1 Introdução
É oportuno discutir a grave crise socioambiental que se instala, cujos efeitos estão como nunca em evidência, com a humanidade se perguntando se existe saída para o impasse entre o modelo hegemônico de produção – caracterizado pelo uso desenfreado dos bens naturais do planeta visando unicamente à expansão contínua da produção e do consumo – e o necessário equilíbrio entre a sociedade e a natureza. Segundo Guimarães ( 2007, p. 88)
Os problemas socioambientais locais e globais se inter-relacionam, não são aspectos isolados de cada realidade, pois refletem um determinado modelo de sociedade e sua forma de estabelecer relações com o meio, geradora da crise socioambiental que vivemos na atualidade. Portanto, a “natureza” do problema está no atual modelo de sociedade e seus paradigmas, que ressaltam os aspectos antropocêntrico, cartesiano, individualista, consumista, concentrador de riqueza, que gera destruição em sua relação de dominação e exploração, antagônico às características de uma natureza que é coletiva, que recicla, que mantém a vida.
Assim, considerar o contexto de uma crise socioambiental, a qual apresenta uma relação direta com as adversidades socioeconômicas, isto é, com as relações sociais que despontam na diversidade de posições, interesses, lutas por justiça social diante do modo de vida capitalista adotado globalmente e na relação que se estabelece entre sociedade/natureza, vinculada à cultura do consumo onde estamos inseridos, conduz-nos a pensar em práticas sociais para confrontar o modelo social, econômico e político estabelecido.
Desse modo, posta essa realidade, a educação é vista como uma das práticas sociais que pode atuar na reorganização das estruturas sociais estabelecidas, embora não a única. No que diz respeito à Educação, é pertinente discutir quais convicções se desenvolvem no ambiente escolar, visto que, como afirma Trein ( 2012, p. 295), “a escola está marcada por uma cultura de desempenho, pela precariedade do trabalho docente e pela fragilização do compromisso ético-político que dá sentido à identidade profissional dos professores que exercem uma educação crítica” e, conforme continua apontando o autor, para Educação Ambiental (EA), a “primeira questão a ser trabalhada é a relação que podemos estabelecer entre a crise econômica [...] e a crise ambiental”.
No tocante à EA, esta tem se organizado historicamente a partir das várias tendências no campo educacional e distintos posicionamentos. Para essa pesquisa, vamos nos ater à perspectiva apresentada por Layrargues e Lima (2014), os quais identificam três macrotendências político-pedagógicas para a EA, em que podem ser identificadas as atividades pedagógicas desenvolvidas, sendo elas a “conservacionista”, a “pragmática” e a “crítica”.
Para os autores Layrargues e Lima (2014), a “macrotendência conservacionista” é uma prática que visa a despertar a sensibilidade humana em relação à natureza, tendo como fundamento norteador preservar a natureza, sem questionamentos sobre a estrutura social.
A “macrotendência pragmática” aposta na conservação dos recursos naturais paralelamente ao desenvolvimento econômico sem comprometê-lo, acredita em mudanças de comportamento individuais e tecnológicas sem colocar em questão discussões mais profundas sobre o sistema produtivo, ou seja, “se aproxima da esfera da produção e consumo, embora voltada exclusivamente aos recursos ambientais sem qualquer relação com a dimensão social e econômica” ( LAYRARGUES; LIMA, 2014, p. 29-30).
Na “macrotendência crítica”, os autores Layrargues e Lima ( 2014, p. 33) apontam a questão socioambiental como eixo norteador de todo processo educativo, evidenciando que as mudanças de comportamento individuais ou inovações tecnológicas não são suficientes para enfrentar a crise socioambiental estabelecida. Segundo os autores, é indispensável repensar os “fundamentos que proporcionam a dominação do ser humano e dos mecanismos de acumulação do capital, buscando o enfrentamento político das desigualdades e injustiça socioambiental”.
Mesmo que estudos e pesquisas em EA identifiquem a existência de diversas tendências, algumas das quais diretamente associadas ao campo educacional, é consenso que a EA tem um papel importante na formação humana e pode ser dirigida para a transformação e a superação do modelo hegemônico em que vivemos atualmente a partir do desenvolvimento do pensamento emancipado e autônomo.
Em relação às pesquisas no contexto da Educação Infantil (EI) com a EA, no entanto, poucos trabalhos abordam essa concatenação, fato apontado por Kawasaki et al. ( 2009, p. 156): “uma contradição entre o discurso geral da EA que enfatiza a necessidade de desenvolver práticas educacionais para todos os públicos e níveis escolares”.
Dado relevante é também apontado por Luccas (2016) em sua pesquisa, na qual encontrou 38 de um total de 2.765 trabalhos existentes no banco de teses e dissertações da EA denominado Estado da Arte da Pesquisa em EA (EArte), para o período de 1981 a 2012, e que são direcionados a EI, representando apenas 1,37% do total da produção.
Nesse sentido, como apontado nas pesquisas, há uma carência de estudos no campo da EA quanto à sua interseção com a EI. A partir dessa constatação, este artigo se propõe a contribuir para estudar a relação entre esses dois campos significativos, sendo um recorte da dissertação de mestrado realizada no município de Rio Claro-SP. 1 Na dissertação registra-se estreita relação entre as políticas para o meio ambiente e a Secretaria Municipal da Educação, em cuja estrutura há uma Coordenadoria de EA para orientar e realizar ações, situação que não é comum na maioria das cidades.
Assim, partindo da importância da atuação dos educadores no desenvolvimento de atividades relacionadas à EA, buscamos identificar as concepções pautadas em uma abordagem crítica nos relatos dos professores ao descreverem as práticas relacionadas com a EA.
2 A Educação ambiental e seu desenvolvimento na educação infantil
Na perspectiva de uma pedagogia voltada a garantir o desenvolvimento integral da criança, como é proposto na EI, em que o professor é o mediador que conduz, estimula e incentiva a curiosidade das crianças, instiga sua interação com o meio, com os objetos e com as pessoas para explorar, pensar, questionar, levantar hipóteses e, assim, desenvolver seu conhecimento, identifica-se essa etapa da educação escolar como uma oportunidade para que a EA aconteça.
Posto que a aprendizagem acontece a partir do nascimento, nota-se que as crianças, desde pequenas, são “capaz de estabelecer relações com o mundo que as cerca” e que, em circunstâncias apropriadas de vida e de educação, apropriam-se de “conhecimentos, dominam procedimentos mentais, desenvolvem intensamente diferentes capacidades práticas, intelectuais, artísticas e formam as primeiras ideias, sentimentos e qualidades morais” ( MELLO, 2007, p. 90).
Com base nesse pressuposto, a Teoria Histórico-Cultural (THC) pondera ser relevante considerar, além das condições biológicas do ser, cada contexto cultural para seu desenvolvimento no processo educativo, bem como as mediações que são proporcionadas por parceiros mais experientes para seu crescimento como ser humano, significando um processo de humanização.
Nesse sentido, Oliveira ( 2010, p. 122) afirma que as propostas pedagógicas na EI, quando elaboradas com a finalidade de motivar a autonomia da criança e promover sua inserção na sociedade, procuram desenvolver algumas condições importantes como sensibilidade, solidariedade e senso crítico. Ainda argumenta o autor que a função sociopolítica pedagógica da EI deve auxiliar no desenvolvimento das crianças para que “se faça em direções mais críticas, afetuosas, lúdicas, colaborativas, solidárias” no sentido de opor-se à desigualdade e às hostilidades nas quais a sociedade se encontra.
Nesse panorama, Santana (2010, p. 354) apresenta uma importante consideração sobre os educadores e as práticas desenvolvidas na EA, alertando que os mesmos devem compreender as principais referências teóricas que fundamentam suas práticas pedagógicas, com o objetivo de evitar a “visão do senso comum, sem objetivos, com visões ingênuas, que apenas descrevem aspectos naturais do ambiente ou se atêm à sensibilização, que seguem modismo comum ao meio educacional”.
Assim, ressaltamos a importância dos educadores e sua percepção para o ato educativo, nesse caso na EI, que busca garantir à criança o acesso a práticas educativas que lhe permitam ampliar, diversificar as experiências e os conhecimentos, sem separar o educar e o cuidar ou enfatizar um em detrimento do outro.
O cuidar é parte integrante do processo educativo na EI, tendo como foco o desenvolvimento da criança em todos os seus aspectos, seja pessoal, social ou cultural, como alguém que também é produtor de cultura. Nesse sentido, o cuidar não está apenas relacionado com particularidades higiênicas, mas imbricado em todo o processo das relações humanas. Cuidar de crianças, no contexto educativo, demanda trabalhar o conjunto dos variados aspectos, e o educador “deve estar receptivo, aberto, atento e sensível para perceber aquilo de que o outro precisa” ( KRAMER, 2005, p. 82).
Nesse processo de entendimento, faz-se necessário, por parte do educador, perceber a importância do cuidar e as dimensões que o abarcam; “[...] o ato de cuidar modifica-se, porque está para além do simples limpar, alimentar[...] cuidar significa, também, produzir o humano no próprio corpo da criança e sua relação com ele” ( ARCE, 2010, p. 32).
O cuidar, como parte da nossa constituição como seres humanos, enquanto natureza do homem no mundo, considera o cuidado na definição apresentada por Carvalho (2004): “ao ressignificar o cuidado para com a natureza e para com o Outro humano como valores éticos-políticos, a EA crítica afirma uma ética ambiental, balizadora das decisões sociais e reorientadora dos estilos de vida coletivos e individuais”.
Nesse contexto de desenvolvimento do processo educativo na EI, percebe-se que educar crianças é complexo, visto que há necessidade de considerar diversos aspectos e compreender que o educar constitui considerar o ser na totalidade por meio de práticas educativas que conduzem as crianças para a aquisição das máximas qualidades humanas. Vale considerar, no entanto, que trabalhar a EA na EI por viés crítico também se apresenta como uma tarefa complexa, posto que abordar a temática ambiental em uma perspectiva apenas conservacionista ou pragmática não dá conta do desenvolvimento por completo de numa proposta de EA.
Em relação ao trabalho pedagógico com a perspectiva crítica da EA na EI, é significativo considerarmos a constituição de um sujeito engajado politicamente desde criança, e para isso é necessário elaborarmos atividades que se distanciem de práticas ingênuas, que visem somente a mudança de comportamentos, e oferecer oportunidade para que as crianças, desde pequenas, sejam participativas, tenham o direito a escolhas, reflitam sobre essas escolhas e, com isto, possam se construir como sujeitos autônomos.
Nesse sentido, Luccas ( 2016, p. 170) apontou caminhos que possibilitam ampliar e explorar diversas linguagens que resultarão numa aprendizagem significativa. Nas palavras da pesquisadora, “diversos procedimentos didáticos que especificam as práticas pedagógicas na educação infantil permitem o trabalho em EA”. Ou seja, as práticas pedagógicas desenvolvidas na EI podem ser articuladas com a EA, ressaltando aspectos que podem ser inseridos nas práticas como possibilidade de desenvolvimento na EI em uma perspectiva crítica, como roda da conversa, atividades sensoriais, contação de histórias, exploração do ambiente, oportunidade de vivências e experiências significativas, ou seja, possibilidades de a criança ser protagonista no seu desenvolvimento e processo de humanização.
Do mesmo modo, compreende-se que a condução, a mediação do professor e sua concepção de EA influenciam o desenvolvimento de práticas, favorecendo ou não a EA crítica. Em outras palavras, “o proposto pelo professor se constitui para a criança em atividade ou vivência (na perspectiva vigotskiana), senão vira mera tarefa escolar, em que a criança realiza, mas que não faz sentido para ela” ( LUCCAS, 2016, p. 171).
Partindo desse pressuposto, situações inerentes à EI são significativas. Destaca-se que os diferenciais são a forma como são conduzidos e a assiduidade com que acontecem na EI, visto que não haverá necessidade de antecipação da escolaridade. Nessa perspectiva, os estudos da THC, referenciada em Vigostki, ensina-nos que o desenvolvimento infantil “depende das mediações que lhe serão oportunizadas, da apropriação da cultura humana que lhe serão (ou não) garantidas” ( PASQUALINI, 2020, p. 74).
A educação escolar pode ser ponderada como um espaço para viabilizar mudança social apto para propiciar uma transformação relacionada com valores, ações políticas e relações econômicas, isto é, o educador se apresenta como um articulador entre as experiências vivenciadas no seu cotidiano e a EA crítica, como aponta Mello ( 2015, p. 5) ao considerar que “o acesso à cultura como fonte das qualidades humanas criadas ao longo da história, a função mediadora das pessoas mais experientes (que na escola é representada pelo professor) e a atividade que a criança realiza – precisam estar presentes nas escolas infantis” para que aconteça o desenvolvimento das qualidades humanas.
3 Desenvolvimento da pesquisa
A pesquisa em tela foi desenvolvida na rede municipal de ensino de Rio Claro-SP, especificamente na Educação Infantil.
Utilizou-se de uma abordagem qualitativa do tipo estudo de campo e empregaram-se três instrumentos para a investigação: questionários, entrevistas e análises de documentos. Este artigo é um recorte da análise de dados obtidos por entrevistas com professores que atendem alunos na faixa etária de 4 a 5 anos de idade.
O primeiro momento da pesquisa consistiu na aplicação de um questionário, num total de 184 em 26 escolas na etapa II no ano de 2018. Juntamente foi entregue o Termo de Consentimento e Livre Esclarecido (TCLE). Houve o retorno de 102 questionários e apenas uma escola os devolveu em branco, com uma carta anexa informando que nenhum professor desejou aderir à pesquisa.
Para escolha do grupo para a entrevista utilizaram-se critérios pré-estabelecidos, priorizando o entendimento manifestado sobre EA e o desenvolvimento com certa frequência/regularidade de práticas pedagógicas no trabalho com EA (respostas fornecidas em questionário).
Foram convidados 11 professores, dos quais seis aceitaram participar. Dos entrevistados, cinco apresentam apenas graduação e uma participante possui mestrado em Educação.
3.1 Os resultados em discussão
Neste subitem apresentamos um recorte da análise das entrevistas alicerçado pelos fundamentos teóricos. Os entrevistados serão aqui designados como A, B, C, D, E, F.
Para iniciar o processo de análise, foram selecionados excertos das entrevistas que expressam intenções pedagógicas voltadas para a transformação socioambiental.
- Um trabalho de corresponsabilidade no conhecimento da realidade socioambiental proporcionando múltiplas experiências para levar à compreensão das diferentes relações entre a natureza e a cultura, ambiente este que é constantemente lido, relido e alterado por nós. (Professor B) (grifos da autora)
- Sensibilização para o meio ambiente e conscientização sobre às questões ambientais, partindo do lugar em que se vive. Compreender-se como parte do meio ambiente, parte de um coletivo responsável pelas transformações relacionadas à natureza. (Professor E) (grifos da autora)
Os excertos dos depoimentos vão ao encontro do que afirmam Layrargues e Lima ( 2014, p. 11) quando apresentam a macrotendência crítica, em cuja perspectiva é necessária a “[...] incorporação das questões culturais, individuais e subjetivas que emergem com as transformações das sociedades contemporâneas, a ressignificação da noção de política, a politização da vida cotidiana e da esfera privada”.
Foram encontrados, no entanto, pontos divergentes em um discurso coerente com os propósitos da EA crítica e uma dificuldade em manter esse propósito nas práticas pedagógicas, visto que, nos depoimentos, parece predominar não só uma concepção voltada para a preservação e a conservação, mas também uma visão de construir uma consciência crítica, como se observa na seguinte transcrição: “a EA está presente em ações e formações de atitudes que incentivem a conservação e preservação do meio ambiente, visando construir uma consciência crítica e consciente nas pessoas, buscando resolver questões ambientais” (Professor D).
Desse modo, em relação aos trabalhos desenvolvidos de EA, destacam-se algumas respostas sobre as práticas desenvolvidas nas escolas e a visão que os professores apresentam em relação aos trabalhos realizados, como, por exemplo, a observação do ambiente do entorno da escola, a atividade de campo e a visita à margem de um rio, ressaltados como atividades que demonstraram maior envolvimento das crianças, bem como experiências e vivências contextualizadas.
Pelas afirmações dos professores é possível constatar que, quando a criança se envolve com atividades conectadas à sua realidade, estas ganham sentido e significado, bem como sua participação se torna mais efetiva. Os passeios podem ser vistos como uma forma de proporcionar momentos de interação, vivências, em razão de favorecer a observação, a contemplação, a apreciação e o despertar da curiosidade para novos significados e aprendizagens com base nas relações estabelecidas, dado que, “na perspectiva de uma EA crítica, a formação incide sobre as relações indivíduo-sociedade” e, ainda, que a “tomada de posição de responsabilidade pelo mundo supõe a responsabilidade consigo próprio, e com os outros e com o ambiente, sem dicotomizar e/ou hierarquizar estas dimensões da ação humana” (CARVALHO, 2004, p. 20).
Vale ressaltar que, durante a entrevista, a professora B afirmou apresentar alguns receios de sair com as crianças, mas que foram superados pela experiência prática: “Toda quarta-feira, na escola que eu trabalhava, têm um passeio cultural, dar uma volta no bairro. No início eu falei, eu não vou, eles são pequenininhos, mas aí a gente ia passear pelo bairro e era muito legal”.
Nesse sentido, é possível questionar se outros professores saem do “emparedamento” e enfrentam seus receios ou permanecem a maior parte do tempo na sala, sem proporcionar aos alunos experiências de contato com o mundo externo, tanto natural como social. Nesse aspecto, Guimarães ( 2007, p. 91) afirma que um rumo apontado na perspectiva crítica “é o da ampliação do ambiente educativo para além dos muros da escola, superando a fragmentação e a dualidade que tradicionalmente não se complementam entre educação formal (escolar) e não-formal”, e ressalta a importância de os movimentos externos estarem integrados ao contexto educacional, contextualizando o “processo formativo das ações cotidianas de constituição da realidade próxima, local, na comunidade à qual a escola está inserida, mas sem perder o sentido que esta realidade próxima é influenciada e influi na constituição da realidade global”.
Assim, aportados na THC, a qual tem como base o caráter humanizador em uma perspectiva de máximo desenvolvimento das crianças, apresenta-se para nós que o papel da educação escolar é provocar e criar capacidades que provoquem transformações qualitativas nos indivíduos, isto é, o acesso e a apropriação à cultura histórico e socialmente acumulada, e demonstrar que as práticas voltadas para o desenvolvimento integral da criança se articulam com a necessidade de pesquisa, envolvimento, hipóteses, vinculando os novos aprendizados com o que já está consolidado.
Nesse aspecto, verificou-se também, a partir das respostas das professoras, que, embora trabalhem com projetos, alguns ganham mais relevância que outros. Quanto aos projetos sugeridos pela Secretaria Municipal de Educação (SME) ou pela própria escola, nas entrevistas, vários professores se manifestaram criticamente por considerá-los superficiais, compartimentados e fora do contexto de vida das crianças, como se observa no excerto “[...] eu tenho que dar uma reformada porque não dá, é de caixinha, por mais que fale que não dá para trabalhar compartimentado, não conseguem enxergar que está compartimentado” (Professora A), ou, ainda, quando o professor C afirma “[...] bem empobrecido assim, tanto de sentido, como de fundamentação mesmo, eu acho uma coisa rasa”.
Ainda com relação a projetos, Loureiro ( 2004, p. 22) declara que “a superficialidade no debate teórico e entendimento dos atuais projetos [...] é nociva ao processo de consolidação de uma EA que se pretenda diferenciada da educação tradicional e conservadora”. Nas entrevistas, fica evidente uma insatisfação em relação a esses projetos, o que pode ser explicado pelo fato de terem uma participação pequena na sua elaboração, sendo geralmente orientados somente para a aplicação de tais práticas pedagógicas.
Além disso, o professor C exprimiu que não segue um projeto específico de EA, mas trabalha cotidianamente: “[...] eu não faço um projeto de EA, a minha prática está muito embasada no que entendo de EA, que para mim é uma concepção de educação, não é uma parte, é uma concepção inteira de educação”, o que comunga com a perspectiva de Carvalho (2004, p. 17), que já questionava a respeito de adjetivar a educação de “ambiental”, uma vez que, em sua concepção, toda educação já é ambiental. Alerta, no entanto, que o adjetivo ambiental constituiu um valor substantivo e “uma qualidade que não pode ser facilmente descartada sem o prejuízo da identidade de que hoje reconhecemos como Educação Ambiental”.
Saber quais eram as motivações e o interesse por desenvolver projetos ou atividades relacionadas com EA pelos professores foi um dos questionamentos. Alguns deixaram evidente que o interesse partiu das crianças, outros elaboraram seus projetos a partir da observação do grupo pelo professor e para atender às necessidades demonstradas pelas crianças.
Nas palavras do professor D, “um projeto meu parte do interesse das crianças[...] eu monto com eles, eu vou de acordo com as necessidades do grupo”. Outra professora declara que é por meio da observação que seus projetos ganham vida: “Acontece, por exemplo, se tem dificuldade de alimentação, eu vou fazer um projeto de alimentação saudável [...] surgiu das crianças sim, mas não da fala delas, mas de observar as crianças” (Professor B). Já o professor F apresenta que:
- Os dois movimentos ocorreram em minha prática. Já desenvolvi o tema a partir de um interesse meu, inserindo o tema através de histórias e rodas de conversa, bem como os trabalhos envolvendo EA já surgiram a partir do interesse dos alunos, mesmo que indiretamente, como por exemplo, o estudo de insetos e, a partir deste interesse fui inserindo assuntos pertinentes a EA, como, o impacto da poluição, o uso de inseticidas em plantações etc. (Professor F)
Nesse sentido, destacamos o papel fundamental do professor no processo de mediação nas relações das crianças com parceiros mais experientes, com seu meio social e com a cultura, com o mundo. Conforme aponta Mello ( 2009, p. 12), “a atividade das crianças em situações significativas em parceria com os adultos em espaços intencionalmente organizados para promover a expressão infantil e o acesso das crianças à cultura” cria premissas favoráveis para o processo de humanização. A THC defende que o trabalho desenvolvido pelo professor ocupa um lugar privilegiado, visto que medeia as relações estabelecidas das crianças com o mundo, contudo é essencial um trabalho direcionado, organizado, intencional e planejado, ou seja, buscamos nas implicações pedagógicas da THC evidenciar a importância do papel intencional do professor no desenvolvimento das crianças. Mello ( 2009, p. 2) ainda pondera que:
[...] a intencionalidade do/a professor/a orientada pelo profundo conhecimento das regularidades do processo de desenvolvimento biológico e cultural, e dirigida para apropriação das máximas qualidades humanas é condição essencial, ainda que não suficiente, para a formação das marcas do humano nas crianças.
Ao serem inquiridos sobre as fontes de pesquisas e de informações utilizadas no desenvolvimento das atividades relacionadas à EA, os professores responderam que se apoiam em materiais encontrados na Internet, em práticas dos colegas que consideram interessantes e nas orientações dos professores coordenadores, mas uma das repostas atribuiu um valor significativo à troca de experiências, seja com uma colega de trabalho ou até mesmo com parentes.
Entende-se que a troca de experiências com colegas ou outras pessoas agrega conhecimentos à prática e à formação docente, sendo que, dessa interação, podem surgir projetos interessantes, além de possibilitar a reflexão sobre a prática escolar e a produção de novos saberes. Nesse panorama, Guimarães ( 2007, p. 92) contribui ao afirmar que, nesses momentos, as escolas devem oferecer a instituição e a apropriação de “[...] espaços possíveis, onde os princípios participativos possam se expressar na perspectiva construtivista de novos saberes e práticas que estimulem a organização coletiva e espaços colaborativos de ruptura da armadilha paradigmática”.
Outra fonte de inovação vem das próprias crianças, que, ao interagirem, estimulam o ambiente de troca de conhecimentos e de atividades. Nas declarações da Professora D, “Geralmente tem projeto que as crianças de outras classes querem ver [...] ver o que tá acontecendo porque eles comentam entre eles, tem envolvimento quando o tema é interessante, quando eles se interessam”.
Sobre a participação das crianças, os professores afirmaram ser positiva e que, nessa faixa etária, existem a curiosidade e as intervenções criativas das crianças, sempre se percebendo a vontade de realizar novas vivências, além de compreender o mundo circundante. Acreditam também que é importante valorizar a capacidade das crianças, pois elas demonstram ser maduras para compreender alguns assuntos. Assim, como expressou a Professora A, “A gente falou de alcoolismo, de igual para igual e sem preconceito [...], falamos sobre drogas, eu vi que era importante, que eles estavam entendendo, você vai vendo o amadurecimento, e não precisa usar uma linguagem infantilizada”.
Ainda, na fala da Professora A, é perceptível uma sensibilidade para compreender a realidade social em que as crianças estão inseridas e, a partir dela, oferecer ambiente e experiências que contribuam para desenvolver conhecimentos e capacidades.
- É importante você trabalhar EA, só vivendo uma coisa diferente porque a gente tem aqui o córrego, tem famílias que moram em barracos aqui, e eles tomam banho com caneca da água que os vizinhos cedem, fazem o cocô, xixi em buracos, agora as crianças estudam aqui, é aqui eles têm que aprender [...]. Alguém também precisa mostrar que existe outro lado. (Professora A)
Ao refletir sobre essas compreensões, de acordo com Pasqualini ( 2020, p. 74), a THC nos ensina que “as condições históricas concretas, o lugar que a criança ocupa no sistema das relações sociais, suas condições de vida e educação são determinantes para que possamos compreender o desenvolvimento psíquico” da criança.
Em relação ao trabalho docente realizado, vale ressaltar o papel fundamental no desenvolvimento infantil, visto que poderá proporcionar às crianças o encontro com a cultura em suas diversas formas de manifestação. Nesse sentido, a criança, na perspectiva da THC, apresenta-se capaz de transformar sua curiosidade em conhecimento e promover seu desenvolvimento enquanto humano como consequência de suas vivências e experiências.
Outro aspecto relevante foi o Professor C convidar a pesquisadora para conhecer a escola, situação vivenciada apenas nesse lugar. Nesse momento percebeu-se um apreço muito grande pelo espaço escolar, ressaltando-se que as crianças desse professor costumam ficar mais no espaço externo do que propriamente na sala de aula.
Um dos documentos trazidos para a entrevista, pela sua relevância para a educação, foi a Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Constatou-se que os professores, ao serem perguntados sobre isso, ainda estão se aproximando desse documento e não conseguem fazer uma análise pertinente sobre a presença da EA nele. Em um dos excertos percebem-se descrença e desconhecimento, como:
- Tenho umas críticas do que vem sendo pensado para educação. Se você pensa Educação de uma forma pobre, vai acontecer a EA de uma forma pobre também. Eu acho que é cascata né, educação, EI, EA. A EA coitada, é tipo pensar nos graus de ensino né. Superior, então eles recebem uma verba, né teoricamente, aí vem o médio que tem sua maior importância. Se eu fosse professor de superior era de outro status, eu acho que é um pouco isso, e a EA é mexer com plantinha né, fecha a torneira para salvar água do mundo, lorota. Porque eu acho que é isso não é a concepção de EA para mim. Crítica e construtiva mesmo, é você pensar sobre o monopólio da água, sobre quem que está usando água, como é essa história de Água aí. Eu que tenho que fechar a torneira porque vai acabar a água do mundo, eu tenho que tomar banho em 5 minutos, mas tipo, eu não vou salvar o mundo com isso aí, vamos parar de contar mentiras para as crianças, é uma grande mentira, a gente tá ensinando errado. A crítica nós temos que questionar - Como é o manejo da água? (Professor C)
Nesse sentido, a Associação de Pós-graduação e Pesquisa em Educação ( ANPEd, Moção 12, 2015, p. 1), na 37ª Reunião Nacional, apresentou um número de posicionamentos críticos relativos à BNCC e, na Assembleia Geral da mencionada reunião, criou-se uma moção contrária a esse documento, a qual declara que a base “Não contempla as dimensões de diversidade na educação brasileira, o que coloca em risco o retrocesso de toda política educacional e ambiental do país”. No que tange à EI, apresenta críticas em relação à forma sucinta como é apresentada na parte introdutória da BNCC, reduzindo-se a três páginas, o que não permite uma compreensão significativa dessa fase, seu desenvolvimento e a aprendizagem das crianças.
Apesar das diversas dificuldades apresentadas, vale ressaltar que foram encontradas experiências interessantes e que contribuem para que uma EA na perspectiva crítica aconteça e para que surjam alguns possíveis caminhos para a superação da crise socioambiental.
4 Considerações finais
Ao considerar que a EA historicamente vem se consolidando e apresenta muitas teorias e práticas, convém o exercício de uma análise crítica dos caminhos percorridos por esta pesquisa, esperando contribuir para uma EA comprometida com uma visão emancipatória e transformadora e visando a uma sociedade igualitária que supere a crise estabelecida.
Na análise dos resultados, identificam-se, no diálogo estabelecido, evidências de uma concepção de EA socioambiental crítica, assim como um movimento de inserção de práticas pedagógicas diversificadas para o desenvolvimento integral da criança, ou seja, seu processo de humanização, alicerçadas na THC que estabelece a importância da educação no processo de desenvolvimento da natureza social do homem, ou seja, da apropriação das qualidades humanas.
Ressalta-se, ainda, a necessidade de oferta de formação continuada aos professores pela SME, contemplando a complexidade do campo da EA e a possibilidade de reflexão sobre as práticas desenvolvidas e as concepções adotadas.
Partindo da premissa de que as práticas pedagógicas desenvolvidas nas escolas pelos professores entrevistados buscam permitir às crianças condições para que todos participem ativamente da sociedade, uma vez que propõe atividades vinculadas à realidade social, e não apenas à transmissão de conhecimentos ou à descrição de aspectos biológicos, compreende-se que há possibilidades de transformação da realidade.
É fundamental ressaltar que este trabalho possibilitou reflexões e apontou para perspectivas que precisam ser aprofundadas. Entre outros aspectos, considera-se necessária mais investigação sobre quais elementos são indispensáveis nas formações continuadas para apoiar os professores no desenvolvimento de uma perspectiva crítica da realidade socioambiental e da THC. Ademais, considera-se que esse trabalho pode contribuir politicamente para repensar a forma e as práticas pedagógicas que subsidiam os professores da rede municipal de ensino de Rio Claro.