INTRODUÇÃO
“Cessação completa da vida, da existência” e “interrupção definitiva da vida de um organismo”, esses são exemplos dos significados atribuídos à morte1. O significado, porém, é bem mais complexo do que essas definições simplificadas, já que para muitos trata-se de “um conceito relativo, que vai depender de outras variáveis”2.
A morte representa o fim de um ciclo e é um fenômeno biológico natural pelo qual todos os indivíduos passarão. É um processo tão natural quanto o nascimento. E, embora seja uma certeza que todos têm, ela vem sempre acompanhada de incertezas e medos, sentimentos que têm muita influência em como as pessoas veem o processo de morte. A concepção que se tem sobre a morte e a atitude do indivíduo diante dela tendem a se alterar de acordo com diversos fatores, como os contextos histórico, social e cultural em que ele está inserido. No México, por exemplo, todos os anos é celebrado o Dia dos Mortos. É uma tradição que, para os mexicanos, representa o momento de reencontrar os que já se foram. Acredita-se que os mortos retornam de outro plano espiritual para uma visita nesse dia, em que são recebidos com comidas, bebidas e danças: “É uma cultura onde a morte é celebrada e não temida”2),(3.
A crença mexicana, porém, é diferente da maioria dos países, incluindo o Brasil. A realidade é que a maioria das pessoas estão inseridas num contexto sócio-histórico de negação da morte2. É válido dizer que a morte em algumas culturas é até considerada um tabu, um assunto que as pessoas evitam: Para a maioria das pessoas conversar, ou até mesmo pensar sobre a morte é desconfortável, desperta medo e angústias2.
O processo de morte é de difícil aceitação até mesmo para os médicos e outros profissionais de saúde que muitas vezes precisam lidar com esse processo diariamente por causa da profissão que escolheram. Muitos médicos, mesmo capacitados tecnicamente no combate às doenças, veem-se despreparados para enfrentar a morte de seus pacientes: Desde a graduação esses profissionais são orientados a buscar com afinco o processo de cura, e quando a morte é inevitável, eles a encaram com um sentimento de impotência, culpa e fracasso5. Os impactos emocionais provocados pelo sentimento de impotência diante da morte somados à vontade de evitá-la a qualquer custo podem produzir sérios prejuízos psicológicos e esgotamento profissional, afetando de forma direta a qualidade de vida e, consequentemente, o trabalho desses profissionais7.
Esse desconforto de médicos com o processo de morte deve-se em grande parte à deficiência da formação desses profissionais sobre a morte e o morrer durante a graduação6. Os estudantes de Medicina têm o primeiro contato com a morte logo no início da faculdade, nas aulas com peças anatômicas e cadáveres. O contato com o processo de morte, isto é, toda a complexidade do processo e de suas variáveis, vem alguns anos depois, durante as atividades práticas7. As universidades médicas do Brasil normalmente não têm muitos momentos reservados para discussão sobre assuntos relativos ao processo de morte durante a graduação6. Algumas apresentam disciplinas que abordam principalmente os aspectos sociais da tanatologia, que é o estudo científico da morte. No entanto, a maioria dos cursos de Medicina do país não possui uma carga horária obrigatória voltada à discussão do processo de morte, o que torna seus alunos despreparados para lidar com esse evento, podendo causar impactos emocionais significativos nesses estudantes8)-(10.
Na Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), a morte é abordada em alguns momentos, como nas exposições sobre espiritualidade e durante algumas aulas da disciplina comunicação, em que são abertas discussões sobre cuidados paliativos, eutanásia e morte na sociedade contemporânea, além de debates entre os alunos sobre suas concepções e perspectivas no que concerne à morte, ao morrer e ao luto11),(12. Os alunos também discutem sobre maneiras de realizar comunicação de más notícias e são orientados em relação ao modo correto de informar a morte de um paciente aos familiares. Porém, apesar de importante, a abordagem desses assuntos não é feita constantemente durante os seis anos de curso, acontecendo em períodos pontuais da graduação13.
Dessa forma, faz-se pertinente saber a opinião dos alunos de Medicina da FPS acerca da abordagem do processo de morte e entender se ele é abordado de forma suficiente durante a graduação para prepará-los como futuros médicos. É importante entender também como esses alunos percebem o tratamento dado ao assunto morte e morrer durante os encontros na faculdade, já que uma abordagem insuficiente desse tema pode causar impactos negativos, pessoais e profissionais.
MÉTODO
Trata-se de um estudo exploratório, de corte transversal, com metodologia quantitativa. O estudo foi realizado no período de agosto de 2020 a julho de 2021. Iniciou-se a coleta de dados apenas após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da FPS - Parecer nº 4.228.016. Adotaram-se os preceitos da Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). O estudo foi realizado na população de 1.024 alunos do curso de Medicina da FPS, do primeiro ao décimo segundo período, dos quais se obtiveram 365 respostas completas e 360 respostas incompletas. Para análise, utilizaram-se os 365 questionários respondidos por completo.
Os dados foram obtidos por meio de questionários estruturados e autoaplicáveis elaborados pelos autores do estudo, baseados em formulários utilizados no trabalho “O processo de morte e morrer no enfoque de acadêmicos de Enfermagem”14, realizado na Faculdade de Anhanguera, em Brasília, no ano de 2010. Os questionários foram respondidos após a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e aceitação em participar da pesquisa. O formulário englobou três eixos a serem avaliados - dados sociodemográficos dos estudantes, dados acerca da formação acadêmica e dados sobre o tema morte e morrer - e foi enviado por e-mails e pelas redes sociais, já que se realizou o estudo durante o período de pandemia da coronavirus disease 2019 (Covid-19).
Após a coleta de dados, eles foram digitados em um banco de dados construído no Excel para Windows na versão 2016 e posteriormente analisados no Epi-Info para Windows na versão 7.2. Utilizaram-se frequências relativas e absolutas para descrever as variáveis qualitativas e medidas de posição (média) e dispersão (desvio padrão) para descrever variáveis quantitativas. Para verificação de relações, adotou-se o teste de qui-quadrado, considerando um nível de significância de 5%.
RESULTADOS
Os 365 alunos que responderam aos questionários até o final correspondem a 35,64% do total de estudantes de Medicina da FPS. Destes, 72 (19,72%) cursavam o quarto período; 65 (17,80%), o terceiro; 62 (16,98%), o oitavo; e 41 (11,23%), o primeiro. Em relação ao perfil sociodemográfico, 238 (65,21%) das respostas foram de alunos do sexo feminino, 274 (75,07%) se autodeclararam brancos, 174 (44,77%) mencionaram que eram da religião católica e 194 (53,20%) indicaram uma renda familiar de mais de 12 salários mínimos. Na questão de idade, o aluno mais novo a responder o questionário possui 18 anos, e o mais velho, 46, sendo a média das idades de aproximadamente 22,11 anos (Tabela 1).
Característica | N | % |
---|---|---|
Total de estudantes da amostra | 365 | 100 |
Período | ||
Ciclo básico | 196 | 53,7 |
Ciclo clínico | 131 | 35,89 |
Internato | 38 | 10,41 |
Gênero | ||
Masculino | 124 | 33,97 |
Feminino | 238 | 65,21 |
Etnia | ||
Branco | 274 | 75,07 |
Pardo | 81 | 22,19 |
Negro | 5 | 1,37 |
Outros | 5 | 1,37 |
Renda familiar | ||
De um a três salários mínimos | 27 | 7,40 |
De quatro a sete salários mínimos | 59 | 16,16 |
De oito a 12 salários mínimos | 85 | 23,29 |
Mais de 12 salários mínimos | 194 | 53,20 |
Religião | ||
Não possui | 120 | 32,88 |
Católica | 174 | 47,67 |
Outras | 71 | 19,45 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Do total de entrevistados, 279 (76,44%) consideraram a morte algo possível de se conceituar e 348 (95,34%) afirmaram que pensaram em seus sentimentos em relação à morte. Os sentimentos mais frequentes encontrados nas respostas foram angústia, medo e tristeza, seguidos de conformação. Em relação à morte de um paciente, 300 (82,20%) estudantes discordaram parcialmente da afirmação “A morte de um paciente é considerada um insucesso” ou concordaram par-cialmente com ela (Tabela 2).
Característica | N | % |
---|---|---|
Total de estudantes da amostra | 365 | 100 |
Sentimentos em relação à morte | ||
Medo | 209 | 57,26 |
Angústia | 211 | 57,80 |
Pavor | 62 | 16,98 |
Tristeza | 205 | 56,16 |
Conformação | 141 | 38,63 |
Indiferença | 18 | 4,93 |
Raiva | 20 | 5,47 |
Depressão | 45 | 12,32 |
Nenhum | 0 | 0 |
Opinião dos estudantes acerca da seguinte afirmação: “A morte de um paciente é considerada um insucesso” | ||
Concordam totalmente | 4 | 1,09 |
Concordam ou discordam parcialmente | 300 | 82,20 |
Indiferente | 10 | 2,74 |
Discordam totalmente | 51 | 13,97 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Sobre a opinião dos estudantes em relação à importância da discussão sobre o processo de morte e morrer durante a graduação para a profissão médica no futuro, 331 (90,68%) responderam que consideram muito importante, e 33 (9,04%) consideraram razoavelmente importante. Nenhum aluno afirmou não considerar importante, e apenas um considerou pouco importante. Além disso, 295 (80,82%) dos alunos concordaram totalmente que a discussão acerca do processo de morte e morrer durante a graduação possui impacto durante o exercício da medicina.
Além disso, 285 (70,08%) alunos acreditam que a defasagem da abordagem da morte e do morrer durante a graduação impacta negativamente tanto o bem-estar psicossocial do médico quanto o exercício da medicina. Para 20 (5,48%) alunos, esse impacto negativo existe, enquanto 18 (4,93%) mencionaram que isso ocorre apenas no exercício da medicina, e 42 (11,51%) responderam que impacta apenas o bem-estar psicossocial do profissional. Também foi observado que 88,76% consideraram que a abordagem do processo de morte e morrer durante o ensino médico interfere muito ou extremamente na saúde mental dos profissionais médicos (Tabela 3).
Característica | N | % |
---|---|---|
Total de estudantes da amostra | 365 | 100 |
Importância da discussão sobre o processo de morte e morrer durante a graduação para a profissão médica no futuro | ||
Não acham importante | 0 | 0 |
Pouco importante | 1 | 0,27 |
Razoavelmente importante | 33 | 9,04 |
Muito importante | 331 | 90,68 |
Opinião dos estudantes sobre a seguinte afirmação: “A discussão acerca do processo de morte e morrer durante a graduação impacta o exercício da profissão médica” | ||
Concordam totalmente | 295 | 80,82 |
Concordam ou discordam parcialmente | 51 | 13,98 |
Nem concordam, nem discordam | 11 | 3,01 |
Discordam totalmente | 8 | 2,19 |
Aspectos que são impactados negativamente pela defasagem da abordagem acerca do processo de morte e morrer durante a graduação na visão do estudante | ||
O bem-estar psicossocial do médico(a) | 42 | 11,51 |
O exercício da medicina | 18 | 4,93 |
Ambos | 285 | 78,08 |
Nenhum | 20 | 5,48 |
Grau de interferência da abordagem do processo de morte e morrer durante o ensino médico na saúde mental dos profissionais médicos | ||
Interfere muito pouco | 1 | 0,27 |
Interfere pouco | 6 | 1,64 |
Interfere mais ou menos | 34 | 9,32 |
Interfere muito | 185 | 50,68 |
Interfere extremamente | 139 | 38,08 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
No quesito relacionado à perspectiva dos estudantes de Medicina da FPS acerca da abordagem do processo de morte e morrer durante a graduação do curso de Medicina, identificou-se o seguinte: em relação à frequência da abordagem do tema, 282 (77,26%) afirmaram que o assunto é abordado raramente ou algumas vezes, enquanto 45 (12,33%) mencionaram que o assunto nunca é abordado, e apenas 38 (10,34%) apontaram que o assunto é abordado frequentemente ou sempre. Para 192 (52,60%) alunos, essa abordagem aconteceu apenas em atividades teóricas, enquanto 34 (9,32%) mencionaram que ela aconteceu durante atividades práticas. Segundo 87 (23,84%) alunos, esse assunto foi abordado tanto em atividades teóricas quanto em atividades práticas, e 52 (14,25%) alunos afirmaram que o tema não foi abordado em nenhuma dessas atividades.
Em relação à necessidade de inclusão de mais disciplinas que abordem o processo de morte e morrer durante a graduação em Medicina, 310 (84,93%) alunos julgaram ser necessária, enquanto apenas 55 (15,07%) opinaram que essa inclusão é pouco necessária ou que não existe essa necessidade. Os alunos que responderam à pergunta opcional sobre quais disciplinas deveriam abordar o processo de morte e morrer durante a graduação em Medicina citaram, em sua maioria, os módulos de saúde do idoso e ética, além do laboratório de comunicação e dos ambulatórios.
Do total dos entrevistados, 238 (65,21%) estudantes afirmaram se sentir despreparados ou pouco preparados psicologicamente para lidar com a morte de um paciente, enquanto apenas dez (2,74%) se consideraram muito preparados para lidar com tal situação, e apenas 46 (12,60%) estudantes concordaram totalmente que a graduação médica da FPS prepara o aluno para enfrentar o processo de morte e morrer (Tabela 4).
Característica | N | % |
---|---|---|
Total de estudantes da amostra | 365 | 100 |
Perspectiva acerca da frequência de abordagem de temas referentes à morte e ao morrer durante as atividades curriculares | ||
Nunca é abordado | 45 | 12,33 |
Raramente é abordado | 92 | 25,21 |
É abordado algumas vezes | 190 | 52,05 |
Frequentemente é abordado | 35 | 9,52 |
Sempre é abordado | 3 | 0,82 |
Para o aluno, a abordagem citada acima ocorreu | ||
Em atividades teóricas | 192 | 52,60 |
Em atividades práticas | 34 | 9,32 |
Em ambas | 87 | 23,84 |
Em nenhuma | 52 | 14,25 |
Visão dos estudantes acerca da necessidade de inclusão de mais disciplinas que abordem o processo de morte e morrer durante a graduação médica na Faculdade Pernambucana de Saúde | ||
Não é necessária | 20 | 5,48 |
É pouco necessária | 35 | 9,59 |
É razoavelmente necessária | 118 | 32,33 |
É muito necessária | 192 | 52,60 |
Perspectiva dos estudantes acerca da seguinte afirmação: “A graduação em Medicina da Faculdade Pernambucana de Saúde prepara o acadêmico para enfrentar o processo de morte de morrer” | ||
Concordam totalmente | 46 | 12,60 |
Concordam ou discordam parcialmente | 191 | 52,33 |
Nem concordam, nem discordam | 116 | 31,78 |
Discordam totalmente | 12 | 3,29 |
Sentimento do estudante de Medicina da Faculdade Pernambucana de Saúde em relação à preparação psicológica para lidar com a morte de um paciente | ||
Sentem-se despreparados | 80 | 21,92 |
Sentem-se pouco preparados | 158 | 43,29 |
Sentem-se moderadamente preparados | 117 | 32,05 |
Sentem-se muito preparados | 10 | 2,74 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Em relação aos aspectos que podem influenciar a percepção dos estudantes no que concerne à compreensão acerca do processo de morte e morrer, 298 (70,67%) mencionaram que a religião influencia bastante, enquanto 271 (74,24%) afirmaram que vivências adquiridas a partir da morte de algum parente, amigo ou conhecido têm grande influência nessa compreensão. Os 12 (3,28%) alunos que optaram por citar outros aspectos mencionaram espiritualidade, livros, filmes, artes, ciência, reflexões e a leitura do livro A morte é um dia que se vale a pena viver, de Ana Claudia Quintana Arantes, como influenciadores no processo de compreensão do processo de morte.
Dos entrevistados, 348 (95,34%) afirmaram que o estudante da área de saúde deve ser muito preparado, durante a formação, para abordar o processo de morte com o paciente. Dentre eles, 248 (64,94%) demonstraram estar despreparados ou pouco preparados para abordar esse tema, 110 (30,13%) afirmaram estar moderadamente preparados e sete (1,91%) mencionaram que estão muito preparados para lidar com essa abordagem. Para 119 (32,60%) alunos, a falta de conhecimento prático é o sentimento que desencoraja a abordagem do processo de morte com esses pacientes, 131 (35,89%) mencionaram o desconforto com o tema e 119 (32,60%) apontaram a falta de conhecimento teórico (Tabela 5).
Característica | N | % |
---|---|---|
Total de estudantes da amostra | 365 | 100 |
Aspectos que podem influenciar na compreensão acerca do processo de morte e morrer | ||
Cultura | 237 | 64,93 |
Religião | 298 | 70,68 |
Informações | 196 | 53,69 |
Vivências adquiridas a partir de morte de algum parente, amigo, conhecido etc. | 271 | 74,24 |
Outros | 12 | 3,28 |
Sentimento de preparação do estudante em relação à abordagem do processo de morte com seus pacientes | ||
Despreparado | 65 | 17,81 |
Pouco preparado | 183 | 50,14 |
Moderadamente preparado | 110 | 30,14 |
Muito preparado | 7 | 1,92 |
Sentimentos que na visão dos estudantes desencorajam a abordagem do processo de morte com os pacientes | ||
Falta de conhecimento teórico | 119 | 32,60 |
Falta de conhecimento prático | 289 | 79,17 |
Falta de tempo | 7 | 1,91 |
Desconforto com o tema | 131 | 35,89 |
Outros | 16 | 4,38 |
Fonte: Elaborada pelos autores.
DISCUSSÃO
Quando se analisaram os dados sociodemográficos do presente estudo, constatou-se que eles estão de acordo com a literatura científica. Um estudo realizado em 2007 sobre o perfil dos estudantes de medicina na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e publicado na Revista Brasileira de Educação Médica demonstrou prevalência de alunos do sexo feminino (50,2%), brancos (68,6%) e com renda familiar elevada (77,7%), assim como esta pesquisa15. É válido ressaltar que o curso da FPS é particular, exigindo assim um maior poder aquisitivo de seus ingressantes. Em contrapartida, o estudo da UFES, uma universidade pública, encontrou os mesmos dados epidemiológicos, evidenciando que, mesmo em universidades gratuitas, a maioria dos estudantes possui elevada renda familiar. Isso provavelmente acontece porque o curso de Medicina é, em sua essência, dispendioso. Além disso, a prevalência de alunos brancos e com alta renda mensal nas universidades públicas se dá porque o sistema de cotas de acesso essas instituições com base na subordinação da categoria raça/cor à classe social apresentou-se falho em incluir não brancos e alunos de baixa renda no curso de Medicina, como indica o estudo “Perfil socioeconômico e racial de estudantes de Medicina em uma universidade pública do Rio de Janeiro”16.
No presente trabalho, também foi observado que os alunos já pensaram nos seus sentimentos em relação à morte e a consideraram algo possível de se conceituar. Os sentimentos mais frequentemente associados à morte pelos estudantes são medo, tristeza, angústia e conformação. Por meio desses dados, é possível inferir que, mesmo a morte sendo um processo natural pelo qual todos os indivíduos passarão, está ainda é vista de maneira negativa pela maioria dos alunos de Medicina da FPS. No artigo “Sentimentos dos estudantes de Medicina e médicos residentes ante a morte: uma revisão sistemática” publicado em 2020, na Revista Brasileira de Educação Médica, identificou-se que, em boa parte dos 18 estudos analisados, medo, insegurança, tristeza, raiva e culpa foram referidos como sentimentos perante situações de morte por parte dos estudantes de Medicina e dos médicos residentes17. Outro estudo encontrou sentimentos negativos por parte dos acadêmicos em relação ao morrer, referindo que a morte traz para estes uma sensação de frustração e um sentimento de incapacidade, pois eles mencionam que existe um despreparo para lidar “dignamente” com a morte7.
Em relação à importância da discussão sobre o processo de morte e morrer durante a graduação para a profissão médica no futuro, o presente estudo evidenciou que os estudantes a consideram muito importante e acreditam que tal debate possui impacto sobre o exercício da medicina. Esses dados podem ser reforçados por um artigo publicado em 2020, na Revista Brasileira de Educação Médica, sobre a percepção e vivência da morte do estudante de Medicina durante a graduação, pois os discentes modificaram a própria visão de morte após a vivência durante o curso e consideram necessária a ampliação da discussão sobre o tema na graduação18. Essa ampliação é necessária para que os estudantes que consigam refletir sobre o processo de fim de vida. Por meio dessa mudança, esses futuros médicos poderão desenvolver o aprendizado para lidar de uma forma mais humanizada com a morte, de modo a diminuir o desconforto que existe para tratar de tal tema19.
Em uma revisão sistemática de literatura - publicada em 2015 - de caráter exploratório sobre o ensino da morte e do morrer na graduação médica brasileira, foi evidenciado o quanto a não discussão da morte e morrer torna a medicina mais mecanicista, de modo que a doença se sobrepõe ao paciente e traz prejuízos não só ao exercício da medicina, mas também aos aspectos psicológicos20. Tal afirmação pode ser realçada com a percepção dos estudantes do presente estudo sobre a abordagem dos processos de morte e morrer, pois eles julgam que a abordagem desse processo interfere na saúde mental dos profissionais médicos. Além disso, os alunos também demonstraram acreditar que uma defasagem nessa abordagem impacta negativamente tanto o bem-estar psicossocial do médico quanto o exercício da medicina20. Um artigo publicado em 2018 demonstra que a falta de suporte durante a graduação para lidar com o tema morte pode comprometer a saúde mental do estudante e causar impacto no cuidar, fazendo com que os profissionais se sintam incapazes de lidar com a morte, intensificando sentimentos de dor e angústia19.
Outro fator importante a ser destacado é a forma como o processo de morte é abordado com os estudantes. Como algumas universidades de Medicina têm adotado o modelo aprendizado baseado em problemas (ABP), utilizado também na FPS, muitas das disciplinas que abordam tal temática se extinguiram. Isso enfatiza o que foi apontado na revisão bibliográfica Aprendizagem Baseada em Problemas na formação médica e o currículo tradicional de Medicina., segundo o qual as atividades de tutoria devem abordar não apenas o conhecimento técnico-científico, mas também levar em consideração reflexões e vivências dos tutores que promovam discussões sobre essa temática com os estudantes. Em outro estudo, quando questionados sobre o método ABP e o modelo tradicional, os estudantes afirmaram se sentir mais preparados para lidar com as incertezas, com seus limites e para tomar decisões com o ensino ABP, entretanto, como ponto negativo, identificaram a dificuldade em se comunicar, de ter um envolvimento emocional e de entender o processo da doença21. As evidências do estudo reforçam como o modelo ABP adotado aborda de forma correta as diretrizes brasileiras sobre a formação médica, entretanto ainda é necessário um maior aprofundamento21. Isso pode ser embasado no presente estudo, que demonstrou que os estudantes consideram necessária a inclusão de mais disciplinas que abordem o processo de morte e morrer durante a graduação.
Quanto à preparação psicológica para lidar com a morte de um paciente, a maioria dos alunos referiu estar despreparada ou pouco preparada para enfrentar essa situação. Tal dado se assemelha ao encontrado por Vianna et al.22 em seu estudo publicado na Revista da Associação Médica Brasileira, em que 47,4% dos entrevistados responderam que teriam receio em tratar do assunto quando perguntados sobre sua possível reação ao serem colocados diante de um indivíduo com doença terminal. Para os estudantes da FPS, os sentimentos que mais desencorajam essa abordagem são a falta de conhecimento prático, o desconforto com o tema e o não conhecimento teórico. Essa falta de conhecimento teórico acontece, porque, em geral, as universidades abordam principalmente as doenças, as fisiopatologias, as causas, os sintomas e os tratamentos, enquanto a morte, um tema tão importante e corriqueiro quanto as doenças durante o exercício da profissão, é discutida de maneira superficial. Essa falta de conhecimento gera desconforto em relação ao tema e despreparo ante a morte de um paciente.
Sobre os aspectos que podem influenciar na percepção dos estudantes acerca do processo de morte e morrer, eles mencionaram a religião, as vivências adquiridas no enfrentamento da morte de uma pessoa próxima e as questões culturais. Tal ponto pode ser evidenciado no estudo de Santos et al.23, no qual 54% dos estudantes e 44,2% dos médicos residentes da pesquisa afirmaram que a religião influencia na sua percepção sobre a morte. A influência cultural na percepção sobre a morte acontece porque diferentes sociedades têm distintas maneiras de lidar com o tema. Embora a maioria das culturas esteja inserida num contexto de negação da morte, os mexicanos, por exemplo, possuem até uma data para celebrá-la. O Dia dos Mortos marca o calendário festivo da cultura popular do México, e, nesse evento, a morte é celebrada de maneira alegre e única no dia 2 de novembro, com base na ideia de que os mortos não morreram totalmente, apenas passaram para outro lado da vida24. Também em 2 de novembro, há o Dia de Finados no Brasil, e, diferentemente da festa mexicana, essa data é marcada por tristeza, saudade e luto em relação aos entes queridos que já faleceram.
Limitação do estudo
Como a coleta de dados foi afetada negativamente pela pandemia, a realização dela ocorreu de maneira remota, o que dificultou o acesso presencial aos alunos para que houvesse uma explicação sobre a importância da pesquisa. Tal fato comprometeu o número de alunos que responderam ao questionário completamente, e, diante disto, não é possível generalizar a opinião de todos os estudantes de medicina da FPS, visto que as respostas incompletas e ausentes de um número considerável de sujeitos poderiam trazer resultados diferentes dos encontrados.
CONCLUSÃO
Os alunos de Medicina da FPS investigados relacionam, em sua maioria, sentimentos negativos ao processo de morte e se sentem despreparados psicologicamente para lidar com a morte de um paciente, pois não consideram que a graduação médica da faculdade os prepara para enfrentar o processo de morte e morrer. Além disso, eles concordam que a discussão acerca desse processo tem importância tanto no exercício da medicina quanto no bem-estar psicossocial do médico, além de interferir na saúde mental desses profissionais.
Para os alunos, o processo de morte de morrer raramente é abordado durante a graduação do curso de Medicina da FPS, e há um consenso entre os estudantes de que existe a necessidade da inclusão de mais disciplinas que discutam esse assunto na grade da graduação médica da faculdade, já que a maioria se sente pouco preparada para abordar o processo de morte com um paciente, uma situação corriqueira na vida dos profissionais da medicina.
Dessa forma, o presente estudo sugere a inserção de módulos que abordem a morte e o morrer durante a graduação em Medicina na FPS, a fim de contribuir para a compreensão de seus alunos acerca desse processo, além de preparar psicologicamente esses futuros médicos para lidar mais qualificadamente com a morte de pacientes durante o exercício da profissão.