INTRODUÇÃO
O impacto da pandemia da Covid-19 na saúde pública mundial foi intenso e levou à implementação de várias estratégias de contenção e mitigação da transmissão, visando adiar grandes surtos de pacientes nos hospitais e proteger as pessoas mais vulneráveis à infecção1.
No plano de contingências estabelecido pelo Ministério da Saúde no início da pandemia, foi instituído o isolamento social para minimizar a infecção e reduzir a propagação do novo coronavírus, o que criou um ponto de inflexão na trajetória do ensino no Brasil. Em 18 de março de 2020, o Ministério da Educação (MEC) publicou a Portaria nº 343 que autorizou “em caráter excepcional” a substituição de aulas presenciais por aulas do modelo de educação a distância (EAD) com utilização de tecnologia de informação e comunicação remota em cursos que estavam em andamento2. O ensino remoto utilizado assemelha-se à EAD no que tange a uma educação mediada por tecnologia, no entanto os princípios adotados pelo ensino remoto tendem a seguir o modelo presencial, contendo atividades síncronas, realizadas no mesmo horário, na mesma disciplina e com o mesmo professor da aula presencial, de modo a possibilitar uma interação direta entre professor e aluno3),(4.
Estudos indicam que essas medidas trouxeram riscos para a saúde mental dos indivíduos, com diversas repercussões psicológicas, em especial entre idosos, crianças e adolescentes5),(6.
As evidências têm demonstrado que os estudantes de Medicina têm pior percepção de qualidade de vida (QV) e alta prevalência de transtornos psicossociais quando comparados com a população geral e com indivíduos da mesma idade7),(8. Uma metanálise brasileira realizada em 2017 identificou a prevalência de diferentes problemas na saúde mental dos estudantes de Medicina brasileiros, como depressão (30,6%), transtorno mental comum (31,5%), síndrome de burnout (13,1%), problemas com uso de álcool (32,9%), estresse (49,9%), baixa qualidade de sono (51,5%), sonolência diurna (46,1%) e ansiedade (32,9%). Quando observada a literatura internacional, a prevalência em estudantes do Reino Unido, da Europa e de outros países do mundo de língua inglesa fora da América do Norte é a seguinte: 28% de depressão, de 12,2% a 96,7% de estresse psicológico, e de 7,7% a 65,5% de ansiedade9),(10.
Os estudantes de Medicina, além de influenciados pelos fatores estressores inerentes à pandemia - como perda de familiares e amigos, medo de contaminação, insegurança financeira e piora no estilo de vida -, sofreram com as alterações na rotina do curso, o atraso na prática clínica e as indefinições sobre o futuro, o que pode ter contribuído para a elevação dos níveis de estresse, depressão, sofrimento mental, ansiedade, transtorno do pânico, insônia, medo e raiva11),(12.
O estudo de Gomes et al.13 realizado durante a pandemia com estudantes de Medicina identificou uma percepção negativa em relação às aulas remotas: 70% dos acadêmicos não gostaram da modalidade, 95% expressaram insegurança quanto ao ensino e 40% informaram uma diminuição no tempo de estudo. Além disso, 60% deles relataram problemas de sono durante o isolamento, e 85,5% mencionaram preocupação com a própria saúde mental, a autocobrança, a carga extensa de horários, a constante avaliação e o medo de fracassar14. Os principais sintomas manifestados pelos estudantes durante a pandemia foram cansaço constante, preocupação excessiva, dificuldade de concentração, prejuízo no desempenho acadêmico, irritação frequente, sensação de desgaste físico constante, depressão, ansiedade, estresse e despreparo perante condutas clínicas15),(16.
Estudantes de Medicina de universidades brasileiras participaram de um estudo que evidenciou que 75,6% apresentaram um nível de estresse moderado durante a pandemia e sofreram impacto negativo no estilo de vida, como redução da prática de atividades físicas e pior alimentação, o que os deixou mais estressados e ansiosos12. No Espírito Santo, o distanciamento social imposto pela pandemia ocasionou nas estudantes de Medicina uma maior prevalência de estresse17.
O conhecimento dos fatores que influenciaram negativa e positivamente o contexto e a saúde mental dos estudantes pode contribuir para a minimização dos impactos sofridos por esse grupo e para o planejamento de medidas de enfrentamento de longo prazo. Esses impactos podem afetar a confiança dos alunos no retorno às atividades presenciais, o bem-estar e a capacidade de aprendizagem18.
Este estudo foi realizado nos meses em que o isolamento social estava sendo adotado como medida de controle da Covid-19, durante a supressão das atividades presenciais do curso. Ele teve como objetivo avaliar a QV e a saúde mental dos estudantes de Medicina de uma escola médica durante o isolamento social na pandemia da Covid-19.
MÉTODO
Trata-se de um estudo quantitativo transversal de caráter analítico, realizado no período de junho a outubro de 2020, no contexto do curso de Medicina da Universidade José do Rosário Vellano (Unifenas), campus de Belo Horizonte. Nesses meses, todas as atividades acadêmicas estavam sendo realizadas de forma não presenciais, por meio de aulas remotas síncronas e assíncronas, que se iniciaram no final de março de 2020.
A população do estudo foram todos os 1.127 alunos matriculados no período do recrutamento. Adotaram-se os seguintes critérios de inclusão: idade superior a 18 anos, participação nas atividades remotas e anuência com o preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Excluíram-se os alunos menores de 18 anos e aqueles que se recusaram a preencher o questionário ou que o fizeram de forma incompleta. A amostra foi não probabilística, escolhida por conveniência. O recrutamento se deu por meio de divulgação no ambiente virtual de aprendizagem utilizado (Moodle) e convites enviados via aplicativo de mensagens (WhatsApp) e mensagens eletrônicas (e-mail). Com o convite, foi enviado endereço eletrônico para acesso ao questionário on-line.
O questionário continha as informações dos indivíduos (mês de preenchimento, sexo, idade, estado civil, renda familiar, período no curso de Medicina, uso de medicação para algum transtorno psiquiátrico, com quem residia durante o isolamento social) e os instrumentos para avaliar a QV e a saúde mental.
O instrumento utilizado para avaliar a QV foi o World Health Organization Quality of Life Group-Bref (WHOQOL-Bref). Esse instrumento foi desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e traduzido, adaptado e validado para o Brasil por Fleck et al.19. Trata-se de um questionário com 26 questões, agrupadas em quatro domínios: físico, psicológico, relações sociais e ambiente. As respostas são obtidas em escala Likert variando de 1 a 5 pontos: 1 = muito ruim, 2 = ruim, 3 = nem ruim e nem boa, 4 = boa e 5 = muito boa. Os escores geral e por domínios são obtidos por meio da média das respostas, posteriormente convertidas em uma escala de 0 a 100 pela multiplicação por quatro, visando permitir comparações com os escores obtidos com o WHOQOL-10019. Dessa forma, quanto maior a pontuação, melhor a QV.
O Questionário de Saúde Geral (QSG-12) corresponde a uma versão abreviada do Questionário de Saúde Geral de Goldberg de 1972, adaptado para o Brasil por Pasquali et al.20. Goldberg et al.21, ao compararem o questionário original com 60 itens com a versão abreviada de 12 itens, constataram que a versão reduzida apresentou a mesma funcionalidade do instrumento original. A versão reduzida contém itens que incluem problemas com sono e apetite, experiências subjetivas de estresse, tensão ou tristeza, domínio de problemas diários, tomada de decisão e autoestima, sendo seis questões negativas e seis questões positivas, com quatro opções de resposta de 0 a 3. A pontuação total varia de 0 a 36. Quanto maior for o escore de percepção da saúde geral, pior será o estado de saúde mental.
Para identificação de escore de triagem positivo para transtorno mental comum, adotou-se a seguinte codificação: às respostas compreendidas entre 0 e 1, atribui-se a pontuação de 0; e às respostas compreendidas entre 2 e 3, atribui-se a pontuação de 1. Consideraram-se como positivos para transtorno mental comum os respondentes que obtiveram um somatório superior ou igual a 4. 20)-(22.
A análise dos dados foi composta por: 1. análise descritiva das características individuais por meio de médias e proporções; 2. cálculo das variáveis QV e saúde mental; 3. análise univariada por meio da apresentação das pontuações da QV e de seus domínios e da saúde mental estratificada pelas características das amostras - para verificar a diferença entre os grupos, utilizou-se o teste t de Student; e 4. análises de correlação entre a saúde mental e a QV e seus domínios, verificadas pelo coeficiente de correlação de Pearson. O nível de significância utilizado foi de 5% (p < 0,05). Para as análises estatísticas, adotou-se o programa Stata versão 11.1.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unifenas sob CAAE nº 31780520.9.0000.5143.
RESULTADOS
Participaram do estudo 565 estudantes de Medicina, que representavam 50,1% do total de alunos matriculados. A idade média dos participantes foi 23,1 (± 9,25), a maioria dos estudantes eram do sexo feminino (64,78%), encontravam-se nos três primeiros anos do curso de Medicina (73,28%), eram solteiros (96,28%), possuíam renda familiar superior a cinco salários mínimos (79,47%), não utilizavam nenhuma medicação psiquiátrica (76,46%) e não moravam sozinhos (92,9%) (Tabela 1).
Variável | Frequência N (%) |
---|---|
Idade | 23,12 (± 9,25) |
Período | |
1o | 69 (12,21%) |
2o | 68 (12,04%) |
3o | 94 (16,64%) |
4o | 56 (9,91%) |
5o | 58 (10,27%) |
6o | 69 (12,21%) |
7o | 22 (3,89%) |
8o | 32 (5,66%) |
9o | 26 (4,6%) |
10o | 25 (4,42%) |
11o | 18 (3,19%) |
12o | 28 (4,96%) |
Sexo | |
Feminino | 366 (64,78%) |
Masculino | 199 (35,22%) |
Estado civil | |
Casado | 13 (2,3%) |
Divorciado | 1 (0,18%) |
Separado | 1 (0,18%) |
Solteiro | 544 (96,28%) |
União estável | 6 (1,06%) |
Renda | |
Até R$ 5.000 | 116 (20,53%) |
> R$ 5.000 | 499 (79,47%) |
Uso de medicação psiquiátrica | |
Sim | 133 (23,54%) |
Não | 432 (76,46%) |
Reside | |
Outros | 522 (92,39%) |
Sozinho | 43 (7,61%) |
Fonte: Elaborada pelos autores.
Análise do questionário de qualidade de vida (WHOQOL-Bref)
Para a amostra total de estudantes avaliados, a média geral de QV foi de 64,32 (± 0,43), sendo maior no domínio das relações sociais (68,9, ± 0,79), seguido dos domínios psicológico (60,5, ± 0,47), meio ambiente (60,3, ± 0,51) e físico (52,2, ± 0,48) (Gráfico 1).
A percepção da QV geral foi pior entre os alunos que responderam aos questionários em junho e julho de 2020 quando comparados com os que responderam no período de agosto a outubro de 2020. Constatou-se essa mesma percepção nos discentes que possuíam renda familiar mensal inferior a cinco mil reais e naqueles que se encontravam no ciclo básico de graduação.
Quando se avaliaram os domínios, observou-se que os estudantes que responderam ao questionário em junho e julho apresentaram menor média de escore em todos os domínios. As médias dos domínios psicológico e social foram menores entre os alunos com renda de até cinco mil reais, que estavam no ciclo básico e que usavam medicação psiquiátrica (Tabela 2).
Características da amostra | Domínio físico | Domínio psicológico | Domínio relações sociais | Domínio meio ambiente | Global | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Média | Média | Média | Média | Média | ||||||
Meses da resposta | ||||||||||
Jun./jul. | 50,03 | * | 58,70 | * | 64,28 | * | 58,35 | * | 61,87 | * |
Ago./set./out. | 53,45 | 61,56 | 71,47 | 61,31 | 65,69 | |||||
Sexo | ||||||||||
Feminino | 51,80 | 60,12 | 68,53 | 59,94 | 63,95 | |||||
Masculino | 52,99 | 61,30 | 69,55 | 60,81 | 64,99 | |||||
Renda familiar | ||||||||||
< R$ 5.000 | 50,7 | 57,72 | * | 65,73 | ** | 51,72 | * | 59,31 | * | |
> R$ 5.000 | 52,6 | 61,26 | 69,71 | 62,45 | 65,61 | |||||
Ciclo | ||||||||||
Básico | 51,41 | 59,04 | * | 67,50 | 59,24 | ** | 63,20 | * | ||
Clínico e internato | 53,05 | 62,08 | 70,32 | 61,29 | 65,47 | |||||
Uso medicação psiquiátrica | ||||||||||
Sim | 53,35 | 58,61 | ** | 64,53 | * | 60,24 | 63,24 | |||
Não | 51,87 | 61,13 | 70,23 | 60,25 | 64,65 | |||||
Residiu sozinho durante o isolamento | ||||||||||
Sim | 50,74 | 59,68 | 67,82 | 59,81 | 63,79 | |||||
Não | 52,34 | 60,60 | 68,98 | 60,29 | 64,36 |
A probabilidade de significância (p) refere-se à análise univariada com o teste t de Student. * p < 0,01; ** p < 0,05. Fonte: Elaborada pelos autores.
A média da saúde mental avaliada pelo QSG-12 foi de 22,12 (± 0,26). Considerando as respostas acima de 4 quando a escala é dicotomizada em 0 e 1, estimou-se uma prevalência de 66,9% de alunos apresentando transtorno mental comum. Semelhante ao observado na percepção de QV, os respondentes do período entre junho e julho de 2020 apresentaram pontuações mais altas, o que corresponde a uma pior percepção de saúde mental, quando comparados com o período de agosto a outubro de 2020. Apresentaram ainda piores pontuações: sexo feminino, estar cursando o ciclo básico do curso e utilizar medicação psiquiátrica (Tabela 3).
Características da amostra | Saúde mental | |
---|---|---|
Média | ||
Semestre da resposta | ||
Jun./jul. | 23,73 | * |
Ago./set./out. | 21,22 | |
Sexo | ||
Feminino | 23,16 | * |
Masculino | 20,22 | |
Renda familiar | ||
< R$ 5.000 | 22,98 | |
> R$ 5.000 | 21,90 | |
Ciclo | ||
Básico | 23,03 | * |
Clínico e internato | 21,19 | |
Uso de medicação psiquiátrica | ||
Sim | 23,92 | * |
Não | 21,57 | |
Residiu sozinho durante o isolamento | ||
Sim | 22,44 | |
Não | 22,10 |
A probabilidade de significância (p) refere-se à análise univariada com o teste t de Student. * p < 0,01. Fonte: Elaborada pelos autores.
A análise de correlação demonstrou relação inversa e moderada entre a pontuação de QV e a pontuação de saúde mental dos estudantes (coeficiente de Pearson -0,6126. p = 0,000), demonstrando que quanto pior a percepção de QV, maiores as pontuações no QSG-12 e pior a saúde mental. Também foi observada correlação moderada entre cada uma das dimensões da QV e uma pior saúde mental (Tabela 4).
WHOQOL-Bref | r | |
---|---|---|
QV geral | -0,6126 | * |
Domínio físico | -0,4461 | * |
Domínio psicológico | -0,5841 | * |
Relações sociais | -0,4698 | * |
Meio ambiente | -0,4478 | * |
A corelação estimada pelo coeficiente de correlação de Pearson (r) e a probabilidade de significância (p) referem-se ao teste para o coeficiente linear de Pearson.
* p < 0,01.
Fonte: Elaborada pelos autores.
DISCUSSÃO
O presente estudo verificou que a prevalência de transtornos mentais comuns (TMC) foi alta nos estudantes de Medicina da Unifenas, no período do isolamento social, embora a percepção da QV tenha sido boa. Fatores como menor renda e estar cursando o ciclo básico impactaram a pior percepção de QV. Quanto aos TMC, verificaram-se impactos negativos em sexo feminino, estar cursando o ciclo básico e fazer uso de medicação psiquiátrica. Observou-se que a pior percepção de QV se correlacionou com piores condições de saúde mental.
A literatura evidencia que os estudantes de Medicina são mais vulneráveis ao adoecimento mental e apresentam pior QV quando comparados à população geral. Os motivos mais frequentemente utilizados para justificar esse quadro são a carga horária elevada do curso, o volume de avaliações e as pressões sociais às quais estão sujeitos. Estudos que avaliaram a QV dessa população pelo WHOQOL-Bref, no período que antecedeu a pandemia, constataram que os estudantes percebem a própria QV como boa, e o domínio que mais impacta negativamente a QV é o psicológico, que avalia sentimentos positivos e negativos, memória, concentração e autoestima23)-(25. Observa-se também que a QV é fortemente influenciada pela qualidade do sono, por oportunidades de lazer e pelo grau de energia26),(27.
Observou-se, neste estudo, que, durante a pandemia, o domínio que mais impactou negativamente a QV dos estudantes foi o físico, que considera a dor e o desconforto, a energia e fadiga, o sono e repouso, a capacidade de trabalho e as funções motoras28. A capacidade de desempenhar as atividades diárias e o trabalho foi o item que mais impactou negativamente a QV. Um estudo realizado por Silva et al.29 com estudantes de Medicina durante a pandemia identificou o ambiente familiar e a conexão com a internet como limitadores para um bom desempenho acadêmico, diminuindo a motivação e dificultando o ritmo nos estudos. Segundo Michelis et al.15, o ensino remoto, apesar de garantir a apresentação do conteúdo curricular, não atendeu às expectativas dos estudantes, não garantindo segurança quanto ao seu aprendizado.
Neste estudo, o domínio da QV que obteve maiores escores foi o das relações sociais. Ele foi citado em vários estudos realizados antes da pandemia8),(23),(30),(31. Esse domínio avalia questões sobre as relações pessoais, a atividade sexual e o apoio social. Observou-se que o apoio recebido dos amigos, parentes e colegas foi o aspecto que teve o maior impacto positivo na QV percebida pelos estudantes durante a pandemia. Esses resultados são corroborados por Teixeira et al.32 que identificaram que uma rede de apoio psicossocial constituída de vínculos e relações sociais é fundamental no contexto da atenção à saúde mental. O estudo de Cao et al.33) descreve que morar com os pais durante a pandemia foi fator protetivo para adoecimento mental, o que reforça essa melhor percepção nas relações sociais dos estudantes durante o isolamento social. Grande parte dos estudantes participantes deste estudo mora distante de seus familiares, e o fato de as aulas terem sido remotas permitiu que eles retornassem ao convívio familiar, um fator que pode ter contribuído para melhorar a percepção desses alunos acerca das relações sociais.
Observou-se que, durante a pandemia, 66,9% dos estudantes apresentaram TMC, e esgotamento mental, incapacidade de concentração e insatisfação com as atividades normais apresentaram os piores escores, impactando negativamente a saúde mental dos estudantes. Antes da pandemia, estudos sobre TMC em estudantes de Medicina no Brasil evidenciaram uma prevalência entre 33,6% e 50,9%, e as principais variáveis associadas foram falta de apoio emocional, uso de medicação, transtorno psiquiátrico prévio, carga horária elevada e período inicial do curso27),(34)-(36. Durante a pandemia, uma pesquisa realizada por Teixeira et al.32 com 656 estudantes de Medicina do Brasil demonstrou uma prevalência de TMC de 62,8%, similar ao resultado encontrado neste estudo, e as principais associações ao risco de TMC foram sexo feminino, estar nos dois primeiros anos do curso, má adaptação ao ensino remoto, dificuldade de concentração, preocupação com o tempo de formação e ter um diagnóstico prévio de transtorno mental.
Observaram-se, neste estudo, pior percepção de QV, tanto no geral quanto por domínio (físico, psicológico, relações sociais e meio ambiente), e maior porcentagem de TMC nos respondentes de junho e julho em comparação com os respondentes de agosto a outubro. Esses resultados se assemelham aos achados de outros estudos que identificaram piores sintomas de ansiedade, estresse e depressão, decorrentes da quarentena e do isolamento social, no início da pandemia37)-(39. As incertezas sobre a EAD, a exposição excessiva a informações alarmantes, o rumo incerto acerca da própria graduação, o medo da própria doença em si e o pouco conhecimento acerca da doença no início da pandemia podem ser fatores que contribuíram para essa pior percepção no período inicial da pandemia11),(40.
Não houve diferença na percepção da QV entre os sexos. Entretanto, o sexo feminino apresentou pior percepção de saúde mental que o sexo masculino. Esses resultados se assemelham aos encontrados em outros estudos que avaliaram a saúde mental de estudantes de Medicina durante a pandemia de Covid-19. Teixeira et al.32) identificaram ser o sexo feminino fator de risco para o adoecimento mental. Wang et al.41 inferem que estudantes e pessoas do sexo feminino tiveram maior impacto psicológico e níveis mais altos de estresse, ansiedade e depressão durante a pandemia. Segundo Munhoz et al.42, as mulheres apresentam duas vezes mais risco de depressão do que os homens, o que pode estar relacionado com os múltiplos papéis exercidos pelas mulheres na sociedade, bem como com as alterações hormonais que interferem no humor.
Neste estudo, observou-se que os estudantes com renda familiar inferior a cinco mil reais tiveram uma pior percepção da própria QV. Esses dados estão de acordo com os achados de Rodrigues et al.11 e Cao et al.33. Ao estudarem estudantes de Medicina durante a pandemia, esses autores constataram que uma renda instável pode ocasionar maiores impactos na saúde mental e consequentemente na QV.
Os estudantes do ciclo básico apresentaram pior percepção de QV e mais chances de TMC quando comparados com os discentes do ciclo clínico e internato. Esses resultados são semelhantes aos encontrados em outros estudos9),(32),(43),(44. Há muitas características referentes às instituições de ensino que podem estar relacionadas a esse achado, como carga horária, número de aulas e organização do currículo44. Essas características podem variar de forma importante entre as diferentes instituições. A Unifenas adota a metodologia de aprendizagem baseada em problemas (ABP), e o semestre é dividido em módulos de quatro a cinco semanas. Essa estrutura do currículo exige do aluno uma maior capacidade de adaptação à metodologia e de administração do tempo, para conciliar estudo, aulas e provas. Estes são possíveis fatores desencadeadores de angústia. Segundo Gonçalves et al.44, é possível que os estudantes que estão mais avançados já tenham encontrado mecanismos de adaptação ao curso e consigam se adequar melhor às exigências acadêmicas. Além disso, no ciclo clínico a vivência do estudante fica mais próxima da realidade da profissão, aumentando a identificação com o curso. Esses fatores podem ter uma repercussão positiva na saúde mental e na QV dos estudantes.
Os estudantes que utilizavam medicação para transtornos psiquiátricos apresentaram uma pior percepção da QV, nos domínios psicológico e relações sociais, e pior saúde mental. Lasevoli et al.45 identificaram que a percepção do nível de angústia em pacientes com doença mental é certamente maior que a do restante da população em geral. Um estudo realizado por Barros et al.46 com 45.161 brasileiros durante a pandemia de Covid-19 demonstrou que os respondentes com antecedente de depressão apresentaram mais sintomas de tristeza, nervosismo e alterações no sono.
A QV e saúde mental tiveram uma correlação moderada e inversa, já que quanto menor o escore de QV, maior a chance de adoecimento mental nos estudantes de Medicina. Resultados semelhantes foram obtidos por Silva et al.26 com estudantes de medicina de Caratinga antes do período da pandemia, que descreveram uma mesma associação entre a saúde mental e todos os domínios de avaliação da QV.
Esses resultados são importantes porque enfatizam pontos vulneráveis, indicando a necessidade de criação de estratégias educacionais que visem minimizar o impacto do curso na saúde mental e QV dos estudantes. Estratégias como estimular a resiliência - de modo a fortalecer o estudante para lidar com situações adversas -, assistência psicológica, valorização dos relacionamentos interpessoais e de fenômenos do cotidiano, equilíbrio entre estudo e lazer, orientação para organização do tempo, estímulo aos cuidados com a saúde, a alimentação e o sono, prática de atividade física e religiosidade são citadas por Zonta et al.47) como formas para reduzir o estresse.
Como limitações do estudo, podemos citar: amostra formada majoritariamente por estudantes no ciclo básico do curso (73,28%) - que, de acordo com a literatura, apresentam pior percepção da QV e maior tendência a TMC - e de uma única instituição de ensino privada - o que dificulta a generalização dos dados a todos os discentes de Medicina brasileiros -, e o desenho transversal do estudo, que não possibilitou o acompanhamento em longo prazo dos alunos.
CONCLUSÃO
Nossos resultados sugerem que o isolamento social impactou negativamente a QV, sobretudo no domínio físico, especialmente nos estudantes com menor renda familiar e que estavam cursando o ciclo básico. A prevalência de TMC foi alta nos estudantes durante a pandemia, e ser do sexo feminino, estar cursando o ciclo básico e usar medicação psiquiátrica influenciaram na pior percepção da saúde mental.
Diante dos resultados obtidos, é fundamental que se realizem, no contexto acadêmico, debates e discussões sobre a QV e saúde mental dos estudantes, como medidas de enfrentamento do sofrimento psíquico causado pela pandemia e de conhecimento de suas consequências nos âmbitos pessoal e acadêmico.
Nossos resultados podem fornecer subsídios para o desenvolvimento de estratégias que possibilitem a abordagem desse tema, objetivando minimizar os efeitos negativos da pandemia no ambiente acadêmico. Mais estudos são necessários para maior compreensão dos impactos da pandemia na saúde mental e QV dos estudantes.