“[...] e quando falamos temos medo
De nossas palavras não serem ouvidas
Nem bem-vindas
Mas quando estamos em silêncio
Ainda temos medo.
É melhor falar então.”
(Audre Lorde, The black unicorn: poems, 1978)
O grupo de trabalho Populações (In)Visibilizadas e Diversidades da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) manifesta seu repúdio a todas as formas de violência contra a população negra, bem como reitera o seu compromisso de combater o racismo estrutural que permeia os vários setores de nossa sociedade e, consequentemente, do cuidado e ensino em saúde.
Nos últimos dias, meses e anos, temos vivenciado uma explicitação dos casos de violência contra a população negra. Nos Estados Unidos, a morte de George Floyd, 46 anos, desencadeou uma onda de protestos contra a violência à população negra, que hoje ganha dimensões mundiais. No Brasil, uma semana antes, a mídia noticiava a morte de João Pedro Mattos, 14 anos, que ocorreu durante uma operação policial. Situação semelhante retratada em 2019 com a morte de Ágatha Vitória Sales Félix, 8 anos, baleada dentro de uma Kombi quando voltava da escola. Esses são alguns exemplos noticiados que expõem a constante violência contra a população negra. Ademais, destaca-se que no Brasil, de cada 100 pessoas assassinadas, cerca de 75 são negras1; 56,10% dos brasileiros negros ainda continuam social e economicamente atrás de outros grupos2.
Em tempos de pandemia da Covid-19, observamos sociedades médicas, como a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, compartilhando recomendações em relação às vulnerabilidades vivenciadas pelas populações que moram em favelas e periferias3, as quais são majoritariamente negras. Esse documento, por exemplo, debate as ações violentas contra homens negros, em sua maioria, por causa do uso de máscaras e a associação com a criminalidade, expondo, mais uma vez, a violência contra a população negra e o racismo estrutural de nossa sociedade.
Por racismo estrutural entende-se o conjunto de práticas institucionais, históricas, culturais, sociais e interpessoais que estruturam a nossa sociedade e colocam, de forma sistemática, um determinado grupo racial e/ou étnico em prejuízo, em inferiorização aos demais. O racismo “é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios, a depender ao grupo racial ao qual pertençam”4 (p. 25). E, consequentemente, a discriminação é compreendida como o tratamento diferenciado a um sujeito ou coletivo em razão da raça. Por isso, em um sistema racista, a branquitude é um exemplo de um privilégio que coloca determinados indivíduos em vantagens de oportunidades e expressões de suas potencialidades de vida sobre os demais4), (5.
Nesse sentido, o que temos observado é uma explicitação cada vez mais frequente e noticiada do racismo estrutural, que se mantém camuflado pelos conceitos de democracia racial e meritocracia, que, na prática, têm servido para manter as desigualdades entre brancos e negros6), (7. Além do mais, Rego & Palácios8 reiteram essa perspectiva de violência estrutural na escola médica, apontando para a necessidade de combate dessa cultura na formação em saúde e nas relações educadores(as)-educandos(as), bem como nas relações de cuidado em saúde.
Ressaltamos, com isso, que o racismo existe no ambiente da graduação em Medicina como racismo institucional e estrutural, constituindo-se em um fator dificultador para entrada e permanência das pessoas negras na faculdade e, consequente e concomitantemente, na conclusão da graduação e inserção no mercado de trabalho médico8), (9. Por isso, precisamos promover ações de inclusão, permanência e redução das violências/dos preconceitos em relação às questões étnico-raciais10), (11.
Considerando essas questões, as Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação em Medicina12 reiteram a importância das questões étnico-raciais e da história das culturas afro-brasileira e indígena na formação profissional. Esses elementos, em diálogo com a Política Nacional de Atenção Integral à População Negra10 e as demais Políticas de Promoção da Equidade em Saúde13, devem ser abordados de maneira transversal para a formação de médicas e médicos capazes de promover um cuidado em saúde equânime e antirracista, garantindo uma formação humanista, crítica, reflexiva e ética. Ademais, a efetiva operacionalização dessas ações deve ser um compromisso de educandos(as), educadores(as) e gestores(as)10), (12), (13.
Pelo exposto, o grupo de trabalho Populações (In)Visibilizadas e Diversidades da Abem ratifica a necessidade de sermos antirracistas em nossas práticas sociais, culturais, de ensino e de cuidado em saúde. Destacamos que a luta antirracista é uma responsabilidade de todas e todos, inclusive daqueles(as) que usufruem de privilégios, como a branquitude, no sistema racista. Com isso, ratificamos também o compromisso de educandos(as), educadores(as) e gestores(as) em promover os direitos humanos, a justiça social e a diversidade, reduzindo as desigualdades e disparidades em nossa cultura e sociedade. Reiteramos também nossa solidariedade às famílias e às pessoas vítimas de violência pelo racismo estrutural.
Defendemos ainda que é preciso continuar falando sobre esses temas na formação e no cuidado em saúde, com ampliação de cenários formais de ensino-aprendizagem sobre o tema e de pesquisas e ações extensionistas. Além disso, destacamos a importância de espaços acolhedores e promotores de cuidado para pessoas vítimas de violência, os quais dialoguem com as instâncias deliberativas das instituições, em especial das escolas da área da saúde. Ademais, colocamo-nos à disposição para qualificar a discussão na comunidade científica e dialogar com a sociedade civil.
Sabemos que um posicionamento escrito não cura a dor, não cessa a violência e tão pouco muda radicalmente uma cultura de séculos. Entretanto, posicionamo-nos para romper com o silêncio, somando-nos a diferentes vozes que hoje ocupam os espaços políticos da vida cotidiana, em um pedido ensurdecedor por paz e justiça. Posicionamo-nos para nos solidarizar com as pessoas e, principalmente, reforçar nosso compromisso com a qualificação do ensino, da pesquisa e da prática médicas, para que a educação médica acolha as diversidades étnico-raciais que formam o nosso país, reconheça-as e cuide delas.
Brasília, 5 junho de 2020