INTRODUÇÃO
A pandemia da coronavirus disease 2019 (Covid-19) impactou profundamente as instituições de ensino superior e vem apresentando inúmeros desafios para as escolas de Medicina. O distanciamento social e a virtualização do ensino tornam ainda mais complexo o processo de transição do ensino médio para o ensino superior. Além disso, já é sabido sobre a alta incidência de transtornos mentais entre os estudantes de Medicina, com a redução da qualidade de vida e a alta incidência de quadros de ansiedade e depressão agora agravada pela pandemia1),(2. Há, dessa forma, o risco de um processo de naturalização da depreciação da saúde mental por parte dos estudantes de Medicina, fato que pode interferir negativamente na busca por ajuda3.
Nessa perspectiva, surge a necessidade de construirmos estratégias que facilitem uma melhor integração acadêmica e social dos calouros. Assim, insere-se o projeto de mentoria entre pares: uma relação horizontal que visa contribuir para o ingresso ao ambiente universitário e apoiar as demandas surgidas ao longo dessa etapa.
Na universidade, já é desenvolvida a tutoria integradora, que constitui um componente curricular obrigatório do curso de Medicina, em que é designado um professor para acompanhar um pequeno grupo de estudantes desde o primeiro semestre até a conclusão da graduação. Nessa disciplina, abordam-se os seguintes temas: gestão do próprio conhecimento, desempenho acadêmico, atitudes, formação médica e carreira, processos de aprendizagem, identificação de problemas e conflitos, assim como ampliação do olhar sobre as dimensões cognitivas e afetivas do ser médico. A tutoria é realizada de maneira semanal ou quinzenal (em dependência do semestre) e conta com o registro dessas atividades em portfólio e a avaliação pelo professor por meio de conceito.
Já a proposta de mentoria entre pares surge como um projeto de extensão, contando com a participação e adesão voluntária dos alunos mentores e alunos mentorados. Ela é destinada exclusivamente aos alunos calouros, com o objetivo principal de integrá-los ao curso e brindar o suporte necessário nessa etapa. O projeto não prevê hierarquização e esquemas rígidos, mas sim o estabelecimento de uma relação horizontal, possibilitando a formação de percursos singulares, a partir da escuta ativa das demandas trazidas pelos alunos mentorados4. Com a mentoria entre pares os calouros podem se sentir mais à vontade em expressar suas inseguranças, dúvidas e insatisfações, ao mesmo tempo que os alunos mentores conseguem compreender melhor essas demandas.
A mentoria é então uma relação em que uma pessoa mais experiente oferece apoio e orientação a um outro indivíduo no começo de sua jornada, com intervenção de suporte a esse momento de transição, ajudando na afiliação dos novos alunos ao universo do ensino superior e ao curso de Medicina5. Portanto, ambas as estratégias (tutoria integradora e mentoria) não são antagônicas, mas podem atuar de maneira sinérgica, complementando-se e potencializando o processo de formação dos futuros médicos.
Por meio de uma interação construída na confiança, os programas de mentoria têm o potencial de contribuir para a construção de um espaço seguro de partilha de sentimentos, angústias e preocupações6. Nesse processo de acompanhar o aluno na fase inicial de sua vida universitária, pretende-se facilitar o seu desenvolvimento humano e discente: a mentoria entre pares tem ganhado força ao facilitar a abordagem de assuntos considerados de grande importância pelos alunos, como o desempenho acadêmico, a saúde mental e o bem-estar7),(8.
Cada vez mais, destaca-se a importância dos programas de mentoria na formação integral do estudante de Medicina, na medida em que valorizam e reconhecem os componentes afetivo, ético, social e cognitivo do processo educacional9.
Nesse contexto, este relato traz a experiência do projeto de extensão Aluno Mentor em Tempos de Pandemia, desenvolvido no curso de Medicina da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
RELATO DA EXPERIÊNCIA
O projeto foi desenvolvido com alunos de Medicina da Unisinos, no segundo semestre de 2020, momento em que as atividades acadêmicas presenciais foram suspensas e todo o primeiro semestre do curso foi desenvolvido de maneira remota devido à pandemia da Covid-19. O desenvolvimento e a execução do projeto contaram com o apoio do Núcleo de Apoio Pedagógico (NAP), colegiado responsável pela assessoria e apoio aos processos formativos. O NAP participa efetivamente no delineamento teórico e na elaboração do projeto, na seleção dos alunos mentores, no planejamento das atividades de mentoria e do programa de formação dos alunos mentores, e no processo de avaliação.
Os alunos mentores foram selecionados por meio da indicação dos professores tutores, sendo considerados os alunos matriculados a partir do terceiro semestre com disponibilidade de duas horas semanais (totalizando 30 horas semestrais). O aluno selecionado deveria reunir uma série de características e habilidades preconizadas para a condução da mentoria, como perfil acolhedor, empático e colaborativo.
O grupo de alunos mentores era constituído por 13 discentes matriculados do terceiro ao sétimo semestre. Já o grupo de alunos mentorados era constituído por 34 discentes que haviam ingressado recentemente na graduação de Medicina, em sua maioria jovens adultos do sexo feminino e provenientes da região metropolitana de Porto Alegre.
Cada aluno mentor, a partir da orientação do professor supervisor, acompanhou de dois a três alunos mentorados, visando cumprir os seguintes objetivos:
Acolher, acompanhar e estabelecer vínculos com o aluno na fase inicial de sua vida universitária, facilitando o seu desenvolvimento acadêmico e pessoal.
Propiciar uma melhor integração do calouro ao curso, apresentando recursos, espaços e pessoas.
Apoiar na resolução de problemas que possam ocorrer durante o processo de adaptação ao novo contexto.
Potencializar a formação pessoal, acadêmica e profissional dos alunos mentores, possibilitando que desenvolvam habilidades sociais, de comunicação, orientação, organização e liderança.
Promover interação para socialização, autorregulação e adaptação dos estudantes.
Os alunos mentores participaram de reuniões de planejamento e alinhamento com a coordenação do projeto e da aula inaugural do semestre, em que tiveram o primeiro contato com os seus alunos mentorados. Já os calouros participaram de uma reunião com a coordenação do curso e do projeto para apresentação da proposta de mentoria. Na primeira semana de aula, foi enviado a cada aluno mentorado um questionário de primeiras impressões, por meio do Google Forms. Nesse questionário, os discentes registraram as expectativas em relação ao curso e à universidade, a percepção sobre o processo de acolhimento e a inserção no ambiente virtual, assim como indicaram dúvidas, eventuais dificuldades e interesses.
O projeto contemplou mentorias individuais e em grupo, reuniões de supervisão e encontros de formação. Cabe ressaltar que todas as atividades foram desenvolvidas na modalidade on-line. Durante o período de exames acadêmicos, realizou-se uma atividade integradora que reuniu os alunos mentores e os mentorados, na qual se desenvolveu um trabalho em grupos com metodologias ativas e mindfulness.
O projeto contava com uma coordenação e um conjunto de professores colaboradores que contribuíram para a efetivação do programa de formação dos alunos mentores. Responsável pela gestão do projeto, a coordenação era composta por quatro professores do curso de Medicina que, em sua maioria, já desempenhavam outras funções em órgãos colegiados ou de gestão da universidade:
Coordenadora pedagógica do curso de Medicina, integrante da equipe de formação docente e do NAP.
Coordenadora do programa de aprendizagem dos três primeiros semestres e integrante do NAP.
Coordenador do programa de tutorias integradoras.
Professor de Medicina com especialização em Neurologia Pediátrica.
O professor de Neurologia Pediátrica era o coordenador-geral do projeto e também exercia a supervisão dos alunos mentores por meio de reuniões em grupo e individuais, nas quais discutia dificuldades, planejava intervenções e desenvolvia potencialidades surgidas ao longo desse processo.
Visando qualificar a mentoria, foi realizado um programa de formação destinado aos alunos mentores. Durante o semestre, realizaram-se três encontros virtuais (totalizando 12 horas-aula), nos quais se utilizaram metodologias ativas e se abordaram os seguintes temas:
Escuta ativa, autoconhecimento e comunicação não violenta: tema desenvolvido por uma professora com formação em Jornalismo, mestrado em Antropologia das Organizações e especialista em Comunicação e Gestão Estratégica de Recursos Humanos, com área de atuação em relações interpessoais, autodesenvolvimento pessoal e profissional, comunicação não violenta, mindfulness e desenvolvimento do potencial humano.
Aprender a aprender: tema desenvolvido por uma professora de Neurologia, com mestrado em Ciências da Reabilitação e doutoranda em Neurociências, com ênfase em qualidade de vida e resiliência.
Saúde mental dos estudantes de Medicina: tema desenvolvido por uma professora de Psiquiatria, com doutorado na área e especialização em Psicoterapia.
Desenvolvimento da mentoria
Para o início das mentorias, havia uma recomendação da coordenação quanto a estrutura, calendário, periodicidade, temas e meios para a realização das atividades. Contudo, acima disso, preconizaram-se a escuta ativa e a individualização do processo. Houve, portanto, uma flexibilidade de formatos de acordo com as demandas trazidas pelos alunos mentorados e o desenvolvimento do fenômeno grupal entre alunos mentorados e aluno mentor.
As mentorias, usualmente, possuíam uma ocorrência semanal, com a participação do aluno mentor e do aluno mentorado. Durante os encontros, os alunos ingressantes não só esclareciam dúvidas gerais sobre o curso e os métodos de estudo, como também questionavam a respeito das experiências prévias dos alunos mentores na nova faculdade e compartilhavam as expectativas e angústias surgidas nessa etapa. A saúde mental foi uma demanda bastante frequente.
Os encontros da mentoria ocorriam, geralmente, via plataforma Microsoft Teams, que a instituição disponibiliza à comunidade universitária. Além da plataforma, foram muito utilizados aplicativos de mensagens instantâneas, o que possibilitou sanar dúvidas do cotidiano de maneira mais eficaz. Os temas abordados em cada mentoria giravam em torno das demandas trazidas pelos alunos, e as temáticas eram sugeridas pela coordenação do projeto, sendo as principais: conversa sobre a universidade e as primeiras impressões; apresentação de recursos, espaços e pessoas; dúvidas sobre as plataformas Moodle e Teams, as ligas acadêmicas, o acesso à biblioteca virtual e outros recursos; preparação para as provas; métodos de estudos; avaliações; técnicas de concentração e relaxamento; saúde mental; desempenho acadêmico; interesses pessoais e profissionais futuros; entre outros temas.
Os alunos mentores tinham reuniões periódicas com o professor supervisor com o objetivo de discutir e apoiar o processo de mentoria. Essas supervisões eram realizadas em grupo e de forma individual, de maneira periódica e extraordinária, quando demandadas pelo aluno mentor.
Avaliação do projeto
Ao final do semestre, foi realizada a avaliação do projeto pelos alunos mentores e alunos mentorados, por meio do preenchimento de questionário no Google Forms. A avaliação não identificava o aluno, e o objetivo era medir a satisfação dos participantes com o projeto, com respostas que partiam de uma escala de um até dez: quanto mais satisfeito, mais próximo de dez, e, quanto menos satisfeito, mais próximo de zero. Nesse mesmo questionário, foi aberto um espaço para que os participantes pudessem transmitir suas impressões, críticas e sugestões.
Quando indagados sobre a satisfação com o projeto, 62,5% dos alunos mentorados atribuíram nota nove; e 37,5%, dez. Já entre os alunos mentores, 27,3% indicaram nove para experiência; e 72,7%, dez. Entre os alunos mentorados, 100% qualificaram com dez o acolhimento recebido e a disponibilidade dos alunos mentores para o esclarecimento de dúvidas sobre o curso e a universidade. De igual maneira, a totalidade dos alunos mentorados recomendou o projeto para os próximos calouros. Já entre os alunos mentores, 81,8% qualificaram com dez a satisfação com o programa de formação, e 63,6% também deram pontuação máxima quando perguntados em que medida consideraram que foram cumpridos os objetivos previstos inicialmente para o projeto.
Cada aluno mentor também produziu uma memória escrita de forma reflexiva sobre as vivências do projeto. Nessas memórias, os alunos mentores relataram as suas expectativas iniciais e refletiram sobre suas experiências, elencando os principais desafios e potencialidades percebidos durante o exercício da mentoria. Também descreveram como foi o seu aprendizado e em que medida os encontros de formação contribuíram para o seu crescimento pessoal, acadêmico e profissional.
DISCUSSÃO
Durante a pandemia da Covid-19, os estudantes universitários podem ter forte impacto negativo em sua saúde mental, sendo comuns sintomas de ansiedade, medo e solidão, o que aumenta o risco de suicídio e abuso de substâncias. Soma-se a esse cenário de incerteza a preocupação dos discentes com a própria formação por meio de atividades a distância1. O início de um curso como o de Medicina, desenvolvido em tempo integral e habitualmente caracterizado por ambientes em que muitas vezes há alta competitividade e individualismo, exige grande capacidade de adaptação e autorregulação.
É natural que, no processo de integração do calouro na universidade, surjam muitas dúvidas, incompreensões, tensões e situações de conflitos. A necessidade da construção de relações de troca e apoio suscitou importantes reflexões sobre o papel do aluno mentor nesse contexto. Para isso, recorremos ao triângulo do drama de Karpman, modelo social de interação que mapeia a relação entre indivíduos, para refletir e pautar a atuação dos alunos mentores, com uma atenção especial para que eles não reproduzissem o papel de salvadores, colocando o aluno mentorado no papel de vítima10. Ambos deveriam ser ativos nessa trajetória, e caberia ao aluno mentorado encontrar as respostas às suas questões a partir da própria reflexão, sem que elas fossem apontadas pelo aluno mentor. Afinal, antecipar as respostas não encurta o caminho, mas atrapalha o processo e gera dependência e não autonomia11.
Assim, foram cruciais as atividades de formação com os alunos mentores, nas quais refletiam sobre o papel deles nesse processo, de modo a qualificar a prática de mentoria. A discussão das inúmeras situações vivenciadas nesse processo possibilitou a ressignificação do trabalho que já estava em curso.
É importante ressaltar a complexidade que a mentoria assumiu ao ser também um espaço de cuidado com o outro, já que o ambiente universitário é tradicionalmente individualista e competitivo, focado no desempenho acadêmico. Isso se reflete na capacidade de cada mentoria em assumir percursos singulares a partir de uma escuta ativa e qualificada, ao mesmo tempo que traz o desafio da criação de vínculo e obtenção de engajamento.
Isso se traduz no alto grau de satisfação dos alunos mentores e mentorados com o projeto, já que houve o cumprimento dos objetivos propostos, o que gera benefício para ambos.
Porém, os benefícios da mentoria não se restringem apenas ao aluno mentor e ao mentorado, uma vez que o currículo oculto e a qualidade das relações estabelecidas dentro do ambiente acadêmico também afetam o produto da formação: o atendimento médico12),(13. Afinal, uma das formas eficazes de aprendizado é por meio do exemplo e da experimentação. Assim, por meio do cuidado dentro das instituições, o futuro médico potencializa a sua própria capacidade de cuidar do paciente de forma mais qualificada e humana.
Nesse sentido, acredita-se que é possível promover e desenvolver a empatia por meio de práticas e treinamento de habilidades interpessoais e de comunicação, como os realizados para os alunos mentores14. Portanto, acreditamos que a mentoria pode impactar uma atuação médica de maior qualidade por meio da postura empática do profissional, que já foi associada com maior adesão do tratamento pelos pacientes, alta acurácia de diagnósticos, melhores desfechos clínicos, maior satisfação dos pacientes e maiores níveis de realização profissional do médico15.
CONCLUSÃO
Os resultados de exercitar a mentoria entre alunos calouros e alunos veteranos mostraram-se satisfatórios para ambos12. Tornou-se uma intervenção eficaz que proporcionou o suporte necessário para alunos iniciantes nas escolas de Medicina. Além disso, possibilitou aos alunos mentores o desenvolvimento de habilidades de comunicação, solução de problemas e trabalho em equipe.
Evidencia-se também a dimensão psicossocial existente no decorrer do projeto, não sendo promovido e estimulado apenas o âmbito acadêmico. O compartilhamento de vivências entre alunos de diferentes anos de formação possibilita a autorreflexão desses indivíduos sobre as suas próprias experiências16.
Todavia, apesar de seus notórios efeitos positivos, há uma recente revisão do tema que aborda a carência de estudos sobre a mentoria de pares na formação médica17. Nessa perspectiva, a mentoria entre pares, a partir das informações afirmativas no presente relato de experiência, deveria ser incentivada não apenas em contextos excepcionais como o que vivemos atualmente, mas também de maneira permanente e curricular, visando criar um ambiente mais inclusivo e saudável para todos os seus alunos.