INTRODUÇÃO
As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Graduação em Medicina no Brasil normatizam o embasamento sobre o qual as escolas médicas brasileiras devem construir o ensino médico, ou seja, delimitam regras obrigatórias que direcionam e objetivam o ensino. Nesse sentido, as DCN focalizam a formação do estudante nas dimensões éticas, humanísticas e técnicas que permitem o desenvolvimento de competências e habilidades necessárias para a sua atuação profissional. Por isso, é essencial que o escopo do ensino seja dedicado a três principais áreas: atenção à saúde, tanto individual quanto coletiva, gestão em saúde e educação em saúde1.
Quanto à educação em saúde, nota-se nas DCN uma preocupação com a autonomia e a formação crítica do estudante como agente de seu próprio aprendizado, na medida em que instituem como competências a habilidade de assimilar conhecimentos de forma multidisciplinar, bem como a capacidade de identificar as suas demandas de aprendizado e também as do outro. Dessa forma, o ensino é centrado no estudante, e o professor atua como orientador do aprendizado, o que facilita o cumprimento do objetivo de educar durante a graduação e da educação continuada1. Portanto, nota-se uma ambivalência no aprendizado da educação em saúde, na medida em que o estudante é exposto à necessidade de aprender sobre sua própria saúde para ter condições de instruir corretamente os futuros pacientes.
No entanto, a formação médica tem uma elevada carga horária, além de um alto nível de exigência e demanda emocional. Esses fatores podem, muitas vezes, fazer do curso de Medicina um ambiente estressante e ter sérios efeitos sobre a saúde mental dos alunos2. Sendo assim, é lógico entender que a prevalência de distúrbios da saúde mental seja elevada entre esses estudantes3. Há evidências na literatura, inclusive, de que a depressão atinge aproximadamente um terço dos graduandos em Medicina globalmente2.
No Brasil, 30,6% dos estudantes de Medicina sofrem de depressão, e 32,9% têm problemas de ansiedade3. Além disso, outras condições, como distúrbios alimentares e de sono, estresse, esgotamento mental (burnout), transtorno obsessivo-compulsivo e ideação suicida, também se mostram bastante recorrentes3. No entanto, essa problemática não se restringe apenas ao país, mas também afeta estudantes do mundo todo. Estudos realizados em diversas nações apontam que há uma alta prevalência geral de distúrbios relacionados à saúde mental entre os estudantes de Medicina2)-(17.
Nesse contexto, perante a emergência sanitária causada pela coronavirus disease 2019 (Covid-19), houve a necessidade de diversos setores da sociedade aderirem a medidas de distanciamento social para mitigar a disseminação da doença. Não obstante isso, as instituições de ensino médico do mundo, que utilizam metodologias tradicionais e ativas como aulas, palestras e atividades em grupo, tiveram que se adaptar à nova realidade para garantir a continuidade do aprendizado e da maestria da formação de profissionais de saúde18),(19. Com isso, adaptações do ensino a distância foram feitas principalmente na etapa pré-clínica da graduação19.
Entretanto, o ensino de competências humanísticas e éticas inerentes ao bom profissional de saúde, os possíveis danos aos estudantes nos âmbitos do bem-estar e do senso de conexão com o outro, a alta taxa de não conclusão de cursos a distância e a dificuldade de criar metodologias avaliativas ainda são barreiras que o ensino remoto impõe à educação médica, em especial à educação em saúde18),(20),(21.
Ademais, esse contexto trouxe aos estudantes de Medicina incertezas a respeito do futuro, preocupações sobre o desenvolvimento inadequado de habilidades médicas, bem como inseguranças quanto aos desdobramentos futuros (educacionais e financeiros) das medidas adotadas durante os tempos de crise. Esses fatores atuaram como sérios agravantes para a fragilização da saúde mental desses alunos ao longo do período de isolamento social22),(23.
Tendo em vista essas questões, o objetivo deste artigo é relatar a experiência de adaptação de uma unidade do componente curricular de Saúde Coletiva III ao ambiente on-line em uma universidade federal brasileira, mantendo, mesmo no contexto da pandemia, a coerência entre o aprendizado e a vivência da promoção da saúde.
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Este relato descreve a experiência com a adaptação ao modelo remoto de ensino de parte do componente curricular Saúde Coletiva III do curso de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), no contexto da pandemia da Covid-19 que tornou inviável a continuidade da realização de atividades presenciais. Dessa forma, estratégias de ensino foram escolhidas no sentido de contribuir tanto para a manutenção da qualidade do ensino quanto para as demandas de saúde mental dos discentes. Além disso, o artigo apresenta discussões teóricas e propostas que permeiam as experiências dos docentes e discentes com a aplicação das metodologias de ensino e aprendizagem escolhidas.
Como a construção deste relato obedeceu aos critérios descritos no item VIII do artigo 1º da Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde, não foi necessária a submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos24.
A primeira unidade do componente curricular Saúde Coletiva III consistiu em rodas de conversa sobre promoção da saúde, que foram realizadas em grupos de aproximadamente 15 estudantes (MA1, MA2, MB1 e MB2). Essas atividades ocorreram durante os meses de novembro e dezembro de 2020, ainda no contexto do ensino a distância e, portanto, foram adaptadas para o âmbito remoto, acontecendo na plataforma Microsoft Teams®. Esse ambiente on-line permite a interação entre estudantes e professores, por oferecer recursos como chamadas de vídeo, chat, armazenamento e compartilhamento de arquivos, construção conjunta de documentos, aplicação de testes, entre outras funcionalidades. O acesso a essa plataforma foi garantido pelo apoio da universidade, que obteve a licença de uso e ofereceu capacitação para os docentes.
As sessões eram separadas em dois momentos: um assíncrono, de preparação individual, e um síncrono, de discussão em grupo. Durante esse primeiro momento de estudo prévio, os professores disponibilizavam textos relacionados ao tema a ser discutido na sessão, e os alunos realizavam a leitura, bem como o fichamento das informações de um dos textos à sua escolha. Então, os grupos se reuniam por chamada de vídeo e discutiam o tema proposto, tendo como motivadores os materiais já estudados, assim como questões disparadoras propostas pelos professores. Cada professor ficou responsável pela orientação de dois dos quatro grupos e se reunia com cada um deles separadamente, em horários distintos.
Assim, os objetivos de aprendizagem eram: vivenciar atividades de educação em saúde no formato de rodas de conversa remotas; desenvolver competências de escuta atenta, diálogo, gestão de conflitos, tomada de decisões, feedback apreciativo, liderança e construção de saberes; e incrementar as competências necessárias para a prática da educação em saúde e da educação popular em saúde com as pessoas e comunidades.
Os docentes que idealizaram e desenvolveram a atividade têm formação na área de medicina e saúde coletiva e experiência prévia com ações de educação em saúde e educação popular em saúde. Isso tornou possível desenvolver na esfera do ensino as competências essenciais aos estudantes para a prática da promoção da saúde.
Para avaliação, além do feedback dos estudantes após cada encontro, foram organizados estudos dirigidos, em que os alunos dissertaram acerca da relação da atividade com os conteúdos apreendidos no semestre, articulando com o desenvolvimento de competências esperadas dos futuros médicos para a prática da educação em saúde em distintos contextos com diferentes comunidades. Ademais, com o retorno das práticas presenciais, será possível identificar como os estudantes conseguiram apreender e exercer as competências esperadas com a comunidade.
Realizaram-se no total quatro rodas de conversa com cada turma. A primeira delas foi motivada pela seguinte pergunta disparadora: “Como eu, estudante de Medicina, posso promover o meu cuidado em saúde no contexto da pandemia?”. Então, com base nos textos motivadores e em suas experiências pessoais, os alunos discutiram tópicos relacionados à saúde mental e ao grande estresse relacionado à pandemia e às aulas remotas, além de estratégias de autocuidado e de promoção da própria saúde. Ao final do encontro, cada grupo elaborou suas necessidades de aprendizagem para a próxima sessão.
Portanto, as três discussões seguintes abrangeram temas variados, de acordo com a demanda de cada turma. As principais temáticas abordadas foram: as expectativas e ansiedades quanto ao futuro; a arteterapia como ferramenta para o autocuidado; a otimização do tempo e estratégias de estudo; opções não tradicionais de carreira a serem seguidas após a graduação; a competitividade e as dificuldades no relacionamento com os colegas no ambiente acadêmico.
A flexibilidade na programação dos encontros permitiu que as demandas de cada um dos grupos fossem realmente atendidas. Sendo assim, para cada sessão, os professores buscavam textos motivadores e atividades que atendessem às necessidades individuais de cada turma, e as temáticas discutidas variavam de acordo com suas demandas, apesar de estarem sempre inseridas no contexto do autocuidado e da promoção da saúde. Foi possível, inclusive, inserir oficinas e rodas de conversa com convidados especiais, segundo as necessidades de cada grupo. Convidaram-se, por exemplo, uma médica psiquiatra para discutir autocuidado e relações interpessoais com os grupos da turma MB; dois pedagogos que realizaram uma oficina de manejo de tempo com os grupos da turma MA; e dois médicos (uma plantonista e clínica geral e um médico das Forças Armadas) para tirar dúvidas e conversar sobre opções alternativas de carreira com o grupo MA2.
É importante destacar que todas as rodas de conversa foram realizadas de maneira ativa, com participação efetiva dos estudantes e com o professor atuando apenas como um facilitador da aprendizagem. Além disso, foi dada aos alunos a liberdade de ligar ou não a câmera, bem como de participar da discussão apenas quando se sentissem confortáveis para tal, o que, somado à pequena quantidade de pessoas por grupo, ajudou na criação de um ambiente seguro e convidativo ao compartilhamento de sentimentos e experiências.
DISCUSSÃO
O profissional médico, ao completar sua formação, deve ser capaz de atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde, o que compreende o espectro da diversidade humana, a integralidade do cuidado, a promoção da saúde, o cuidado centrado na pessoa, as habilidades de comunicação, o trabalho em equipe, a tomada de decisões e a liderança1. Somado a isso, é ainda um desafio para os docentes ensinar aos futuros médicos mecanismos para exercer essas práticas25. Assim, considerando as dimensões técnicas, humanísticas e éticas que a graduação em Medicina deve proporcionar, é essencial que metodologias de ensino focadas no desenvolvimento dessas competências sejam aplicadas no ensino médico.
As rodas de conversa são pautadas essencialmente no diálogo entre os participantes e permitem a criação de um espaço aberto de troca de narrativas, informações, vivências e experiências tanto durante a fala quanto durante a escuta atenta26. Além disso, as rodas de conversa proporcionam a valoração dialógica de cada indivíduo e a divisão de autoridade, uma vez que todos são elementos construtores do saber e formuladores de questões25.
Presencialmente, a conformação geométrica das rodas de conversa é um círculo em que todos os membros conseguem se ver e ouvir uns aos outros, o que favorece a construção de um lugar protegido e acolhedor26.
Sob a ótica da educação médica, a criação de um espaço de diálogo pelas rodas de conversa desenvolve habilidades associadas à comunicação, reduz as relações hierárquicas entre estudante e professor, e ratifica o papel do aluno como agente do próprio aprendizado25. Assim, alunos e professores compartilham o lugar de aprendizagem, e a construção do conhecimento é feita de forma conjunta, ao passo que os objetivos de ensino são concluídos ao final de cada roda de conversa.
É importante ressaltar que a linguagem verbal e a linguagem não verbal são igualmente importantes em um espaço de diálogo, pois os dois momentos de emissor e de receptor de informações são necessários para o desenvolvimento da relação entre os participantes da roda26. Nesse sentido, essa competência pode ser extrapolada para a relação médico-paciente, na qual é de responsabilidade do médico demonstrar interesse pelo cuidado integral do paciente, bem como para a interpretação das necessidades individuais deste1),(25.
Nesses aspectos, uma estratégia dialógica de ensino focaliza principalmente o desenvolvimento de princípios humanísticos essenciais para a prática médica - como a empatia, compaixão, a integralidade do cuidado e o trabalho em equipe1 -, pois exercita a fala e a reflexão sobre as narrativas expostas pelos colegas e pelo próprio estudante25. Isso permite a evolução do aluno como ser humano e profissional, além de representar um mecanismo importante para aprender o cuidado centrado na pessoa e a promoção da saúde.
É importante compreender que os estudantes de Medicina, que em geral já se apresentam como um grupo mais vulnerável ao desenvolvimento de transtornos de saúde mental3, tiveram que enfrentar, em meio ao cenário de pandemia global e distanciamento social, desafios ainda mais significativos nesse aspecto. Afinal, as incertezas quanto ao futuro e à formação acadêmica apresentaram-se como grandes geradores de estresse e ansiedade nesse período22),(23. Tendo em vista esse impasse, as rodas de conversa foram organizadas de forma a ensinar não somente a promoção da saúde, mas também a promoção do autocuidado, criando um espaço de atenção à saúde mental dos estudantes.
Isso foi possível porque o componente curricular levou em consideração o estresse trazido pelo modelo remoto de ensino e abriu espaço para a discussão desse assunto nas rodas. Ou seja, os estudantes puderam compartilhar angústias e experiências se apoiando no processo de autocuidado e promoção da própria saúde, como em um grupo operativo. Isso explica o sucesso do componente curricular em alcançar grande participação e atingir seus objetivos de ensino. Afinal, essa dinâmica assemelha-se ao modelo radical de promoção e educação relacionadas à saúde, que busca alcançar a conscientização crítica do indivíduo a respeito de sua realidade, para que ele possa, então, transformá-la27.
Na comunidade, o trabalho educativo com grupos é uma importante ferramenta, pois permite ao profissional de saúde conhecer melhor as condições de vida daqueles indivíduos e, a partir daí, propor o desenvolvimento de mudanças coletivas para o enfrentamento desses problemas27. No caso dos estudantes de Medicina, a experiência das rodas de conversa funcionou tanto como um espaço de enfrentamento da pressão do ensino remoto quanto como uma experiência com a discussão em formato de rodas. Observa-se, portanto, a coerência no processo de ensino e vivência da promoção da saúde, bem como a preocupação com o bem-estar dos alunos.
Outro aspecto interessante a ser discutido é a flexibilidade para a escolha do tema das rodas de conversa, de acordo com a demanda do grupo. Afinal, ainda que todos os temas abordassem a saúde mental do estudante, o autocuidado e a promoção de saúde, eram os próprios alunos que identificavam, ao fim de cada sessão, a temática que seria mais relevante à discussão do grupo no próximo encontro. Essa dinâmica, além de ajudar no suprimento das demandas relacionadas à saúde mental dos estudantes, permitiu que eles vivessem um outro aspecto essencial do funcionamento dos grupos operativos: a aplicação da responsabilidade relacional ao longo das discussões.
Segundo esse conceito, as relações que vivemos nos permitem a construção de saberes. Ou seja, no campo da saúde, os profissionais devem buscar, por meio de um processo conversacional, a compreensão do contexto em que os indivíduos se inserem, avaliar suas demandas e praticar a prevenção e promoção da saúde, sendo médico e paciente igualmente responsáveis pelos efeitos dessa interação28. Assim, o compartilhamento de experiências é essencial para o processo de promoção da saúde, e as demandas de cada indivíduo ou grupo devem ser estabelecidas de maneira horizontal, por meio da discussão. Nesse sentido, a determinação pelos alunos dos temas relevantes à discussão nas rodas representa uma aplicação desse conceito, garantindo o entendimento de um aspecto essencial à promoção de saúde na comunidade aos futuros profissionais.
As principais limitações dessa experiência estão relacionadas às dificuldades de acesso a plataformas de ensino remoto. No caso do componente curricular relatado, esses impasses foram enfrentados graças ao apoio da universidade, que oferece acesso à plataforma do Microsoft Teams® a todos os estudantes, além de uma capacitação sobre o seu uso para os docentes.
Outra dificuldade enfrentada foi o controle da participação dos estudantes nas atividades, uma vez que foi dada a eles a liberdade de ligar ou não a câmera, bem como de participar da discussão apenas quando se sentissem confortáveis para tal. No entanto, identificou-se que essa liberdade ajudou na criação de um ambiente seguro e convidativo ao compartilhamento de sentimentos e experiências, de modo que a participação da turma foi, em geral, bastante efetiva. Além disso, essa dinâmica permitiu aos estudantes perceber que é possível, nas rodas de conversa e nos grupos operativos, que algumas pessoas participem e estejam atentas ao que é dito, embora não contribuam verbalmente para a discussão.
Portanto, recomenda-se que essa liberdade seja dada aos estudantes; afinal, ela é uma maneira de reproduzir, no ambiente remoto, a conformação geométrica das rodas de conversa presenciais. Somado a isso, orienta-se que os professores busquem outras maneiras de estimular e contabilizar a participação na aula. Quanto ao acesso às plataformas, é sugerido buscar o auxílio da universidade para garantir a equidade do ensino.
CONCLUSÃO
A realização de rodas de conversa foi uma ótima ferramenta para possibilitar a adaptação do componente curricular de Saúde Coletiva III ao ambiente remoto. Percebeu-se que os encontros, apesar de remotos, foram muito interativos e contaram com grande participação e engajamento por parte dos alunos.
O feedback destes mostrou também que a experiência de promoção da saúde do estudante ao longo do componente curricular foi muito apreciada e trouxe benefícios efetivos à sua saúde mental. As rodas representaram um espaço de compartilhamento de experiências e angústias, de conexão com colegas que não se encontravam havia tempos devido à pandemia e de suporte aos desafios trazidos pelo isolamento social e ensino remoto.
Além disso, a vivência desse processo permitiu que os estudantes tivessem, mesmo em isolamento, uma noção de como funcionam as rodas de conversa e grupos operativos na prática. Dessa forma, a própria metodologia de ensino permitiu que habilidades necessárias à promoção da saúde fossem dominadas pelos estudantes.
Acredita-se que, além de tornar os encontros mais leves, essa coerência entre aprendizagem e vivência da promoção da saúde possa despertar nos estudantes o entendimento da importância dessa prática. Dessa forma, a experiência colabora para a formação de médicos mais sensíveis e ativos no processo de educação em saúde nas comunidades.