INTRODUÇÃO
O curso de graduação em Medicina se destaca há anos como um dos mais procurados e concorridos do país1. Se o acesso já apresenta desafios, a permanência no curso médico e a conclusão dele exigem dedicação, determinação e esforço em razão da extensa carga horária e da longa rotina de estudos, que geram, por vezes, sobrecarga cognitiva e emocional2)-(6. O cotidiano vivenciado na graduação sugere o contato com realidades complexas, mudanças e adaptações no estilo de vida, o que resulta, muitas vezes, em sintomas de estresse e ansiedade7. Os estudantes são expostos a momentos de exaustão, privação do sono, autocobrança e eventos negativos de medo e angústia durante o atendimento clínico com os pacientes, além de dor e sofrimento provocados pelo íntimo contato com os casos de enfermidade e morte humanas8),(9.
Existem, ainda, aspectos pessoais que podem impactar o processo acadêmico e provocar diversas consequências no desempenho do estudante de Medicina. Um desses aspectos é a maternidade/paternidade que, além de impactar economicamente, pode representar grandes desafios acadêmicos e profissionais10. Especialmente na Medicina, cuja formação pode durar até 11 anos, considerando a residência médica, a condição de maternidade/paternidade pode representar um desafio para o estudante, exigindo muita disposição, esforço e adaptação. Considera-se não somente a questão biológica, mas também circunstâncias que demandam atenção, cuidado, envolvimento afetivo, recursos financeiros e tempo dedicado à criança10. Nesse cenário, devido ao receio de que tais demandas possam comprometer os processos acadêmicos e profissionais, é relatado que muitas mulheres adiam ao máximo a maternidade11),(12.
Diante do exposto, compreender os impactos da maternidade e paternidade no desempenho acadêmico é essencial tanto para a adequada programação e decisão dos estudantes quanto para professores e gestores lidarem melhor com esses casos, tornando o momento da graduação em Medicina mais amigável e harmônico. Apesar da importância dessa temática, são escassas as pesquisas com delineamento metodológico analítico adequado que suportem discussões cientificamente aprofundadas.
Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi avaliar o impacto da maternidade/paternidade no rendimento acadêmico de estudantes de Medicina do Brasil, bem como analisar as principais percepções, motivações e desafios vivenciados por pais e mães estudantes universitários.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo transversal, de natureza quanti-qualitativa e abordagem descritiva e analítica, que avaliou 85 estudantes maiores de 18 anos, com filhos e devidamente matriculados em cursos de Medicina de instituições de ensino superior (IES) reconhecidas pelo Ministério da Educação (MEC) em todo o país, no período de outubro de 2020 a janeiro de 2021.
Os estudantes foram convidados a participar da pesquisa por meio do método snowball, técnica de amostragem não probabilística cujos sujeitos de estudo recrutam outros sujeitos futuros entre seus conhecidos. Como instrumento de coleta, empregou-se um formulário virtual, semiestruturado, por meio da ferramenta Google Forms, contendo questões sociodemográficas de única escolha e de percepções utilizando a escala Likert com cinco níveis de respostas, sendo considerados três estratos para as análises: concordância (total ou parcial), indiferença e discordância (total ou parcial).
Avaliaram-se parâmetros como sexo, idade, local de residência, quantidade de filhos, possível rede de apoio, ciclo acadêmico (básico - do primeiro ao quarto semestre; clínico - do quinto ao oitavo semestre; internato - do nono ao 12º semestre) e percepções sobre a maternidade/paternidade no decorrer da graduação em Medicina.
A fim de avaliar o impacto da maternidade/paternidade no rendimento acadêmico, parte dos respondentes de uma das instituições avaliadas (n = 15), após a anuência da coordenação acadêmica, teve seus rendimentos acadêmicos (escore) obtidos para a comparação com amostras aleatórias e não identificadas de estudantes sem filhos da mesma instituição. Os participantes do grupo de interesse da pesquisa (mães/pais) estavam cursando diferentes semestres da graduação. Por isso, para comparar o desempenho com os estudantes sem filhos de uma forma mais robusta, utilizaram-se amostras aleatórias de estudantes em cinco semestres distintos: terceiro, quinto, oitavo, nono e 12º (n = 15 em cada um desses grupos).
Os dados foram tabulados no Programa Excel e analisados pelo Programa GraphPad Prism 8.0. Inicialmente, realizou-se o teste de normalidade Shapiro-Wilk que indicou uma distribuição normal dos dados. Assim, para os dados categóricos, utilizamos o teste Qui-quadrado ou Fisher. Para os dados contínuos, foram realizados testes de comparação t-Student par a par (mães/pais versus sem filhos para cada semestre). Consideraram-se valores de p < 0,05 como estatisticamente significantes.
Todos os participantes do estudo foram esclarecidos sobre os objetivos e a metodologia da pesquisa, sendo garantido o sigilo sobre a origem dos dados. A participação voluntária se concretizou por meio da assinatura virtual do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O presente trabalho está em consonância com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Mantenedor de Ensino Superior da Bahia - Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 38691820.4.0000.5032.
RESULTADOS
Características da população
A amostra do presente estudo foi composta predominantemente por estudantes do sexo feminino (78,8%), de cores branca (50,6%) e parda (38,8%), com média de idade de 31,2 ± 6,3 anos, casados (68,2%) e que possuem apenas um filho (71,8%). Apesar de a maioria dos estudantes residir em estados da Região Nordeste (52,9%), nosso estudo teve uma abrangência nacional, contemplando estudantes de todas as regiões do país (Gráfico 1).
Percepção dos estudantes quanto ao desempenho acadêmico
Acerca das percepções das mães e dos pais estudantes de Medicina sobre o impacto da maternidade/paternidade na vida acadêmica, identificamos que a população avaliada possui orgulho de ser mãe/pai universitário(a) (Gráfico 2A) e não se arrepende de suas escolhas pessoais (Gráfico 2B), entretanto destacamos a essencialidade da rede de apoio para permitir o desenvolvimento de suas atividades acadêmicas (Gráfico 2C). Contudo, ao serem questionados quanto ao desempenho acadêmico, os respondentes relataram limitação na capacidade de desenvolver satisfatoriamente os afazeres e as responsabilidades dos dois papéis (Gráfico 2D) e expuseram que as obrigações da maternidade/paternidade comprometem o rendimento no curso de Medicina (Gráfico 2E).
Além da avaliação descritiva, foram realizados testes de associação entre as variáveis estudadas. Houve uma associação estatisticamente significante entre o número de filhos (dicotomizado em “um filho” ou “dois ou mais”) e a percepção de que “Se não fosse a minha rede de apoio, eu não estaria conseguindo conciliar a maternidade/paternidade e a vida acadêmica”. Nesse caso, houve maior concordância dos estudantes que possuem apenas um filho quando confrontados com aqueles com dois ou mais (91,8% versus 79,2%, respectivamente, p = 0,0289).
Ao analisarmos alguns dos relatos, fomos capazes de inferir que o planejamento familiar em virtude da primeira gestação pode contribuir para a conciliação dos afazeres domésticos e acadêmicos. Essa percepção é evidenciada por falas como “A maturidade que eu adquiri com meu primeiro filho foi fundamental para que desse um passo rumo a essa nova vida acadêmica” e “Há impactos positivos como saber utilizar melhor o tempo e procrastinar menos”. Entretanto, notou-se eventual insatisfação com a falta de ações afirmativas institucionais, como pudemos observar no seguinte trecho: “Fui muito julgada por escolher engravidar na faculdade e não tive apoio da instituição. Foram-me negados direitos e sugeriram que eu trancasse a faculdade”.
Com relação às demais variáveis, não foram encontradas associações entre as percepções analisadas neste trabalho, demonstrando uniformidade entre os estudantes, independentemente de suas características, quando questionados sobre os impactos dos filhos na sua formação médica.
Impacto da maternidade/paternidade no rendimento acadêmico
A percepção majoritária dos estudantes é de que as obrigações parentais prejudicam o rendimento acadêmico, o que foi enfatizado em falas como: “temos uma responsabilidade muito grande na formação dos nossos filhos [...]. Por isso, acredito que haja um impacto na vida de acadêmicos, principalmente de Medicina pelas demandas que nos são cobradas diariamente”. Ao comparar os rendimentos acadêmicos, foi observado que no ciclo básico, aqui representado pelo terceiro semestre, e no final do internato, representado pelo 12º semestre, houve uma diferença entre os escores daqueles que possuem e não possuem filhos. Nossos dados demonstraram que os estudantes com filhos obtiveram um menor rendimento acadêmico no ciclo básico (87,0 versus 90,5; p = 0,02), entretanto esse cenário se inverteu quando se analisou o final do internato (87,0 versus 80,4; p = 0,002) (Gráfico 3). É importante citar que, no ciclo clínico (quinto e oitavo semestres) e no início do internato (nono semestre), não foram encontradas diferenças estatisticamente significantes entre os escores.
DISCUSSÃO
Nossa amostra de respondentes foi constituída, sobretudo, por estudantes do sexo feminino e de cores branca e parda. Apesar de possivelmente termos mais engajamento feminino em pesquisas dessa temática, essas características estão de acordo com as tendências apontadas pelo censo dos estudantes de Medicina. Este descreve um recente fenômeno de feminização do curso, bem como aponta para um aumento expressivo de vagas preenchidas por estudantes negros e pardos13. O perfil dos respondentes, além de apresentar características semelhantes ao censo supracitado, possui representação geográfica abrangente, fortalecendo a relevância deste estudo em âmbito acadêmico nacional.
Todavia, podemos apontar algumas peculiaridades associadas à idade e ao estado civil que não se aplicam ao padrão nacional dos estudantes do ensino superior. De maneira contrária, nossa amostra contemplou estudantes mais velhos e casados, em contraste com padrão nacional4),(14),(15. Isso pode ser explicado pela temática do trabalho e pelos critérios de inclusão aplicados, os quais objetivaram avaliar apenas mães e pais estudantes, diferenciando-os da média nacional de idade (de 19 a 24 anos) e estado civil (solteiros).
Nossos resultados demonstram que, apesar de estudos indicarem uma tendência ao adiamento da maternidade/paternidade em função de um projeto de vida orientado para o acadêmico e o profissional (por exemplo: busca por estabilidade financeira e consolidação da carreira no mercado de trabalho)16)-(19, há uma percepção hegemônica entre os participantes em relação ao orgulho e à clareza de suas escolhas. Nesse contexto, apesar de os nossos resultados não apresentarem diferenças significativas nas percepções entre homens e mulheres, um estudo realizado em três cursos médicos suíços demonstrou que as mulheres médicas apresentam, em geral, menores índices de empregabilidade e possuem qualificações menos avançadas, ao mesmo tempo que apresentam um estilo de vida mais direcionado aos aspectos relacionados à maternidade20. É, entretanto, importante levarmos em consideração as diferenças culturais e socioeconômicas entre os países, as quais podem influenciar as opções profissionais. Do mesmo modo, a escassez de estudos nacionais nessa temática contribui para a dificuldade na realização de comparações entre os achados.
Além do já citado fenômeno da feminização da Medicina, outro aspecto importante a ser discutido é a busca cada vez mais aparente por um estilo de vida mais saudável e moderno. Em um estudo na Universidade de Zurique com 526 médicos, itens como “creches” e “empregos em tempo parcial” foram elencados como importantes aspectos a serem instituídos nos seus locais de trabalho21.
Com relação à importância da rede de apoio, houve um grau de concordância maior na amostra representada por estudantes com apenas um filho. Apesar de acreditarmos que um maior número de filhos demandaria uma maior necessidade dessa rede, é possível que a inexperiência de mães/pais de “primeira viagem” tenha contribuído para esse achado. A necessidade da rede de apoio está associada ao planejamento, à organização e à divisão de afazeres que os pais precisam desenvolver para conciliar as questões acadêmicas e pessoais. Esse duplo papel proporciona o desenvolvimento de estratégias para conciliação de ambos, ressaltando as divisões na estrutura familiar das atividades do cotidiano, com a finalidade de minimizar a sobrecarga dos pais22.
Ainda nesse contexto, um estudo realizado na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) destacou a preocupação dos estudantes com a compatibilização dos aspectos profissionais e familiares, ressaltando a importância e a dificuldade de conciliar maternidade e profissão23. Aparentemente, na trajetória desses estudantes, essa rede de apoio contribui para um melhor planejamento da complexa situação vivenciada, dinamizando o tempo para estudos, quer seja no ambiente acadêmico ou doméstico. Além disso, sabe-se que a renda mensal familiar dos estudantes de Medicina é consideravelmente superior à média da população24, o que os coloca em uma possível situação social privilegiada, de modo que essa condição pode ser um fator atenuador dos impactos acadêmicos da maternidade/paternidade.
Mesmo com esses possíveis privilégios, os nossos dados apontam para uma autopercepção de impacto negativo no rendimento acadêmico, devido às responsabilidades inerentes da maternidade/paternidade. Entretanto, três das cinco comparações realizadas apontam para um rendimento acadêmico de mães e pais similar aos de estudantes sem filhos, indicando que a maternidade/paternidade não está associada, possivelmente, a diferenças marcantes em escores obtidos nas avaliações de aprendizagem realizadas durante a formação médica.
O presente trabalho lança luz a um tema ainda pouco estudado no Brasil e que deveria ser mais explorado, em razão 1. da crescente feminização do curso de Medicina no país, 2. das características sociais e biológicas que recaem especialmente sobre as mulheres, 3. dos obstáculos inerentes à conciliação de vida familiar, criação dos filhos, estudos e trabalho, e 4. das diferenças de gênero relacionadas aos cuidados com os filhos e as expectativas de carreira. Aqui, são avaliadas as percepções, além de dados de rendimento acadêmico de mães e pais estudantes de Medicina de todo o país, contribuindo para essa temática de maneira substancial, o que pode refletir na quebra de paradigmas e em melhores práticas na gestão da educação médica em todo o país.
Ao longo do percurso metodológico, não foram investigados aspectos como planejamento familiar e a decisão de conceber filho(s) durante a graduação em Medicina. Aqui, avaliamos o impacto da maternidade/paternidade no rendimento acadêmico do estudante, independentemente de tal planejamento, bem como não foi pretendido identificar os atores principais da rede de apoio, somente a existência ou não desse vínculo. Ademais, em virtude do contexto pandêmico da coronavirus disease 2019 (Covid-19), optamos por uma técnica de amostragem não probabilística, o que pode limitar algumas das inferências levantadas por este estudo. Sendo assim, a realização de novas pesquisas considerando esses e outros aspectos, como a categoria administrativa da IES e a existência de ações afirmativas (como mentorias) para estes estudantes, é de suma importância para melhor aprofundamento nessa temática. Além disso, pelo que sabemos, nenhum outro estudo investigou de forma analítica e com abrangência nacional as condições vivenciadas por pais e mães estudantes de Medicina no país, o que corrobora a originalidade e importância dos resultados aqui apresentados.
CONCLUSÃO
Os estudantes de Medicina com filhos, apesar de relatarem limitação na capacidade de associar satisfatoriamente os afazeres e as responsabilidades pessoais e acadêmicas, sentem-se orgulhosos por exercerem essa dupla função. Além disso, eles apresentam rendimento acadêmico semelhante ao de estudantes sem filhos, apesar de acreditarem que as obrigações da maternidade/paternidade comprometem o seu rendimento acadêmico. É destacada a essencialidade da rede de apoio para realização das atividades acadêmicas, e nota-se uniformidade das percepções ao compararmos variáveis como sexo, estado civil e ciclo acadêmico.