de tornar-se um opressor ou continuar sendo oprimido, por isso o medo da liberdade. A liberdade exige autonomia que se agrega à responsabilidade.
A liberdade, que é conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário luta por ela precisamente porque não a tem. Não é também a liberdade um ponto ideal, fora dos homens, à qual inclusive eles se alienam. Não é ideia que se faça mito. É condição indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os homens como seres inconclusos (Freire, 1987, p. 34).
Por meio dessa constatação, repara-se a necessidade que há de superação de toda forma de opressão pela qual o sujeito encontra-se inserido. Com a criação de novas possibilidades de humanização o sujeito supera a opressão e luta pelo “ser mais”, com isso, avança na superação da opressão que gera o “ser menos”, que impede o caminho para se chegar à liberdade4. Neste processo o ser humano depara-se com alguns paradoxos: descobre que não sendo livre não é autêntico; quer ser, mas teme sê-lo; não consegue manter-se a si mesmo, sendo ele e, ao mesmo tempo, é o outro introjetado nele como uma consciência opressora. Trava uma batalha de expulsão e não expulsão do opressor ou do oprimido que está dentro de si.
Essa dualidade continua sendo um problema do sujeito oprimido e do sujeito opressor que a pedagogia freireana tem que enfrentar. “A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na superação da contradição opressor-oprimido, que é a libertação de todos” (Freire, 1987, p. 35). O sujeito se depara no seu processo de busca pela humanização ou desumanização em duas linhas distintas: ser livre e autônomo ou dar continuidade a exclusão, a opressão e a dominação.
5 A superação da opressão e a possibilidade de “ser mais”
A dinâmica de superação da opressão é um desafio eminente para o sujeito oprimido. Faz-se necessária a superação dos próprios medos e a criação de uma consciência analítica e crítica da sua situação de realidade e da situação do contexto do coletivo. Com uma terminologia moderna, é necessário que saia da caixa que esta, para analisá-la por outro ponto de olhar, afinando a percepção da conjuntura daquela realidade. Esse movimento exige tomada de consciência transformadora da realidade desumana e cruel constituída pelos próprios sujeitos. Requer a criação de consciência de que se existe a possibilidade de alienação, também existe a possibilidade de libertação. Considera-se que se os sujeitos são capazes de produzir a realidade opressora, também são capazes de consolidar a realidade humanizadora, esta é uma tarefa histórica dos seres humanos.
Ao fazer-se opressora, a realidade implica a existência dos que oprimem e dos que são oprimidos. Estes, a quem cabe realmente lutar por libertação juntamente com os que com eles em verdade se solidarizam, e precisam ganhar a consciência crítica da opressão, na práxis desta busca (Freire, 1987, p. 37-38).
Neste contexto, a práxis é uma alternativa plausível para intervir no mundo e transformá-lo. A superação da dualidade entre o opressor e o oprimido tem condição de ser realizada por meio da práxis humanizadora. A práxis humanizadora é propulsora da vocação ontológica do “ser mais”, que promove o (re)conhecimento do meio em que o sujeito encontra-se inserido. Na epistemologia e no reconhecimento o ser humano aprimora a sua reflexão e a sua ação diante da realidade objetiva. Para não criar uma falsa concepção da realidade, busca a superação da percepção ingênua, com foco em uma percepção crítica dos fatos. Da mesma forma que, precisa tomar cuidado com a modificação da realidade objetiva em tempo que a mesma possa ferir os interesses subjetivos daqueles que estão imbricados nela. A mudança tem que ocorrer de forma consciente e gradativa, para que todos os atores do processo possam acompanhá-la com tranquilidade.
Contudo, a manutenção da relação intersubjetiva e propriamente do sujeito consigo mesmo, pode ser definida como “subjetividade com o mundo” (objetividade), com o “Divino” (transcendente) e com a reciprocidade e empatia, especificidades da natureza humana. Na relação dialética entre subjetividade e objetividade ocorre a análise crítica do sujeito frente a realidade, encontrando assim, um caminho fecundo de liberdade. Nessa circunstância, estimular o opressor e o oprimido sobre a sua estada na sociedade, ajuda-os a compreender a sua natureza na dualidade de opressor e de oprimido, de superior e de inferior, de explorador e de explorado. A conquista da liberdade de ambos é um constante movimento democrático.
Para tanto, fica evidente a importância de o oprimido conhecer a realidade que o rodeia e, a partir disso, buscar formas de transformação. Esse movimento torna-se possível por meio da práxis; a partir da práxis há uma mudança, levando em conta que em si mesma a realidade não se transforma. Neste sentido, com a Pedagogia do Oprimido Freire trava uma luta com e pela liberdade, sendo essa uma pedagogia dos seres humanos. O primeiro passo essencial, constitui-se no olhar crítico do oprimido em saber-se oprimido. Na sequência, promover o restabelecimento da intersubjetividade, abrindo assim horizontes para a formação autêntica, original e substantivamente humanizadora. Do contrário, a pedagogia que parte “dos interesses egoístas dos opressores, egoísmo camuflado de falta de generosidade, faz dos oprimidos objetos de seu humanitarismo, mantém e encarna a própria opressão. É instrumento de desumanização” (Freire, 1987, p. 41).
Pensar numa pedagogia humanista libertadora deixa-nos explícito que o ponto condicionante está no sujeito oprimido. É a partir d’Ele que ocorre o movimento para liberdade. Ao falar em uma pedagogia humanista libertadora só tem sentido pela sua conexão com o sujeito que a demanda. A sua construção ou prática não ocorre pelo sujeito opressor, se o fosse, existiria uma séria contradição, levando em consideração que o opressor tem como ponto central a manutenção da alienação e do domínio do oprimido, inclusive criando mecanismos que o impossibilitem de criar consciência ou superar a opressão. Mantê-lo na situação que esta é uma forma de garantir a continuidade do monopólio do opressor. Fica evidente que a liberdade está no sujeito oprimido. Sendo assim, é a partir dele que deve nascer a busca pela restauração da intersubjetividade e pela liberdade. A pedagogia humanista e libertadora problematizada na Pedagogia do Oprimido apresenta dois estágios distintos:
O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação (Freire, 1987, p. 41).
O primeiro horizonte vislumbrado pelo oprimido, consiste na percepção do mundo vivenciado pelo opressor. O segundo horizonte está na superação dos mitos presentes na estrutura da opressão, enfrentados por meio de uma postura de transformação revolucionária dos sujeitos frente a realidade em que estão inseridos. Como destaque, reflete-se sobre a consciência oprimida e a consciência opressora diante de um contexto que oprime. Na conjuntura cultural, econômica, política e social a maior violência implícita e explícita é aquela realizada pelo opressor sobre o oprimido.
A existência do ser oprimido se evidência na medida em que houver uma violência que se objetiva na relação de opressão. A violência verticalizada pelo opressor ao oprimido nega-lhe a oportunidade de “ser mais”. O ato de violência gera a proibição de ser do outro. Tanto o sujeito opressor quanto o sujeito oprimido antes de mais nada são seres humanos, estando imbricado em seu ser, o querer “ser mais”. Na medida que o opressor domina a perspectiva de “ser mais” do oprimido, impossibilita-lhe a evolução própria enquanto ser humano no mundo, coloca-o sobre a sua dominação. Na posição de opressor que oprime não se liberta e também não liberta outrem.
É de interesse do opressor que o oprimido permaneça no estado de opressão, considerando que, a subordinação reflete na reprodução daquilo que o opressor deseja que o oprimido seja e expresse na sociedade. Por outro lado, o opressor não se dá conta que ao oprimir o outro, coloca-se na situação de auto opressão no sentido de privar-se da humanização e da liberdade própria, ou seja, da própria natureza ontológica de “ser mais”. A superação da dualidade de opressor e de oprimido permite a conquista da liberdade de ambos. Nessa superação surge o sujeito livre, não mais denominado de opressor ou de oprimido, mas denominado de “ser humano novo”..
O opressor da sociedade não tem como objetivo existencial a liberdade, se o fosse, deixaria de lado o poder e a manipulação: “[...] para os opressores, o que vale é ter mais e cada vez mais, à custa, inclusive, do ter menos ou do nada ter dos oprimidos. Ser, para eles, é ter como classe que tem” (Freire, 1987, p. 46). A concepção de Ser do opressor não está associada a liberdade humana, mas a liberdade econômica, de mercado. A manutenção do monopólio da consciência oprimida, potencializa o crescimento econômico, do ter mais, acumulo para a classe opressora. Na sociedade neoliberal o ser humano é colocado em segundo plano e se tem como ponto primordial a lógica do mercado. Para a garantia do “ter mais” às custas do “ter menos”, sacrifica-se o “ser mais”.
Não podem perceber, na situação opressora em que estão, como usufrutuários, que, se ter é condição para ser, esta é uma condição necessária para todos os homens. Não podem perceber que, na busca egoísta do ter como classe que tem, se afogam na posse e já não são. Não podem ser. Por isso tudo é sua generosidade, como salientamos, é falsa (Freire, 1987, p. 46).
Seguindo essa lógica, o opressor tem como pretensão criar uma consciência de concordância e fraqueza no oprimido, fazendo-o com que não acredite no seu próprio potencial, ocorrendo assim, a objetificação do sujeito. Tornar o sujeito objeto do sujeito é uma das centralidades da relação entre o opressor e o oprimido. A crítica efetivada nas teses freireanas alusivas à opressão e aos opressores, tem como intuito promover a confiança e o compromisso dos sujeitos, com a busca genuína à liberdade, com o renascer do ser humano. A formação da consciência reflexiva e crítica, permite a memória de sujeitos que vivem em sociedade, partilham experiências de vida, conhecimento científico e popular, dentre outros aspectos que fazem parte da cotidianidade do ser humano. Nesse sentido, o sujeito não pode ser reduzido a objeto. Ao falar em liberdade do sujeito não se fala de uma coisa, “não é autolibertação e nem libertação por outrem” (Freire, 1987, p. 53). Na relação saudável e responsável entre os sujeitos é que se concretiza a liberdade, a autonomia e a solidariedade.
É que esta luta não se justifica apenas em que se passe a ter liberdade para comer, mas a “liberdade para criar e construir, para admirar e aventurar-se”. Tal liberdade requer que o indivíduo seja ativo e responsável, nem um escravo nem uma peça alimentada da máquina. Não basta que os homens não sejam escravos; se as condições sociais fomentam a existência de autômatos, o resultado não é o amor à vida, mas o amor à morte (Freire, 1987, p. 55).
A luta pela liberdade é uma luta de biofilia que se revela a partir da grandeza do ser humano, da sua historicidade e antropologia. A garantia da dignidade humana na sua integralidade e universalidade, compreende o direito que todos têm ou deveriam ter, de serem livres. Na atemporalidade histórica a humanização e a liberdade são o horizonte a ser conquistado. Na medida em que o sujeito ter a clareza da sua realidade, do contexto em que se encontra inserido, começa a aguçar a percepção sobre as problemáticas que estão ao seu envolto em vistas de subsídios de resolução. “A liberdade é a base da vida de qualquer ser humano, [...] somente quando livre é que ele será capaz de criar e recriar, destruir e construir, transformar e retransformar, denunciar e anunciar e comunicar” (Jorge, 1981, p. 33, grifo nosso). A práxis autêntica do sujeito o provoca a perceber-se em constante constituição, o coloca na busca do “ser mais”. Por fim, a teoria freireana no campo antropológico e ontológico aguça a elucidação de que o sujeito é inconcluso e se relaciona com outros sujeitos inconclusos. Dessa relação, brota a vocação do “ser mais”, da humanização, da liberdade. Ou ainda, essa relação pode reafirmar o “ser menos”, a desumanização, a opressão. Em síntese, a formação de consciência reflexiva e crítica sobre as nuances da sociedade é determinante no caminho de superação de contextos de opressão.
Considerações Finais
Com o caminho percorrido nesta pesquisa, observa-se que a categoria de sujeito é central no percurso histórico de Freire, bem como na sua compreensão de educação que abre horizontes para a superação do sujeito oprimido e do sujeito opressor. O ser em si e com os outros é a vocação ontológica dos sujeitos. O ser humano se constitui na sua relação com outrem e com o mundo, mediado pelo diálogo. A teoria freireana apresenta o sujeito como inacabado e consciente do seu inacabamento, isso lhe permite colocar-se em posição ativa na consolidação da própria história.
Neste processo, a educação instiga o sujeito na busca pela liberdade. Na relação dialética e libertadora os sujeitos descobrem seus universos juntos, compreendem as suas realidades, tematizam e problematizam os paradigmas educativos e sociais em vista da possibilidade iminente de superação da opressão. Considera-se que Freire levou muito a sério os problemas de seu tempo, buscando potencializar no sujeito a superação da consciência ingênua e vivência da consciência crítica. A consciência crítica coloca os sujeitos numa posição de debate e embate capaz de comprometê-los com a constante busca pela liberdade. Além disso, promove a capacidade de sonhar com uma realidade humana, equitativa e justa.
Portanto, o ser humano, por meio da sua intervenção consciente no mundo, torna-o melhor. Com a sua capacidade de conhecimento e de transformação proporcionados pela problematização da práxis, desenvolvem mecanismos que provocam a mudança da realidade, tornando a vida mais digna para todos. Por fim, a educação freireana tem como ponto inegociável o compromisso com a história individual e coletiva, pautada na humanização e na liberdade dos seres humanos no mundo. O estudo tem como propósito, explicitar a atemporalidade das teses de Freire, demonstrando-nos que é necessário autenticidade para continuar a reinventá-lo em cada tempo e em cada espaço de nossas sociedades. Reinventá-lo no espaço acadêmico, na escola, na comunidade, entre outros ambientes sociais, torna o ser humano capaz de criar e recriar possibilidades de uma sociedade mais acolhedora e mais bonita para todos.