1 Introdução
A questão que se apresenta como título desse artigo provoca uma reflexão que nos leva à investigação histórica para compreender em que momento, como e por que o ensino de arte passou a fazer parte do currículo escolar, de forma obrigatória, na Reforma Educacional de 1971. O foco da investigação histórica parte do estado de Pernambuco, analisando documentos específicos que foram produzidos após a aprovação da Reforma do ensino de 1º e 2º graus.
Em sua primeira parte o texto aborda algumas influências na educação entre as décadas de 50 e 60 do século XX. Em seguida, apresenta alterações na organização da educação básica e traz alguns documentos norteadores do ensino de arte que foram elaborados em Pernambuco e no Ministério da Educação.
Ao longo do tempo, a própria nomenclatura utilizada para denominar o ensino de arte foi sendo alterada. Na LDB de 1961 o ensino de arte, no currículo, recebeu o nome de “iniciação artística”. Na Reforma Educacional de 1971 passou a ser nomeado “educação artística”. Na LDB de 1996, identificamos o uso do termo “ensino de arte”. No entanto, a nomenclatura apresentada na legislação e sua obrigatoriedade, durante o tempo histórico, não garantiram e ou garantem a presença da Arte no currículo, como afirma Barbosa (2002, p. 14):
No Brasil, nem a mera obrigatoriedade, nem o reconhecimento da necessidade são suficientes para garantir a existência da Arte no currículo. Leis tão pouco garantem um ensino/aprendizagem que torne os estudantes aptos para entender a Arte ou a imagem na condição pós-moderna contemporânea.
A autora ressalta que os poderes públicos, além de reservarem um lugar para a Arte no currículo e se preocuparem em como o ensino é desenvolvido, precisam propiciar meios para que os professores desenvolvam a capacidade de compreender, conceber e fruir Arte. Pois, somente a ação inteligente e empática do professor pode tornar a Arte ingrediente essencial para favorecer o crescimento individual e o comportamento cidadão como fruidor de cultura e conhecedor da construção de sua própria nação.
Nosso direcionamento parte da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 4024 de 1961 (LDB de 61). Aquela Lei tramitou durante treze anos no Congresso Nacional para ser aprovada e, ao sê-la, já se encontrava defasada em relação às necessidades educacionais do país e as mudanças ocorridas na sociedade. No entanto, a mesma pode ser considerada um marco na história da educação brasileira, por ter sido a primeira que visava regulamentar, nacionalmente, o sistema educacional brasileiro.
Na Lei nº 4024/61 a arte foi intitulada iniciação artística. Naquele momento o Conselho Federal de Educação apontou as principais atividades que deveriam ser desenvolvidas, mas no corpo textual da legislação não existe obrigatoriedade e nem um espaço determinado no currículo para a iniciação artística.
Importante destacar que o uso dos termos na legislação esteve e está direcionado ao contexto e concepções, influências e entendimentos específicos da equipe que a elabora. Assim, o que ocorria no estado de Pernambuco nas décadas anteriores à aprovação da Reforma Educacional de 1971?
2 Influências políticas, econômicas, sociais e culturais na educação
Entre os anos 50 e 60, do século XX, houve um intenso trabalho de articulação e desenvolvimento de ações que objetivavam uma ampliação cultural e de reflexão crítica e consciente da população, sobretudo, no estado de Pernambuco. No âmbito artístico e cultural destacamos o importante papel exercido pela Sociedade de Arte Moderna do Recife (SAMR), fundada pelo artista Abelardo da Hora; a Escolinha de Arte do Recife, dirigida durante muito tempo por Noêmia Varela; a Divisão de Extensão Cultural e Artística (DECA), criada no interior da Secretaria de Educação do Estado e o Movimento de Cultura Popular (MCP) nascido durante o governo Miguel Arraes (SILVA, 2004).
Esses espaços estruturaram ações, articularam grupos, desenvolveram processos diversos de educação e cultura, incentivaram e priorizaram também reflexões, atuação e produção artística com diferentes públicos, em diferentes lugares alcançando artistas, crianças, adolescentes, adultos, professores e gestores.
A partir do golpe civil-militar, em 1964, rompimentos foram realizados com ideias e programas educacionais que, até então, vinham sendo desenvolvidos desarticulando grupos, ações e programas que cresciam a olhos vistos e eram amplamente divulgados nos meios de comunicação.
Dentro do contexto de repressão na sociedade civil o Estado se antecipou às reivindicações populares, que tomavam corpo e força nos anos anteriores, e propôs reformas na Educação brasileira. Inicialmente, a Reforma Universitária em 1968 e, na sequência, a Reforma do ensino de 1º e 2º graus em 1971, no período áureo do governo Médici, o linha dura.
Acordos com os Estados Unidos, os chamados acordos MEC-USAID, cobriam todo o espectro da educação nacional, isto é, o ensino primário, médio e superior, a articulação entre os diversos níveis, o treinamento de professores e a produção e veiculação de livros didáticos (CUNHA E GÓES, 2002). Esses acordos encerraram, completamente, a fase dos movimentos de educação e cultura popular que foram eliminados e os seus educadores e aliados cassados, presos e exilados.
Fazenda (1988), nos estudos sobre o período, afirma que a inversão do capital destinado à educação no recrutamento de grupos estrangeiros teve como respaldo a desculpa de que o Brasil não possuía técnicos competentes, nem sistema educacional organizado para desenvolver uma educação nos moldes em que o modelo econômico preconizado exigia.
Os estudantes reivindicavam uma educação nacional brasileira de qualidade e oportunidade para todos, pois crescia o número de candidatos aprovados nos vestibulares que não podiam frequentar as universidades por falta de vagas. As mobilizações criticavam os acordos MEC-USAID; a privatização do ensino; o desvio das verbas públicas para o setor privado. A juventude reivindicava mais investimentos na educação; melhoria dos espaços de estudo, das bibliotecas e laboratórios; modernização dos equipamentos de ensino e pesquisa e uma política de auxílio aos estudantes mais pobres com bolsas de estudo, assistência médica, transportes e restaurantes mais baratos (REIS FILHO; MORAES, 1998).
No campo artístico as perseguições cada vez mais se tornaram acirradas, inclusive em ateliês que foram invadidos, como ocorrido em Recife com Abelardo da Hora que desenvolveu um trabalho intenso e extremamente rico de denúncia social, mas teve vários de seus trabalhos destruídos.
Após dez anos da LDB de 1961, o sistema educacional já não respondia mais às necessidades do presente. A proposta da reforma educacional universitária, em 1968, tinha, entre outros, o objetivo de desmobilizar os estudantes e desviar o contingente que pressionava por vagas nas universidades. Foi inserido, então, o sistema de créditos, desarticulando os grupos no decorrer dos cursos e a separação dos professores, implantando os departamentos.
E a educação básica que transformações sofreu com os acordos MEC-USAID?
3 Alterações na organização da educação básica
A Reforma educacional oficializada por meio da Lei 5692, sancionada em 11 de Agosto de 1971, apresentou em seu art. 7º a inclusão obrigatória da Educação Artística nos currículos plenos dos estabelecimentos de 1º e 2º graus. Baseada na redefinição dos objetivos da escolarização e na reorganização dos currículos escolares e apresentava dois pontos fundamentais: a extensão da escolaridade obrigatória, que passou de quatro para oito anos, e a generalização do ensino profissional no nível médio ou 2º grau.
O interesse no desenvolvimento de um maior grau de eficiência produtiva no mundo do trabalho e pressupondo a importância da educação escolarizada para se atingir esse fim, a tecnificação do ensino, patrocinada pelo governo, tinha como premissa básica a disciplinarização, a normatização, o alto rendimento e a eficácia pedagógica. Esses pressupostos foram orientados pelo alinhamento do país a uma ordem mundial calcada no desenvolvimento associado ao capital internacional, mais explicitamente norte-americano (OLIVEIRA, 2003).
Só mesmo a reação estudantil, o amadurecimento do professorado e a denúncia de políticos nacionalistas, com acesso a opinião pública, evitaram a total demissão brasileira no processo decisório da educação nacional.
Novas disciplinas foram inseridas no currículo escolar e entre elas encontrou-se a Educação Moral e Cívica, a Educação Física e a Educação Artística. Essa inserção de disciplinas no currículo também se vinculava aos objetivos de formação profissional, em caráter acelerado que demonstrava o esforço de modernização que as elites políticas e culturais do país tentavam fazer prevalecer no período (MARTINS, 2003).
A Educação Moral e Cívica teria a função de preencher o vácuo ideológico deixado na mente dos jovens para que não fosse preenchido pelas insinuações materialistas e esquerdistas (CUNHA E GÓES, 2002). Referia-se, também, à situação familiar, visto que, o discurso da época, enfatizava que a mulher passava a trabalhar fora do lar e a família não tinha mais a possibilidade de assegurar a sua função educadora de forma completa.
A Educação Física possuía objetivos bastante precisos. A ideia-força, segundo Cunha e Góes (2002), era que o estudante cansado e enquadrado nas regras de um esporte, não teria disposição para entrar na política dada a exaustão física.
Com relação à Educação Artística qual era o objetivo do Estado em inseri-la no currículo escolar justamente no governo linha dura? Quais intenções e regras estavam ocultas nessa decisão, aparentemente avançada no sistema escolar? Por que tornar obrigatório o ensino da arte se o próprio sistema de governo a perseguia? A situação era bastante contraditória.
Como inserir uma disciplina na escola se não havia no país um curso superior que formasse os professores para ministrá-la? Quem iria assumir sua docência? Quais seriam as consequências para esta área de conhecimento humano que deveria estar presente em todos os currículos de todas as escolas brasileiras a partir daquele momento?
Barbosa (2010) ao abordar sobre o currículo estabelecido em 1971 reflete que as artes eram aparentemente a única matéria que poderia mostrar abertura em relação às humanidades e ao trabalho criativo, porque mesmo filosofia e história foram eliminadas do currículo.
Foi dentro da área de Comunicação e Expressão que a Educação Artística ficou vinculada. Mas, alterar a organização do currículo significa modificar toda a carga-horária das disciplinas existentes e isso, consequentemente, altera a jornada de trabalho docente. Então, como isso se deu? Quais foram os documentos que nortearam o ensino de arte e o que eles diziam sobre a inserção de novas disciplinas no currículo escolar?
4 Documentos norteadores do ensino de arte
Após a aprovação da Reforma educacional de 1971 foram elaborados documentos oficiais, estaduais e federais que esclareciam os procedimentos de implantação da Reforma.
Nesse tópico, trazemos dois documentos produzidos no estado de Pernambuco que foram intitulados Diretrizes para implantação do ensino de 1º grau e a Proposta Curricular do Ensino - 1º grau. Na esfera federal, trazemos três outros documentos do período produzidos pelo Ministério da Educação. São eles as Bases para a reformulação de currículos e programas para o ensino fundamental; o Parecer nº 4833/75 e o Parecer nº 540/77.
No documento intitulado Diretrizes para implantação do ensino de 1º grau (PERNAMBUCO, 1972) encontra-se exposto um quadro curricular onde está explícito que, a partir da sexta série, seriam opções do aluno: Artes Plásticas, Artes Gráficas, Artes Dramáticas.
No documento foram, também, elaborados vários itens para as atividades artísticas. Sugeridas várias técnicas a serem trabalhadas com materiais diversos, mas apenas sugestões de atividades práticas e técnicas diversas.
Como a reforma educacional estava centrada no tecnicismo o que importava era a técnica, o fazer sem estabelecer relações reflexivas mais profundas. As metas de uma educação com cunho tecnicista estavam direcionadas ao mercado de trabalho e não correspondiam as necessidades e transformações sociais que vinham ocorrendo, sobretudo, nas décadas anteriores.
Vale ressaltar que a obrigatoriedade da Educação Artística no currículo trazia em seu bojo a concepção de atividade e não de disciplina, além do modelo de docência polivalente, pois o professor deveria lecionar artes plásticas, teatro e música. Ora, como o docente poderia trabalhar com áreas tão distintas em uma ou duas aulas semanais? A situação se complexificava ainda mais por não existir, em todo o país, os cursos superiores de Licenciatura em Educação Artística que nasceram após a Reforma Educacional.
Na década de 70, outro documento foi publicado e marcou aquele período, de acordo com Britto (1993). Tratou-se da Proposta Curricular do Ensino - 1º grau. Os idealizadores da Proposta, no caso pernambucano, pretendiam que os diversos documentos representassem, para os seus usuários, o que seu nome indicava - uma proposta. Esta poderia ser aceita ou não e alterada de forma a se adequar às necessidades e possibilidades de alunos e professores. Esse documento foi reeditado e mantido como norteador do currículo até, pelo menos, o final da década de 80, período que coincide com o fim do governo ditatorial civil-militar.
A reforma educacional de 1971 foi baseada no currículo norte-americano e a ideia de inserção da arte no currículo escolar, proposta pelo Estado, era que a arte entrasse como reforço para o ensino de outras disciplinas. Em uma das entrevistas que realizamos uma professora comentou:
Isso sempre foi um luta de pessoas que acreditavam no ensino da arte. Não foi uma coisa que veio assim bonitinha do governo não. Foram muitas brigas, muitos questionamentos. Brigas internas de luta pra manter isso aí porque o pessoal queria arte como reforço pra ensino de outras disciplinas ou então como atividade de lazer. A gente queria que a arte entrasse com um destaque, como uma coisa importante para o desenvolvimento cognitivo, afetivo. A luta era para que ela tivesse a mesma importância das demais disciplinas e não só servisse para clarear conceitos, entende? (professora 1).
Na Proposta Curricular a Arte, chamada Educação Artística, encontrava-se incluída dentro da Comunicação e Expressão. Os autores da Proposta se basearam nos métodos e processos de Arte/Educação, decorrentes de estudos realizados pelo Movimento Escolinhas de Arte e nas etapas de desenvolvimento da criança proposta por Piaget. Assim, o documento foi composto pela caracterização da Educação Artística, pelos objetivos gerais e específicos, por um rol de sugestões de atividades nas três áreas: plástica, cênica e música, por uma orientação metodológica e uma bibliografia composta por 103 indicações. Esse documento foi reeditado e utilizado como norteador do ensino da Educação Artística até o final da década de 80 no estado de Pernambuco.
O Ministério da Educação e Cultura também elaborou um documento intitulado Bases para a reformulação de currículos e programas para o ensino fundamental (BRASIL, [197?]). Nele percebe-se a transferência de responsabilidade para o professor na adequação à nova lei. Esse documento dizia que a implantação da Lei 5692/71 supunha uma mudança na mentalidade do professor e que este deveria não só utilizar métodos e recursos mais adequados, mas também buscar novos objetivos, uma vez que a reformulação que se impunha era muito ampla, alterando as próprias finalidades visadas.
O Estado colocou a responsabilidade nas mãos do professor, mas não favoreceu oportunidades de atualização, de aprofundamento, de formação continuada no campo profissional. Mas, como melhorar a qualidade de ensino se não havia planejamento para melhoria da qualidade profissional dos educadores oportunizando, ao menos, espaços para isso? Que concepções e intenções estavam inseridas na afirmativa de que era necessária uma mudança de mentalidade do professor? Aspectos sutis foram elucidados, no referido documento, no que se refere à seleção de experiências que influiriam mais de perto na formação e aperfeiçoamento da personalidade humana como também na tradução de comportamentos desejáveis. Expressou o legislador no documento:
[...] os aspectos relativos à expressão pessoal, à criatividade, ao preparo para as horas de lazer [...] exige adequada seleção daquelas experiências que influirão mais de perto na formação e aperfeiçoamento da personalidade humana. Nesse sentido, deve-se dar especial atenção às experiências artísticas e de expressão em geral [...] a organização de cooperativas e de campanhas em benefício de grupos necessitados ou, mesmo, de pessoas, obtidos os recursos por trabalho dos alunos. Não se deverá perder de vista que o núcleo básico do currículo visa assegurar a consecução dos objetivos próprios da educação fundamental para o homem brasileiro, na época atual, e que se devem traduzir em comportamentos desejáveis (grifos nossos) (BRASIL, [197?, s/p]).
O documento abrangia os valores mais amplos como o espaço para a liberdade de expressão pessoal, a criatividade, a valorização da riqueza interior e a solidariedade, porém, sutilmente, deixava em evidência as regras para atingir tais valores. Para tanto, seriam necessárias “adequadas experiências”, “especial atenção”, “o trabalho voluntário para obtenção de recursos” e o reforço constante dado aos “comportamentos desejáveis”. Percebemos que o legislador não só englobou princípios da Escolinha de Arte como a expressão pessoal, a criatividade, o desenvolvimento da riqueza interior, que se aproximam também das propostas iniciais da DECA, como também abordou algumas das ideias que também eram do MCP como a organização social em grupos cooperativos e artísticos. No entanto, desvirtuou completamente os ideais e as propostas desses movimentos registrando, sutilmente, interesses, influências e manipulações políticas perversas para o campo educacional. Para além desses aspectos, o Estado retirou o seu dever na manutenção de elementos básicos para o funcionamento do espaço educativo explicitando que os recursos deveriam ser obtidos pelo trabalho dos alunos.
No mesmo documento encontram-se, no tópico II, os objetivos e a amplitude a ter em vista nas várias matérias do núcleo comum. Com referência à arte o objetivo primordial seria o desenvolvimento do equilíbrio emocional, o enriquecimento de interesses, o preparo para as horas de lazer e a capacidade de autoexpressão de maneira criadora através de técnicas e materiais variados. Abrangeria artes plásticas, teatros de todos os tipos, música etc. Recomenda-se, nesse documento, o desenvolvimento do ensino, independente da existência do professor especializado.
Chamamos a atenção a esse aspecto fundamental: não havia uma preocupação com a necessidade da formação específica na área de artes com relação ao professor! E ainda, a aprendizagem não necessitava de estudos teóricos, mas apenas a prática, a técnica sem fundamentação. Este posicionamento insinua que qualquer professor de qualquer área teria domínio suficiente e formação ampliada e atualizada dentro dos moldes exigidos. Ou exatamente o contrário. Pois, deixando clara a ausência do professor especializado, não se corria o risco de possibilitar uma formação mais aprofundada e o desenvolvimento integral do indivíduo no campo cultural. Por sua vez, este desenvolvimento poderia proporcionar o estímulo à reflexão, à observação, ao raciocínio, às sensibilidades, e sensações a partir daquele saber específico e conhecimento particular daquela área.
O MEC deixou claro que isso não era uma preocupação primordial. O Ministro da Educação e Cultura, Jarbas Gonçalves Passarinho, na Exposição de Motivos nº 273 de 30 de Março de 1971 (BRASIL, 1971), afirmou que seria impraticável a multiplicação das habilitações profissionais (grifos nossos). A preocupação dominante, conforme o Ministro era, pois, o aproveitamento máximo das potencialidades institucionais e individuais. Dessa forma, é possível compreender, claramente, que não havia um planejamento para a profissionalização, a qualificação do professor e sim um acréscimo de disciplinas, funções ou atividades ao seu trabalho e às instituições.
Uma das professoras que trabalhou na Secretaria de Educação da época abordou essa questão:
Exatamente, exatamente. Porque ninguém queria, não se objetivava desenvolver o senso crítico das pessoas porque desenvolvendo isso, esse grupo caía, não é? (...) toda a formação, na época, dos técnicos da Secretaria de Educação era oriunda dos Estados Unidos. Eles iam fazer Mestrado lá nos Estados Unidos, voltavam e se integravam à equipe da Secretaria (professora 1).
A Educação Artística apareceu como componente do currículo de 1ª a 4ª série, mas não como disciplina e sim como suporte para a aprendizagem das outras áreas. De 5ª a 8ª série integrou a área de Comunicação, Língua Portuguesa, Educação Física e Língua Estrangeira. Por fim, figurou como disciplina da educação geral do 2º grau.
No texto da lei nº 5692/71, conforme o legislador, a intenção em determinar um artigo específico para as novas disciplinas que deveriam ser inseridas no currículo, era garantir a presença das mesmas no currículo e, assim, não se correr o risco de omiti-las por opção das instituições escolares. Dessa forma, deixando explícita sua obrigatoriedade, não se poderia excluí-las do currículo.
O MEC durante a década de 70 elaborou vários pareceres no intuito de esclarecer e tirar dúvidas dos diversos Conselhos Estaduais do país que reuniam, também, questionamentos advindos das escolas e de seus professores no que se refere à interpretação e compreensão da lei. Por exemplo, o Parecer nº 4833/75 (BRASIL, 1975) dizia que os órgãos dos diversos sistemas deveriam orientar os professores sobre o conteúdo mínimo a ser explorado por área de conhecimento e por série. Para os conteúdos que deveriam ser trabalhados em Educação Artística exigia-se a expressão de forma criativa de ideias, sentimentos e emoções através de recursos linguísticos, sonoros, plásticos e corporais.
Outro exemplo desses esclarecimentos realizados pelo MEC encontra-se no relatório que introduz o Parecer nº 540/77 (BRASIL, 1977). Esse parecer se referiu ao tratamento que deveria ser dado às novas disciplinas do currículo. Assim, ao enumerar os elementos do art. 7º da lei, não os encarava nem como matérias, nem como disciplinas, mas como uma preocupação geral do processo formativo, intrínseca à própria finalidade da escola porque eram partes constitutivas da educação do homem comum. Neste relatório afirmou-se que esta não era a compreensão que a maioria das escolas tinha pelo que se podia depreender da quase generalidade dos planos curriculares. Esses, por sua vez, tinham a preocupação com o cumprimento formal dos dispositivos legais, e as escolas vinham consignando em seus planos a presença dos elementos do art. 7º aos quais atribuíam cargas horárias semanais que deixavam claro a incompreensão do papel desses componentes no contexto curricular e revelavam a inviabilidade de serem alcançados os objetivos que se desejavam.
O relatório que introduz o Parecer nº 540/77, elaborado pelo MEC, afirmou ainda que, frequentemente, se atribuía uma aula semanal à Educação Moral e Cívica, Educação Física e Educação Artística e que essa colocação presumia o cumprimento de um dever, de certo modo burocrático, a ser cumprido o mais depressa possível, a fim de que se destinassem cargas horárias mais substanciais a outros estudos, talvez, tidos como mais importantes. Em sua leitura, o legislador citou algumas lacunas que levavam as escolas e os profissionais de educação a essa compreensão como a inexperiência; a falta de questionamentos; a inexistência de recursos humanos, devidamente, preparados e em número suficiente para atender à demanda. Enfatizou, ainda, que a Educação Artística, a Educação Moral e Cívica e a Educação Física não correspondiam a campos de conhecimento, a matérias, ao contrário do que a palavra “Ciências” logo identificava. Eram antes “preocupações” essenciais que foram do legislador e deveriam ser dos educadores.
Ora, o referido relatório criticou a interpretação dada pelas escolas aos elementos do art. 7º e, ao mesmo tempo, enfatizou que esses elementos eram apenas “preocupações”, não eram áreas de conhecimento, não estavam no mesmo patamar das ciências. Mas, como fazer para transformar “preocupações” dentro do currículo escolar em conhecimento sistematizado? Se não eram considerados, pelo próprio legislador, como campos de conhecimento, nem matérias e disciplinas escolares, o que seriam então? São questões complexas ainda levando em consideração algumas defasagens, já localizadas e explícitas pelo legislador, com referência à ausência de recursos humanos e pedagógicos adequados.
A lei avançou em alguns aspectos. No caso específico da arte, foi um avanço garantir um espaço obrigatório no currículo. Isso teoricamente. No entanto, a concepção prevaleceu vinculada ao entendimento da Educação Artística como mera atividade. Em termos de qualidade de ensino da arte não se favoreceu as condições necessárias para tal.
Podemos perceber que colocando a arte no currículo escolar o Estado satisfazia, em parte, os movimentos de arte/educadores, educadores e outros profissionais que lutavam por um espaço para ela no currículo, amenizando as pressões e, assim, “democratizando” o acesso à arte em todo o país. Por outro lado, o Estado tinha ciência da defasagem de recursos humanos, técnicos e pedagógicos, e satisfazendo as reivindicações daqueles profissionais, não corria o risco de favorecer a articulação e organização dos mesmos, pois, os profissionais que assumiram a disciplina não tinham a formação, o conhecimento específico da área e, ainda mais, vinham das mais diversas áreas de conhecimento, fato que favorecia a desarticulação e dificultava a constituição da arte como campo de conhecimento. Outro aspecto que, possivelmente, dificultou a ampliação da carga-horária para o ensino de arte no currículo escolar diz respeito, diretamente, às relações de poder presentes no interior do próprio currículo.
Se o tempo do turno escolar permanecia o mesmo, como a escola poderia reorganizar todas as disciplinas de forma a inserir as novas requeridas pela lei?
Além disso, escolas que antes ofereciam dois turnos escolares passaram a oferecer quatros turnos. Isso quer dizer que houve um inchaço no sistema educacional surpreendente que refletiu a falta de planejamento e organização do governo em relação à educação no país.
No caso pernambucano, a arte estava presente na escola muito antes da Reforma Educacional do ensino de 1º e 2º graus, sobretudo, ao investigarmos as atividades promovidas pela DECA que objetivavam uma melhoria contínua do ensino da arte nas escolas e desenvolviam programas sistemáticos para atingir tal fim. Foi possível perceber que o ensino da arte, em Pernambuco, ganhava contornos políticos muito claros. Além das ações desenvolvidas pela DECA, no MCP a arte era engajada, política, voltada ao social, ao crescimento e desenvolvimento dos grupos sociais, da cidadania. Já na Escolinha de Arte do Recife, o ensino fundamentava-se na liberdade de expressão, no espaço aberto para o desenvolvimento da criatividade, da observação, do senso crítico e estético, da individualidade, da personalidade.
Com a inserção obrigatória da arte no currículo escolar brasileiro, o novo regime precisava absorver o que ela tinha de mais apolítico, contribuir na formação da individualidade, da personalidade. Enfocava o folclore, salientando o nacionalismo, o patriotismo e não a cultura popular que favorecia a organização dos grupos, a reflexão e conscientização sociopolítica e histórica da população.
Para a Educação Artística o Parecer, de nº 540/77 (BRASIL, 1977, s/p) dizia que ela não se dirigiria a um determinado terreno estético, mas antes de tudo, na expressão e na comunicação, no aguçamento da sensibilidade que, naquela concepção tinha a ver diretamente com o lazer. O parecer prosseguiu afirmando a importância da Educação Artística “que não é uma matéria, mas uma área bastante generosa e sem contornos fixos, flutuando ao sabor das tendências e dos interesses” (grifos nossos).
O referido Parecer explicitou que o trabalho deveria se desenvolver sempre que possível por atividades e sem qualquer preocupação seletiva. Enfatizou, ainda, que a verificação da aprendizagem nas atividades, que visassem à Educação Artística nas escolas, não se harmonizaria com a utilização de critérios formais. Essas atividades não visavam à formação de artistas. Não faria sentido, pois, manter-se o aluno preso a uma opção na qual o seu desempenho não revelasse seu maior interesse, negando-lhe a oportunidade de outras experiências, e muito menos impedir a promoção de série àquele que não apresentasse resultados satisfatórios em termos de produto.
Com esse posicionamento apresentado no Parecer poderia se questionar o ensino da Matemática, do Português ou da Geografia na escola visava formar matemáticos, profissionais das letras ou geógrafos? Se os estudantes não tivessem interesse, bons desempenhos e não se identificassem com essas disciplinas por que negar-lhes a oportunidade de promoção à série subsequente? A importância dessas atividades também não estaria no processo e não nos resultados? Por que somente a Educação Artística deveria ter esse olhar?
Conforme o parecer, a Educação Artística poderia prescindir de um horário rígido preestabelecido, ou seja, poderia dispensar um tempo específico que deveria estar obrigatoriamente inserido no currículo. Daí compreende-se o porquê da Educação Artística ter a menor carga horária no currículo escolar, pois o próprio parecer deixou clara a dispensa de um tempo específico para ela.
O legislador afirmou que “alguém” na escola deveria ser o encarregado de coordenar essas atividades.
5 Considerações finais
Ao realizar a análise documental para este artigo pudemos evidenciar que, nas entrelinhas dos documentos, as metas da educação, no período histórico estudado, foram direcionadas ao tecnicismo e voltadas ao mercado de trabalho. Mas, essa perspectiva não condizia com as transformações sociais e culturais que vinham ocorrendo e tomando proporções dilatadas nas décadas anteriores, especialmente, no estado de Pernambuco.
O governo ditatorial civil-militar impôs reformas profundas no sistema educacional nacional e desarticulou os movimentos populares e ações de formação política, cultural e artística que ocorriam em pleno vapor.
A Reforma Educacional do ensino de 1º e 2º graus de 1971 trouxe em seu Art. 7º a obrigatoriedade da Educação Artística no currículo escolar. Mas, sua concepção permaneceu centrada na atividade e como suporte para a aprendizagem de outras disciplinas. A Educação Artística estava voltada para atividades de datas comemorativas, folclóricas e no uso de técnicas. Outra lacuna evidente, deixada pela legislação, foi o não reconhecimento da necessidade do profissional com a formação específica que isentou o Estado da responsabilidade de garantir a formação especializada e contínua de seus profissionais da educação.
Além disso, o ensino da Educação Artística comportava as artes plásticas, as artes cênicas e a música enfatizando que a docência deveria ser polivalente, mesmo com áreas de conhecimento completamente distintas entre si. Práticas que remontam o período colonialista e reforçam as permanências das concepções que atravessam o tempo.
Se qualquer profissional poderia lecionar a Educação Artística, qualquer profissional poderia lecionar as outras disciplinas?
Barbosa (2002) faz uma crítica às permanências no tempo dessas concepções e chama a atenção para a fundamental importância da formação e entendimento da arte afirmando que:
Em minha experiência tenho visto que as Artes Visuais ainda estão sendo ensinadas como desenho geométrico, seguindo a tradição positivista, ou continuam a ser utilizadas, principalmente, nas datas comemorativas, na produção de presentes muitas vezes estereotipados para o dia das mães ou dos pais. A chamada livre-expressão, praticada por um professor, realmente, expressionista ainda é uma alternativa melhor que as anteriores, mas sabemos que o espontaneísmo apenas não basta, pois o mundo de hoje e a arte exigem um leitor informado e um produtor consciente. A falta de uma preparação de pessoal para entender Arte antes de ensiná-la é um problema crucial, nos levando muitas vezes a confundir improvisação com criatividade (BARBOSA, 2002, p. 15).
Com a abertura política, no final da década de 80 do século XX, no estado de Pernambuco, houve um crescimento de publicações de documentos específicos na área de arte e projetos de formação continuada, promovidos pelo governo Miguel Arraes, onde objetivava-se levar o professorado a refletir criticamente sobre sua própria prática docente e transformá-la (SILVA, 2004).
O primeiro encontro de professores de Educação Artística ocorreu em agosto de 1981, numa tentativa de melhoria da educação pela arte no estado de Pernambuco. Daí em diante, há outro caminho a ser trilhado.