1 Introdução
Este estudo tem por base um amplo levantamento de uma literatura dedicada à construção e ao uso de instrumentos matemáticos e à geometria prática, muito disseminada entre os séculos XVI e XVII. Marginalizada durante muito tempo pelos historiadores da ciência e da matemática, essa literatura passou a ser revista e apreciada nos últimos trinta anos. Grande parte desse esforço esteve relacionado à crescente convicção de historiadores da ciência de que não só textos, mas também imagens e artefatos deveriam ser considerados em suas análises e estudos, uma vez que veiculam conhecimento, persuadem leitores, promovem disputas, criam convenções, dissolvem fronteiras disciplinares e negociam significados. (VAN HELDEN, HANKINS, 1994; HANKINS, SILVERMAN, 1999; KUSUKAWA, MACLEAN, 2006; MOSLEY, 2007; TAUB, 2009; MARR, 2009; KUSUKAWA, 2012).
Particularmente, no que diz respeito aos instrumentos matemáticos e à literatura a eles associada, um exame minucioso sobre o contexto de sua elaboração tem revelado interessantes aspectos do “saber-fazer” matemático de uma época e contribuído para preencher algumas lacunas do processo da construção do conhecimento matemático nas origens da ciência moderna. Restituídos à malha histórica, os instrumentos matemáticos e os seus respectivos tratados, juntamente com outros documentos dedicados à geometria prática, introduzem novas questões para o historiador da ciência e da matemática. (JOHNSTON, 1991; BENNETT, 1991, 2002, 2003; SAITO, 2012, 2013a, 2018a).
Dessa maneira, do ponto de vista histórico, essa literatura é interessante porque amplia a compreensão do que eram as matemáticas (isso mesmo, no plural) no passado e expande o nosso entendimento sobre as formas de elaboração, transformação, transmissão e disseminação do conhecimento matemático, o que nos permite problematizar e considerar a Matemática (no singular) em suas dimensões, lógicas, epistemológicas, ontológicas, axiológicas etc. nos dias de hoje. Desse modo, do ponto de vista didático e/ou pedagógico, essa literatura pode se converter num rico material a ser explorado na articulação entre história e ensino de matemática, uma vez que, de um lado, seu estudo revela por onde transitou (e transita) o saber matemático e, de outro, constrói novos significados, pois o que esses instrumentos são capazes de fazer não está totalmente determinado por quem os criou, ou fabricou, mas depende também da interpretação que o usuário lhe “deu” no passado e é capaz de lhe “dar” nos dias de hoje, de tal modo a permitir o estabelecimento de uma dialética entre registros de conhecimentos antigos e modernos.
Entretanto, para aproximar essa literatura aos propósitos voltados ao ensino de matemática e, de certo modo, utilizá-la para fins didáticos e/ou pedagógicos, temos que lidar com alguns desafios de ordem intelectual e técnica implicados no próprio processo em que foram elaborados. Desse modo, discorremos aqui sobre uma proposta de abordagem teórica para a reconstrução de antigos instrumentos matemáticos na interface entre história e ensino de matemática. Sobre a noção de interfaces, baseamo-nos em Alfonso-Goldfarb (2003); sobre a ideia de construção de interfaces entre história da ciência e ensino, em Beltran (2009) e Beltran, Saito e Trindade (2014); e sobre a construção de interfaces entre história da matemática e ensino, em Saito e Dias (2013) e Saito (2016a). Dividimos este artigo em duas partes. Na primeira, discorremos sobre o instrumento matemático na interface entre história e ensino de matemática e, na segunda, pontuamos algumas questões de ordem matemática e epistemológica que, devidamente discutidas e examinadas na interface, poderiam contribuir para a formação de professores.
2 O instrumento na interface entre história e ensino
Os instrumentos científicos em geral passaram a chamar a atenção de historiadores da ciência há pelo menos trinta anos. Neste artigo, trataremos apenas daqueles que foram designados “matemáticos”, especialmente os de medida. [1]Assim, por “instrumento matemático”, referimo-nos a toda sorte de artefatos que era utilizado por diferentes segmentos do saber para medir aquilo que Aristóteles denominava “quantidades”, notoriamente, ângulo e distância. (BENNETT, 1998, 2003).
Denominamos esses instrumentos “matemáticos” porque foram elaborados e utilizados por praticantes (TAYLOR, 1954, HILL, 1998; HIGTON, 2001) e estudiosos de matemáticas e não por fazerem parte do rol de instrumentos da Matemática. Isso porque, antes do século XIX, a Matemática ainda não se afigurava como uma área autônoma e unificada de conhecimentos essencialmente matemáticos. Segundo Saito (2015), até meados do século XVIII, as matemáticas eram muitas de modo que campos de investigação e de conhecimentos, tais como a astronomia, a navegação, a mecânica, a cosmografia, a geografia, a agrimensura, a música etc., eram consideradas “ciências matemáticas”, pois lidavam com números, grandezas e medidas. Nesse sentido, um instrumento matemático pode ainda ser designado como náutico, astronômico, óptico, topográfico entre outras tantas possibilidades, pois o que o define como “matemático” não é o segmento de saber em que é utilizado, mas a sua capacidade de quantificar ou, no sentido mais estrito, de medir grandezas. Assim, quando nos referimos a antigos instrumentos matemáticos, nós os denominamos “matemáticos” porque eles incorporam e mobilizam, entre outras coisas, conhecimentos matemáticos.
Os instrumentos matemáticos são muito antigos, porém foi ao longo dos séculos XVI e XVII que passaram a receber grande atenção em virtude da demanda por novos métodos matemáticos e experimentais (VAN HELDEN, 1983; HACKMANN, 1989). Naquela época, proliferaram muitas oficinas dedicadas à fabricação de instrumentos matemáticos em várias regiões da Europa, principalmente em Louvain, Nuremberg, Florença e Londres. (DAUMAS, 1972; CONNER, 2005).
A grande produção de instrumentos foi também acompanhada de uma ampla disseminação de tratados que versavam sobre sua construção e uso. Praticantes de matemáticas e estudiosos, tais como Oronce Fine (1494-1555), Cosimo Bartoli (1503-1572), Leonard Digges (1515-1559), Egnazio Danti (1536-1586), William Oughtred (1574-1660), Edmund Gunter (1581-1626), John Chatsfeild (p. 1638), entre outros, publicaram tratados dedicados a diferentes instrumentos matemáticos que eram utilizados em diferentes campos de investigação, tais como astronomia, agrimensura, navegação, cartografia, artilharia, fortificação etc.
Nesse particular, estudos em história da ciência têm apresentado muitas evidências de que diferentes setores de atividades intercambiaram não só conhecimentos técnicos, mas também instrumentos de forma deliberada e consciente, incentivando os estudiosos a revisarem e a reavaliarem suas práticas e conhecimentos de tal modo a elevar a confiança nas certezas matemáticas.(KUSUKAWA, MACLEAN, 2006; MARR, 2009; BENNETT, 2002).
Isso é notório em outra rica literatura, que também proliferou na mesma época, dedicada à geometria prática que, não raras vezes, discorria também sobre alguns instrumentos matemáticos. Segundo Saito (2018b), estudiosos como Charles de Bouvelles (1479-1566), Robert Recorde (1510-1558), Petrus Ramus (1515-1572), Thomas Digges (1546-1595), entre outros, recolheram e compilaram conhecimentos geométricos que se encontravam pulverizados em diferentes segmentos do saber, notoriamente, na arquitetura e na agrimensura.
Desse modo, tomados em conjunto, os tratados dedicados aos instrumentos matemáticos e à geometria prática fornecem instruções sobre a construção e o uso de instrumentos, bem como apresentam conceitos geométricos bem elementares. Juntos, revelam de diferentes modos a organização do saber geométrico daquela época e auxiliam no mapeamento de um conjunto de regras, critérios, procedimentos, conhecimentos e relação entre conhecimentos de diferentes ordens. Assim, de um lado, esses tratados nos fornecem informações acerca dos conhecimentos geométricos que transitaram numa época e, de outro, revelam interessantes aspectos matemáticos e epistemológicos que podem ser explorados na formação de professores de diferentes níveis.
Esses aspectos, entretanto, emergem de um estudo que tem em vista a construção de interfaces entre história e ensino de matemática. Considerados na interface, esses tratados são examinados e analisados de modo a expandir a nossa compreensão sobre os aspectos essenciais do fazer matemático, alinhavando as concepções de natureza historiográfica da história da matemática, juntamente com diferentes propostas da didática matemática. (BELTRAN, 2009; SAITO, DIAS, 2013; SAITO, 2014, 2016a, 2016c). Para tanto, realizamos dois movimentos: 1) um que procura abordar historicamente os conceitos matemáticos que se quer abordar para fins didáticos e/ou pedagógicos de modo a abarcar o seu contexto de elaboração, transformação e transmissão em diferentes épocas e culturas; e outro, que 2) busca revelar o movimento do pensamento na formação desse mesmo conceito, seja para ensiná-lo, seja para compreendê-lo, no seu processo de construção para o sujeito. (SAITO, DIAS, 2013).
Esses dois movimentos partem do pressuposto de que a escolha historiográfica determina uma série de ações na articulação entre história e ensino. (FRIED, 2001; SAITO, 2016c, 2018c) e têm por objetivo promover um diálogo entre duas diferentes concepções de conhecimento, uma antiga e outra moderna. Tendo por base estudos pautados em atuais tendências historiográficas da História da Ciência (ALFONSO-GOLDFARB, BELTRAN, 2004; CONNER, 2005; GRAY, 2011; MANN, 2011) e da História da Matemática (ALEXANDER, 2002, 2016; GOULDING, 2010), o primeiro movimento busca compreender a matemática do passado, tal como ela era vista no passado, e não como ela deveria ser vista segundo uma perspectiva filosófica (ou epistemológica) ou didática pré-concebida. (SAITO, 2013b; BELTRAN, SAITO; TRINDADE, 2014). E, o segundo, procura promover a construção de significados a partir dos processos históricos sem perder de vista os conceitos matemáticos. (SAITO, 2016c, 2018c).
A interface entre história e ensino aqui delineada, portanto, não tem em vista replicar ou reproduzir o processo histórico, nem de fazer a história dirigir o ensino e a aprendizagem de matemática. O estudo histórico desses tratados busca desvendar a função social do conhecimento que se encontra implícito no instrumento de modo a evidenciar não apenas “o que é medir”, mas também “para que medir”. Assim, sem sobrepor temas históricos aos propósitos do ensino, ao explorarmos esses tratados, buscamos neles os processos que dão significado à medição e à medida, bem como aos conhecimentos matemáticos associados a esses mesmos processos. Desse modo, seguindo as instruções fornecidas por esses tratados, que são representativas do contexto epistêmico no qual os instrumentos foram fabricados e utilizados, propomos mobilizar antigos procedimentos e conhecimentos juntamente com outros que nos são bastante familiares, de tal modo a estabelecer um diálogo com o passado e aprender com a reconstrução desses antigos instrumentos.
3 A reconstrução de antigos instrumentos matemáticos
A pesquisa histórica sobre antigos instrumentos matemáticos revela, entre outras coisas, diferentes procedimentos e concepções de medição que dão margem a discussões em que os professores em formação (inicial e continuada), ou alunos em sala de aula, podem expressar suas ideias e pontos de vista, bem como justificar seus argumentos de modo a validar suas próprias escolhas. Tendo isso em vista, investimos nossas ações em diferentes direções e frentes de investigação não só voltadas para formação inicial e continuada de professores, mas também para sala de aula. Elaboramos, assim, algumas atividades que foram desenvolvidas em oficinas de formação de professores, disciplinas de cursos de pós-graduação em Educação Matemática, cursos de formação continuada de professores, entre outras. (DIAS, SAITO, 2010a, 2010b, 2014; SAITO, DIAS, 2011; MONTEIRO, 2012; DI BEO, 2015; CASTILLO, 2016; CASTILLO, SAITO, 2016; MORAES, 2017; MORAES, DIAS, 2017; SAITO, 2017; BATISTA, 2018; PEREIRA, SAITO, 2018a, 2018b, 2019a, 2019b; DELEFRATE, 2019).
Nessas atividades, os tratados e os instrumentos matemáticos antigos não são utilizados para validar e reafirmar a medida ou ainda para confirmar os nossos próprios conhecimentos matemáticos. Isso porque eles não são abordados como peças materializadas de conhecimento matemático e, portanto, não são reduzidos a meros objetos, mas compreendidos como suportes que veiculam conhecimentos. Do ponto de vista epistemológico, entendemos que esses instrumentos não são neutros no processo de construção de conhecimento de modo que não estão a meio caminho entre a teoria e a prática, nem entre as ideias abstratas e concretas, nem entre o teórico e o empírico. Diferentemente, por incorporar e sintetizar diferentes conhecimentos, que são mobilizados para realizar uma medição, são também entendidos como construtores de conhecimentos. (SAITO, 2009, 2014).
Contudo, é preciso considerar que a reconstrução desses instrumentos será sempre parcial, visto que é impossível confeccionar uma réplica dos instrumentos originais, pois, como observa Taylor (2013) e Willmoth (2009), inexistem evidências suficientes sobre os materiais utilizados e procedimentos a serem seguidos. Os conhecimentos incorporados nesses instrumentos são de diferentes naturezas e ordens, visto que eles não agregam apenas conhecimentos matemáticos (e outros tantos ligados a astronomia, agrimensura, arquitetura, óptica etc.), mas também outras habilidades de ordem técnica, que se afiguram como conhecimentos genuínos, relacionadas ao ofício de quem os fabricava. No entanto, nem todos esses conhecimentos e procedimentos são acessíveis, uma vez que são tácitos e, portanto, inerentes às habilidades desenvolvidas e compartilhadas por um grupo de pessoas que estava familiarizado com eles. Desse modo, embora tenhamos uma compreensão matemática a seu respeito, como observam Saito e Dias (2011), as ações implicadas na construção são parcialmente reproduzíveis, pois jamais teremos certeza de que forma foram realizadas no passado, visto que podem ser executadas de diferentes maneiras.
Podemos dizer que é nesse aspecto que esses tratados se tornam interessantes, ou seja, não naquilo que explicitam, mas no que podem revelar, pois as instruções ali fornecidas promovem valiosos insights dos diversos procedimentos (práticas e técnicas) e conhecimentos que se encontram sintetizados no instrumento, bem como ajudam a reelaborar algumas ideias matemáticas já preconcebidas e bem sedimentadas no repertório de conhecimentos do professor em formação inicial e continuada.
No que diz respeito aos conhecimentos matemáticos, as instruções fornecidas pelos tratados revelam conceitos bastante familiares, tais como os de triângulo, proporção, razão, semelhança de triângulos, mediatriz, bissetriz etc., sem, entretanto, defini-los. Por exemplo, ao invés de instruir “trace uma mediatriz do segmento”, o texto pede ao leitor que ele “divida o comprimento em duas partes iguais”. Além disso, essas instruções solicitam executar uma ação que pode ser feita de diferentes maneiras. Por exemplo, a instrução “desenhe numa peça de madeira a quarta parte de um círculo” pode ser executada, dentre outras formas: 1) levantando uma perpendicular ao diâmetro de uma circunferência a partir de seu centro; 2) traçando uma mediatriz a partir das extremidades do diâmetro de uma circunferência; 3) ou ainda traçando a bissetriz do ângulo raso. Mas o que devemos aqui observar é que, para executar cada uma dessas ações, os leitores são estimulados a relacionar diferentes conceitos matemáticos, tais como os de circunferência, diâmetro, arco, mediatriz, perpendicular, bissetriz, ângulo entre outros.
Nesse sentido, a reconstrução desses instrumentos parece se converter numa interessante estratégia para desenvolver um entendimento mais significativo dos conceitos, de suas relações, e do raciocínio matemático no movimento histórico. (FAUVEL, VAN MAANEN, 2000). De fato, ao seguir as orientações dadas pelos tratados, o professor é conduzido a reconhecer que as formas de elaboração do saber não são fixas e que elas variam conforme o contexto histórico, social e cultural. Isso lhe permite, de um lado, identificar a necessidade do conhecimento matemático e sua relação com outras esferas de conhecimento e, de outro, estabelecer uma relação entre o conhecimento matemático e os processos de produção do saber. Assim, ao executar as ações solicitadas, o professor alarga seu entendimento de que a matemática é um saber socialmente construído e aceito como válido através de negociação ao mesmo tempo em que amplia sua compreensão dos conceitos matemáticos. (SAITO, DIAS, 2011; CASTILLO, SAITO, 2016; SAITO, 2017; PEREIRA, SAITO, 2019a, 2019b).
Na ação de reconstrução, o professor reconhece um conjunto de conceitos que se encontram sintetizados no instrumento. Esses conceitos, que se relacionam e se organizam de forma muito autêntica, promovem o deslocamento de concepções, conhecimentos e habilidades familiares para outras bastante incomuns, conduzindo-o a ressignificá-los (ou seja, de dar significado ao mesmo conceito a partir de outra malha epistêmica). Entretanto, é preciso observar que essas ações constroem significados no sentido que vai além de sua mera caracterização empírica. Isso porque a instrução que solicita, por exemplo, dispor as partes do instrumento de determinado modo, de afixar um fio de prumo em sua extremidade, de desenhar um quadrante num quarto de círculo, de dividir e de subdividir a escala etc. atende a uma necessidade matemática, e não empírica, como costumeiramente é entendida. Ou seja, o fio de prumo, por exemplo, está ali afixado para aferir se o conceito matemático de perpendicularidade foi aplicado satisfatoriamente para garantir as condições empíricas de medição e não o contrário.
Desse modo, do ponto de vista epistemológico, as ações mobilizadas na reconstrução propiciam ao professor um entendimento mais amplo dos conceitos matemáticos presentes no instrumento, visto que cada uma de suas partes está lá por uma razão que é matemática. Contudo, o entendimento matemático da disposição dessas partes requer considerar os procedimentos para se obter uma medida, pois é no processo de medição que se torna compreensível o que o instrumento é capaz de fazer. Em outros termos, os conhecimentos matemáticos nele incorporados emergem na medida em que o instrumento é manuseado e as condições de manipulação são estabelecidas e compreendidas no ato da medição. Por exemplo, a disposição em cruz do báculo, ou o posicionamento do quadrante num quarto de círculo, permite, entre outras coisas, mobilizar os conceitos de proporcionalidade, razão, além de mediana, bissetriz, mediatriz num triângulo isósceles, ou ainda, estabelecer relações métricas em triângulos retângulos, semelhança de triângulos etc. Contudo, esses conceitos e suas relações só se tornam evidentes quando as condições de medição são satisfeitas, ou seja, quando o instrumento é posicionado e manipulado de tal modo a atender as exigências físicas e matemáticas. (PEREIRA, SAITO, 2019a).
Nesse particular, notamos que os procedimentos de medição introduzem novas questões de ordem epistemológica que enriquecem o repertório de conhecimentos matemáticos do professor. As atividades desenvolvidas têm mostrado que conceitos matemáticos sintetizados no instrumento só se tornaram compreensíveis ao professor quando foram utilizados de forma abstrata no papel, perdendo seus significados quando transportados para uma situação física concreta. Em várias situações observamos que, embora os professores rascunhassem figuras e desenhos em folha de papel com o objetivo de aplicar conceitos matemáticos para resolver uma situação de medição, eles não deram atenção para os condicionantes manipulativos e racionais para executar as ações.
Como observam Castillo e Saito (2016), embora qualquer situação possa ser resolvida graficamente numa folha de papel, aplicando conhecimentos geométricos bem elementares, essa mesma situação requer que o professor amplie o significado dos conceitos mobilizados para resolvê-la de forma concreta, manuseando o instrumento.[2] Em outros termos, os conhecimentos matemáticos mobilizados de forma gráfica, em que é utilizada uma linguagem simbólica, mediada por representações e sinais (que pressupõem uma sintaxe que é independente daquela que é dada pelos movimentos físicos, ostensivos e transitórios), se perdem no processo em que requer que esses mesmos conhecimentos sejam mobilizados numa situação prática de medida em que o instrumento é utilizado.[3]
Desse modo, a reconstrução desses instrumentos, ao romper as barreiras de um saber que se constrói apenas na relação entre figuras geométricas bidimensionais, isto é, aquelas em que é esquematizada em folha de papel, propicia abordar o conhecimento matemático além de sua caracterização abstrata, lógica e racional, uma vez que ajuda a superar as dicotomias entre conhecimento abstrato e concreto, formal e informal, geral e particular etc., de tal modo a integrá-las no próprio processo da construção do saber matemático.
4 Considerações finais
Em nossos estudos, constatamos que as ações implicadas na reconstrução desses instrumentos promovem um movimento em que o conceito matemático é apreendido em seu processo de significação. Esse movimento, que conjuga procedimentos mecânicos e racionais, revela interessantes questões não só matemáticas, mas também epistemológica, que podem incentivar os professores a desenvolverem seus próprios instrumentos e encorajá-los a refletir sobre os recursos materiais disponíveis para o ensino e a aprendizagem de matemática.
Além disso, a reconstrução desses instrumentos contribui para que o professor tenha uma compreensão mais ampla da natureza do conhecimento matemático. O reconhecimento de que as formas de elaboração e de transmissão do conhecimento matemático não são fixas não só dissolve as fronteiras disciplinares, como também introduz outros aspectos do “saber-fazer” matemático, reforçando a ideia de que o conhecimento matemático é fruto de atividade humana. Nessa perspectiva, a proposta de abordar esses tratados e os instrumentos ali descritos sem julgar os conhecimentos matemáticos ali registrados, de tal forma a aprender com a sua história, pode se converter numa interessante estratégia para incentivar o professor a valorizar o debate e a discussão no processo de construção do conhecimento e, assim, ampliar a sua reflexão sobre o seu papel como docente no processo do ensino e da aprendizagem de matemática. Uma vez que a tentativa de reconstruir e usar esses antigos instrumentos matemáticos valoriza o processo e não o resultado matemático, a proposta cria um espaço de discussão e de reflexão em que o professor é visto como parte do processo de construção do saber e não meramente um transmissor de conhecimentos matemáticos.