INTRODUÇÃO
A saúde mental dos estudantes universitários, principalmente os da área da saúde, sempre foi considerada como um sério motivo de preocupação, pois ela se constitui como um fator de risco para outros agravos relacionados à saúde física, tendo em vista a natureza muitas vezes estressante do ambiente acadêmico e do exercício profissional que pode levar ao desenvolvimento de diversos distúrbios emocionais1.
O estudante de Medicina está inserido em um novo contexto ao ingressar na vida acadêmica que pode alterar de forma drástica a sua saúde mental. Por conta disso, constante vigilância e apoio psicossocial são fundamentais2. Estudantes de medicina enfrentam um curso desgastante e vivenciam experiências estressantes. Durante o curso, expectativas e responsabilidades aumentam progressivamente, gerando tensões e angústias que afetam significantemente a saúde3.
O curso de Medicina, em especial o período do internato, requer do aluno uma jornada diária com alto grau de exigência. É necessário internalizar grande diversidade de conteúdos em pouco tempo, não somente referentes aos saberes médicos, mas também concernentes às habilidades que possibilitam as relações interpessoais, em que os alunos aprendem a lidar com sentimentos, sofrimentos e morte, envolvidos em contexto de muita competitividade, privação de lazer e insegurança técnica. A saúde mental talvez seja a parte mais afetada dos acadêmicos que vivenciam esse contexto inerente à formação médica3),(4.
Em um estudo com estudantes de Medicina da cidade de Fortaleza, no Ceará, identificou-se que um dos principais aspectos relacionados à ansiedade nos estudantes de Medicina era a privação do sono, sendo essa uma das principais características referidas pelos alunos avaliados5. Outra contribuição para a ansiedade seria a presença de relacionamento insatisfatório com familiares, amigos, colega de sala e professores5.
A prevalência mundial de transtorno de ansiedade em 2015 estimada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) foi de 3,6%, o que corresponde a um número de 264 milhões de pessoas, refletindo um aumento de 14,9% em dez anos6. Os levantamentos feitos por região demonstraram que a América apresenta as maiores porcentagens tanto no sexo feminino quanto no masculino, sendo as do feminino ainda maiores. Sobre a prevalência por sexo, indivíduos do sexo feminino têm duas vezes mais probabilidade do que os do masculino, tendo o pico do diagnóstico na meia-idade6.
Nesse sentido, a análise do presente estudo se concentrou na avaliação da ansiedade em estudantes de Medicina do internato. Teve por objetivo identificar a prevalência e os fatores associados aos níveis de ansiedade em estudantes internos de Medicina.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo transversal analítico com abordagem quantitativa. Esse método de pesquisa avalia o indivíduo e o fator de exposição simultaneamente, no mesmo intervalo de tempo analisado. Este estudo aborda uma situação em um momento não definido. Sendo assim, não há necessidade de mencionar o tempo de exposição a uma causa para gerar o efeito7.
A pesquisa foi realizada por meio de questionários aplicados a estudantes internos de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás), que estavam cursando o internato, ou seja, entre o nono e décimo segundo período. Havia 198 estudantes regularmente matriculados em todo o internato. A princípio o objetivo era entrevistar todos os acadêmicos, mas, com as negativas durante a coleta de dados que ocorreu entre fevereiro e março de 2020, foi possível obter uma amostra de 140 internos (70,7%).
Os critérios de inclusão foram: cursar Medicina na PUC Goiás, fazer parte do internato e estar presente no momento da aplicação do questionário. Os critérios de exclusão foram: estar de licença médica e apresentar os questionários respondidos de maneira incompleta.
Utilizaram-se dois questionários para a concretização dos objetivos desta pesquisa. O primeiro foi um questionário sociodemográfico, pessoal e clínico construído pelos pesquisadores com o intuito de obter dados de variáveis que possam se relacionar com a ansiedade.
O segundo questionário foi o Inventário de Ansiedade de Beck (Beck Anxiety Inventory - BAI)8, já adaptado e validado no Brasil9. Trata-se de uma escala de autorrelato que mede a intensidade dos sintomas da ansiedade. O BAI é constituído de 21 itens que são “afirmações descritivas da ansiedade”, as quais devem ser avaliadas pelo indivíduo com referência a si mesmo em uma escala de quatro pontos que refletem níveis de gravidade crescente de cada sintoma: 1 = absolutamente não; 2 = levemente: não me incomodou muito; 3 = moderadamente: foi muito desagradável, mas pude suportar; 4 = gravemente: difícil de suportar.
A escala reflete manifestações somáticas, cognitivas e afetivas características da ansiedade e refere-se aos sintomas que incomodaram o indivíduo na última semana, podendo variar de 0 a 63. O nível de ansiedade é classificado em ansiedade normal quando o escore total varia de 0 a 9 pontos, ansiedade de leve a moderada quando se obtém escore total entre 10 e 18 pontos, ansiedade de moderada a severa quando varia de 19 a 29 pontos e ansiedade severa entre 30 e 63 pontos10.
Com os dados coletados, confeccionou-se um banco de dados utilizando o software Microsoft Excel. Posteriormente, realizou-se uma estatística descritiva com o cálculo de média, frequências absoluta e relativa percentual e desvio padrão.
Na sequência, utilizando do software BioEstat 5.3 foi aplicado o teste de G para testar a associação das variáveis sociodemográficas, pessoais e clínicas com os resultados do BAI, assumindo p-valor inferior ou igual a 0,05 como significativo.
Antes da coleta de dados, o presente trabalho foi encaminhado ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da PUC Goiás e aprovado com o Parecer n. 3.425.379. Os discentes que concordaram em participar da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS
Participaram da pesquisa 140 estudantes internos de um curso de Medicina. A idade média dos estudantes foi de 24,3 (±3,4), sendo 67,9% até 24 anos, com idade mínima de 21 e máxima de 49 anos. Do total, 70,7% eram do sexo feminino, procedentes de Goiânia (56,3%), que moravam com pai, mães ou irmãos (68,3%). A maioria referiu estar solteira (54,2%), ter fraco envolvimento religioso (47,2%) e não trabalhar (62%) (Tabela 1).
Variáveis (N = 140) | n | f(%) |
Sexo | ||
Masculino | 41 | 29,3 |
Feminino | 99 | 70,7 |
Idade (anos) | ||
Até 24 anos | 95 | 67,9 |
Acima de 24 anos | 45 | 32,1 |
Procedência | ||
Goiânia | 80 | 56,3 |
Interior de Goiás | 36 | 25,4 |
Outro estado | 24 | 16,9 |
Trabalha e cursa Medicina | ||
Sim | 52 | 36,6 |
Não | 88 | 62,0 |
Período da Medicina | ||
Período 9 | 27 | 19,0 |
Período 10 | 31 | 21,8 |
Período 11 | 37 | 26,1 |
Período 12 | 45 | 31,7 |
Atividades extracurriculares | ||
Nenhuma | 9 | 6,3 |
Uma Atividade | 86 | 60,6 |
Duas Atividades | 38 | 26,8 |
três ou mais atividades | 7 | 4,9 |
Estado civil | ||
Solteiro | 77 | 54,2 |
Solteiro (namorando) | 59 | 41,5 |
Casado | 4 | 2,8 |
Envolvimento religioso | ||
Forte | 44 | 31,0 |
Fraco | 67 | 47,2 |
Nenhum | 29 | 20,4 |
Mora com quem? | ||
Pai, mãe ou irmãos | 97 | 68,3 |
Sozinho | 37 | 26,1 |
Parentes | 6 | 4,2 |
Em relação aos aspectos sociais e clínicos, 50% dos estudantes referiram realizar atividade física frequentemente, 90,1% não apresentavam doenças crônicas, 38% referiram ter doença psiquiátrica e 60,6% responderam estar fazendo terapia psiquiátrica ou psicológica. Em relação às horas dormidas, 81% responderam dormir menos de sete horas por noite, com 22,5% tendo insônia, e 58,5% faziam uso de substâncias que alteram o sono. A maioria dos estudantes 68,3% não estava satisfeita com o rendimento acadêmico e 45,1% já pensaram em abandonar o curso (Tabela 2).
Variáveis (N = 140) | n | f(%) |
Frequência em bares e festas | ||
Frequentemente | 49 | 34,5 |
Às vezes | 65 | 45,8 |
Raramente | 26 | 18,3 |
Frequência de atividade física | ||
Frequentemente | 71 | 50,0 |
Às vezes | 37 | 26,1 |
Raramente | 32 | 22,5 |
Doença crônica | ||
Sim | 12 | 8,5 |
Não | 128 | 90,1 |
Doença psiquiátrica | ||
Sim | 52 | 36,6 |
Não | 88 | 62,0 |
Terapia psiquiátrica/psicológica | ||
Sim | 86 | 60,6 |
Não | 54 | 38,0 |
Insônia | ||
Sim | 32 | 22,5 |
Não | 108 | 76,1 |
Horas dormidas à noite | ||
Menos de sete horas | 115 | 81,0 |
Entre sete e nove horas | 25 | 17,6 |
Etilismo | ||
Sim | 104 | 73,2 |
Não | 36 | 25,4 |
Tabagismo | ||
Sim | 9 | 6,3 |
Não | 131 | 92,3 |
Usa substâncias que alteram o sono | ||
Sim | 83 | 58,5 |
Não | 57 | 40,1 |
Satisfação com o rendimento acadêmico | ||
Sim | 43 | 30,3 |
Não | 97 | 68,3 |
Pensou em abandonar o curso | ||
Sim | 64 | 45,1 |
Não | 76 | 53,5 |
Conforme Tabela 3, os resultados do BAI demonstraram que 52,9% tinham níveis de ansiedade normal; 25,7%, de leve a moderada; 15%, de moderada a severa; e 6,4%, severa.
Variáveis (N = 140) | n | f(%) |
Níveis de ansiedade | ||
Ansiedade normal (de 0 a 9 pontos) | 74 | 52,9 |
Ansiedade de leve a moderada (de 10 a 18 pontos) | 36 | 25,7 |
Ansiedade de moderada a severa (de 19 a 29 pontos) | 21 | 15,0 |
Ansiedade severa (de 30 a 63 pontos) | 9 | 6,4 |
Na comparação dos aspectos sociodemográficos com os níveis de ansiedade, foram identificadas, no sexo feminino, maiores frequências em ansiedade leve e moderada do que no sexo masculino (p = 0,0133) (Tabela 4).
Variáveis (N = 140) | Inventário de Ansiedade de Beck (BAI) | p-valor* | |||||||
Normal (n = 74) | Leve (n = 36) | Moderada (n = 21) | Severa (n = 9) | ||||||
n | f(%) | n | f(%) | n | f(%) | n | f(%) | ||
Sexo | |||||||||
Masculino | 27 | 65,9 | 7 | 17,1 | 2 | 4,9 | 5 | 12,2 | |
Feminino | 47 | 47,5 | 29 | 29,3 | 19 | 19,2 | 4 | 4,0 | 0,0133 |
Idade (anos) | |||||||||
Até 24 anos | 51 | 53,7 | 24 | 25,3 | 14 | 14,7 | 6 | 6,3 | |
Acima de 24 anos | 23 | 51,1 | 12 | 26,7 | 7 | 15,6 | 3 | 6,7 | 0,9943 |
Procedência | |||||||||
Goiânia | 37 | 46,3 | 24 | 30,0 | 15 | 18,8 | 4 | 5,0 | |
Interior de Goiás | 23 | 63,9 | 7 | 19,4 | 3 | 8,3 | 3 | 8,3 | |
Outro estado | 14 | 58,3 | 5 | 20,8 | 3 | 12,5 | 2 | 8,3 | 0,5012 |
Trabalha e cursa medicina | |||||||||
Sim | 29 | 55,8 | 10 | 19,2 | 11 | 21,2 | 2 | 3,8 | |
Não | 45 | 51,1 | 26 | 29,5 | 10 | 11,4 | 7 | 8,0 | 0,2281 |
Período da Medicina | |||||||||
Período 9 | 15 | 55,6 | 6 | 22,2 | 6 | 22,2 | 0 | 0,0 | |
Período 10 | 15 | 48,4 | 7 | 22,6 | 4 | 12,9 | 5 | 16,1 | |
Período 11 | 23 | 62,2 | 8 | 21,6 | 4 | 10,8 | 2 | 5,4 | |
Período 12 | 21 | 46,7 | 15 | 33,3 | 7 | 15,6 | 2 | 4,4 | 0,3218 |
Atividades extracurriculares | |||||||||
Nenhuma | 4 | 44,4 | 3 | 33,3 | 0 | 0,0 | 2 | 22,2 | |
Uma atividade | 44 | 51,2 | 23 | 26,7 | 15 | 17,4 | 4 | 4,7 | |
Duas atividades | 19 | 50,0 | 10 | 26,3 | 6 | 15,8 | 3 | 7,9 | |
Três ou mais atividades | 7 | 100,0 | 0 | 0,0 | 0 | 0,0 | 0 | 0,0 | 0,1518 |
Estado civil | |||||||||
Solteiro | 40 | 51,9 | 20 | 26,0 | 13 | 16,9 | 4 | 5,2 | |
Solteiro (namorando) | 32 | 54,2 | 15 | 25,4 | 7 | 11,9 | 5 | 8,5 | |
Casado | 2 | 50,0 | 1 | 25,0 | 1 | 25,0 | 0 | 0,0 | 0,9532 |
Envolvimento religioso | |||||||||
Forte | 23 | 52,3 | 11 | 25,0 | 8 | 18,2 | 2 | 4,5 | |
Fraco | 34 | 50,7 | 21 | 31,3 | 7 | 10,4 | 5 | 7,5 | |
Nenhum | 17 | 58,6 | 4 | 13,8 | 6 | 20,7 | 2 | 6,9 | 0,5483 |
Mora com quem? | |||||||||
Pai, mãe ou irmãos | 50 | 51,5 | 26 | 26,8 | 14 | 14,4 | 7 | 7,2 | |
Sozinho | 23 | 62,2 | 6 | 16,2 | 6 | 16,2 | 2 | 5,4 | |
Parentes | 1 | 16,7 | 4 | 66,7 | 1 | 16,7 | 0 | 0,0 | 0,3334 |
*Teste G. |
Na comparação dos aspectos pessoais e clínicos com os níveis de ansiedade, foi identificada uma frequência bem maior, em todos os níveis, de ansiedade nos estudantes que afirmaram realizar terapia psiquiátrica ou psicológica (p = 0,0110). Ter insônia esteve relacionado com ansiedade de moderada a severa (p < 0,0001). A utilização de substâncias que alteram o sono esteve relacionada com maior frequência em todos os níveis de ansiedade (p = 0,0099). A satisfação com o rendimento acadêmico apresentou menor relação com os níveis de ansiedade (p = 0,0017). Entretanto, maiores frequências de ansiedade de moderada a severa e ansiedade severa foram encontradas nos alunos que afirmaram ter pensado em abandonar o curso de Medicina (p = 0,0239) (Tabela 5).
Variáveis (N = 140) | Inventário de Ansiedade de Beck (BAI) | p-valor* | |||||||
Normal (n = 74) | Leve (n = 36) | Moderada (n = 21) | Severa (n = 9) | ||||||
n | f(%) | n | f(%) | n | f(%) | n | f(%) | ||
Frequência em bares e festas | |||||||||
Frequentemente | 27 | 55,1 | 12 | 24,5 | 6 | 12,2 | 4 | 8,2 | |
Às vezes | 38 | 58,5 | 19 | 29,2 | 6 | 9,2 | 2 | 3,1 | |
Raramente | 9 | 34,6 | 5 | 19,2 | 9 | 34,6 | 3 | 11,5 | 0,0677 |
Frequência de atividade física | |||||||||
Frequentemente | 43 | 60,6 | 17 | 23,9 | 7 | 9,9 | 4 | 5,6 | |
Às vezes | 17 | 45,9 | 9 | 24,3 | 7 | 18,9 | 4 | 10,8 | |
Raramente | 14 | 43,8 | 10 | 31,3 | 7 | 21,9 | 1 | 3,1 | 0,4082 |
Doença crônica | |||||||||
Sim | 7 | 58,3 | 4 | 33,3 | 1 | 8,3 | 0 | 0,0 | |
Não | 67 | 52,3 | 32 | 25,0 | 20 | 15,6 | 9 | 7,0 | 0,5428 |
Doença psiquiátrica | |||||||||
Sim | 22 | 42,3 | 14 | 26,9 | 11 | 21,2 | 5 | 9,6 | |
Não | 52 | 59,1 | 22 | 25,0 | 10 | 11,4 | 4 | 4,5 | 0,1766 |
Terapia psiquiátrica/psicológica | |||||||||
Sim | 37 | 43,0 | 24 | 27,9 | 18 | 20,9 | 7 | 8,1 | |
Não | 37 | 68,5 | 12 | 22,2 | 3 | 5,6 | 2 | 3,7 | 0,0110 |
Insônia | |||||||||
Sim | 8 | 25,0 | 8 | 25,0 | 14 | 43,8 | 2 | 6,3 | |
Não | 66 | 61,1 | 28 | 25,9 | 7 | 6,5 | 7 | 6,5 | < 0,0001 |
Horas dormidas à noite | |||||||||
Menos de sete horas | 55 | 47,8 | 33 | 28,7 | 19 | 16,5 | 8 | 7,0 | |
Entre sete e nove horas | 19 | 76,0 | 3 | 12,0 | 2 | 8,0 | 1 | 4,0 | 0,0885 |
Etilismo | |||||||||
Sim | 56 | 53,8 | 25 | 24,0 | 15 | 14,4 | 8 | 7,7 | |
Não | 18 | 50,0 | 11 | 30,6 | 6 | 16,7 | 1 | 2,8 | 0,6359 |
Tabagismo | |||||||||
Sim | 5 | 55,6 | 3 | 33,3 | 1 | 11,1 | 0 | 0,0 | |
Não | 69 | 52,7 | 33 | 25,2 | 20 | 15,3 | 9 | 6,9 | 0,7297 |
Usa substâncias que alteram o sono | |||||||||
Sim | 40 | 48,2 | 19 | 22,9 | 19 | 22,9 | 5 | 6,0 | |
Não | 34 | 59,6 | 17 | 29,8 | 2 | 3,5 | 4 | 7,0 | 0,0099 |
Satisfação com o rendimento acadêmico | |||||||||
Sim | 33 | 76,7 | 6 | 14,0 | 2 | 4,7 | 2 | 4,7 | |
Não | 41 | 42,3 | 30 | 30,9 | 19 | 19,6 | 7 | 7,2 | 0,0017 |
Pensou em abandonar o curso | |||||||||
Sim | 26 | 40,6 | 18 | 28,1 | 13 | 20,3 | 7 | 10,9 | |
Não | 48 | 63,2 | 18 | 23,7 | 8 | 10,5 | 2 | 2,6 | 0,0239 |
*Teste G. |
DISCUSSÃO
Os resultados deste estudo descreveram o perfil de estudantes internos de Medicina de uma instituição privada de ensino. Apesar de a pesquisa ter traçado o perfil sociodemográfico, clínico e pessoal de estudantes de uma única instituição e limitar-se a definir as características de discentes matriculados apenas nos dois últimos anos do curso, ela traz contribuições ao debate sobre a educação médica. Pela análise dos resultados, é possível perceber uma prevalência maior de discentes do sexo feminino (70,7%), o que corrobora o padrão encontrado em outros dois estudos11),(12 e contrasta com o resultado obtido por um estudo realizado na Universidade Federal do Pará (UFPA), no qual houve predomínio do sexo masculino 50,6%13.
Quanto à faixa etária, este trabalho seguiu a tendência da média nacional de 24 anos de idade relatada nos estudos realizados em duas pesquisas14),(15, sendo maior a prevalência de 67,9% de estudantes com até 24 anos. Há um rejuvenescimento da medicina no Brasil, com a média de idade dos profissionais diminuindo ao passar dos anos16.
Em relação ao trabalho remunerado, nossos resultados são semelhantes aos encontrados em outras pesquisas13),(14, já que a maioria dos estudantes (62%) afirmou que não trabalhava. Sabe-se que o baixo percentual de estudantes de Medicina que trabalham se opõe à realidade dos discentes de outros cursos universitários, em que a maioria faz estágios ou trabalha enquanto cursa a graduação.
Um estudo realizado com acadêmicos de Medicina da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) demostrou que 64,2% dos estudantes moravam com familiares17, dado semelhante encontrado neste estudo que foi de 68,3%. Outro estudo realizado conduzido na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) com 279 acadêmicos do curso de Medicina demonstrou que 64,9% dos estudantes moravam com os pais18.
No presente estudo, verificou-se uma alta prevalência de ansiedade da amostra estudada. Estudantes de Medicina são expostos a um ambiente emocionalmente exaustivo de treinamento e trabalho e a demandas acadêmicas estressantes. Consequentemente, psicopatologias são frequentes nessa população19. Níveis de sofrimento psíquico nesse grupo, particularmente a ansiedade patológica, são mais altos do que na população em geral20.
O sofrimento psicológico raramente é verbalizado pelos estudantes de Medicina, pois isso, em geral, está associado à fraqueza e é percebido como uma barreira à prática médica21. Como a ansiedade pode persistir após o término da faculdade médica, os jovens médicos estarão em condições abaixo do ideal para iniciar a carreira, o que poderá afetar a prestação de serviços e a qualidade do atendimento. Uma pesquisa sobre a saúde de estudantes de Medicina revelou que 68,2% dos participantes relataram ansiedade patológica22.
Em relação aos sintomas ansiosos, ser mulher foi associado com maior ansiedade. As mulheres apresentam maior prevalência de transtornos ansiosos23. Elas são mais propensas ao estresse e à ansiedade do que os homens, pois possuem uma maior carga de atividades e mais sintomas físicos. Isso decorre do fato de haver uma cobrança social dos múltiplos papéis a serem desempenhados pela mulher, o que está associado à necessidade de reafirmarem a sua competência em espaços liderados por homens. Além disso, há também as alterações hormonais próprias do sexo feminino que contribuem para esse perfil24.
As mulheres são consideradas mais conscientes dos seus sentimentos do que os homens e, dessa forma, demonstram com maior clareza seus sintomas. Pressupõe-se que os homens também tenham altos níveis de ansiedade, tanto quanto as mulheres, mas não relatam nos questionários pela falta de compreensão do que os angustia17.
Conforme os resultados apresentados, 60,6% dos entrevistados responderam que estavam fazendo terapia psiquiátrica ou psicológica, o que pode estar associado com maior nível de ansiedade. Entende-se que o motivo dessa relação seria o maior autoconhecimento e, consequentemente, a busca de ajuda profissional. Mesmo com os altos índices de sofrimento psicológico entre os estudantes de Medicina, estima-se que 8% a 15% buscam suporte psicológico. Trata-se de uma atitude prejudicial, já que pode gerar um maior risco de burnout, suicídio, entre outros, além de reduzir a capacidade de aprendizado e a qualidade no atendimento ao paciente25.
Entre os motivos que levam os acadêmicos a não procurar apoio psicológico, estão a alta carga horária exigida pelo curso - o que significa pouco tempo disponível para outras necessidades -, a sensação de que deveriam estar estudando em vez de procurarem atendimento, a falta de conhecimento acerca dos sintomas e o estigma que ainda existe quanto à procura de ajuda e ao tratamento de doenças mentais25.
Acredita-se que a solicitação de ajuda seria uma expressão de vulnerabilidade e que não seria aceitável dentro do campo médico, e, por isso, os discentes evitam assumir que necessitam de algum tipo de suporte. Há ainda os estudantes que compreendem as próprias angústias, porém, recorrem à automedicação, o que pode surtir prejuízos iguais ao não tratamento ou até piores com reações adversas significativas25.
Em relação ao sono, 22,5% dos estudantes afirmaram sofrer de insônia, sendo esse fator relacionado com a ansiedade de moderada a grave. Existe uma importante relação entre a qualidade do sono e o estado emocional da pessoa. A ansiedade tem como consequência a insônia aguda ou crônica, que acarreta prejuízos físicos, cognitivos e emocionais, além de provocar o desequilíbrio do sistema imunológico. Durante o sono, há um descanso fisiológico, as células são renovadas e a memória é consolidada. Sendo assim, diante dessa falta de sono, a capacidade de concentração e de aprendizagem fica reduzida26.
Podem-se citar ainda uma maior dificuldade de tomar decisões e de elaborar hipóteses diagnósticas, uma lentificação para estabelecer a conduta, uma redução da qualidade da relação médico-paciente e um aumento da ansiedade, o que acaba por gerar um ciclo vicioso. Alguns fatores são claramente influenciadores da qualidade e quantidade do sono, entre os quais se destacam: novamente a carga horária alta, os plantões, as provas e a privação do sono para que se obtenha um maior rendimento acadêmico26.
Outro fator que influencia negativamente a qualidade de vida dos discentes está relacionado à utilização de substâncias que alteram o sono. Dos participantes desta pesquisa, 58,5% utilizavam substância desse tipo, o que está relacionado com os maiores níveis de ansiedade. Há os estimulantes naturais, como a cafeína e a guaranina, e os sintéticos, como a taurina e o metilfenidato. Ambos estimulam o sistema nervoso central. Essas substâncias aumentam a concentração e fornecem mais energia, o que é extremamente vantajoso para quem está estudando. Porém, em altas doses, podem causar agitação, ansiedade, angústia, estresse e delírio. A cafeína, que é a mais utilizada, em doses acima de 600 mg pode causar confusão mental e provocar erros em atividades intelectuais27. Os estudantes de Medicina são muito propensos ao consumo excessivo de psicoestimulantes por conta da privação de sono e da necessidade de maior concentração28.
Identificou-se que 68,3% dos discentes não estavam satisfeitos com o próprio rendimento acadêmico e 45,1% já pensaram em abandonar o curso. Entre esses últimos, observou-se maior índice de ansiedade de moderada a grave. A ansiedade, como já mencionado, pode reduzir o índice de acerto dos estudantes, causar prejuízos ao aprendizado e culminar no abandono do curso29. O motivo pode ser explicado pela sintomatologia da ansiedade, que, quando muito acentuada, causa ameaça ao bem-estar físico e psicológico, com consequente dificuldade em manter um bom desempenho acadêmico30.
Por tratar-se de um fenômeno complexo, é necessário observar que há limitações, principalmente quando se estabelece associação entre as variáveis estudados e os níveis de ansiedade. Assim, é importante também pensar na hipótese de causalidade reversa, uma vez que os achados podem ter sua causa condicionada pela própria ansiedade.
CONCLUSÃO
No presente estudo, verificou-se que a maioria dos estudantes de medicina do internato apresentou níveis normais de ansiedade. Quando comparados aos aspectos sociodemográficos, observou-se que os níveis de ansiedade foram maiores no sexo feminino. Constataram-se maiores sintomas de ansiedade nos estudantes que faziam terapia, tinham insônia e utilizavam substâncias que alteram o sono.
Nestes trabalho, verificou-se que os estudantes que tinham maior satisfação com o rendimento acadêmico tiveram níveis menores de ansiedades, e aqueles que apresentaram ansiedade de moderada a severa pertenciam ao grupo de alunos que já pensaram em abandonar o curso.
Os estudantes de Medicina lidam com um curso que exige muito tanto física quanto emocionalmente. Trata-se de um curso de período integral, em que os erros não são aceitos, exigindo cada vez mais do acadêmico. Além disso, é um curso que trabalha com as dores e os sentimentos de uma pessoa, e, por conta disso, muitos discentes não conseguem lidar com esse contexto e passam a vivenciar com o paciente a dor dele. Por causa dessa grande exigência, muitos desses estudantes tendem a desenvolver diversos agravos à saúde mental, dentes estes, a ansiedade.