INTRODUÇÃO
O ensino médico no Brasil é pautado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) de Medicina. Nelas, determina-se que o médico deve
[...] ter uma formação geral, humanista, crítica, reflexiva e ética, com capacidade para atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, nos âmbitos individual e coletivo, com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania, da dignidade humana, da saúde integral do ser humano e tendo como transversalidade em sua prática, sempre, a determinação social do processo de saúde e doença1.
Entretanto, muitas universidades brasileiras têm um ensino hospitalocêntrico e com foco em especialidades, e trabalham dentro de uma lógica médico-centrada e desarticulada das práticas em saúde2. As próprias metodologias de ensino na Medicina seguem, frequentemente, o modelo tradicional de transmissão do conhecimento por meio de aulas expositivas, com pouca participação do aluno e poucos exemplos práticos3. Esse modelo deveria ter sido suplantado pelas últimas DCN de 20141, uma vez que elas preconizam a priorização do Sistema Único de Saúde (SUS), das redes de atenção à saúde e da própria atenção primária à saúde (APS) como cenários de prática para formação de profissionais mais direcionados para as necessidades reais desses subsistemas de saúde.
Segundo Mehry et al.4, quando se trata do ensino em saúde coletiva, a situação se torna ainda pior: a área costuma ser diminuída em relação às outras áreas de especialidades mais próximas das ciências “duras”. Além disso, a saúde coletiva apresenta referenciais teóricos que muitas vezes fogem do conhecimento técnico básico do aluno ao trazer conceitos de áreas como sociologia e antropologia, e explorar conceitos de ciências leves que muitas vezes não fazem parte do conhecimento habitual do aluno e podem ser mais complexas para exemplificar4.
De acordo com Assunção5, a nova geração de médicos precisa de melhores referenciais teóricos, apresentados de maneira mais próxima de sua realidade, que facilitem a internalização de conceitos que não sejam técnico-teóricos - como é o caso no ensino de especialidades médicas. O contraponto a elas é o ensino de conceitos humanizados da saúde coletiva: baseados em narrativas de interesse dos alunos, tendem a reter a atenção dos participantes e a promover a discussão de vários pontos de vista que nem sempre são considerados no método clássico. Esse formato de ensino permite que alunos levem suas próprias experiências e vivências para o centro do debate, ao considerar os pontos de vista deles e possibilitar a absorção do conhecimento com base na internalização por meio da socialização do indivíduo5.
A escolha da série Unidade básica como objeto de estudo se deu por sua natureza inédita no campo da comunicação em saúde. Ana Petta, Helena Petta e Newton Cannito, criadores da série, norteiam a trama pela APS brasileira e trazem à tona questões relevantes do processo saúde-doença-cuidado. Situada numa unidade básica de saúde (UBS) da periferia da cidade de São Paulo, a produção aborda histórias de pacientes e profissionais da saúde e dá atenção a aspectos para além da doença, permitindo um enfoque na saúde como um todo. Essa proximidade da realidade da APS permitiu que docentes e profissionais da saúde a utilizassem como ferramenta educacional, especialmente após o início da pandemia de Covid-19.
É pelas observações supracitadas que se inicia este estudo: nele, buscou-se compreender como tem sido utilizada a série Unidade básica por docentes da graduação em Medicina e preceptores e tutores de programas de Residência em Medicina de Família e Comunidade como ferramenta de ensino, explorando principalmente sua relação com conceitos relacionados à APS e ao campo da saúde coletiva.
MÉTODO
Optou-se neste estudo pela realização de uma pesquisa qualitativa por meio de entrevistas semiestruturadas. Isso se deve à intenção não de identificar ou quantificar o fenômeno estudado, mas de compreender o significado do processo para o indivíduo entrevistado ou para a coletividade. O modelo qualitativo permite maior abertura, aprofundamento e conhecimento do assunto abordado6. Utilizou-se um modelo de entrevista estruturada com docentes de graduação em Medicina, bem como com preceptores e tutores de Residência de Medicina da Família e Comunidade de diversas escolas médicas no país. Os participantes são membros de grupos de redes sociais nacionais que discutem o uso da série Unidade básica no ensino e na aprendizagem. Este estudo faz parte de uma pesquisa maior e é um recorte que tem como foco a análise de como a série tem sido usada na abordagem de conceitos relevantes para a APS na formação de profissionais médicos.
O convite para a pesquisa foi feito por meio da rede social WhatsApp. Nela, formou-se um grupo com o objetivo de compartilhar conhecimento sobre o uso da série por profissionais da educação. Todos os profissionais presentes foram abordados pelos pesquisadores. Neste recorte, analisamos apenas as entrevistas de profissionais envolvidos com o ensino médico. Realizou-se a seleção dos participantes de acordo com a disponibilidade e voluntariedade dos indivíduos; as entrevistas foram conduzidas remotamente. A entrevista abordou a forma como cada docente utiliza a série em suas disciplinas, os conteúdos discutidos a partir do material e a descrição da experiência junto aos estudantes. A finalização da amostra se deu por saturação, quando novas entrevistas já não traziam elementos inéditos para a análise7.
As entrevistas foram realizadas pela primeira autora do artigo e pelos demais pesquisadores da equipe. A equipe realizou a transcrição e análise das entrevistas. Todas as entrevistas foram transcritas integralmente, e depois se analisaram os textos produzidos para a identificação de núcleos argumentais. Finalmente, montou-se uma grade de análise com todas as categorias obtidas e compararam-se os trechos extraídos do material.
O referencial teórico deste trabalho foi a fenomenologia hermenêutica de Ricoeur, na qual se utiliza o círculo hermenêutico como ferramenta de transcrição e construção de narrativas, bem como a análise hermenêutica-dialética. Para seguir a dinâmica hermenêutica, foi feito um processo de leituras inicialmente superficial das transcrições, mantendo-se o sentido das falas originalmente criadas pelos participantes. Além disso, sintetizamos os textos, enfatizando ideias repetidas, apresentando exemplos de forma resumida para tornar o texto mais corrido e compreensível, sem perder a essência das falas dos participantes. Segue-se assim o preceito hermenêutico de buscar o significado a partir dos fenômenos emanados dos discursos. O rigor científico é mantido, portanto, na garantia de confiabilidade das interpretações por meio de uma linha-guia que prima pelo reconhecimento das diferenças morais e filosóficas ao mesmo tempo que mantém a mediação entre experiência, discurso e interpretação8.
Os participantes preencheram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) disponibilizado por e-mail e explicado pelos autores antes da entrevista. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Paraná (UFPR), setor das ciências da saúde: Parecer nº 2.054.268 e Emenda Parecer nº 4.618.369.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Foram realizadas 18 entrevistas com docentes da graduação em Medicina e preceptores e tutores de programas de Residência em Medicina de Família e Comunidade. Destes 66,7% eram do sexo feminino, 77,8% se autodeclararam brancos e 55,6% trabalham em instituições públicas de ensino. A idade média dos participantes foi de 44,1 anos. Os participantes eram de diversas regiões do Brasil; os estados mais recorrentes foram São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Paraná.
A maior parte dos entrevistados utilizava episódios inteiros da série no início da aula como incentivo ao debate, muitas vezes tendo um roteiro planejado para conduzir a discussão para um tema ou conhecimento específico para ser abordado durante a aula.
A gente escolhe algum episódio e usa esse episódio em alguma unidade temática do curso. Em geral, inteiro. Ele tem essa facilidade de não ser um material longo. [...] Pra assistir, pra debater e pra depois refletir, confrontar, com algum tema que a gente está estudando, com outra bibliografia. Geralmente produzindo algum material reflexivo dos alunos (E13).
Todos os professores relataram ampla aceitação do material pelos alunos como ferramenta de ensino. Destacaram o aumento do interesse e engajamento na aula, principalmente por perceberem as ações dramatizadas dos personagens como referências de como agir ou por conseguirem se colocar no lugar dos personagens e relatarem como procederiam em determinadas situações: “Então essa modalidade de trazer a vida real, de trazer os casos e deixar ali no filme saber que é um “faz de conta” propicia esse pensar e se colocar no lugar [do personagem]” (E02).
Trata-se de um fenômeno já relatado em outros estudos, como em Jerrentrup et al.9 e Wicclair10, que demonstram que a dramatização é um recurso valioso no ensino. Ela garante ao aluno maior facilidade na visualização de problemas do cotidiano, além de ilustrar dilemas éticos e morais, permitindo que o espectador se coloque no lugar dos personagens e internalize esse conhecimento de maneira eficaz.
Outra característica citada pelos docentes é a verossimilhança do material com casos da realidade, o que é condizente com a visão dos criadores da série11. Essa característica foi considerada importante pelos entrevistados, pois ajudou a preparar os alunos para a prática, tornando-se inclusive ser um recurso alternativo a atividades práticas em momentos de pandemia.
Então, eles ficam muito surpresos de ter uma coisa relacionada a um assunto teórico. Então primeiro a gente está lá, estudando a teoria e depois a gente vai para a prática e está ali mesmo. Então eles ficam com os sentidos mais aguçados para ver, e, quando a gente vai para a prática da UBS, isso está mais perto deles. Não está tão distante como se fosse só uma literatura ou só um texto. Então é, acho que aproxima da realidade (E06).
Entretanto, mesmo retratando casos usuais de uma UBS, os docentes relataram que algumas vezes os recursos disponíveis na série, como medicamentos, exames, entre outros, nem sempre estão disponíveis na realidade em que estão inseridos. Isso, no entanto, pode ser considerado uma evidência de um problema estrutural do SUS no Brasil. As diferenças estruturais internas do SUS estão amplamente documentadas na literatura e se devem, principalmente, às diferenças em financiamento e fomento da APS nas diferentes regiões do país12)-(14. A série pode ser usada como recurso nivelador da experiência entre alunos e como um modelo da potencialidade do que pode vir a ser uma UBS dentro do SUS, desde que com financiamento e planejamento adequados.
Porque para os nossos estudantes aqui, seja da graduação ou da pós-graduação, a série é super fictícia, inclusive na dinâmica de estrutura de uma UBS, da equipe. Porque é o suprassumo da UBS que a série apresenta, e aqui as unidades funcionam num galpão abandonado, não têm equipe completa, não têm sala de primeiros socorros, não têm sala de nebulização. Só têm vacina e consultório (E23).
Eu acho que tiveram alguns aspectos que os estudantes rodavam [nos estágios] pra UBS que não eram ideais e, além disso, eram heterogêneas. Acho que a gente recorria a série para mostrar o caso de uma UBS mais modelar, vamos dizer assim (E22).
Além do uso como simulação de atividade prática, muitos docentes utilizam a série como uma ferramenta de ilustração e discussão dos princípios teóricos da APS. Segundo os docentes, os atributos da APS15 mais abordados pela série são: a focalização na família e a orientação comunitária. Um grande destaque foi a apresentação de ferramentas de abordagem familiar16, principalmente o genograma e ecomapa. A coordenação do cuidado também foi bem representada na série, trazendo principalmente a ilustração da equipe multiprofissional e a articulação do cuidado com a equipe do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e atendimentos hospitalares. A integralidade é um atributo essencial da APS16),(17 e, segundo as entrevistas, foi bem representada na série, visto que os profissionais de saúde procuravam assumir o cuidado integral dos seus usuários, evitando encaminhamentos desnecessários a outros especialistas e continuando com os seguimentos longitudinais desses mesmos usuários. Dessa forma, a série excedeu expectativas dos docentes ao ilustrar de forma corriqueira a complexidade das relações entre o serviço de saúde e a comunidade, abrangendo muitos dos atributos da APS.
A gente consegue tornar mais palpáveis coisas muito técnicas, por exemplo: conceito de território, uso de genograma e ecomapa, discussão sobre acolhimento, escuta qualificada, habilidades de comunicação específica para cada indivíduo, e eu acho que no limite a gente consegue perceber são essas condições de trabalho para atenção primária, o que é próprio da atenção primária enquanto lugar de trabalho, lugar de presença, lugar de estar enquanto estudante, enquanto trabalhador de saúde (E23).
Os atributos da APS15 que menos apareceram nas entrevistas foram a longitudinalidade e o acesso. A série segue um formato comum do gênero drama médico18, apresentando um caso com início e fim em cada episódio. Esse formato é elogiado pelos docentes, pois permite que os episódios sejam utilizados de maneira individual; ele pode, porém, prejudicar a representação da longitudinalidade. Alguns entrevistados mencionaram que realizam atividades de análise dos episódios avaliando quais atributos da APS aparecem e quais faltam ou são falhos, de modo a ajudar a internalizar esses conceitos e condicionar o aluno a reconhecer o que é uma boa APS. Nesse sentido, a série funciona para confrontar a teoria de uma APS ideal com a prática real no Brasil.
Mesmo que a representação da equipe multiprofissional na série tenha sido elogiada, houve críticas recorrentes sobre a falta de representatividade dos demais profissionais que compõem a Estratégia Saúde da Família (ESF), como dentistas, fisioterapeutas, nutricionistas, entre outros. Trata-se de um problema recorrente no gênero drama médico, que desde a sua criação foca a figura do médico e a doença como aspectos centrais da trama em detrimento de uma abordagem multidisciplinar e centrada na pessoa, como é preconizado pelos atributos da APS18.
[...] como ponto negativo eu diria que a série poderia [...] contemplar mais o trabalho multiprofissional (E11).
E eu acho que da primeira temporada pra segunda, foi o que a segunda temporada conseguiu fazer [...] que é mostrar os demais profissionais e a relação com a equipe. Na primeira a gente tinha um lugar mais subalterno, por exemplo, tinha só a enfermagem. E aqui a gente trouxe dramas cotidianos e a perspectiva de a gente trazer os diferentes profissionais que não são da equipe básica da saúde da família pra dentro, e isso contribui pra quem não é médico e enfermeiro, ou que não é agente comunitário de saúde ou técnico de enfermagem, se enxergar nesse lugar também. Então eu acho que esse avanço foi muito legal, muito importante de conseguir ser produzido e concretizado (E03).
A crítica à falta de representatividade dos demais profissionais da saúde foi ouvida pelos produtores da série, e abordou-se o tema na segunda temporada, havendo aumento da presença de outros profissionais. Entretanto, o uso da segunda temporada pelos professores foi prejudicado por causa da dificuldade de acesso aos episódios. É um problema mencionado em diversas entrevistas, uma vez que a distribuição é realizada pelos canais de TV privados e atualmente está disponível em um serviço de streaming pago. A maior parte dos docentes afirmou que acessa os episódios por meio do compartilhamento entre pares dos arquivos dos episódios pelas redes sociais e pelos serviços de armazenamento em nuvem.
Como limitação do estudo, elencamos o próprio recrutamento feito via redes sociais, com docentes que utilizam a série Unidade básica. A escolha amostral, assim, foi um fator limitador, uma vez que restringiu os participantes a um grupo específico, e, portanto, devemos ter cuidados com generalizações. Além disso, por ser um estudo qualitativo, analisamos reflexões e percepções na visão/voz dos docentes, não sendo possível generalizações, entretanto essa limitação não impacta o objetivo inicial do artigo. Não utilizamos outras ferramentas metodológicas para averiguar o uso da série no cotidiano do processo de trabalho desses docentes.
CONCLUSÃO
Ao final deste estudo, percebeu-se que, apesar de a série Unidade básica não ter sido idealizada para ser um instrumento de ensino11, ela pode apresentar grande potencialidade para auxiliar no aprendizado de diversos conceitos relacionados tanto à APS como à saúde coletiva. Conceitos como território, planejamento do cuidado, ecomapa e genograma e educação em saúde, que possuem teorizações áridas para o estudante de Medicina, foram abordadas em formato lúdico e relacionado a histórias cotidianas de usuários do sistema de saúde. Na opinião dos entrevistados, essa aproximação possibilitou o aumento da internalização de conhecimentos e o interesse dos alunos pela prática médica generalista voltada para o SUS.
Esperamos que este estudo possa auxiliar mais professores a adotar novos métodos de ensino em suas aulas e ampliar o interesse de futuros médicos pela área da APS. Afinal, a série, por ser um recurso audiovisual, possui efeito de reflexão do cotidiano da APS e se mostrou viável mesmo para ambientes de educação a distância (EaD) ou escolas que se viram privadas desse cenário de prática nos seus respectivos cursos. Em matrizes curriculares nas quais imperam métodos tradicionais, expositivos e conteudistas, a série, quando alinhada a metodologias ativas de ensino e aprendizagem, pode atrair estudantes e docentes para o campo da APS que vive em progressivo desfinanciamento e precarização dos seus princípios. Tal movimento pode auxiliar a trazer o foco e debate para esse campo do trabalho que, por mais que seja essencial, hoje não é mais priorizado.